P O V O A D OD E B I R I B I R I
L U I S A MO T T A P E T A R QU F MG
G Ê N E S ED A SC I D A D E S I N D Ú S T R I AN AMI N A SO I T O C E N T I S T AE S U P O R T E ÀME MÓ R I AC O L E T I V AD I A MA N T I N E N S E
LUISA GRASSI MOTTA E SILVA
POVOADO DE BIRIBIRI: GÊNESE DAS CIDADESINDÚSTRIA NA MINAS OITOCENTISTA E SUPORTE À MEMÓRIA COLETIVA DIAMANTINENSE
Belo Horizonte Escola de Arquitetura da UFMG 2014
LUISA GRASSI MOTTA E SILVA
POVOADO DE BIRIBIRI: GÊNESE DAS CIDADESINDÚSTRIA NA MINAS OITOCENTISTA E SUPORTE À MEMÓRIA COLETIVA DIAMANTINENSE
Monografia apresentada ao Programa de Educação
Tutorial
PET
Arquitetura
PROGRAD/UFMG/SESU/CAPES/MEC, como requisito à obtenção do título de Petiano/Iniciação Científica em Arquitetura e Urbanismo. Área de Concentração: Análise Crítica e História da Arquitetura e do Urbanismo. Orientadora: Profª Drª Celina Borges Lemos
Belo Horizonte Escola de Arquitetura da UFMG 2014
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FICHA CATALOGRÁFICA
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À querida Celina Borges, Orientadora, tutora e amiga, expresso toda a minha gratidão e carinho.
Aos meus pais, Meu suporte, meu porto seguro, meus maiores exemplos.
Para meus avós, Luisa e Paulo, Pela grande ternura presente em minhas lembranças construídas em Diamantina.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à oportunidade oferecida pelo Programa de Educação Tutorial PET Arquitetura, viabilizando em mim o desenvolvimento de um grande interesse sobre as atividades de pesquisa acadêmica. Todo o processo não teria sido possível sem o constante apoio da Profª Drª Celina Borges, que durante todo o meu período como bolsista ofereceu, com muito carinho, suporte em tudo o que precisei, além de sensíveis conselhos e opiniões. Agradeço ainda o convívio com os amigos petianos, companheiros nas atividades de pesquisa e também fora do espaço da universidade, sempre unidos enquanto grupo. Por fim, reconheço ainda o constante apoio familiar, compreendendo todo o tempo dedicado à conclusão deste trabalho.
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"Cada geração tem, de sua cidade, a memória de acontecimentos que permanecem como pontos de demarcação de sua história" (BOSI, 1979: 339).
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RESUMO
O presente trabalho tem como objeto de estudo o povoado de Biribiri, Diamantina, Minas Gerais, detalhando-se seu processo de formação e consolidação, além das recentes mudanças pelas quais tem passado.
A
análise do objeto e de autores do tema intenciona a compreensão do papel das relações memoriais na composição do imaginário coletivo, como forma de produção de um espaço com valor cotidiano. Uma vez integrado a uma realidade cotidiana e gregária, assume-se um patrimônio passível de estabelecimento de relações de identificação e pertencimento. Abordam-se ainda processos de intervenção e conservação do patrimônio do ponto de vista da viabilização de uma rememoração livre, além da manutenção da memória coletiva e das identidades sociais. PALAVRAS-CHAVE: memória; patrimônio; cultura mineira; conservação.
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RIASSUNTO
Questa tesina ha come oggetto di studio il paese di Biribiri, Diamantina, Minas Gerais, in cui si fa un'analisi sulla sua formazione e anche sui recenti cambiamenti nella sua organizzazione urbana. Lo studio dell'oggetto e di teorici del tema si fa per comprendere l'importanza della memoria nella composizione dell'immaginario colettivo, come modo di produzione dello spazio quotidiano. Considerasi il patrimonio come uno spazio di costituizione di rapporti di appartenenza perché è integrato a una realtà sociale e dinamica. Si fa anche un'analisi sugli interventi di restauro e di conservazione nel patrimonio, difendendosi sempre la possibilità di libero ricordo e di manutenzione della memoria colettiva e delle indentità sociali. PAROLE CHIAVE: memoria; patrimonio; cultura di Minas Gerais; conservazione.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Praça da Matriz, grande centralidade à consolidação do Arraial do Tejuco, com destaque ao início da Rua Direita (ao fundo)................................18 Figura 2: Praça da Matriz, grande centralidade à consolidação do Arraial do Tejuco. À esquerda tem-se o início da Rua da Quitanda e à direita início da Rua Direita.........................................................................................................19 Figura 3: Rua Direita, Diamantina, MG..............................................................19 Figura 4: Passadiço da Casa da Glória, Diamantina.........................................28 Figura 5: Hospital Nossa Senhora da Saúde ....................................................28 Figura 6: Conjunto de residências Pão Santo Antônio......................................29 Figura 7: Capela do Sagrado Coração de Jesus...............................................30 Figura 8: Vista da casa da gerência centralizada em relação ao povoado.......32 Figura 9: Vista aérea da implantação do povoado............................................33 Figura 10: Implantação da fábrica, próxima ao rio Biribiri..................................34 Figura 11: Casa em Biribiri comprometida pela situação de abandono............57 Figura 12: Galpões da fábrica comprometidos pela situação de abandono......58 Figura 13: Casa em Biribiri descaracterizada por reformas...............................67 Figura 14: Casa em Biribiri descaracterizada por reformas para abrigar pousada.............................................................................................................68 Figura 15: Casa descaracterizada para abrigar pousada. Detalhe dos anexos construídos para construção de banheiros........................................................68 Figura 16: Galpões da antiga fábrica de Biribiri.................................................77 Figura 17............................................................................................................78 Figura 18............................................................................................................79 Figura 19............................................................................................................80 Figura 20............................................................................................................81
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Figura 21............................................................................................................82 Figura 22............................................................................................................83 Figura 23............................................................................................................84 Figura 24............................................................................................................85 Figura 25............................................................................................................86 Figura 26............................................................................................................87
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SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ...................................................................................... 13
2
CAPÍTULO 2 ......................................................................................... 17
2.1
A descoberta de diamantes e a atividade mineradora........................... 17
2.2
Ascensão da indústria têxtil mineira ...................................................... 23
2.3
Origem do povoado de Biribiri ............................................................... 24
2.4
A fundação da fábrica............................................................................ 25
2.5
As contribuições de John Rose e a arquitetura do povoado ................. 26
2.6
Formação urbana do povoado .............................................................. 31
2.7
Mudanças administrativas: família Duarte e Alexandre Mascarenhas .. 35
2.8
O povado em contexto atual .................................................................. 38
3
CAPÍTULO 3 ......................................................................................... 40
3.1
A memória social no processo de reconstrução da lembrança ............. 40
3.2
A rememoração como fortalecimento das identidades coletivas ........... 45
3.3
O cotidiano como local de consolidação do grupo social ...................... 47
3.4
O patrimônio e sua inserção no cotidiano ............................................. 49
3.5
Patrimônio e preservação: intervir e conservar em um contexto memorial dinâmico e diversificado......................................................................... 50
3.6
O turismo como consequência secundária da conservação patrimonial 53
4
CAPÍTULO 4 ......................................................................................... 55
4.1
Biribiri em contexto atual ....................................................................... 55
4.2
O povoado como patrimônio industrial .................................................. 60
11
4.3
Perspectivas e possibilidades ............................................................... 62
4.4
Movimentações atuais ........................................................................... 66
4.5
A utopia como reinvenção do povoado ................................................. 70
4.6
Biribiri em reimaginação: fotografia e poética ........................................ 77
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................. 88
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... 90
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .......................................................... 94
