ABORDAR O PATRIMÔNIO // um estudo de práticas de conser v ação e restauro na contemporaneidade – entre Itália e B rasil
UFMG // TCC luisa motta
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE ARQUITETURA
FOTOLIVRO // ABORDAR O PATRIMÔNIO // u m e s t udo de p rát i cas de conser v ação e restauro n a c ont em p oranei dade – e n tre It ál i a e B rasi l
LUISA GRASSI MOTTA E SILVA B e lo H ori z ont e , 2017
Trabalho de conclusão de curso apresentado no primeiro semestre de 2017 como requisito para título
de
graduação
em
Arquitetura
obten ção do e
Urbanismo.
Orientação: Celina Borges Lemos Mario Fundarò
“À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, unese a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo”. (BOSI, 1979: 371)
APRESENTAÇÃO // Diante dos estudos de objetos patrimoniais, o que se constrói é uma densa forma de relacionar, interpretar e compreender o patrimônio. Esses objetos, para além de uma materialidade ou de um rigor estético, se apresentam como portais de significados complexos e subjetivos. A percepção e a construção desses significados seria, portanto, um processo memorial de caráter coletivo, no qual o patrimônio assume posição referencial. A proposta do fotolivro é construir um diálogo entre a percepção do patrimônio, seus registros e documentações em meio fotográfico, e a construção de uma memória coletiva pertencente à dimensão imaterial do bem. Para tanto a fotografia é explorada, não apenas em sua dimensão objetiva de representação, mas também em seu potencial subjetivo de abstração e poética. Reconhecer-se ou identificar-se na cidade contemporânea seria, pois, um processo social de constante diálogo entre passado e presente, no qual o patrimônio participa intensamente.
FOTOGRAFIA E MEMÓRIA // O objeto patrimonial, para Michel de Certeau (2000: 192), poderia ser definido como “testemunha de uma história que já não tem mais linguagem”, isto é, dotado de poder para abrir uma profundidade no presente. Esses objetos se mostram desprovidos de uma história narrativa ou pedagógica: não são por si só capazes de fornecer sentido à estranheza e ao desconhecimento do passado. Os exemplares patrimoniais seriam, portanto, existências silenciosas que carregam um espírito de lugar percebido e assimilado pela população. De acordo com Riegl, o valor memorial do monumento acontece em várias instâncias, das quais a primeira e mais ampla seria a possibilidade de recordar a memória de um período histórico, a história do território, da economia, política, cidades, culturas, entre outras (SCARROCCHIA, 1995). A cidade amplifica e complexifica essa percepção, por meio da coexistência de inúmeros objetos do patrimônio e da sobreposição de diferentes memórias (CERTEAU, 2000). Para além dessa instância mnemônica mais ampla, Riegl delimita ainda outras duas, mais locais e identitárias: a construção de uma memória coletiva, ligada à identidade de um grupo social que se reconhece e reconhece a sua história a partir da valorização do patrimônio, e a expressão de uma memória individual, a qual inclui as percepções e os juízos do homem comum, que reconhece a passagem do tempo e temporalidade do monumento (SCARROCCHIA, 1995). Esse processo de perceber e vivenciar o patrimônio, que se ancora em aspectos memoriais, seria, portanto, influenciado não apenas por aspectos pessoais particulares, mas também elementos culturais coletivos. No processo de percepção do patrimônio, as impressões próprias e não compartilhadas de cada indivíduo se manifestam primeiro e com mais força, para que depois seja
elaborado um entendimento completo, apoiado em um quadro comum da memória coletiva. Nesse sentido a rememoração seria construída por meio de um laço entre memória individual e memória do grupo, no qual uma completa e depende da outra para que a lembrança se construa em noções partilhadas. “Nossos pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circunstâncias sociais definidas” (HALBWACHS, 1990: 36). Tem-se, portanto, que a memória individual depende da memória coletiva no sentido em que toda percepção é condicionada pela cultura local ou pelo estilo de vida do grupo. Desse modo o passado passa a conformar-se como um conjunto de fragmentos, que por meio da rememoração atuam como peças de uma recriação da cena original. Dentro de uma sociedade, as lembranças individuais são interdependentes, mas não iguais. “Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva” (HALBWACHS, 1990: 51), sendo essa visão particular apta às mudanças determinadas pelo lugar ocupado por cada sujeito, por sua identidade, cultura ou ideologia. A percepção do patrimônio seria fortemente determinada pelo indivíduo que a constrói, uma vez que, como afirma Carsalade (2007: 178), “a memória acontece no terreno vago da subjetividade e é influenciada pelos tons da emoção e das condições momentâneas de quem lembra”. A cidade, com toda a sua multiplicidade de elementos, seria responsável por permitir a transmissão e a reconstrução de lembranças, significados, práticas e rituais. “A matéria urbana forma-se pelo fio condutor da opinião, como transmissor de memórias, uma doxa urbana vagabunda, mutável, portadora de recordações” (BRESCIANI, 1992: 164). Sobrepondo-se os lugares da memória, tem-se o espaço recriado no imaginário do sujeito que vive e percebe a cidade, composto de fragmentos e significados constituídos em contexto social e cultural. “São as memórias que compõem o tecido de nossas relações com o espaço” (BRESCIANI, 1992: 164).
