PARTE 2 / biribiri: suporte à memória coletiva diamantinense

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se muito mais da narrativa dos objetos menores do que da perspectiva da monumentalidade. O autor ainda analisa que “[...] em regiões onde as transformações da produção industrial abalaram a vida social, a referência à memória coletiva predomina sobre um simples ideal de conservação” (JEUDY, 1990: 17). Espaços estes que, como Biribiri, têm um forte potencial de evocação dos modos de vida e das práticas sociais, uma vez que, segundo Jeudy (1990: 22), “a cultura operária baseia-se nos valores encarnados numa vida cotidiana”. A partir da interrupção da vida social, a memória se torna prospectiva e baseia-se em histórias de vida não mais existentes. Os bens patrimoniais tombados, privados e vazios do povoado é que são responsáveis pelo poder de rememoração e permanência das lembranças de outros tempos. Estes são conservados não apenas pelas suas contribuições estéticas e arquitetônicas, mas também pelas suas funções de espacialização das memórias e identidade com a população diamantinense.

3.5. Patrimônio e preservação: intervir e conservar em um contexto memorial dinâmico e diversificado Os objetos patrimoniais passam por uma série de transformações que, para Lemos (1985), são condicionadas por alterações de costumes ou mudanças em uma cultura. A conservação de bens significativos ocorre e deve ocorrer a partir do papel da memória de uma sociedade que, mesmo em constante alteração, se identifica e se encontra no patrimônio (JEUDY, 1990). Nesse aspecto, Sahlins (1999) atribui a toda mudança - ou à sua ausência - a forma de reprodução cultural. Ao longo da evolução de uma sociedade, seu espaço e seus objetos são transformados, acompanhando as mudanças que passam os grupos sociais. “O sistema articulado de bens culturais dentro da cidade é permanentemente alterado” (LEMOS, 1985: 19). As interferências no patrimônio, e dentre elas os restauros, configuram-se, para Certeau (2000), como registro da heterogeneidade da cidade ao longo do tempo, marcando um entrelaçamento de memórias e acompanhando as mutações pelas quais passa

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a sociedade. Toda ideia cultural seria, portanto, uma forma de reprodução baseada em alguma referência, sempre admitindo uma linha constante que confere identidade (SAHLINS, 1999). Assim sendo, Sahlins (1999) aponta não haver oposição entre estabilidade e mudança: o que permanece em uma modificação é parte de sua substância antiga, estando o princípio da mudança ligado ao princípio da continuidade. Para preservar as mais significativas características de uma sociedade e tornálas acessíveis a outras gerações, se faz necessária a proteção de seus costumes e hábitos, estes embutidos em espaços e saberes consolidados. E é esta articulação, entre elementos espaciais e conhecimentos próprios de um grupo social, que fortalece o processo de preservação e transmissão cultural (LEMOS, 1985). A manutenção da memória social de uma população depende, pois, diretamente da preservação dos elementos significativos dentro do repertório que compõe o patrimônio cultural de um povo. “A busca das identidades culturais acaba motivando e dinamizando as práticas e políticas de conservação” (JEUDY, 1990: 2). “O interesse pela defesa de estruturas arquitetônicas, paisagens e recursos naturais decorre sem dúvida do desejo de manter laços de continuidade com o passado” (ARANTES, 1984: 8). A formalização e gênese de um patrimônio não partem apenas do princípio de salvaguarda, mas também dependem de um estímulo produzido pelo interesse coletivo em apropriar e reconhecer (JEUDY, 1990). Preservação, portanto, conforma-se com um significado amplo, uma vez que deve ser capaz de assegurar todas as categorias componentes do patrimônio cultural. Desta maneira, o ato de preservar funcionaria para impedir o desaparecimento de uma cultura, proteger e estimular sua memória e garantir o sentimento de identificação das pessoas para com os exemplares conservados. Então, como instrumento de preservação, Lemos (1985) aponta ser imprescindível ordenar e/ou classificar os bens que constituem o patrimônio cultural e estabelecer regras de como preservá-los em sua totalidade ou selecionando elementos realmente representativos. “Preservar não é só guardar uma coisa, um objeto, uma construção, um miolo histórico de uma grande cidade velha. Preservar também é

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gravar depoimentos, sons, músicas populares e eruditas. Preservar é manter vivos, mesmo que alterados, usos e costumes populares. É fazer, também, levantamentos, levantamentos de qualquer natureza, de sítios variados, de cidades, de bairros, de quarteirões significativos dentro do contexto urbano. É fazer levantamentos de construções, especialmente

aquelas

sabidamente

condenadas

ao

desaparecimento decorrente da especulação imobiliária” (LEMOS, 1985: 29).

A conservação integral de um conjunto original de bens articulados não se faz possível, uma vez que as sociedades passam por mudanças e muitos elementos se perdem. O que articula o conjunto patrimonial com a cultura são justamente as interferências que estes atravessam. Bens, lugares e espaços tradicionais chegam às gerações como herança, mas sua perpetuação ao longo do tempo é resultado de interpretações e releituras do presente em relação ao passado. Nesse sentido, preservar seria transformar, reconstruir e destruir o passado em termos do presente (ARANTES, 1984). A conservação de alguns cenários, mesmo a partir de reinterpretações contemporâneas, é capaz de permitir a percepção de relações espaciais, intenções plásticas, artes de expressão local, traços do cotidiano, entre outros aspectos. A defesa do passado estaria relacionada, para Arantes (1984), com a transformação do espaço físico em um lugar onde se desenvolvem modos de vida próprios de uma cultura. São os cenários do passado que, preservados, se tornam marcos referenciais para a leitura da cidade e sua permanência se faz necessária para a fruição da população e para a manutenção da memória coletiva (LEMOS, 1985). “A cidade tem que ser encarada como um artefato, como um bem cultural qualquer de um povo. Mas um artefato que pulsa, que vive, que permanentemente se transforma, se autodevora e expande em novos tecidos recriados para atender a outras demandas sucessivas de programas em permanente renovação” (LEMOS, 1985: 47).

Giovannoni apud Choay (2006) atribui ao patrimônio urbano simultaneamente um valor de uso e um valor museal, conferindo a esses conjuntos a necessidade de uma conservação adequada para a história, para a arte e para a vida presente. A cidade histórica deve, pois, ser vista ao mesmo tempo como

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monumento e como tecido vivo. Nesse sentido, Giovannoni apud Choay (2006) defende, além de procedimentos de restauro e conservação, a atuação de planos diretores sobre esses patrimônios urbanos – para sua integração com o presente – e a consideração da cidade como ambiente, respeitando seu conjunto heterogêneo – adequando-se à importância do entorno para o monumento. Em Biribiri é possível adotar como monumento de valor museal, tanto o conjunto urbano-arquitetônico, quanto às reminiscências de seu cotidiano enquanto centralidade fabril. Nesse sentido, encontra-se grande importância na preservação ampla do povoado enquanto conjunto memorial, e não apenas de suas edificações isoladas. Atualmente o risco de descaracterização de Biribiri está muito relacionado a intervenções pontuais e independentes nas edificações, ausentes de diálogo com seu entorno e contexto.