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1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho intenciona analisar os processos de formação e consolidação do povoado de Biribiri, Diamantina, Minas Gerais, ao longo dos séculos XIX e XX, principalmente enquanto cidade-indústria mineira de grande importância no processo de industrialização brasileiro. São detalhados ainda os processos de mudanças e os problemas sofridos pelo povoado já no fim do século XX e no XXI, traduzindo questões importantes de gestão e importância do patrimônio, especificamente industrial. A abordagem principal do patrimônio foca em sua significação aos processos mnemônicos e seu valor enquanto espacialidades de cotidianos sociais. Essas questões são analisadas ainda partindo-se das relações do patrimônio e da memória frente às identidades sociais, às necessidades de conservação, e à ascensão do turismo. Durante o curso de arquitetura e as discussões desenvolvidas junto ao PET Arquitetura UFMG, senti a necessidade de discutir o patrimônio, sua relação com a população local e seus problemas atuais. O presente estudo apresenta, portanto, grande importância para minha carreira na área de arquitetura e urbanismo em processo de delineamento. Além disso, o objeto de análise tem grande significação para minha pessoa, já que nasci em Diamantina e lá passei muitos momentos de minha vida. O fato de me relacionar diretamente com a cidade e seus platôs memoriais facilitou o acompanhamento detalhado das movimentações recentes sobre o povoado de Biribiri, no entanto, também dificultou o estabelecimento de uma posição imparcial durante a pesquisa. O desenvolvimento partiu do conceito de memória, apoiado em Maurice Halbwachs e Ecléa Bosi, como um processo coletivo de reconstrução do passado em termos do presente. Desta maneira, assume-se que a atividade de rememoração não pode ser uniforme ou padronizada, uma vez que é condicionada por questões subjetivas e particulares dos indivíduos e grupos sociais em momento de reinterpretação. Nesse instante em que determinado agrupamento social revê e reconstrói seu passado, verifica-se um reforço de uma identidade coletiva e dos vínculos entre os indivíduos e seus espaços de
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vivência. É nesse aspecto que a memória assume tanta importância, já que permite a manutenção de tradições, a permanências de sociedades específicas e a perpetuação de suas relações com o espaço e a cidade. Partindo-se do amplo legado encontrado em Biribiri, tanto em suas contribuições urbano-arquitetônicas, quanto na constituição de uma memória coletiva local, foi ressaltada a importância do patrimônio enquanto instância abrangente de aspectos materiais o imateriais. A cidade é definida, principalmente com base em Michel de Certeau, como um espaço complexo composto de exemplares patrimoniais que, tanto explicitam aspectos passados, como abrem profundidades memoriais para percepção da cidade. Todos os processos de intervenção sobre o patrimônio, dentre eles procedimentos de restauro e de conservação, não deixam de ser um registro de um momento presente sobre uma percepção de passado, registrando sobre a cidade seu caráter heterogêneo e em constante reinterpretação. Defende-se a conservação do patrimônio, como forma de também preservar as relações memoriais e dentre as questões contemporâneas referentes à conservação, é importante ressaltar suas relações com o turismo. Esse é tratado em suas duas faces, a partir de Henri-Pierre Jeudy e Françoise Choay. Seu primeiro aspecto é a grande tendência à espetacularização da cidade, uma vez que cria cenários para construção de lembranças higienizadas e já prédeterminadas. A outra face do turismo analisada foi sua possibilidade de funcionar também como uma hipótese de salvaguarda, uma vez que se apresenta como uma movimentação presente que constrói suas lembranças de maneira integrada à memória já existente no espaço patrimonial. O objetivo do trabalho é relatar uma experiência local que permite ampliar a percepção de uma parte da realidade quanto ao patrimônio brasileiro atualmente. Observa-se o frequente risco de descaracterização do patrimônio, principalmente em razão de conflitos entre setores públicos e privados, culminando tanto em inoperância, tanto em intervenções agressivas. Nesse aspecto reconhece-se o destino incerto ao qual são submetidos bens patrimoniais, principalmente aqueles que se estabelecem como propriedade privada.
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O trabalho pautou-se em uma revisão de literatura, sustentada principalmente em autores dos seguintes temas: memória, como Maurice Halbwachs, patrimônio, como Françoise Choay, e cotidiano, como Michel de Certeau e William Morris. Juntamente com o estudo teórico foram realizadas diversas visitas a campo, com execução de entrevistas espontâneas e diversas formas de registro fotográfico. Além da fotografia em câmera digital visando a explicitação objetiva dos espaços estudados, utilizou-se de fotografias analógicas e digitais em dupla exposição, no sentido de produzir também um visão subjetiva e imaginada sobre objeto de estudo. Tanto as entrevistas espontâneas, quanto as fotografias configuraram-se como suporte à análise e teorização da situação do povoado de Biribiri. O capítulo 1 traz uma breve análise do contexto de formação e estabelecimento do Arraial do Tejuco, enquanto centro urbano mineratório. O estabelecimento de um reticulado consolidou o arraial como polo de atração e como centro de uma sociedade marcada por um sincretismo cultural e, posteriormente, por uma estratificação social. Já da metade do século XIX temse um impulso ao desenvolvimento industrial brasileiro, que adquiriu força em Minas Gerais. Como parte deste momento de crescimento fabril, observa-se a constituição do povoado de Biribiri, em 1876, para abrigar e dar suporte ao funcionamento de uma fábrica de tecidos – a Fábrica de Biribiri. Adotando mão de obra assalariada em um momento anterior à abolição da escravidão, o investimento constituiu-se como um acontecimento inovador e à frente de seu tempo. Esvaziado em 1973, o povoado esteve em condição de abandono até o segundo semestre de 2013 quando foram iniciadas intervenções sobre o conjunto. O capítulo congrega todos os momentos de evolução e consolidação do povoado ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, ressaltando a situação na qual se encontra seu patrimônio urbano e arquitetônico, tombado desde 1998. O capítulo 2 consiste em uma revisão de literatura acerca do patrimônio enquanto memória e parte de um cotidiano social. Em Maurice Halbwachs (1990) apoia-se o estudo da memória, tanto em sua dimensão coletiva quanto em seu entendimento pessoal, sendo o processo de reconstrução da lembrança fortemente condicionado pelo indivíduo e pelo grupo social. O patrimônio é tratado, pois, como um espaço estável dotado de um potencial de 15
evocação memorial, uma vez que lembrança nasce e se reinventa em cotidianos
urbanos
gregários.
Por
fim,
são
analisadas
com
base,
principalmente, em Françoise Choay (2006) questões às quais o patrimônio se relaciona atualmente, como a necessidade de conservação – frente ao risco de intervenções descaracterizantes – e sua possível cenarização como resposta à indústria do turismo. O terceiro capítulo propõe uma análise, já embasada pelas conceituações do patrimônio também na contemporaneidade, das intervenções realizadas em Biribiri
desde
2013.
Nessas
atuais
modificações
observou-se
um
desmembramento da propriedade privada em sua totalidade para constituição de um condomínio privado. Considerou-se para a análise a importância do povoado enquanto sustentação à memória coletiva local, principalmente como patrimônio industrial baseado em uma vida social urbana e em uma cultura operária própria. Questiona-se e defende-se a continuidade da memória coletiva por meio da manutenção do centro urbano como conjunto vivo e dinâmico, sem, no entanto, cenarizar e descaracterizar o bem patrimonial ali presente. Por fim, o capítulo traz a exploração de uma utopia como forma de reinvenção subjetiva de Biribiri diante do risco de degradação patrimonial e memorial.
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2. CAPÍTULO 2 2.1. A descoberta de diamantes e a atividade mineradora As primeiras descobertas de diamantes em Minas Gerais ocorreram em 1714, em razão de a formação geomorfológica local ter permitido a exposição das pedras no leito de pequenos riachos da Serra do Espinhaço (ESTADO..., 1998). A Coroa Portuguesa reconheceu a descoberta do mineral, determinou monopólio sobre sua extração em 1730 e, pouco tempo depois, criou também tributos sobre as pedras extraídas e órgão de cobrança (LEMOS, 2008). O processo de manuseio do diamante apresentava restrições, sendo obrigatório seu envio em estado bruto para serem lapidados na Europa. Neste quadro delicado de exploração mineral têm-se ainda um lento avanço das tecnologias de extração e uma forte concorrência, visto que inúmeras pessoas se deslocaram para o então Arraial do Tejuco em busca de enriquecimento, a maioria proveniente da Vila do Príncipe e de outras regiões circunvizinhas. A atividade colonizadora portuguesa no Brasil envolveu a administração direta pela Coroa, o controle da produção por meio de órgãos de cobrança ou fiscalização e o povoamento. Este último deveu-se ao grande fluxo migratório e conformou-se em três manchas principais, que mais tarde definiram administrativamente três capitanias: Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Na maioria das ocupações nota-se certa concentração em uma faixa central, que daria origem aos centros urbanos, e também uma aglomeração secundária e periférica, responsável pelo abastecimento da região por meio da agricultura e da criação de gado (ESTADO..., 1998). No Arraial do Tejuco a ocupação ocorreu junto à mineração apenas em períodos iniciais, expressando-se apenas em, segundo Vasconcellos (2004: 158), “[...] ranchos esparsos e de pouca dura, erguidos sem preocupações de arruamento e ao sabor das circunstâncias”. A urbanização efetiva se deu de maneira autônoma à exploração mineral, com a criação de um centro de serviços e local da urbanidade para as minerações periféricas (LEMOS, 2008). Inclusive, posição periférica ocupada pelas minerações, quando do estabelecimento do reticulado, acabou por limitar a extensão urbana, influenciando pouco na configuração de um centro urbano (VASCONCELLOS, 2004). A atividade 17
mineradora permitiu uma ocupação rápida e ampla, algo não muito comum no Brasil colônia, em razão das atividades agrícolas e rurais desenvolvidas no país. Soma-se a isso a intensificação de uma relação, principalmente comercial, entre as regiões mineradoras, gerando um pequeno mercado interno (ESTADO..., 1998). As primeiras ocupações se estabeleceram nos núcleos do Burgalhau e da confluência da Pururuca e do rio Grande, que, posteriormente, conformaram-se como núcleos polarizados do Arraial. O reticulado do Arraial do Tejuco, como centro de gravidade e geométrico, veio a estabelecer-se em uma área consideravelmente plana, que permitia a implantação de arruamentos transversais à encosta, acompanhando as curvas de nível (LEMOS, 2008). “Estes arruamentos — Rosário, Bonfim, Carmo, Quitanda e Direita — são ainda hoje os mais importantes da cidade” (VASCONCELLOS, 2004: 161).
