adi leite
rio pinheiros
águas em coma Sem esperar a despoluição, intervenções ao longo do Rio Pinheiros abraçam, desde já, alguns preciosos quilômetros da malha hidrográfica que não foram soterrados na cidade. As obras tentam trazer a presença humana de volta às margens e lembram: rios são aliados, e não inimigos da qualidade de vida urbana Por luisa cella
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e caiaques, que boiavam e encalhavam em ilhas de entulho ao longo do Rio Pinheiros, atraíram olhares ao leito esquecido e encravado numa cidade cujo processo de desenvolvimento deu as costas a suas águas. Da rede hidrográfica altamente canalizada, os cursos que resistem ao ar livre nos dias de hoje são, invariavelmente, confundidos com esgoto ou vistos como um problema pela população, associados a enchentes, mau cheiro e acúmulo de mosquitos. No caso crônico do Pinheiros, encerrou-se recentemente mais uma tentativa frustrada do poder público de despoluí-lo. Já que a técnica química conhecida como flotação (separação de partículas) não resultou em boas notícias, iniciativas diversas, implantadas durante as últimas décadas, provam que a revitalização já está acontecendo.
Instalação com bonecos do artista Eduardo Srur, realizada em 2006. DIVULGAÇÃO
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foto ao lado consegue desorientar qualquer paulistano. Afinal, décadas correram desde o tempo em que cenas como esta eram comuns. Não fossem bonecos, os atletas se veriam expostos a males como hepatite, diarreia, febre tifoide, cólera, amebíase, giardíase, esquistossomose e leptospirose, entre outros, conforme garantem especialistas. “A ideia se mostra tão absurda que não dá nem para considerar. Eles estariam suscetíveis a diversos tipos de doença de veiculação hídrica. É esgoto bruto”, diz René Schneider, professor do departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Foi justamente daí que surgiu a inspiração para o trabalho do artista plástico Eduardo Srur, em 2006. Os bonecos
ROGÉRIO MONTENEGRO
Para planejar os canteiros, há cerca de 20 anos, os técnicos do Projeto Pomar precisaram levar em conta redes de transmissão de energia, emissários de esgoto e cabos de telecomunicações.
“O rio não está morto”, indigna-se o geógrafo Luiz de Campos Jr. quando escuta tal afirmação durante uma entrevista. “Podem alterar, canalizar e retificar seu curso, porém matá-lo é tarefa praticamente impossível”, defende. Há quatro anos, ele lançou com o arquiteto José Bueno a iniciativa Rios e Ruas, que busca mapear a bacia hidrográfica da cidade e conscientizar a população sobre a importância dela. No Pinheiros, a descaracterização começou por volta de 1928, com o início da construção da Represa de Guarapiranga, e passou por outro momento determinante em 1970, época da inauguração da via marginal.
As matas ciliares e a vegetação natural minguaram até zero em vários trechos urbanos, contudo um comparativo entre a paisagem do final da década de 90 e a dos dias de hoje comprova: houve expressiva melhora, ao menos no que diz respeito à condição das margens. Como grande responsável, destaca-se o Projeto Pomar (atualmente, Pomar Urbano), lançado pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SMA) em 1999. Estima-se que tenham sido plantadas mais de 300 mil mudas ao longo de 26 km dos canteiros esquerdo e direito. As cerca de 250 espécies, entre árvores, arbustos e forrações, atraíram a fauna de volta ao local.
“pode não ser o ideal, mas há fauna e flora ali. vejo a situação como um estado de coma regressivo” luiz de campos jr., geógrafo 126
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“O curso dos rios proporciona área ideal para pedalar. canalizá-los para construir avenidas sobre eles é um erro”
MARCO ANTONIO
renata falzoni, cicloativista
Ciclistas na pista alocada entre as águas contaminadas e os trens da CPTM.
Explorar o desenho das águas é solução estratégica quando se planeja a mobilidade, já que, topograficamente, os caminhos da bacia hidrográfica tendem a ser mais planos e contínuos. Em São Paulo, porém, o modelo rodoviário levou à canalização maciça dos leitos. O Pinheiros teve margens e áreas de várzea cimentadas para a chegada das marginais. Além de impermeabilizar o solo, a obra afastou ainda mais as pessoas do rio. A maior proximidade só acontecia quando se estava dentro de um vagão da linha 9 da 128
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Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) ou dos veículos de passagem. O cenário seguiu assim por mais de quatro décadas, até a inauguração da ciclovia na margem leste, em 2010, pelo então governador José Serra. “Pressionamos o poder público para criá-la desde a década de 80. Em 1988, o arquiteto Pedro Taddei, professor da USP, já propunha sua implantação para treino dos alunos da universidade. Outros arquitetos, como Sérgio Luiz Bianco, também batalhavam pela causa”, diz a cicloativista e jornalista
Renata Falzoni. Contando os 21,50 km dessa pista, a metrópole soma, hoje, tímidos 60 km de ciclovias dispersas. Investir nesse modo de deslocamento não só oferece uma alternativa ao trânsito carregado das grandes avenidas como também reaproxima os moradores das águas. “As pessoas enxergam os rios como parte isolada, e não integrada. Não entendem a topografia da cidade porque perderam a noção de escala humana. Quem se locomove com a própria energia vê as ruas de forma diferente daqueles que se movem com o petróleo”, afirma Renata.