3.6. O turismo como consequência secundária da conservação patrimonial Arantes (1984) ressalta o estabelecimento de uma forte aliança entre turistas e atores da preservação, a qual foi responsável por muitas ações de preservação no Brasil e em outros países. Essa aliança é também fonte de renda e sobrevivência para muitas regiões, municípios ou povoados (CHOAY, 2006). Além disso, a expansão do turismo também implica em um acesso facilitado e mais democrático aos conhecimentos proporcionados pelos patrimônios históricos. No entanto, o efeito lucrativo do turismo sobre os patrimônios históricos pode produzir um efeito secundário ou uma consequência, em que se tem uma proliferação excessiva de exposições, objetos e signos culturais, extrapolando o objetivo da conservação. As expansões da sociedade do lazer e da indústria do turismo de massa estão na origem da exploração exacerbada do patrimônio e do aumento significativo de público dos monumentos históricos (CHOAY, 2006).

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“O turismo nasceu em volta de bens culturais paisagísticos e arquitetônicos preservados, e hoje, cada vez mais, vai exigindo a criação de mais cenários, de mais exotismos, provocando quadros artificiais, inclusive”. (LEMOS, 1985: 30). Esses quadros inventados cenograficamente atendem aos interesses de uma administração local, que cria um nacionalismo cultural por motivos políticos, dos comércios locais e dos setores de arrecadação de impostos, que passam a ter justificativas para seus grandes faturamentos (LEMOS, 1985). Com o crescimento do público e das intervenções sobre o patrimônio, essa exploração excessiva estaria, segundo Choay (2006: 228), “[...] fadada ao esgotamento, a menos que se reduzam os custos de manutenção e se regule o fluxo de seus consumidores”. Em suma, o turismo conforma-se como uma consequência secundária das políticas de preservação do patrimônio, isto é, um efeito que alcança fins extremamente lucrativos e que, dependendo da administração à qual se submete, pode levar a um quadro de exploração cultural abusiva. Nesse sentido, a conservação viva de conjuntos antigos por meio da reapropriação pelas populações que os habitam, seria a melhor forma de proteção contra as estandartizações culturais e de defesa de particularismos sociais locais (CHOAY, 2006). É claro que o patrimônio tem, simultaneamente, um valor afetivo de memória, ligado aos sujeitos sociais do cotidiano, e um valor documental de registro histórico (CHOAY, 2006). Desta maneira, é possível assumir que qualquer bem preservado, uma vez integrado ao presente, é capaz de produzir novas experiências e novas lembranças. O turismo atuaria, pois, na construção de novos platôs de memórias, uma vez que seu fluxo de atividades e pessoas passaria

a

constituir-se

também

como

parte

de

um

cotidiano

na

contemporaneidade. Em outras palavras, o turismo configura-se como uma realidade atual inserida e participante da rotina dos centros históricos, passível também de produção de relatos e lembranças. Preservar, portanto, não seria equivalente a imobilizar, já que mesmo a cidade histórica desenvolve-se em constante fluxo, como organismos cinéticos num contexto de redes interligadas (GIOVANNONI apud CHOAY, 2006).

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4. CAPÍTULO 4 4.1. Biribiri em contexto atual Desde 1998, a área ocupada pelo povoado está situada no interior do Parque Estadual do Biribiri, com administração do Instituto Estadual de Florestas (IEF). O Parque, situado no complexo da Serra do Espinhaço, apresenta vegetação composta por cerrado, campos rupestres e matas galeria. Têm-se ainda duas principais cachoeiras – dos Cristais e da Sentinela – formadas pelos córregos de mesmo nome, sendo estas responsáveis também pela movimentação turística local. O rio Biribiri foi determinante na localização do galpão da fábrica, objetivando o aproveitamento de seu potencial hidrelétrico. Atualmente, a criação de Parques Estaduais visa preservar ecossistemas de grande relevância ecológica, possibilitando a realização de pesquisas científicas, de atividades de educação ambiental e de turismo ecológico. Segundo o IEF (INSTITUTO..., S/D), a estratégia de conservação nessas unidades é de proteção integral, com preservação de fauna, flora, recursos hídricos e formações geológicas, além da participação na salvaguarda de valores culturais, históricos e arqueológicos quando relacionados à área ambiental protegida. Em 11 de novembro de 1998 foi homologado o tombamento do conjunto urbano-arquitetônico e paisagístico de Biribiri pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). O tombamento realizado inclui não apenas edificações, mas o povoado como conjunto urbanoarquitetônico, o que vem de acordo com um dos três princípios de conservação e restauração desenvolvidos por Giovannoni apud Choay (2006). O conceito de monumento não se aplica para um edifício isolado, sendo necessária a conservação também de seu entorno, espaço com o qual o monumento estabelece uma relação direta e essencial. Isso porque, para Giovannoni, o conjunto urbano antigo, com toda a sua heterogeneidade, seria um monumento como um todo. "Uma cidade histórica constitui em si um monumento, tanto por sua estrutura topográfica como por seu aspecto paisagístico, pelo caráter

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de suas vias, assim como pelo conjunto de seus edifícios maiores e menores; por isso, assim como no caso de um monumento particular, é preciso aplicar-lhe as mesmas leis de proteção e os mesmos critérios de restauração, desobstrução, recuperação e inovação" (GIOVANNONI apud CHOAY, 2006: 143)

Giovannoni foi amplamente criticado, tanto por sua posição profissional em uma Itália pós Segunda Guerra Mundial, quanto por não apoiar grandes estrelas do movimento moderno, como Le Corbusier. Por esses motivos sua obra foi tardiamente valorizada e, apenas em períodos mais recentes, reinterpretada e reabilitada. Apenas na Carta de Veneza, em 1964, tem-se uma definição clara da importância da conservação de conjuntos patrimoniais, ampliando tal noção também para o domínio da cultura popular ou de manifestações menores. “Art.1 - O conceito de monumento histórico engloba, não só as criações arquitetônicas isoladamente, mas também os sítios, urbanos ou rurais, nos quais sejam patentes os testemunhos de uma civilização particular, de uma fase significativa da evolução ou do progresso, ou algum acontecimento histórico. Este conceito é aplicável, quer às grandes criações, quer às realizações mais modestas que tenham adquirido significado cultural com o passar do tempo” (CONSELHO..., 1964: 1).