Figura 1: Praça da Matriz, grande centralidade à consolidação do Arraial do Tejuco, com destaque ao início da Rua Direita (ao fundo).
Fonte: CONTOS DE DIAMANTINA. s/d.
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Figura 2: Praça da Matriz, grande centralidade à consolidação do Arraial do Tejuco. À esquerda tem-se o início da Rua da Quitanda e à direita início da Rua Direita.
Fonte: CAFÉ HISTÓRIA. s/d.
Figura 3: Rua Direita, Diamantina, MG.
Fonte: RIEDEL, 1836.
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Diferente de outras cidades mineiras, o Arraial do Tejuco não teve formação linear ao longo de estradas, mas adotou uma solução quadrangular concentrada e reticular, baseada em princípios urbanísticos portugueses. No entanto, sua implantação distancia-se do modelo português em razão da ausência de praças e de centralidade de poder – casas de Câmara e Cadeia (VASCONCELLOS, 2004). A peculiaridade da formação de aglomerados urbanos brasileiros está no fato de que as povoações adotavam como base preceitos portugueses, – organização municipal, distribuição, domínio e transmissão de terras – no entanto, não havia grandes exigências, restrições ou detalhamentos sobre esse processo (MARX, 1991). Nesse sentido, as formações urbanas consolidavam-se com certa independência da metrópole, sendo também muito influenciadas por saberes locais e conformações culturais. O desenvolvimento do Arraial confirmou-se em três etapas: a primeira, de 1700 a 1720, baseada em uma ocupação esparsa; a segunda, de 1720 a 1750, quando do estabelecimento do reticulado; e a terceira, de 1750 em diante, com a sua consolidação e expansão urbana significativa. A grande e expressiva expansão, no entanto, manifestou-se apenas com a elevação do Arraial ao posto de Vila, em 1831, e posteriormente à categoria de Cidade, em 1838, proporcionando a consolidação de uma nova paisagem urbana, juntamente com uma inovadora representação cultural (LEMOS, 2008). “Nem sempre a elevação à vila ou mesmo à cidade expressava a existência de uma aglomeração de porte tal que a justificasse” (MARX, 1991: 18). Em Diamantina a elevação de seu posto foi sempre adiada pelo Estado, que atuava visando um maior controle sobre a extração e, nesse sentido, uma diminuição da autonomia urbana. O poder despótico e ilimitado dos intendentes de diamantes apenas seria compatível com o estado de arraial, uma vez que não era necessária a partilha de poder com outras autoridades civis, criminais e religiosas (SANTOS, 1956). O Arraial já havia, portanto, ultrapassado em desenvolvimento a Vila do Príncipe, mas continuava submetido a ela em razão dos motivos gerenciais da Coroa (FURTADO, 2007).
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A vida social era marcada por um intenso religiosismo, que apresentava um caráter popular, sem grandes rigores do catolicismo doutrinal, em razão do forte controle Estatal sobre as regiões mineradoras. Além disso, com a proibição de ordens religiosas regulares nesses locais, a difusão da fé cristã ficou nas mãos de sociedades leigas. Tal situação permitiu a proliferação de irmandades e confrarias laicas que, marcadas por uma forte estratificação social, favoreceram a política colonizadora, neutralizaram tensões sociais e criaram um espaço de convívio social e de conservação de traços culturais. Essas irmandades foram também responsáveis pelo financiamento, total ou parcial, de construções religiosas e de acontecimentos da vida cultural (ESTADO..., 1998). “[...] as construções religiosas, muito mais simples que as dos outros centros mineradores, dependeram, mesmo com a ajuda do poder instituído, do patrocínio do poder privado.” (LEMOS, 2008: 5). Em comparação com outros aglomerados da mineração, a população era bastante escassa em razão do forte controle exercido sobre a região. Nesse contexto atividade mineradora desenvolveu-se, desde o início, num quadro de amplo sincretismo cultural, que influenciou a arquitetura do Arraial do Tejuco (LEMOS, 2008). Na fase inicial de exploração do distrito, a população se dividia em uma minoria branca colonizadora e um grande número de negros africanos escravizados. Já na segunda metade do século XVIII, com a consolidação da vida urbana, a população continuou a apresentar uma minoria branca colonizadora e muitos negros africanos escravizados, mas passou a ser composta em sua maioria por crioulos – negros nascidos no Brasil – e pardos – mestiços e miscigenados (ESTADO..., 1998). Nesse
contexto
social,
desenvolveu-se, portanto, uma forte estratificação em decorrência da enorme concentração da riqueza por alguns dos constituintes da seleta elite branca. “O ouro era pouco, os diamantes monopolizados. Em consequência, a riqueza se concentrou nas mãos de poucos, mesmo aquela provinda do comércio, pois a de maior vulto naturalmente se reservou aos atacadistas, abastecedores da região, que se beneficiavam das condições de entreposto oferecidas pela situação do arraial” (VASCONCELLOS apud LEMOS, 2008:4).
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A limitação de suas extensões pela geografia local e o forte controle administrativo acabaram por frear o crescimento de um comércio local, tornando o Tejuco forte dependente do comércio de distribuição, que por sua vez favorecia ainda mais a concentração de renda. “Para se limitar que os escravos vendessem diamantes, não se permitiam lojas nem vendas nas circunvizinhanças do Tijuco, nem em suas entradas e muito menos nas lavras diamantinas” (SANTOS, 1956: 67). As lojas permitidas eram apenas possíveis no centro do Arraial, em que eram necessários equipamentos para o desenvolvimento da vida urbana, mas ainda eram determinadas algumas restrições: todo o negócio deveria, além de fechar impreterivelmente ao anoitecer, ser visto claramente da rua (SANTOS, 1956). “No Tejuco as oscilações da produção diamantífera pouco reflexo produziram na dinâmica urbana” (VASCONCELLOS, 2004: 165). Isso porque as riquezas advindas da exploração diamantífera eram tão concentradas, que permitiram a formação concomitante de elites plenamente estabelecidas economicamente e de classes baixas que a cotação do diamante não influenciava nos seus processos de obtenção renda. Desta forma, ao contrário das outras cidades mineradoras como Ouro Preto - em que o outro propiciava uma riqueza muito mais difusa - o desenvolvimento urbano do Tejuco não dependeu da estabilização econômica (LEMOS, 2008: 5). Pouco antes de sua elevação à Vila, durante o Governo de Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá, o Tejuco era marcado por uma forte movimentação na construção de notáveis edificações (SANTOS, 1956). O Arraial era, segundo Santos (1956: 328), notável “[...] pelo número de seus habitantes, riqueza, comércio, e ilustração, era sem dúvida a povoação mais importante da capitania”. De expressividade crescente, a paisagem cultural diamantinense revela sinais de renovação na segunda metade do oitocentos, por meio, principalmente, de expansões urbanas, requalificações e restaurações (LEMOS, 2008). Nesse sentido, tem-se uma rápida consolidação do espaço urbano cuja dinâmica econômica desenvolveu-se de maneira própria, condicionada pelos ideais culturais da população e pelas regulações Reais sobre a região.