Se a memória carrega traços e percepções de uma realidade social, a fotografia representa essa realidade e funciona, ao mesmo tempo, como meio de apreensão da cidade e elemento de evocador de lembranças. Isso porque a fotografia contém um espaço e um tempo imortalizados, que serão palco para a ambientação da lembrança. A difusão da fotografia foi responsável pela multiplicação e pela democratização da memória, que passa a armazenar pontos e instantes de tempo com uma precisão visual jamais alcançada anteriormente. A fotografia trouxe uma visão imparcial e precisa dos fatos, essencial à evolução tecnológica, mas seu aspecto evocador também possibilita um reviver do passado em uma grande provocação de sentimentos. Nesse sentido tanto a fotografia, quanto a memória trazem um aspecto de veracidade e de credibilidade para com uma realidade representada, sem, no entanto, perder a capacidade de selecionar partes do real, manipular e reinterpretar os fatos. “No íntimo da palavra, as duas, memória e fotografia se (con)fundem, são uníssonas, uma está contida na outra, estão intrinsecamente ligadas” (FELIZARDO; SAMAIN, 2007). A construção de álbuns de família, por exemplo, não deixa de ser uma recordação social, na qual se prepara uma historiografia do legado de seus contemporâneos e constrói, assim, uma memória social particular, na qual uma família se reconhece e se une. O uso da fotografia como instrumento de recordação recria e recupera uma presença, que dialoga constantemente com o que foi, o que é e o que pode vir a ser. “Como as cartas, os objetos e os espaços de uma casa antiga ou as ruas coloniais de um bairro, também a fotografia preserva fragmentos do passado que podem ser atualizados e transportados para o presente” (CATELA, 2012: 112). Se os álbuns de família são capazes de registrar legados e transformações familiares em uma sequência temporal, do mesmo modo a fotografia da cidade e de seus bens culturais nada mais seria que a captura de instantes de tecidos vivos
em constante renovação, sendo possível, portanto, perceber suas mutações e estabelecer um diálogo entre preexistência e mudança. Isso acontece porque a imagem gráfica funciona como suporte à recordação e à significação do patrimônio, que passa a ser objeto de leitura e interpretação na contemporaneidade. “As fotos vivificam” (CATELA, 2012: 112). Segundo Walter Benjamin (1994), em seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte publicado originalmente em 1955, a arquitetura comporta uma dupla forma de recepção: pelo uso e pela percepção ou, em outras palavras, por meios táteis e óticos. A recepção pelo uso se relaciona à funcionalidade inerente à arquitetura, que sempre precisou responder às demandas cotidianas do habitar, mas ao mesmo tempo é no uso cotidiano que se constroem as memórias coletivas e individuais, as quais fazem crescer um sentimento de pertencimento e de identificação coletivos. A recepção pela percepção abrange o potencial de evocação e de referência que assume o patrimônio edificado, capaz de abrir conexões entre arquitetura e memória cotidiana e, desse modo, garantir a transmissão de significações a ele relacionadas. Da mesma forma, a fotografia, quando se aplica ao patrimônio edificado, assume não apenas a intenção de documentação objetiva, relacionada a uma arquitetura funcional, mas, a partir da captura da imagem, também engloba uma reinterpretação de significados e simbologias construídos a partir de uma memória coletiva. Diante de um potencial memorial e cultural tão grande, o papel do arquiteto urbanista quanto ao patrimônio seria o de pensar formas de lidar com seus objetos e se posicionar criticamente, não apenas a partir de técnicas e conceitos precisos, mas também com base em aspectos imateriais e subjetivos. A proposta do fotolivro é, portanto, construir um ensaio fotográfico a partir de percepções subjetivas dos objetos patrimoniais analisados ao longo do trabalho. “A fotografia visa a experimentação e o aprendizado” (BENJAMIN, 1994).