Biribiri, como conjunto urbano-arquitetônico tombado, existiu, desde o seu fechamento até momentos recentes, como uma espacialidade fantasma, ausente de vida e com pouco fluxo de visitantes quando comparado a Diamantina. O conjunto esteve todo à venda algumas vezes, mas não por muito tempo, o que nunca concretizou a sua comercialização. Sua realidade passou a ser marcada pelo abandono e pela ausência de novos usos ou novos moradores. Essa situação complicada deveu-se provavelmente ao fato do povoado configurar-se como um patrimônio privado, tombado e de uso coletivo. A política, portanto, adotada, por muitos anos, pelos proprietários foi de congelamento do conjunto e inoperância das edificações, inclusive com total ausência de ações de conservação do patrimônio. Como justificativa para tais decisões aponta-se, primeiramente, um tombamento tardio, que atrasou o reconhecimento do patrimônio local. Além disso, a legislação patrimonial

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vigente a partir de 1998 e o uso coletivo do conjunto poderiam ser tidos pelos proprietários como limitações para intervenções ou requalificações. A Estamparia S.A., empresa constituída pelos atuais proprietários do conjunto e por ele responsável desde 1973, divulgou notas justificando-se em função da ausência de fundos para investimentos de conservação (JORNAL VOZ DE DIAMANTINA, 2014). Além disso, sabe-se da discordância, entre os membros da empresa (a família herdeira do povoado), quanto ao destino de Biribiri, o que culmina com a não tomada de decisão alguma. Como consequência disso, observam-se muitas edificações hoje comprometidas, com presença danos estruturais e patologias construtivas. Figura 11: Casa em Biribiri comprometida pela situação de abandono.

Fonte: foto da autora, 2014.

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Figura 12: Galpões da fábrica comprometidos pela situação de abandono.

Fonte: foto da autora, 2014.

O turismo no povoado acontece de maneira quase autônoma, uma vez que se tem uma ausência de políticas que abordem e organizem tal processo. O acesso ao povoado se mostra, há um bom tempo, dificultado, uma vez que ocorre apenas por veículos particulares através de uma estrada de terra, que apresenta certo grau de precariedade. Além disso, não há o diálogo com os órgãos municipais responsáveis pelo patrimônio no que diz respeito a ações de conservação e de gerenciamento do fluxo de visitantes. O poder municipal, inclusive, muito se ausentou da questão de Biribiri, atitude possivelmente ancorada no caráter privado em que se encontra o conjunto patrimonial 1. No interior do Parque Estadual de proteção das áreas verdes, o conjunto urbano-arquitetônico conforma-se praticamente como um enclave dentre as políticas geração do ecoturismo. Essas atividades não estão integradas a práticas de preservação do povoado, uma vez que se restringem às áreas 1

Não foi possível obter entrevistas com o prefeito da cidade ou com outros membros do poder público local.

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externas à propriedade privada de Biribiri. Promovidas pelo Parque, as operações de educação ambiental visam conscientizar os turistas, que não têm o hábito de preocupação com a limpeza dos espaços, tanto nas cachoeiras e áreas verdes, quanto em Biribiri. Desta maneira, essas atividades acabam por atingir o povoado de maneira indireta e positiva, favorecendo sua conservação apesar da ausência de medidas efetivas por parte dos proprietários. Concluise, portanto, a presença de posições díspares, entre os responsáveis pelo povoado e a administração do Parque Estadual, quanto à promoção do turismo e a políticas de conservação, conferindo a Biribiri posição clara de enclave. No segundo semestre de 2013 foi iniciado um processo de venda das edificações de Biribiri, com o objetivo, segundo dados colhidos no setor imobiliário local, de criar uma espécie de condomínio, com uma administração central, provavelmente liderada pela Estamparia S.A. Há ainda a possibilidade de funcionamento do condomínio com a permissão à visitação do público, havendo, inclusive, certo lucro sobre esse movimento. O antigo alojamento das operárias da fábrica foi comprado e funcionará como uma pousada de aproximadamente 60 quartos. As outras 28 edificações do povoado abrigarão pousadas menores, residências particulares, bares, restaurantes, vinícola. As edificações dos antigos clube e barbearia foram compradas por todos os condôminos, com divisão do preço a se pagar entre todos, o que resulta em aproximadamente dez mil reais para cada um. A casa que pertenceu à gerência da fábrica e a sede da escola municipal Alexandre Mascarenhas não foram negociadas, pois estão destinadas à administração do futuro condomínio. Outras edificações não comercializadas são os galpões da fábrica, que estão sujeitos a propostas de compra, além de três casas reservadas para caseiros locais. Tem-se ainda a venda de dois terrenos do povoado, que juntamente com os quintais das edificações, oferecem certas limitações para intervenções contemporâneas, uma vez que o tombamento se estende por todo o conjunto urbanístico, incluindo sua paisagem aérea.

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4.2. O povoado como patrimônio industrial O patrimônio industrial pode caracterizar-se como herança comum e diversificada, a qual frequentemente se encontra sob a forma de propriedade privada, ausente de políticas de conservação ou sujeita a exigências pouco efetivas (FONTANA; MARTINS, 2012). Biribiri, uma vez de seu abandono e da inoperância de seus proprietários, tem funcionado de maneira praticamente independente do controle dos órgãos patrimoniais, principalmente no momento atual de formação do condomínio. O povoado de Biribiri pode ser abordado como patrimônio industrial uma vez que se enquadra no conceito de company town. “O termo 'company town'. refere-se aos estabelecimentos que foram construídos e operados pela fábrica para oferecer acomodação e infraestrutura a seus funcionários” (FONTANA; MARTINS,

2012:

4).

Essas

aglomerações

para

a

produção

que,

frequentemente se assumem como vilas operárias marcadas por um cotidiano de aura urbana, estiveram relacionadas ao avanço da industrialização do Brasil a partir do século XIX. Tais espaços carregam a marca de uma comunidade urbana na qual o desenvolvimento de um saber técnico e de um cotidiano social levou à criação de relações de identidade com o local, sendo o patrimônio industrial capaz de oferecer suporte para a narrativização desses vínculos. “Toda a relação de trabalho que envolve o executante e o instrumento envolve também uma reapropriação, por parte do agente, das ferramentas que tem à sua disposição”. (MELLO E SILVA, 2006: 1). Partindo-se de uma constante reapropriação do local tem-se, portanto, a explicitação do caráter dinâmico da cultura e da construção memorial. No fim do século XX um processo de desindustrialização atingiu as principais fábricas brasileiras do século XIX, que precisaram encerrar suas atividades, uma vez incapazes de fazer frente às amplas concorrências dotadas de tecnologias mais avançadas. Nesse contexto muitas company towns, esvaziadas, vivenciaram um processo paralisação do cotidiano, em que a construção de novas lembranças, ancoradas numa vida social urbana, estagna-se. É nesse ponto que o processo de rememoração assume um caráter

exclusivamente

retrospectivo.

“Os

diálogos

vão

assumir 60


necessariamente a forma de 'historias de vida', pois que a cultura operária baseia-se nos valores encarnados numa vida cotidiana” (JEUDY, 1990: 22). Essa memória, ausente de entrelaçamento presente, guarda registros vivos da consolidação e da desestabilização de uma sociedade industrial específica. “No caso do patrimônio industrial, a lembrança da desestruturação de valores, dos modos de vida e das práticas sociais persegue as memórias, resiste a uma homogeneização

cultural”

(JEUDY,

1990:

7).