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2.2. Ascensão da indústria têxtil mineira Em 1809, já com a presença da família Real no Brasil, foi homologado um alvará com o objetivo de incentivar o desenvolvimento das atividades industriais pelas camadas detentoras do capital. No entanto, a produção permaneceu artesanal e voltada para a subsistência até por volta 1838, com a criação de pequenas fábricas têxteis, não muito lucrativas e de existência efêmera (ESTADO..., 1998). Com medidas econômicas protecionistas, como a Tarifa Alves Branco em 1844, e com a extinção do tráfico de escravos em 1850, tem-se novamente um incentivo ao desenvolvimento de indústrias nacionais. Associado a esse desenvolvimento
tem-se
o
nascimento
de
company
towns,
que
se
conformariam como vilas industriais para abrigo da produção, da gerência e dos operários. “No Brasil, entre 1830 e 1930, o desenvolvimento das company towns concentra-se nos setores têxtil e de produção de papel e de açúcar (FONTANA; MARTINS, 2012: 5)”. A gênese de fábricas têxteis de grande representatividade ganhou força na crescente economia mineira. Minas Gerais ofereceu-se como local ideal para a instalação industrial em razão do seu potencial hidráulico, da oferta de mão de obra e de seus centros urbanos mais consolidados. O marco da nova fase industrial em Minas Gerais foi a fundação da Cia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira pelos irmãos Mascarenhas, em 1872, no distrito de Taboleiro Grande, Paraopeba. Outras fábricas de tecidos também marcaram a região, como a Companhia de Fiação e Tecidos Santa Bárbara, fundada em 1886, e a Fábrica de Tecidos S. Roberto, criada em 1877 (ESTADO..., 1998). Dentre os trabalhadores de uma indústria têxtil era comum a presença de técnicos estrangeiros e, segundo Lima (2009: 5), eram "[...] responsáveis pela montagem e a manutenção de todo o maquinário, além de ocuparem os cargos altos na administração das fábricas”. Quanto aos operários, além daqueles encarregados da produção de tecidos, havia também os contratados para 23
serviços específicos, como carpinteiros, ferreiros, pedreiros, serradores, entre outros (LIMA, 2009). Em diversas indústria têxteis foi marcante também a presença de mulheres operárias, que contavam, muitas vezes, com o auxílio de Conventos.
2.3. Origem do povoado de Biribiri Biribiri localiza-se na Serra do Espinhaço, distando aproximadamente 13 quilômetros de Diamantina, em uma região marcada pela presença de quedas d’água. A queda do rio Biribiri é tida como a provável justificativa para a escolha do local para estabelecimento de uma fábrica de tecidos (ESTADO..., 1998). Relatos locais apontam como proprietário das terras um Frei de nome Luiz, que teria feito de Biribiri seu retiro espiritual, mas as referências a esse frei são de vagas histórias orais da população da região. Outras fontes afirmam que tal Frei teria vindo do exterior para extrair ouro e diamantes e, depois de explorar as reservas minerais do Biribiri, rescindiu o contrato de arrendamento, entregou a lavra para o Bispo D. João Antônio dos Santos e voltou para seu país (JORNAL ESTRELA POLAR, 1940). Tem-se certeza apenas de que as terras foram doadas pelo Frei Luiz de Ravena, Missionário Apostólico Capuchinho e Administrador da Ordem e Congregação na Serra da Piedade, em 26 de novembro de 1864 para Sr. D. João Antônio dos Santos, Bispo de Diamantina (TIBÃES, 2001). A história de Biribiri é a história da fábrica, isto é, a gênese do povoado se deu em função da fábrica e o pleno funcionamento desta foi condição para a manutenção da vida do local, "[...] o que provavelmente explica o fato de ter sido atribuído ao lugar a alcunha de cidade fantasma" (ESTADO..., 1998: 45). Apesar de seu limitado tempo de vida, Biribiri constituiu-se como centro econômico da nascente economia industrial têxtil mineira.
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2.4. A fundação da fábrica No dia 6 de janeiro de 1876 foi inaugurada a Fábrica de Biribiri pelos irmãos Felício dos Santos, com liderança de D. João Antônio dos Santos, primeiro bispo de Diamantina. D. João formou uma sociedade com seus irmãos Dr. Joaquim e Cel. Antônio Felício dos Santos e um sobrinho, Capitão João Felício dos Santos, criando-se a firma Santos & Cia. A atuação do Bispo na cidade foi marcada pela construção, em 1865, de um edifício para o Seminário e, em 1867, do Colégio Nossa Senhora das Dores, entregue aos cuidados das irmãs de Caridade Vicentinas (ESTADO..., 1998). D. João era também conhecido pela sua posição abolicionista, fazendo inclusive intermediações entre senhores e escravos na obtenção de alforrias. Em 1876, a solução encontrada para amenizar a falta de incentivo do governo para os projetos assistencialistas locais, foi a de investir em uma fábrica em Biribiri, uma vez que a indústria têxtil estava crescendo e a geração de empregos seria de grande valia para os necessitados, mais especificamente órfãs do Colégio das Dores e trabalhadores das decadentes minas de diamantes. De acordo com as circunstâncias da época configurava-se como um investimento incerto devido à falta de apoio dos capitalistas locais, à dificuldade de transporte e à concorrência estrangeira (ESTADO..., 1998). Na data de sua inauguração, a fábrica contava com 63 operários, sendo 36 moças e 27 homens, e 20 teares (MATA MACHADO FILHO, 1944). Pouco tempo depois já se contabilizavam 210 operários, sendo 180 moças e 30 homens, 110 teares e luz elétrica (ESTADO..., 1998). A partir de tais números é possível notar a atuação majoritária de mão de obra feminina, que teve participação expressiva não apenas em Biribiri, mas também em diversas indústrias têxteis brasileiras da época, instaladas principalmente a partir de meados do século XIX. As mulheres já se envolviam com atividades têxteis, através de produções domésticas e artesanais, muito antes do surgimento das fábricas capitalistas, o que proporcionou a consolidação de saberes técnicos tradicionais aproveitados nos processos de consolidação industrial. A acomodação de moças operárias sozinhas em conventos organizados especialmente para tal fim era um investimento que valia à pena aos 25
proprietários de fábricas. Dentro dessa política, essas instituições tinham também o objetivo de "ajudar" as jovens mulheres, em grande parte órfãs e/ou de baixa classe econômica, por meio de educação e de garantia de subsistência, até que finalmente alcançassem a sua função do casamento (LIMA, 2009). Nas emergentes fábricas brasileiras foi adotado também o sistema de mão de obra assalariada, havendo ocorrências de trabalho escravo apenas em situações de grande carência de operários. Em Biribiri não se tem indícios de trabalho escravo, mesmo sendo a fundação da fábrica anterior à abolição da escravidão, em 1888, mas a tal fato pode-se relacionar a ideologia abolicionista adotada por D. João (ESTADO..., 1998). Em 1899 muitos “[...] já apontavam Biribiri como o ponto mais importante do distrito, com bastante vida comercial e desenvolvimento de manufatura” (ESTADO..., 1998: 50). Além da tecelagem, foram criadas também "[...] oficinas de lapidação e fundição de metais, tendo saído desta última o sino da Basília do Sagrado Coração de Jesus" (MATA MACHADO FILHO, 1957: 194). A lapidação de diamantes contava com 12 rodas até por volta de 1887, chegando a 48 rodas em funcionamento. A fábrica de Biribiri contava ainda com uma máquina a vapor de 40 cavalos para aquecimento interno em dias frios e movimentação da tinturaria, esta com força motriz de 300 Hp fornecida por uma turbina movida pela queda d'água do rio Biribiri (ESTADO..., 1998). A localização do galpão da fábrica, junto ao rio em um ponto de queda d’água onde se situava a turbina, seria justamente para facilitar o fornecimento de energia elétrica. Biribiri foi considerada uma das fábricas mais modernamente equipadas da época, com maquinários importados provavelmente da Inglaterra.
2.5. As contribuições de John Rose e a arquitetura do povoado No fim do século XIX, a indústria têxtil brasileira era "[...] fruto de invenção, especialização, engenharia estrangeiras e do trabalho pesado brasileiro" (ESTADO..., 1998: 52). As fábricas enfrentavam certa carência de uma mão de obra mais qualificada, capaz de operar e gerenciar as máquinas. Era 26
necessário, portanto, contratar estrangeiros para trabalhar e ensinar nas fábricas brasileiras. Em Diamantina sabe-se da presença de um inglês chamado John Rose, proveniente da Cornualha e referendado como arquiteto, artífice, engenheiro mecânico e amigo de D. João, com quem muito se identificava quanto à ideologia abolicionista (LEMOS, 2008). “Tendo nascido no berço da Revolução Industrial e, ao mesmo tempo, das inovações técnicas e estéticas da engenharia e arquitetura” (LEMOS, 2008: 7), o arquiteto adaptou uma postura de influência inglesa à estética colonial mineira, conferindo um caráter moderno à paisagem diamantinense do século XIX. É também “[...] relevante registrar que suas criações, construções e princípios arquitetônicos influenciaram a estética local” (LEMOS, 2008: 12), incorporando inovações técnicas e artísticas à paisagem colonial. John Rose atuou em Diamantina, a partir de 1866 com o apoio de D. João, na produção de um rico legado arquitetônico, dentre reformas, ampliações e novas construções, tendo, como obra-prima, a adaptação e reabilitação do Colégio Nossa Senhora das Dores, que recebeu o passadiço da Casa da Glória. Além disso, recuperou e ampliou, em 1867, a Casa de Cadeia, atual edifício do Fórum; projetou e construiu o prédio do Seminário Episcopal; recuperou a edificação do Hospital Nossa Senhora da Saúde, inaugurado em 1901, dentre outras obras. O conjunto de residências Pão Santo Antônio, inaugurado em 1905, foi também outra idealização de John Rose, onde nota-se consonância com a estética desenvolvida em Biribiri.