PEDRO KOK
“atrair a atenção para o rio é um avanço. não dá para esperar a despoluição: temos de mudar a cabeça das pessoas já” luis capote, arquiteto
Em dezembro de 2013, a ciclovia do Rio Pinheiros ganhou um novo trecho com a inauguração da passarela construída sobre o canal de Guarapiranga, na zona sul da capital. Uma parceria público-privada tirou do papel o projeto de ponte móvel para ciclistas e pedestres, capaz de conectar os bairros de Capela do Socorro e Jardim São Luiz à estação Santo Amaro da CPTM, no lado oposto do leito. Interessada em financiar a 130
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LEONARDO FINOTTI
No alto, destaque para um dos dois canteiros centrais de 12 m de diâmetro, cobertos de espécies típicas da Mata Atlântica. À dir., a ponte móvel no modo aberto libera a passagem de embarcações.
obra – inclusive porque ela facilitaria o acesso de seus funcionários à sede da empresa –, a Bayer custeou a ideia estimada em R$ 5 milhões, assinada pelos profissionais do escritório Loeb Capote Arquitetura. “Nós nos preocupamos em não fazer a ponte alta, já que rampas muito acentuadas tornariam difícil a travessia, além de agredir a paisagem”, fala o arquiteto Luis Capote. Como a altura é de apenas
2,50 m em relação ao nível do rio, criou-se uma estrutura móvel, rotacional, que permite a passagem de embarcações. “A região era muito isolada, com acesso somente de carro. Agora, está ligada ao trem, e é possível chegar a pé ou de bicicleta.” Inspirados no formato da vitória-régia, os canteiros centrais receberam jardins elaborados pela empresa SkyGarden com espécies nativas.
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À esq., o espaço de convivência da Praça Oliveira Penteado, de 3,5 mil m2, localizada no bairro do Butantã. À dir., o desenho mostra o futuro caminho para pedestres e ciclistas, que fará a ligação com o outro lado da Marginal.
Se as intervenções apresentadas nas páginas anteriores envolvem questões socioambientais e mobilidade, essa trata de outro não menos importante tema associado à qualidade de vida: o lazer. Uma praça colada no rio, nas marginais e em dois viadutos, poderia soar como ideia fracassada. Mas o projeto do arquiteto Mauro Munhoz provou o contrário. Ainda existia solução para aquela área erma de passagem situada ao lado das pontes Eusébio Matoso e Bernardo Goldfarb. Foram quatro meses de reforma até a inauguração da Praça Oliveira Penteado, em maio deste ano. “O primeiro problema era resolver a sensação causada pelo tráfego
em alta velocidade nas vias. Ninguém conseguiria relaxar ali”, conta Mauro, que dirige a Casa Azul, a organização da sociedade civil de interesse público autora da solução, viabilizada por uma parceria público-privada. Para isso, ergueu-se um talude coberto de vegetação no entorno do terreno, o qual funciona como barreira acústica e visual. O paisagismo de Raul Pereira plantou 74 mudas de espécies nativas da Mata Atlântica. Segundo Mauro, a proposta tem, ainda, sua segunda etapa – um caminho para pedestres ligará a praça ao outro lado do rio (desenho acima). “Temos recursos para fazer de São Paulo uma cidade humana e qualificada.”
“intervenções como essa são a forma mais interessante de interceptar o processo de poluição” mauro munhoz, arquiteto 132
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imagens: 1. MARCELO MIN 2. DIVULGAÇÃO
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repensar a CONVIVÊNCIA
fotos: centro pró-memória hans nobiling/divulgação
No processo de desenvolvimento da cidade, o homem, munido da capacidade de impor novas configurações à natureza, fez escolhas que o afastaram dos rios e das várias atividades de lazer que o leito deles é capaz de proporcionar
Acima: no Rio Pinheiros, nos anos 20, as áreas conhecidas como cochos eram utilizadas para natação pelos sócios do Sport Clube Germânia (hoje chamado Esporte Clube Pinheiros). Abaixo: barcos para a prática do remo saindo do ancoradouro, na década de 30.
As possibilidades que o Rio Pinheiros oferecia ao cenário urbano foram consideradas desde o primeiro grande projeto que balizou o desenho da capital paulista durante sua expansão: o Plano de Avenidas de São Paulo, projeto de 1930 escrito por Prestes Maia. O documento estipulava a criação de jardins com corredores arborizados, instalações esportivas, circulação rápida, linhas de alta velocidade e navegação em seu leito. No entanto, a incapacidade de administração pública fez as medidas que tratavam da conservação dos recursos naturais, como proteção do solo e da vegetação, ficarem em segundo plano. Não apenas nessa mas em várias outras passagens da história da cidade, prevaleceram os interesses econômicos de um urbanismo rodoviário. Como consequência, o Pinheiros, antes adequado 146 Arquitetura & Construção julho 2014
à prática de esportes, tornou-se o destino de esgotos residencial e industrial. E suas margens, cujos solo e topografia já atraíram futebolistas de vários times – popularizando, inclusive, a expressão “futebol de várzea” –, viram-se aterradas para a chegada de fábricas, ferrovias e empreendimentos imobiliários. “Não existe nada mais importante na história da humanidade do que os rios. Conseguimos marcar tempo e espaço por meio das cheias e vazantes e percebemos o território graças a eles. Inúmeras cidades foram fundadas com base em suas águas.” A declaração de Alexandre Delijaicov, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), leva à reflexão sobre os cursos de nossa capital e nos indica que, até agora, temos remado na direção errada.