No

entanto,

com

o

desmantelamento do grupo social que compartilha daquela mesma memória coletiva, as lembranças do cotidiano paralisado podem estar fadadas ao esquecimento, por meio do enfraquecimento das relações de identificação com o patrimônio industrial. Isto é, com o passar das gerações, o congelamento patrimonial não permite os processos de reconstrução e entrelaçamentos das lembranças, culminando com o abandono ou a mercantilização do espaço. A continuidade da memória coletiva é geralmente dinamizada em um cotidiano vivo, marcado por relações sociais. Há, portanto, a necessidade de reutilização do patrimônio industrial para a manutenção de um cotidiano dinâmico, em que as lembranças são constantemente entrelaçadas e superpostas. “Os objetos da arqueologia clássica, os edifícios industriais ou agrícolas sugerem não sua própria conservação, mas antes sua utilização futura possível” (JEUDY, 1990: 28). Nesse aspecto, o Brasil ainda é marcado por poucas experiências em iniciativas e projetos para a reutilização e conservação de espaços industriais desativados (CAMPAGNOL apud FONTANA; MARTINS, 2012). Os estudos brasileiros sobre o patrimônio industrial ainda se apresentam sob forma de disciplina isolada, sem tratar essa temática de maneira integrada e multidisciplinar (FONTANA; MARTINS, 2012). Em outras palavras, atualmente constatam-se estudos complexos em desenvolvimento, porém ainda não institucionalizados. Além disso, tem-se uma valorização tardia dos exemplares industriais, o que é responsável pelo também tardio trabalho de implantação de políticas de defesa patrimonial. No contexto brasileiro, Minas Gerais se mostra como uma área digna de atenção quanto à prática de ações voltadas à conservação em espaços fabris, uma vez que se constituiu como região de grande significação no processo de industrialização do país iniciado no século XIX.

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4.3. Perspectivas e possibilidades A decisão sobre a destinação do povoado tem efeitos muito mais amplos do que a simples manutenção do conjunto. O povoado está diretamente relacionado ao imaginário do diamantinense e com o seu sentimento de identidade quanto à municipalidade. Ao longo do tempo, Biribiri integrou-se à memória coletiva da população, fazendo parte das lembranças de diferentes gerações e das diversas relações com tal espacialidade. Se a manutenção da memória social de um grupo está ancorada na preservação dos elementos significativos do seu patrimônio cultural, a permanência do povoado de Biribiri conforma-se como conservação de um ponto referencial na rememoração coletiva. Dentre esse grupo social composto, predominantemente, por pessoas nascidas na região, é possível perceber uma sobreposição de platôs de memória que conferem significado à materialidade do conjunto tombado. Enumeram-se, portanto, três níveis de rememoração possíveis dentre a população local. Um grande número de pessoas fez parte do cotidiano desenvolvido

em

Biribiri,

tendo

participado

da

construção

e/ou

do

funcionamento do povoado ao longo dos anos de sua atividade. No entanto, pouquíssimos desses ainda estão vivos para possivelmente contribuírem no processo de reconstrução memorial. Observam-se também habitantes da região que não participaram diretamente do período ativo de Biribiri, mas muito o frequentaram e viram de perto sua paralisação e abandono, tendo assimilado ao povoado posição referencial. O terceiro nível de relação memorial abarca alguns habitantes que muito ouviram falar, mas pouco se relacionaram pessoalmente com o conjunto. Desta maneira, esse terceiro grupo construiu uma espécie de memória emprestada ancorada no relato dos grupos anteriores, atribuindo ainda um caráter de orientação memorial ao povoado. Como citado no capítulo anterior, Carlos Lemos (1985: 19) constata que “O sistema articulado de bens culturais dentro da cidade é permanentemente alterado”. Sobre essas possíveis alterações, Michel de Certeau (2000) aponta que qualquer interferência no patrimônio ocorrida em tempo presente conforma-se como expressão de um cotidiano atual e nesse processo obtém62


se um entrelaçamento de memórias coletivas. Nesse sentido, o que acontece atualmente em Biribiri seria a gênese de um novo cotidiano para o povoado, de cunho intencionalmente gregário, capaz de dar origem a novas memórias do local entrelaçadas àquelas já existentes. O bem tombado não é um empecilho ao uso presente, pelo contrário, a apropriação atual viabiliza uma convivência simbiótica com o passado. São justamente essas intervenções presentes, por meio de releituras da cidade em outros tempos, que reforçam o espaço urbano como tecido vivo em constante mutação. São os cotidianos e práticas existentes em uma localidade que criam, segundo Certeau (2000: 199), “[...] uma multitude de combinações possíveis entre lugares antigos e situações novas. Elas fazem da cidade uma imensa memória que prolifera a poética” (CERTEAU, 2000: 199). No entanto, a opção por um condomínio aberto ao público não implica a possibilidade de livre experiência do espaço e a evocação memória. “Conservar não quer mais dizer preservar ou salvaguardar, mas primeiramente restituir, reabilitar ou reapropriar-se” (JEUDY, 1990: 2). Considerando a análise do autor pondera-se que apenas o retorno de uma constante apropriação em Biribiri seria capaz de evocar sua história, reestimular a memória e incentivar o desenvolvimento de políticas específicas e efetivas de preservação. E quando se fala em apropriação, esta não deve restringir-se à diferenciada minoria capaz de adquirir as edificações componentes do condomínio, sendo importante vislumbrar outras possibilidades para o povoado que não sua mercantilização. Seria fundamental, portanto, permitir a todos os indivíduos participantes e construtores da memória coletiva local, por meio da apropriação, a permanência do sentimento de identidade com a cidade. Como não há informações disponíveis sobre o cunho da intervenção atual em Biribiri, apresentam-se três alternativas de gerenciamento do acesso ao conjunto: o fechamento, a abertura controlada e a abertura aparentemente livre. O fechamento seria a hipótese de total exclusividade espacial para os proprietários de imóveis e outras pessoas selecionadas, em um contexto bem próximo dos condomínios fechados nos subúrbios de cidades maiores. Nesse aspecto, o que aconteceria em Biribiri seria um processo que, segundo Certeau (2000), pode ser definido como restauração social, isto é, um empreendimento 63


elitista e segregacionista, que culminaria na restrição do uso de um espaço tombado como patrimônio coletivo. A abertura controlada possibilitaria a obtenção de lucro através do turismo, mas facilmente restringiria o acesso e o restabelecimento de relações com o conjunto pela população local, uma vez que as formas de apropriação e vivência espacial seriam sumariamente combatidas. Desta maneira seria desenvolvido um cotidiano controlado e burocratizado. Além disso, essa forma de