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Figura 4: Passadiço da Casa da Glória, Diamantina.
Fonte: foto da autora, 2013. Figura 5: Hospital Nossa Senhora da Saúde.
Fonte: foto da autora, 2013.
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Figura 6: Conjunto de residências Pão Santo Antônio.
Fonte: foto da autora, 2013.
Em Biribiri, além de projetar o galpão da fábrica, algumas residências do povoado e a Capela do Sagrado Coração de Jesus, coordenou a montagem do maquinário e deu assistência quanto ao seu funcionamento. “Nesta paisagem, Rose optou pela arquitetura pitoresca, integrada ao Arts and Crafts, referenciada nas produções suburbanas e rurais da Inglaterra” (LEMOS, 2008: 10). Partindo de uma integração entre o Arts and Crafts e uma estética local de cunho popular, a arquitetura de John Rose se mostra adaptada ao estilo de vida do povoado de Biribiri quando de sua formação, além de exercer funções sociais, culturais e políticas. O povoado exibe uma arquitetura intimista que abriga e recebe o indivíduo, sendo um exemplar fidedigno do saber local, uma arte menor de expressão espontânea e ingênua. Faz uso de materiais duráveis, de fácil acesso e de técnica consolidada, sendo a madeira muito comum, principalmente em ornamentos e sistemas construtivos, não só nas proximidades de Diamantina, mas também em outras as regiões mineradoras.
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“O costume de destacar o templo na paisagem transcendia, por isso, uma questão de lógica, uma força da tradição, uma vontade plástica” (MARX, 1991: 22). A capela do Sagrado Coração de Jesus, como ponto de referência no povoado, é uma marca do forte religiosismo da população, este ainda mais estruturado devido à presença e à atuação do Bispo. "O relógio que se encontra na fachada teria sido presente da Família Real e traz a inscrição Pêndula Fluminense, 1840 a 1890" (ESTADO..., 1998). Adotando um ecletismo referendado numa estética popular, sua linguagem atualiza o passado religioso, sem romper com o mesmo (LEMOS, 2008). A estética pitoresca é ressaltada através da pintura, que expõe elementos primitivos, orientais e barrocos. Figura 7: Capela do Sagrado Coração de Jesus.
Fonte: foto da autora, 2013.
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2.6. Formação urbana do povoado “Os toscos povoados, tão bem descritos por alguns viajantes no século passado, que parecem brotar ‘naturalmente’ da paisagem, não o fazem, na verdade. Sutilmente, rompem com o mundo rural, expressando, pequenos e espalhados por entre enormes domínios agrários, um outro processo social” (MARX, 1991: 25).
Marx (1991) caracterizou tal rompimento como sutil muito provavelmente porque, no contexto de conformação dos povoados, a oposição entre rompimento e complementaridade da paisagem é questionável. O esboço da formação de uma urbanidade já é capaz de quebrar a paisagem rural dominante, trazendo uma nova forma de organização política, econômica, social e espacial. Mas ao mesmo tempo, a conformação de um povoado não garante independência dos modos rurais de sobrevivência, estando estes costumes e saberes diretamente ligados aos grupos sociais que constituem a ocupação. Marx (1991) ainda aborda pontos comuns na formação da maioria dos povoados brasileiros, definindo como principal convergência entre eles o processo de ocupação a partir de uma edificação religiosa. “Esse crescimento às custas do patrimônio religioso era o próprio mecanismo físico de expansão da localidade e, muito antes, o próprio instrumento social de obtenção de um lugar para morar, de uma possibilidade de coabitar” (MARX, 1991: 44). Biribiri, diferente da maioria das pequenas ocupações de caráter local, conformou-se de maneira planejada, com um traçado não subordinado à edificação religiosa. A Capela do Sagrado Coração de Jesus assume posição de destaque na paisagem, no entanto, não foi a partir dela que se deu formação do povoado. Uma vez que sua gênese está relacionada à fundação da fábrica, a edificação que ocupará posição de centralidade no largo do povoado será a casa da gerência, dotada de grande jardim, avarandados e muitos cômodos.
É a partir dela que se instalarão outras edificações
residenciais. Este tipo de ocupação, com uma centralidade definindo um largo, esboçou, segundo Marx (1991: 23), “[...] a presença do vazio, do espaço aberto
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fluido, por vezes mais elaborado, e propiciou, antes de tudo, um importante domínio da terra urbana”. Figura 8: Vista da casa da gerência centralizada em relação ao povoado.
Fonte: foto da autora, 2014.
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Figura 9: Vista aérea da implantação do povoado.
Fonte: GOOGLE STREET VIEW.
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A localização dos galpões de produção foi definida com base na posição estratégica oferecida pela proximidade com o rio Biribiri, que poderia manter o fornecimento de energia hidroelétrica. As demais edificações situaram-se nas proximidades das principais – casa da gerência, capela e fábrica – no processo de formação urbana do povoado. Figura 10: Implantação da fábrica, próxima ao rio Biribiri.
Fonte: foto da autora, 2014.
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2.7. Mudanças administrativas: família Duarte e Alexandre Mascarenhas Os primeiros 15 anos da fábrica foram marcados por períodos de certa instabilidade, crise esta que se estendeu também sobre todo o país devido à política monetária de Rui Barbosa, que acabou por gerar a Crise do Encilhamento. Apesar de tal instabilidade, o investimento conseguiu manter-se lucrativo sem maiores problemas (ESTADO..., 1998). No entanto, em 1895 tem-se o falecimento de Joaquim Felício dos Santos e em 1905 perde-se também o Bispo D. João, a grande liderança do investimento. O sócio restante, Antônio Felício, estava sempre ausente, exercendo, no Rio de Janeiro, carreira política. Desta maneira, o Coronel José Marques Nogueira Guerra, genro de Joaquim Felício conhecido como Coronel Guerrinha, torna-se o novo administrador da fábrica de tecidos (ESTADO..., 1998). Essa mudança administrativa garantiu a permanência das atividades fabris, no entanto permitiu também um quadro de dificuldades financeiras. Por volta de 1921, Algemiro Pompulone Duarte, juntamente com seu irmão João Gerundino, tornaram-se os novos proprietários do povoado e da indústria. Os irmãos Duarte trabalhavam no fornecimento de algodão e na distribuição dos produtos da fábrica para regiões próximas. Neste processo, de revenda e divulgação da produção, compreenderam o funcionamento e o potencial econômico da indústria de Biribiri (ESTADO..., 1998). "Comprovada a hipótese de ali se poder investir com resultados satisfatórios, acabaram por adquiri-la do Coronel
Guerrinha,
mesmo
encontrando-se
esta
sob
jugo
bancário"
(ESTADO..., 1998: 58). A nova administração teve respostas positivas do ponto de vista econômico, ampliando as relações comerciais de Biribiri com outras localidades. Essas relações foram ainda favorecidas pela compra, realizada pelos irmãos Duarte em 1924, do primeiro caminhão da fábrica, substituindo o deslocamento em carros de boi pelo veículo a combustível (ESTADO..., 1998). O caminhão facilitou, portanto, o transporte, de pessoas, máquinas, tecidos e produtos, entre Biribiri, Diamantina e regiões adjacentes. Além disso, diante de certo
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crescimento econômico, tem-se a realização de novos investimentos para o povoado, como a tinturaria, um novo fiatório e a ponte de madeira que dava acesso à fábrica. Esta última, além de facilitar o acesso ao povoado, melhorou o caminho para lugares ao norte, como o Mendanha, que obrigatoriamente passavam por Biribiri. Pedro Duarte, filho de Algemiro Duarte, foi o gerente da fábrica à época de seu pai e se tornou proprietário em decorrência da morte deste. Já como proprietário, foi responsável pela inauguração, em 1940, de uma usina de beneficiamento de algodão, no largo D. João, em Diamantina (ESTADO..., 1998). Tal fato possibilitou um grande corte de gastos, uma vez que não seria mais necessário comprar algodão beneficiado por fornecedores. Portanto, pode-se dizer que os Duarte – Algemiro, João Gerundino e, posteriormente, Pedro – mantiveram o funcionamento da fábrica nos mesmos padrões de seus fundadores, acrescentando ainda inovações no maquinário e nos transportes. Além do lucro da venda de tecidos, o povoado era quase autossuficiente, só não o era de fato porque a agricultura não oferecia grande produtividade. "O que não se podia produzir ali, provinha de localidades próximas ou então do próprio armazém de Algemiro Duarte" (ESTADO..., 1998: 60). A igreja, com a ausência de D. João, passou aos cuidados do Monsenhor Levi, que todos os fins de semana deixava Diamantina para exercer no povoado as funções competentes ao sacerdócio (ESTADO..., 1998). Além disso, Biribiri contava com outros serviços, como um gabinete dentário móvel, consultório médico e escola. Os alojamentos dos operários tinham dormitórios separados para homens e mulheres, enquanto os casados, com as respectivas famílias, moravam nas casas que compõem o povoado. As mulheres sempre permaneceram como maioria dentre a mão de obra da fábrica, sendo este outro exemplo que traduz a manutenção do ideal administrativo do Bispo D. João Antônio dos Santos. A jornada de trabalho começava às 5h20min da manhã e ia até às 9h20min da noite, numa forma de rodízio entre grupos de operários, sendo os intervalos sempre marcados pelo apito da caldeira (ESTADO..., 1998). Mas o cotidiano da convivência entre as pessoas ia além do encontro durante o trabalho. Alguns relatos orais de antigos moradores do