O conjunto de fotografias aqui apresentadas não deixa de ser fruto de um imaginário memorial, construído a partir de um entrelaçamento de diversos platôs de significação. Desse modo a fotografia propõe uma reflexão teórica que não requer “estranhamento” ou “distância”, mas uma forte conexão, até mesmo confusão, entre sujeito e objeto no momento de percepção do patrimônio (LISSOVSKY, 1995). Objetiva-se, portanto, o desenvolvimento de um ensaio de fotografia e poética, pleno em importância emotiva, que talvez se afirme no poder de parar o tempo e o espaço em um instante individualmente significativo. Se a cidade é um tecido relacional complexo formado por uma multiplicidade de memórias e lembranças, fotografar o patrimônio não será nunca um processo exclusivamente documental. Para além da representação objetiva de um bem cultural, a fotografia capta instantes de um cotidiano, de uma temporalidade e de uma ambiência urbana heterogênea e dinâmica. Esses instantes serão lidos e interpretados em um presente que se volta e se abre para o passado e para o preexistente. Nesse sentido a proposta de abordar o patrimônio cultural em um ensaio fotográfico não poderia ser uma ação desvinculada dos fenômenos culturais nos quais está imersa a sociedade. A proposta é a de relacionar o registro fotográfico e o patrimônio, fazendo uso também de outros elementos gráficos de sobreposição visual. O principal objetivo seria criar uma forma de relação interior-exterior, na qual a leitura e percepção da imagem de um elemento preexistente, interno e consolidado projeta sua significação em um contexto a se construir, externo, vivo e indeterminado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS // BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 165-196. ________________. Pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 100-113. BRESCIANI, M. Stella. Cidades: espaço e memória. In: O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo: DPH, 1992. p. 161166. CARSALADE, Flavio de Lemos. Desenho contextual: uma abordagem fenomenológico-existencial ao problema da intervenção e restauro em lugares especiais feitos pelo homem. 475 f. Tese (Doutorado em Concentração, Conservação e Restauro). Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Salvador, 2007. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/8815/1/Tese%2520Flavio%2520Carsalade%2520parte1%2520seg.pdf>. Acesso em 22 de setembro de 2016. CATELA, Ludmila da Silva. Todos temos um retrato: indivíduo, fotografia e memória no contexto de desaparecimento de pessoas. Topoi, v. 13, nº. 24, jan.-jun. 2012, p. 111-123, 1º semestre de 2012. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi24/TO-
POI24_2012_COMPLETO.pdf>. Acesso em 18 de novembro de 2016. CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. FELIZARDO, Adair; SAMAIN, Etienne. A fotografia como objeto e recurso de memória. Discursos Fotográficos, v.3, nº.3, p. 205-220, 2007. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2007. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/discursosfotograficos/article/view/1500/1246>. Acesso em 15 de novembro de 2016. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. LISSOVSKY, Mauricio. A fotografia e a pequena história de Walter Benjamin. 127 p. Dissertação (Mestrado). Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1995. Disponível em: <http://www.dobrasvisuais.com.br/wp-content/ uploads/2012/02/A-fotografia-e-a-pequena-hist%C3%B3ria-de-Walter-Benjamin. pdf>. Acesso em 18 de novembro de 2016. SCARROCCHIA, Sandro. Alois Riegl: Teoria e prassi della conservazione dei monumenti: Antologia di scritti, discorsi, rapporti 1898-1905, con una scelta di saggi critici. Bologna: CLUEB, 1995.
LUISA MOTTA luisagmotta@gmail.com