abertura

incentiva

questionamentos

quanto

à

possibilidade

de

desenvolvimento de uma forma de turismo predatória, na qual se tem a exploração de um recurso e de seus signos culturais em detrimento de estratégias de valorização do patrimônio. Nesse cenário o turismo não tem integração com o cotidiano local e não participa de sobreposições de lembranças, uma vez que está voltado para o consumo do espaço. Já a abertura pode ser considerada aparentemente livre uma vez que não se sabe a quem seria concedido um fácil acesso e se haveria de fato a possibilidade de identificação livre da população no espaço. A prospectiva urbana, segundo Certeau (2000), requer a recuperação dos direitos de autoria da cidade por todos aqueles que estabelecem com ela uma relação de identidade. Em outras palavras, não se tem a certeza de que uma “livre” abertura do povoado garantiria uma heterogeneidade presente na apropriação e essencial à memória coletiva. A multiplicidade é parte constituinte da cidade e elemento para a manutenção de heterodoxias do passado (CERTEAU, 2000). Outra possibilidade relacionada a esta abertura “livre” seria a da ampliação do turismo com um caráter lucrativo, mas não necessariamente exploratório. A utilização e a abertura das edificações, bem como o aumento do fluxo espontâneo de visitantes seriam indícios de uma maior democratização no acesso ao bem, além da gênese de uma nova relação com a espacialidade do povoado. Partindo-se das modificações atuais de constituição de um condomínio privado, é perceptível um processo de desmembramento dessa propriedade privada, em que se observa a ampliação do número de possuidores do espaço, sendo este subdivido em parcelas de terreno individuais menores. No entanto, o que

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se obtém com este processo é a perda efetiva do cotidiano imbuído de uma forte noção de coletividade. Em outras palavras, a essência de Biribiri constituise em uma propriedade privada em sua totalidade, ausente de interesses individualistas ligados à terra e dotada do compartilhamento de experiências. Sua origem engloba ainda uma ampla paridade entre seus habitantes, havendo certa separação apenas nos espaços do trabalho. Com o abandono do povoado, esta dinâmica foi paralisada, mas ainda conformava-se passível de ressurgimento por meio de ações visando revivenciar, recuperar e restituir. Porém, com a reprivatização caminha-se para a perda de uma noção de urbanidade

e

de

coletividade

locais

marcantes

para

a

população

diamantinense, que ali recorda e se referencia. Em outras palavras, o desmembramento do conjunto atua como forma de perda substantiva do legado local ali construído, enfraquecendo suas significações à população que ali se relaciona. Observando-se o processo de venda dos imóveis, a perspectiva é de que, muito em breve, o conjunto arquitetônico passe por processos de reforma, o que não garante a integridade de um processo de conservação. A reforma interna total das edificações, com a eliminação de elementos originais e preservação apenas das fachadas configura-se como um procedimento comum em sítios pequenos nos quais não há intensa fiscalização dos órgãos patrimoniais. Este procedimento foi apontado pelo setor imobiliário como algo permitido e de fácil realização neste novo momento do povoado. A reocupação do conjunto vai além do ideal de descongelamento do uso dos bens, conformando-se, portanto, como investimento que ameaça a integridade do patrimônio local. O risco de uma ampla descaracterização de Biribiri parece, até o momento, não ter sido assimilado pela população de Diamantina em geral, que ainda não se manifestou contra a reocupação por meio do desmembramento. Ou ainda, esse não posicionamento local pode estar relacionado ao terceiro platô de rememoração quando do desenvolvimento de uma memória emprestada. Nesse contexto tem-se o enfraquecimento das relações com o espaço, abalando os vínculos de identidade e produzindo uma espécie de apatia coletiva quanto ao patrimônio. Esse distanciamento prossegue com a 65


diminuição da valorização das lembranças, facilitando os processos tanto de reprivatização e desmembramento da propriedade, quanto de intervenção ou descaracterização do conjunto.

4.4. Movimentações atuais Não se sabe até o momento qual será o cunho da intervenção de criação do condomínio. É evidente que a manutenção de uma ausência de diálogo, das entidades de gestão municipal e de preservação do patrimônio, com os proprietários culminará em sérios riscos ao patrimônio e à memória locais. “É preciso que os poderes públicos assumam um papel proativo, imbuídos de consciência cultural e história, e não usem aquela contradição real como álibi para uma postura resignada diante das dificuldades ou, o que é pior, a omissão” (MELLO E SILVA, 2006: 5).

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) expediu uma recomendação, já em 2014, à Estamparia S.A. para que o povoado seja preservado e as modificações dos imóveis suspensas. O Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA) informou que recebeu projetos de reforma das edificações em 2013, mas as análises foram suspensas e os proprietários receberam notificação para paralisação das obras (JORNAL VOZ DE DIAMANTINA, 2014). A Estamparia S. A. afirma a existência, por parte dos novos proprietários, de um compromisso, firmado em contrato, em manter a originalidade do povoado e de suas construções, conforme exigido pelo IEPHA. E acrescenta ainda que estes novos proprietários planejam investimentos acima de R$ 2 milhões, nos próximos cinco anos, em restauração, conservação e ampliação das edificações (JORNAL VOZ DE DIAMANTINA, 2014). Até o momento pouco foi realizado, mas é fácil perceber um falso entendimento dos conceitos de conservação e restauro. Analisando-se as modificações já iniciadas, nota-se que nos próximos anos a pretensão é investir em reformas descaracterizantes, com remoção de diversos elementos originais, com a certeza de que isto seria conservação. Já a falsa noção de restauro está na sua associação a 66


procedimentos de reabilitação das edificações para suporte qualquer tipo de uso, conservando apenas as fachadas e modificando os interiores por completo.

Duas

das

edificações

de

Biribiri

foram

amplamente

descaracterizadas sem qualquer ação de impedimento por parte dos órgãos patrimoniais locais ou estaduais. Ambas tiveram seus interiores totalmente modificados, inclusive por meio da remoção de esquadrias, telhado e pisos originais para inserção de materiais atuais. Uma dessas casas foi transformada em pousada, passando por reformas para construção de cômodos anexos destinados à conformação de suítes e a outras infraestruturas, alterando, além da volumetria da edificação, a paisagem do conjunto urbano. Figura 13: Casa em Biribiri descaracterizada por reformas.

Fonte: foto da autora, 2014.

67


Figura 14: Casa em Biribiri descaracterizada por reformas para abrigar pousada.

Fonte: foto da autora, 2014.

Figura 15: Casa descaracterizada para abrigar pousada. Detalhe dos anexos construídos para construção de banheiros.

Fonte: foto da autora, 2014.