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povoado apontam a vida em Biribiri como a de uma grande família, com grande contato entre seus habitantes. Em 1947, Pedro Duarte planejava, como forma de ampliação da fábrica de Biribiri, realizar a implantação da Fábrica Antonina Duarte em Diamantina. No entanto, 1947 foi também o ano de seu falecimento, impedindo a realização do projeto. A partir de então, a fábrica passou a ser gerenciada pela viúva de Pedro Duarte, Maria Luiza, juntamente com seus filhos. A administração da fábrica agora passava por dificuldades em razão da falta de experiência, mas, independente disto, algumas intervenções foram realizadas, dentre elas reformas no pensionato e no refeitório, datadas de 1948, a aquisição de um complemento para a turbina e a criação de um bar para servir como armazém extra (ESTADO..., 1998). "Na década de 50, por volta de 1954, os Duarte convidaram Alexandre Mascarenhas e Rômulo Franchini, proprietários da Fábrica Têxtil de São Roberto, em Gouveia, para sócios” (ESTADO..., 1998: 63). Juntos, os grupos concluíram a instalação da fábrica Antonina Duarte, em Diamantina. Em 1959 a fábrica de Biribiri chegou ao ápice de seu funcionamento com 200 teares e, no ano seguinte, a Estamparia, companhia liderada por Alexandre Mascarenhas, tornou-se proprietária absoluta de Biribiri. A família Mascarenhas tem tradição na atuação no ramo têxtil em Minas Gerais, tendo fundado, em 1872, a primeira bem-sucedida fábrica têxtil mineira: a Fábrica do Cedro. A Companhia Industrial da Estamparia, que agora englobava também a fábrica de Biribiri, era formada pela sede em Contagem, pela Fábrica São Roberto, em Gouveia, pela Fábrica Antonina Duarte, em Diamantina, pelas fábricas Alexandre Diniz Mascarenhas e Dona Lili, ambas em Contagem (ESTADO..., 1998). Já durante a nova administração, o povoado de Biribiri passou por novas intervenções em seu casario: o galpão da fábrica deixou de possuir dois pavimentos e nas suas adjacências foram criados também mais dois galpões, além disso, algumas casas tiveram suas fachadas e interiores modificados. Na década de 1960 foi implantada, em posição centralizada no povoado, uma quadra de esportes intitulada Praça Pedro Duarte, funcionando como espaço de lazer e de convivência. O maquinário da fábrica também foi modificado com
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o objetivo de modernização: em 1962 foi instalada uma nova tubulação para movimentação da usina hidrelétrica, e em 1983 um novo gerador foi adaptado (ESTADO..., 1998). A fábrica de Biribiri, que chegou a funcionar com mais de 1000 trabalhadores, viu a paralisação completa de suas atividades em 1973. Os operários que não foram demitidos tiveram que optar por alguma filial da Companhia. “O investimento
em
Biribiri
havia
se
tornado
inviável,
pois
crescera
consideravelmente o número de concorrentes mais modernas”. (ESTADO..., 1998: 65). Além disso, sua capacidade produtiva era pequena e não havia grandes possibilidades de expansão, em razão da área ocupada pelas montanhas (ESTADO..., 1998). Tem-se, pois, a desestabilização da economia industrial e o consequente abandono da company town ali estruturada.
2.8. O povado em contexto atual A partir de 1973, ausente de atividades e de habitantes, Biribiri conformou-se por muitos anos como um povoado fantasma, que recebia, eventualmente, visitantes provenientes da região e turistas. No fim da década de 1980, todo o conjunto de Biribiri chegou a ser colocado à venda e eram inúmeras as hipóteses do que poderia ser feito do local. Em 22 de setembro de 1998 foi criado o Parque Estadual do Biribiri pelo então governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo, ficando como responsável pela administração o Instituto Estadual de Florestas. A área abriga várias nascentes e cursos d'água, como o Rio Biribiri, o Rio Pinheiros, o córrego Sentinela, o córrego Cristais, entre outros. A cobertura vegetal nativa é composta por Cerrado, Campos Rupestres e Matas de Galeria, com predominância de gramíneas e arbustivas. Em 11 de novembro de 1998 foi homologado o tombamento do conjunto urbano-arquitetônico de Biribiri pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. A questão sobre o que deveria ser desenvolvido no povoado continuou sem resposta, sem nenhuma decisão ou interferência sobre o local. Uma vez que
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conforma-se como propriedade privada, permaneceu, portanto, em Biribiri a ausência de qualquer política administrativa sobre o conjunto arquitetônico e urbanístico. E, apesar de tal situação, o fluxo de visitantes continuou a movimentar-se no sentido de uma percepção curiosa do conjunto no contexto fantasma em que se inseria o povoado. Atualmente em Biribiri tem-se uma lenta mudança de seu quadro de abandono. O único restaurante mantém seu funcionamento, principalmente quando há certa movimentação de visitantes. A maioria das casas e algumas edificações de uso coletivo já foram vendidas, com a atuação de uma imobiliária para intermediação do negócio. O objetivo parece ser a criação de um condomínio aberto à visitação do público e, provavelmente, administrado pelos proprietários do povoado.
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3. CAPÍTULO 3 Uma vez detalhado o contexto histórico de Biribiri, além das especificidades de sua formação, identifica-se o povoado como amplo espaço de desenvolvimento de processos mnemônicos. Faz-se necessário, pois, um estudo das teorias da memória, bem como suas relações com a população local e o patrimônio. Deste último, em um aspecto contemporâneo, propõe-se uma abordagem das questões de sua conservação, sua possível exposição excessiva e sua vinculação ao turismo.
3.1. A memória social no processo de reconstrução da lembrança Maurice Halbwachs (1990), partindo dos estudos de Émile Durkheim, define a memória como um fato social, atribuindo ao processo de rememoração a necessidade do coletivo. Relembrar seria um procedimento presente em inúmeros grupos sociais, que o fazem por meio de uma reconstrução periódica. Para que se torne mais precisa, a lembrança se apoia não apenas na impressão individual, mas também na de outras pessoas. A lembrança se perpetua com a manutenção de um grupo que vivenciou determinados acontecimentos, considerados por seus membros como marcantes. Um conjunto de depoimentos exteriores ao indivíduo é capaz de estimular a rememoração, mas uma fiel reconstituição da imagem de um momento anterior não é suficiente para a formação densa da lembrança (HALBWACHS, 1990). É necessária uma reconstrução do passado a partir de percepções comuns e recíprocas, o que só ocorre em um meio social. Da mesma maneira, o grupo se fortalece e adquire certa durabilidade neste processo coletivo. Assim sendo, entende-se
a
formação
da
lembrança
como
um
procedimento
de
reconhecimento e constante reconstrução, ancorado em uma participação do coletivo. No processo de rememoração, as impressões próprias e não compartilhadas de cada indivíduo virão à tona primeiro e com mais força, para que depois seja 40
elaborado o quadro comum da memória coletiva. Tem-se, portanto, que a memória individual em oposição à coletiva não é condição para o reconhecimento das lembranças (HALBWACHS, 1990). É necessária a perpetuação do laço entre memória pessoal e memória do grupo, no qual uma completa e depende da outra para que a lembrança se construa em noções partilhadas. No caso do povoado de Biribiri, observa-se a perda de sua ambiência de coletividade ao ser desabitado com o fechamento da fábrica de tecidos em 1973. O quadro da memória coletiva do povoado só pode ser construído à medida que os seus antigos moradores relembram suas histórias e
percepções
individuais
e
compartilham
de
lembranças
comuns.