68


Isso aconteceu em razão do potencial lucrativo de Biribiri conforme sua constituição

como

condomínio

turístico,

além

da,

ainda

majoritária,

compreensão de que o patrimônio limita-se à fachada principal. O entendimento do patrimônio enquanto fachada atrela-se à noção de que este carrega apenas a dimensão de uma experiência estética e de consumo externo imediato, sendo sua preservação única e exclusivamente para tal fim. Essa é ainda uma visão bastante comum, decorrente também de poucas iniciativas de educação patrimonial que abordem o patrimônio enquanto espaço memorial e de afirmação identitária. A constituição da pousada, da maneira como foi feita, já carrega um indício de uma cenarização do espaço em busca de um turismo essencialmente lucrativo. A perspectiva, diante da inoperância dos órgãos patrimoniais, é de extensão desse

processo

destrutivo

a

todo

o

povoado,

culminando

na

total

descaracterização e na espetacularização mercantilizada do espaço. Para justificar suas movimentações, a Estamparia S. A. defende o desmembramento da propriedade no sentido de socializar os gastos para conservação do patrimônio, já que a empresa não é capaz de arcar com os custos de processos de recuperação. No entanto, a fragmentação da terra não é uma opção interessante no sentido de produzir uma preservação abrangente e harmônica no espaço do povoado como conjunto urbanístico tombado. A reprivatização

da

propriedade

reforça

a

tendência

a

intervenções

individualizadas e desvinculadas do conceito de coletividade ali existente. A cidade não se define pela simples soma de construções em terrenos privados e, nesse aspecto, há a necessidade de uma política de preservação abrangente ao conjunto, principalmente quando se trata de um bem tombado. “Faz falta definir como serão construídos – e transformados – nossos espaços públicos, pensar como conjuntos inteiros podem sobreviver renovados e preservados” (ROLNIK, 2014). O presente processo de desmembramento tem se expressado, portanto, como insustentável, uma vez que caminha no sentido contrário à preservação patrimonial e à razão do tombamento, por meio do favorecimento a modificações individualizadas e desconexas entre si.

69


4.5. A utopia como reinvenção do povoado Diante das perspectivas elaboradas depois das intervenções recentes sobre Biribiri, caminha-se para uma perda de esperanças quando da possibilidade de criação de um espaço degradado e espetacularizado. No entanto, é preciso resgatar o sentido de utopia para que não se esgotem as possibilidades de conservação do povoado enquanto suporte mnemônico. É coerente e, ao mesmo tempo, utópica a visão de que a população deve ter o direito de escolher o tipo de cidade em que vai habitar, bem como seus rumos. No entanto, David Harvey (2009) explica o momento atual, situando o pensamento utópico como uma prática cada vez mais condenada e dificultada. O enfraquecimento de idealizações e a consequente perda da esperança dificultam ou quase inviabilizam o desenvolvimento de propostas alternativas à realidade. “Parecemos estar divididos entre sonhos que parecem irrealizáveis e perspectivas que mal parecem importar” (UNGER apud HARVEY, 2009: 206). As figuras idealizadas das povoações frequentemente relacionam uma vida urbana dotada de liberdades pessoais às pequenas escalas de cidade, associando espírito de comunidade e organização social igualitária. Essas pequenas aglomerações recebem ainda um viés nostálgico, em que o relacionamento social é marcado por certa harmonia (HARVEY, 2009). Esse ideal esteve sempre presente em Biribiri no sentido de sua constituição baseada na equiparação de seus habitantes e seu cotidiano marcado por atividades de cunho coletivo. A concepção de Biribiri, nesse aspecto, aproximase muito da proposta de Jane Jacobs de cidade ideal. Jacobs apud Harvey, (2009: 216) delimita uma compreensão nostálgica de um espaço íntimo e diversificado etnicamente em que "[...] predominavam formas artesanais de atividade empreendedora e de emprego, bem como formas interativas de relacionamento social direto". Apesar de objetivar o desenvolvimento industrial e o crescimento do povoado, era justamente a sua pequena escala que garantia uma organização eficaz e um modo de convivência harmônica. Temse, pois, a defesa de uma escala urbana utópica menos ampla, destacada na visão de Jacobs. Esses pontos, essenciais em sua constituição, são ainda hoje evocados e idealizados quando se imagina possibilidades para Biribiri. 70


Diante dos múltiplos exemplos de modelos utópicos de cidades, é possível estabelecer um paralelo entre a constituição do povoado de Biribiri e o projeto para a cidade salina de Chaux, datado de 1780 e elaborado por Claude Nicholas Ledoux. Chaux conforma-se como uma cidade-fábrica planejada com base em centros urbanos ideais, mas que busca a materialização de uma narrativa utópica. Nesse sentido, Chaux constitui-se como espaço de integração, de compartilhamento de experiências e de práticas das virtudes, sempre visando a criação de uma boa convivência. Ledoux tem como suporte e influência do pensamento de Jean Jacques Rousseau (1717-1778) em que o ser humano seria constituído de uma natureza boa, mas passível de corrupção a partir do convívio em sociedade (VIDLER, 2006). Nesse aspecto, o desenvolvimento do intelecto e das virtudes inerentes ao homem seria essencial à vida urbana e ocorreria por meio de interlocuções e trocas, além de incentivos à educação e à ciência. Se a constituição do espaço urbano é a possibilidade de recriação do mundo de acordo com os desejos de um grupo social, o homem está fadado a viver em sua própria invenção (HARVEY, 2009). Nesse momento, de maneira indireta, ao fazer a cidade, o homem refaz a si mesmo, se constitui e se expressa. É esse sentido de formação de indivíduos que permeia Ledoux ao propor a valorização do sentido de coletividade no espaço urbano. Chaux congrega, portanto, valores igualitários em uma cidade indutora de reforma para atingir-se a sociedade ideal, aliando, desta maneira, utopia e contradições. Biribiri dialoga com Chaux ao constituir-se como povoado idealizado através de, por exemplo, relações de trabalho assalariado e igualitário em um contexto de predominante mão de obra escrava. O povoado desenvolveu-se com base em uma forte noção de coletividade, que marcava uma vida urbana de vivências compartilhadas, reforçando ainda atividades de educação e de prática religiosa, formas de aprimoramento dos indivíduos e expressão de uma cultura própria. O alinhamento entre utopia e contradições em Biribiri se dá justamente em sua estruturação à frente de seu tempo, buscando uma organização social inovadora e igualitária. A exploração atual de perspectivas para o povoado é essencial à reinvenção do espaço urbano existente e dos grupos que ali habitarão. “A maneira como 71


nossa imaginação individual e coletiva funciona é, portanto, crucial para definir o trabalho da urbanização” (HARVEY, 2009: 211). A reflexão crítica sobre o imaginário coletivo e as idealizações individuais funciona, pois, como instrumento de proposição e determinação do destino de Biribiri. Cada pessoa tem em mente uma cidade cujos elementos reais são completados por uma cidade particular imaginada. Na cidade real, que consiste em um conjunto materializado de ideias, está o que se considerou necessário ou que o será um dia, mas que não necessariamente satisfaz momentos presentes. Na cidade utópica existe o que se supõe possível e que pouco depois deixa de sê-lo, uma vez que consiste em uma idealização momentânea, que se perde com o avanço do tempo real (CALVINO, 1990). A cidade real não tem, portanto, figuras ou forma, pois estas são conformadas a partir dos imaginários individuais. Nesse processo, a utopia vem sob a forma de “espectro” (DERRIDA apud MARTIN, 2013) para introduzir possibilidades utópicas na realidade cotidiana, sem objetivar a concretização de outro mundo ideal (MARTIN, 2013). Em outras palavras, a utopia em um contexto atual é muito mais a exploração de projeções reimaginadas baseadas em uma realidade já existente, do que a tentativa de concretização de um mundo perfeito. Italo Calvino (1990), em Cidades Invisíveis, descreve as impressões de um viajante que observa a vida urbana descolado de seu objeto ao mesmo tempo em que se insere no cotidiano das cidades pelas quais passa. Nesse processo de apreensão urbana, são narradas cidades dentro de cidades, como Berenice, em que uma população majoritariamente justa se torna orgulhosa de sua virtude, fazendo nascer uma cidade injusta, que trará o germe de uma cidade justa e assim sucessivamente. Desta maneira, uma cidade, que cria outras cidades dentro de si, encontra o germe de seu próprio desmantelamento. Isso se aplica em diferentes níveis a todos os aglomerados urbanos. As terras correspondentes a Biribiri, ao abrigar pontos de mineração, traziam o embrião da constituição de um povoado. A sua ocupação repentina, com a constituição de uma ampla propriedade privada habitada, aguardava também seu esvaziamento brusco em razão da falência daquele sistema. A criação de um cotidiano fabril próprio e em condição de quase isolamento foi também responsável pelo descompasso com a evolução da industrialização brasileira,

72


levando à falência do povoado. A permanência de um caseiro acompanhado de sua família trouxe ainda o germe de um desejo de repovoamento do local. Tem-se, portanto, que a constituição de qualquer elemento em Biribiri não carrega

apenas

sua

existência,

mas

também

uma

projeção

de

redimensionamento ou reedificação da cidade. As partes que compõem o todo da cidade são elementos polissêmicos significativos ao mesmo tempo para o passado, o presente e o futuro. Exemplifica-se o tombamento, que consistiu até o momento e pretende-se consistir-se como mecanismo de salvação e perpetuação de Biribiri, mas que ao mesmo tempo é tido como forma de congelamento do uso e justificativa tanto para o abandono anterior, quanto para as perspectivas de ocupação. O que se espera, então, é a utilização de elementos da realidade atual do povoado como suporte para a reimaginação urbana e a projeção de ideais de renovação em si mesmo. “Talvez Utopia nunca possa realizar-se sem destruir a si mesma” (HARVEY, 2009: 220). Essa destruição pode ser vista como o desmembramento de um pensamento utópico encorpado para que se tenha a gênese de projeções de futuro menores e passíveis de materialização. Biribiri projeta-se para o futuro ao idealizar o retorno do habitar enquanto reinvenção do espaço urbano e rememoração coletiva. Mas é preciso explorar formas de concretização do ideal, uma vez que sua reocupação carrega também o risco da destruição de seus próprios elementos de referência e de lembrança. A utopia do retorno de uma coletividade urbana se destrói, portanto, diante da ameaça da própria ruína na sua descaracterização enquanto bem a ser conservado, porque passa a ser necessário desmembrar o ideal e pensar instrumentos para garantia de uma sociabilidade espontânea. O repovoamento de Biribiri carrega a utopia do habitar, que pode ser interpretada, segundo Carlos Brandão (1999: 2), como a ação de "[...] construir os meios para ‘habitar em mim’, ‘me ter’, ‘tomar posse de mim mesmo’, ou seja, produzir a minha própria identidade". Nesse sentido, o espaço de uso cotidiano coletivo é o local de construção e documentação de uma identidade social, por meio da qual se referencia e se identifica uma sociedade, produzindo lembranças e vínculos. O patrimônio urbano e arquitetônico habitado é instrumento de expressão, transmissão e construção constantes da memória 73


coletiva de uma cultura, já que se compõe de um sentido de permanência temporal e histórica. “[...] habitar é narrativizar. Fomentar ou restaurar esta narratividade é portanto também uma tarefa de restauração” (CERTEAU, 2000: 201). Uma vez que a produção de lembranças está amplamente ancorada no relato, o retorno de um cotidiano social ao povoado traria a possibilidade de narrativização de suas memórias, tornando talvez possível a construção do quadro da memória coletiva local e a sua transmissão dentro do grupo social. São os relatos que trazem à cidade visível, sua dimensão invisível, permitindo outros sentidos de apreensão do espaço urbano (CERTEAU, 2000). Italo Calvino (1990) aborda a cidade de Zora como o espaço em evocação memorial, em que cada elemento se desdobra em lembranças. No entanto, para facilitar o processo de rememoração, Zora foi imobilizada e, como consequência, definhou. Isso porque as manifestações culturais só têm continuidade se também houver uma reinterpretação do passado para a rememoração. Não é a cidade que deve se adaptar à memória, mas as lembranças é que se espacializam, se sobrepõem e se entrelaçam na cidade. E as constantes superposições de lembranças só acontecem no espaço habitado, uma vez que habitar é criar vínculos e reinventá-los constantemente. As releituras do passado e as dinâmicas de um cotidiano social transformam a cidade em um tecido vivo marcado por constantes renovações, o que não põe em risco as lembranças. A utopia do habitar em Biribiri, como forma de resgate de um cotidiano gregário e dinâmico, possibilitaria a preservação do povoado através de constantes apropriações. O patrimônio enquanto memória é o que impede a dominação de uma sociedade do anonimato, sem história, sem origens, sem tempo (BRANDÃO, 1999). O repovoamento permitiria, pois, a criação de novos vínculos com o espaço e o enriquecimento da memória coletiva, que sairia das atuais condições de congelamento e instabilidade, cada vez mais enfraquecida por uma apatia patrimonial. Diante do conceito de cidade como tecido vivo e em movimento, é preciso ressaltar que por mais que conjuntos urbanos se renovem, eles sempre carregarão incrustadas as cidades que foram, sendo necessário lidar com esse passado por meio das memórias coletiva e individual. A cidade de Clarisse descrita por Calvino (1990) usa de seu passado para reconstruir-se, 74