“Autobiografias e relatos na primeira pessoa servem de espelho para outras memórias” (RÉBÉRIOUX, 1992: 55). Nesse sentido, define-se a memória do grupo como uma composição heterogênea de memórias individuais (BOSI, 1979), sendo indispensável a relação entre as duas. “Nossos pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circunstâncias sociais definidas” (HALBWACHS, 1990: 36). Biribiri demarca-se como referência e parte importante na memória coletiva do diamantinense, levando em consideração também as novas gerações, que ouviram falar do povoado, mas não participaram de seu período mais vivaz. A partir de entrevistas com moradores antigos, foram obtidos relatos memoriais não ordenados e complexos, sendo, portanto, complicado o fichamento e a organização da memória coletiva local, muito em razão do caráter não homogêneo da rememoração. O grupo social exerce forte influência sobre o indivíduo, sendo seu pensamento influenciado pelo meio. A memória pessoal depende da memória coletiva no sentido em que toda percepção individual é condicionada pela cultura local ou pelo estilo de vida do grupo. Lembranças que se mostram plenamente particulares diferenciam-se das outras no grau de complexidade necessário para que venham à tona (HALBWACHS, 1990). Por não possuírem tantos (ou nenhum) aspectos em comum com uma memória do grupo, apresentam maior dificuldade de evocação, sendo sua existência dependente de um único indivíduo. A memória coletiva tem maior duração e maior facilidade de resgate,
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porque se suporta em um conjunto de homens, membros de um grupo (HALBWACHS, 1990). Dentro de uma sociedade específica, as lembranças individuais são interdependentes, mas não iguais. “Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva” (HALBWACHS, 1990: 51), sendo esta visão particular apta às mudanças determinadas pelo lugar ocupado por cada sujeito, por sua identidade, cultura ou ideologia. As memórias individual e coletiva se interpenetram no processo de reconstrução da lembrança, mas esse envolvimento não permite que uma englobe ou se confunda com a outra. A memória do grupo completa e fortalece a individual, mas o objetivo da rememoração individual é expor e transmitir percepções próprias, únicas e específicas. A lembrança se faz com uma reconstrução do passado, apoiada em dados obtidos no presente e em reconstruções anteriores. Essa reconstrução recorrente possibilita profundas alterações nos fatos originais, mas é esta característica que distingue a lembrança da narração histórica. "A lembrança é uma imagem engajada em outras imagens, uma imagem genérica reportada ao passado" (HALBWACHS, 1990: 73). A lembrança é, pois, fortemente determinada a partir do indivíduo que a reconstrói, uma vez que, como define Carsalade (2007: 178), "[...] a memória acontece no terreno vago da subjetividade e é influenciada pelos tons da emoção e das condições momentâneas de quem lembra". Desta maneira, é possível esclarecer que não há rememoração homogênea ou padronizada, já que se trata de um processo de construção subjetiva influenciado pelas memórias coletiva e individual de determinados grupos. Para Barlett apud Bosi (1979) a imagem resgatada é tratada e estilizada com base em valores culturais e ideológicos do grupo em que o sujeito está inserido, havendo sempre o acréscimo ou a supressão de informações. A lembrança, para Bosi (1979), “[...] sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia”. A definição de lembrança como reconstituição pode ser exemplificada no conceito da primeira infância, em que as lembranças individuais podem ser fruto de uma vaga imagem com o acréscimo de informações posteriores.
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Oeuvres apud Bosi (1979) definirá o afloramento do passado como uma mistura de sentidos e informações atuais com detalhes e imagens de experiências passadas. Um caso de família, por exemplo, poderia ser uma história contada em detalhes pelos familiares em um momento mais recente, acrescida das lembranças de locais e personagens participantes, além de uma possível vaga lembrança da situação. Na primeira infância, portanto, a lembrança é uma imagem sem localização, o contato direto com o que aconteceu é que possibilita a reconstituição (HALBWACHS, 1990). Desta maneira tem-se o passado como um conjunto de fragmentos, que por meio da rememoração atuam como peças de uma recriação da cena original. Walter Benjamin apud Matos (1992) aponta que tradição pode ser considerada uma invenção, em que o passado só pode ser reaberto no presente, em razão das mudanças e dos esquecimentos que essa diferença temporal causou. A lembrança não é a imagem da experiência anterior, pois os próprios sujeitos se transformam: renovam suas percepções, ideias, juízos de realidade e de valor (BOSI, 1979). A ação simbólica da rememoração, para Sahlins (1990: 189), seria “[...] um composto de um passado histórico e um presente irredutível”. Nesse sentido, entende-se que qualquer experiência recordada está inserida em um esquema cultural anterior, enquanto que a construção da lembrança seria condicionada pelas singularidades do presente. Há uma quantidade de lembranças históricas que são dominadas pelo indivíduo, mas que nunca pertenceram a ele, tendo sido apreendidas por relatos, conversas e leituras. É uma memória emprestada, passível de ser imaginada, mas não lembrada. Halbwachs (1990) define então, os conceitos de memória autobiográfica e memória histórica: a primeira se apoia na segunda para sua consolidação e apresenta o passado como um quadro contínuo e denso, enquanto a segunda é mais ampla, porém resumida e esquemática. A memória histórica seria uma espécie de memória coletiva mais completa e exterior ao indivíduo, que vivendo ou não um determinado período, não produz lembranças, mas utiliza desta memória para criar registros próprios (HALBWACHS, 1990). Mesmo sendo exteriores, os acontecimentos históricos influenciam, ainda que indiretamente, no olhar, na formação do imaginário e nas ideologias do sujeito. A memória individual se apoia, novamente, na
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história quando necessita situar uma impressão pessoal, geralmente incompleta e vaga, em um contexto claro. “Os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, eles representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos nosso passado porque este foi atravessado por tudo isso” (HALBWACHS, 1990: 66).
A memória histórica se distingue também da memória coletiva. Esta última é composta por lembranças de acontecimentos, num período médio de tempo, importantes e interessantes apenas para os diversos grupos sociais dos quais os homens fazem parte. Grande parte dessas lembranças coletivas pouco importa ao quadro da história, que seria uma espécie de unificação das histórias parciais, edificada em períodos de longa duração. A história tem início, para Halbwachs (1990: 80), "[...] somente no ponto onde acaba a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social". Ainda que se empenhe em uma busca por continuidade, para que haja um entendimento fiel de um período não basta a visão universal e sistematizada da história, é preciso também compreender a vivência e as leituras sensíveis obtidas pelos homens (CARSALADE, 2007). Os fatos históricos seriam eventos no interior de uma narrativa coletiva densa, dependendo desta quanto aos seus efeitos e à sua existência (SAHLINS, 1990). A preservação e a transmissão de culturas e tradições acontecem, portanto, de maneira muito mais efetiva na manutenção de memórias coletivas, do que quando da narração de fatos ou eventos históricos. Enquanto a lembrança ainda se mostra viva, não adianta fixá-la, narrá-la por escrito ou enrijecê-la. "Para haver narração é preciso haver esquecimento" (MATOS, 1992: 153). A história aparece quando a lembrança já está quase apagada, atuando como um derradeiro esforço para resgatá-la e garantir sua perpetuação. Para tanto, aproxima, classifica e sistematiza o objeto da memória social, buscando uma representação objetiva da rememoração subjetiva e complexa (SAHLINS, 1990). Apesar de simplificar o objeto memorial, é uma linguagem que permite sua transmissão, “[...] ela reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual” (BOSI, 1979: 18). 44
3.2. A rememoração como fortalecimento das identidades coletivas Augusto Comte apud Maurice Halbwachs (1990) afirma ser o equilíbrio mental muito influenciado pela permanência e pela estabilidade que os objetos e lugares do cotidiano oferecem. Desta maneira, as imagens relativamente constantes do mundo exterior seriam partes inseparáveis do próprio indivíduo (HALBWACHS, 1990). A formação de um grupo social implica na modificação do espaço identificando-o com o próprio grupo. E o fato de estarem reunidos em uma mesma região do espaço é condição essencial para a existência dessas coletividades. A estabilidade das coisas seria equivalente à estabilidade dos grupos sociais, o que permite que se enxerguem como sociedade coesa e com características comuns. O espaço adquire importância na medida em que são relevantes aspectos referentes à sua formação, à sua contínua vivência pelo conjunto e à sua estabilidade (CARSALADE, 2007). Quando um grupo se volta para o seu passado, seus membros relembram e reforçam sua identidade. "A narrativa contribui facilmente para o fechamento da identidade de uma memória sobre ela mesma" (RICOEUR, 2000: 5). A memória coletiva proporciona um quadro de si mesmo, pois centra sua atenção nas mudanças sobre um grupo que permanece e se expressa no espaço (HALBWACHS, 1990). Desta maneira, uma constante resistência à mudança é desenvolvida, uma vez que a memória coletiva está ancorada em imagens espaciais. Alterações
na
paisagem
urbana
ameaçam
a
tradição
local
e,
consequentemente, a perpetuação de uma sociedade. A evocação da memória coletiva pelo próprio grupo é capaz de restituir os detalhes do cotidiano banal, referente ao dia a dia do homem comum, acrescentando um parecer único acerca de um fato, local ou período. Isto acontece principalmente sob o apoio dos lugares que povoam o imaginário de seus membros. São esses lugares da memória que revelam uma teia onde se cruzam trabalho, lazer, relações familiares, entre outros, (RÉBÉRIOUX, 1992) e são essas invocações que farão parte do processo de construção da lembrança. "A matéria urbana forma-se pelo fio condutor da opinião, como 45
transmissor de memórias, uma doxa urbana vagabunda, mutável, portadora de recordações" (BRESCIANI, 1992: 164). Sobrepondo-se os lugares da memória, tem-se o espaço recriado no imaginário do sujeito ou de seu grupo. “São as memórias que compõem o tecido de nossas relações com o espaço” (BRESCIANI, 1992: 164). A cidade seria responsável, como afirma Matos (1982: 49), “[...] por mostrar cenas nas quais nós mesmos nos encontremos e que nos revelem o sentindo da vida no mundo moderno”. A memória é, portanto, capaz de reforçar identidades coletivas e orientar o indivíduo, sendo essencial no processo de entendimento do próprio ser, desenvolvimento pessoal e aquisição de capacidade crítica. "[...] os primeiros elementos de orientação do indivíduo, sobre os quais ele constituirá no futuro suas impressões e se reorientará na vida reside na memória de suas vivências pessoais relacionadas à sociedade em que está imerso" (CARSALADE, 2007: 164).
A percepção do enraizamento a uma tradição traduz um pertencimento a uma origem e, a existência de uma referência, na vida de uma sociedade e/ou do indivíduo, é característica básica para a autonomia de pensamento e decisão (MATOS, 1992). Esta autonomia se manifesta principalmente na liberdade de deliberação de um grupo quanto ao seu passado e futuro. Nesse sentido, a memória coletiva se mostra como um forte instrumento para a consolidação de uma sociedade, na medida em que se configura, como explica Brites (1992: 18),
"[...] um dos mais sólidos alicerces da dominação e poder". É o
enraizamento que permite a manutenção das tradições e a permanência de sociedades específicas e de suas memórias. O retorno ao passado configurase, portanto, como um mecanismo de defesa contra grandes mudanças e de preservação da ordem natural dos espaços, das relações sociais e das tradições.
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3.3. O cotidiano como local de consolidação do grupo social A identidade social, para William Morris (2003), é reforçada, dentre as práticas do cotidiano, também por meio da artesania. Esta seria definida como uma arte integrada a esse cotidiano do indivíduo, capaz livrá-lo da monotonia e do aborrecimento passíveis de existir num quadro de rotina. Esta arte é caracterizada pelo Arts and Crafts como uma arte menor que, para Morris (2003: 12), “[...] só atinge seu significado pleno quando assume claramente essa dimensão social”. Contrário a uma visão retrospectiva e nostálgica, Morris (2003) valoriza a recriação do cotidiano, partindo-se de uma expressão artística fundamentada em tradições, mas dotada também de grande potencial criativo. Sendo baseada em um saber-fazer local consolidado, a arte menor permite ampla transmissão de seus conhecimentos dentro do grupo social, e ainda admite acréscimos e contribuições referentes a novos hábitos e costumes. Para Sahlins (1990) esses processos de recriação e de transferência de saberes configuram-se como adaptações do grupo social, o que também não deixam de ser uma forma de reprodução de uma cultura. “A cultura funciona como uma síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia” (SAHLINS, 1990: 180). As práticas cotidianas dos habitantes são, portanto, capazes de criar inúmeras combinações entre tradições e reavaliações empíricas, entre lugares tradicionais e o vigor de usos novos. Tem-se, portanto, a transformação do espaço urbano em uma grande reserva de memória em constante reconstrução, que funciona também como espaço de apropriação e criação (CERTEAU, 2000). É sobre esse espaço dinâmico composto de lembranças e reinvenções que Michel de Certeau delimita a personalização e, portanto, a identificação com o patrimônio. “O patrimônio não é feito dos objetos que uma nação ou cidade criou, mas das capacidades criadoras e do estilo inventivo que articula, à maneira de uma língua falada, a prática sutil e múltipla de um vasto conjunto de coisas manipuladas e personalizadas, reempregadas e ‘poetizadas’. O patrimônio são todas essas artes de fazer” (CERTEAU, 2000: 199).
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Uma vez inserida no cotidiano e dotada de potencial criativo, essa diminuta forma de expressão atua como produtora de um senso de lugar, trazendo ao indivíduo um sentimento de pertencimento e de identificação com o local de vivência e com as atividades nele desenvolvidas. Isso acontece na medida em que a arte é feita pelo povo e para o povo, isto é, o grupo se expressa e gera produtos, originais e adaptados às suas necessidades, para próprio usufruto, havendo, portanto, identificação do indivíduo com o que por ele foi executado (MORRIS, 2003). A cultura ordinária atua rearticulando saberes e tradições, de maneira singular e particularizante, na intenção de selecionar seus próprios instrumentos de pensamento e suas técnicas de uso (CERTEAU, 2000). Bourdin (2001) define a questão do local como a expressão formal da vida diária, em que se tem um ambiente da construção comum de sentido para produção de um vínculo social. “A localidade, como o conjunto dos dispositivos espaciais, é uma construção social permanente” (BOURDIN, 2001: 51). Nesse aspecto, não há localidade sem o coletivo, uma vez que o grupo social é o produtor do cotidiano e das memórias coletivas locais e, em razão disso, desenvolve um sentimento de pertença. “O território de pertença constitui um espaço fundador” (BOURDIN, 2001: 34) que consolida uma localidade e que permite a estabilidade e a integração de um grupo. Biribiri contém uma sobreposição de diversos platôs de pertencimento, embora se mostrem ausentes de registros, uma vez que seu patrimônio é marcado por um caráter privado e, desde 1973, abandonado. Apesar de sua paisagem cultural caracterizada pela expressiva atuação de grupos sociais, a busca pelo cotidiano do período ativo do povoado se dá através de fragmentos de lembranças, ancorados em relatos e produções literárias. Considerando-se a heterogeneidade dessas frações de história, tem-se a coexistência de vários cotidianos no quadro da memória coletiva. É nesta diversidade que, para Certeau (2000: 199), encontra-se uma composição de “passados e extratos do presente para formação de itinerários narrativos”.
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3.4. O patrimônio e sua inserção no cotidiano “A compreensão contemporânea do patrimônio deixou de se ater apenas às qualidades estéticas do bem em si, ampliando-se ao cotidiano da vida, no exercício da cultura e no desenvolvimento socioeconômico das comunidades, constituindo-se em um dos importantes responsáveis por sua identidade e qualidade de vida” (CARSALADE, 2001: 1).
Michel de Certeau (2000: 192) define o objeto patrimonial como “testemunha de uma história que já não tem mais linguagem”, isto é, dotados de poder para abrir uma profundidade no presente. No entanto, esses objetos se mostram desprovidos de uma história narrativa ou pedagógica: não são por si só capazes de fornecer sentido à estranheza e ao desconhecimento do passado. Os exemplares patrimoniais seriam, portanto, existências silenciosas que carregam um espírito de lugar percebido e assimilado pela população. A cidade amplifica e complexifica essa percepção, por meio da coexistência de inúmeros objetos do patrimônio e da sobreposição de diferentes memórias (CERTEAU, 2000). “A memória da cidade é por um lado monumental, articulada em torno de marcos usuais, por outro cotidiana, vivida nos percursos de ruas e praças” (JEUDY, 1990). Um objeto isolado não passa de um fragmento de uma ampla urdidura, composta do entrelaçamento de memórias da sociedade em que se insere (LEMOS, 1985). Segundo Jeudy (1990) a ideia de patrimônio se traduz como expressão da memória coletiva para além da temporalidade do cotidiano em que foi produzido, atuando diretamente na transmissão de valores de um grupo social. A manifestação de uma cultura, bem como a transmissão de seus valores, estaria relacionada aos elementos patrimoniais, já que estes se delimitam como objetos memoriais. Para Certeau (2000: 201), se "[...] o evento é aquele que se conta, a cidade não tem história, ela só pode viver se preservar todas as suas memórias". Em outras palavras, a preservação da memória coletiva está muito mais relacionada com a perpetuação dos pequenos relatos, do que com a ênfase exclusiva em seus monumentos e fatos históricos. O patrimônio, segundo Jeudy (1990), ordena e valoriza as memórias coletivas, aproximando-
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