modificando-se e permanecendo no espaço. Já a ilha de Utopia de Thomas More, analisada por David Harvey (2009), cria um espaço fechado estabilizado e imutável, determinando uma economia isolada e organizada. Tem-se, então, o controle da temporalidade da cidade por meio de uma forma espacial determinada, em que a geografia imaginada determina as possibilidades de mudanças sociais e históricas da ilha (HARVEY, 2009). Nesse sentido questiona-se a impossibilidade de funcionamento de Biribiri quando de sua constituição isolada e pré-determinada, impossibilitando reinvenções naturais no uso do espaço. A partir de então, assume-se que o retorno do cotidiano social ao povoado resgataria e renovaria a memória, livrando-se de uma condição estacionária fadada ao esquecimento. Na materialização de espaços ideais, segundo Harvey (2009: 228), "[...] o processo social toma as rédeas da forma espacial com que se pretende controlá-lo". Nesse aspecto, as dinâmicas gregárias sempre se ambientam e se sobressaem à localidade pré-concebida, possibilitando aos processos mnemônicos e de identificação um caráter dinâmico, sempre sujeito a restruturações. A geometria dos espaços patrimoniais não é feita de formas e dimensões físicas, mas de ecos da memória e da imaginação (BRANDÃO, 1999). A utopia no sentido de habitar relaciona-se concomitantemente à reinvenção da cidade e à permanência desta nos imaginários coletivos, perpetuando vínculos locais de identificação e pertencimento com o espaço urbano. O patrimônio carrega consigo não apenas o sentido do habitar o espaço, mas também o habitar um tempo e uma história. Nesse aspecto o espaço transcende sua existência física, invocando também a expressão de uma identidade social própria de um cotidiano. "A vida contemporânea procura abolir o sentimento do tempo e a durabilidade das coisas com as quais nos envolvemos" (BRANDÃO, 1999: 8). É justamente quando se busca essa parada do tempo que se obtém a "cenarização" do patrimônio, a fim de torná-lo eternamente comercializável. Nesse contexto de mercantilização e exaltação do consumo, tem-se o estabelecimento de um espaço controlado, protegido, organizado e ausente de conflito, que também se mostra faltante de tempo e de história. A harmonia nesses espaços não é espontânea, já que se vincula fortemente a atividades de vigilância e controle. O povoado de Biribiri, uma vez

75


sujeito ao consumo do espaço enquanto mercadoria, abrigaria uma visão nostálgica constituída de falsas memórias coletivas e de percepções urbanas acríticas e higienizadas. Suas falsas memórias seriam ancoradas em imagens congeladas e virtuais, em detrimento de lembranças baseadas em vivências espaciais. O resultado seria, portanto, um espaço espetacularizado e degenerado, uma vez que toda a sua função referencial à localidade estaria destinada ao consumo. O objeto urbano e arquitetônico, segundo Brandão (1999), só entra no mundo e dá início à sua história quando é habitado e vivido, sendo sua importância relacionada aos sentidos de perenidade, significação, necessidade e utilidade - e não apenas à sua imagem. Em suma, a utopia defendida para Biribiri ancora-se no desejo de um espaço "[...] onde se habita e se convive com os outros e com nós mesmos, espaços onde educamos corpo, alma, hábitos e afetos" (BRANDÃO, 1999: 13). Anseiase por um povoado de forte senso de coletividade, em que seja permitido, não apenas ver tudo o que há ali, mas também vivenciá-lo e experimentá-lo por meio de constantes e livres apropriações. Não é interessante a construção de uma localidade enrijecida, sendo concebível, mesmo com o tombamento, um espaço de constantes reinvenções motivadas pelo uso, sendo possível estabelecer um sentimento de identidade. Idealiza-se que essas reinvenções sejam, ainda, instrumentos de transmissão de uma cultura para compreensão do cotidiano. Como suporte da lembrança, busca-se a possibilidade de interpretação de seu patrimônio, para que se possa herdar tradições, referenciar-se memorialmente e criar vínculos com o local. "Habituamo-nos a contemplar os espaços a nossa frente e desacostumamo-nos a vê-los desenvolver em nosso redor, abrigarnos em um cosmos ou universo familiar, sugerir ações e comportamentos,

acolher

amigos

e

conversas,

promover

a

itinerância, o movimento ou o repouso" (BRANDÃO, 1999: 13)

Como afirma Carlos Brandão, os espaços do habitar devem abrigar um movimento constante, que envolve e motiva seus participantes, sendo essa dinâmica autônoma e inclusiva responsável pelo sentido de conjunto urbano vivo e em constante mutação. Nesse sentido, a proposta utópica para Biribiri é sempre gregária, coletiva e aberta, sempre passível de reimaginação. 76


4.6. Biribiri em reimaginação: fotografia e poética A partir das diversas visitas realizadas ao povoado, utilizou-se dos artifícios fotográficos para produção de um ensaio poético de reimaginação. Inicia-se por um retrato antigo de Biribiri, em um contexto de acesso inexistente a outras imagens de períodos anteriores. Por meio de fotografias em dupla exposição busca-se um encontro entre presente, das explícitas e atuais transformações, passado, na carga histórica ali embutida, e futuro, nas possibilidades de idealizações projetivas. Traça-se, portanto, um imaginário possível baseado nas análises memoriais sobre o povoado, através do entrelaçamento de diversos platôs de significação. Este ensaio de fotografia e poética, pleno em importância emotiva, é também uma homenagem à população diamantinense e, em especial, àqueles que se referenciam e se identificam em Biribiri. Figura 16: Galpões da antiga fábrica de Biribiri “No caso do patrimônio industrial, a lembrança da desestruturação de valores, dos modos de vida e das práticas sociais persegue as memórias, resiste a uma homogeneização cultural” (JEUDY, 1990: 7).

Fonte: TIBÃES, 2001.

77


Figura 17: “Os toscos povoados, tão bem descritos por alguns viajantes no século passado, que parecem brotar ‘naturalmente’ da paisagem, não o fazem, na verdade. Sutilmente, rompem com o mundo rural, expressando, pequenos e espalhados por entre enormes domínios agrários, um outro processo social” (MARX, 1991: 25).

Fonte: foto da autora, 2014.

78


Figura 18: “O costume de destacar o templo na paisagem transcendia, por isso, uma questão de lógica, uma força da tradição, uma vontade plástica” (MARX, 1991: 22).

Fonte: foto da autora, 2014.

79


Figura 19: O esboço da formação de uma urbanidade já é capaz de quebrar a paisagem rural dominante, trazendo uma nova forma de organização política, econômica, social e espacial.

Fonte: foto da autora, 2014.

80


Figura 20: “[...] a presença do vazio, do espaço aberto fluido, por vezes mais elaborado, e propiciou, antes de tudo, um importante domínio da terra urbana” (MARX, 1991: 23).

Fonte: foto da autora, 2014.

81


Figura 21: Uma vez que sua gênese está relacionada à fundação da fábrica, a edificação que ocupará posição de centralidade no largo do povoado será a casa da gerência, dotada de grande jardim, avarandados e muitos cômodos.

Fonte: foto da autora, 2014.

82


Figura 22: Diante do conceito de cidade como tecido vivo e em movimento, é preciso ressaltar que por mais que conjuntos urbanos se renovem, eles sempre carregarão incrustadas as cidades que foram, sendo necessário lidar com esse passado por meio das memórias coletiva e individual.

Fonte: foto da autora, 2014.

83


Figura 23: A não oposição entre estabilidade e mudança: o que permanece em uma modificação é parte de sua substância antiga, estando o princípio da mudança ligado ao princípio da continuidade.

Fonte: foto da autora, 2014.

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Figura 24: Não é a cidade que deve se adaptar à memória, mas as lembranças é que se espacializam, se sobrepõem e se entrelaçam na cidade. E as constantes superposições de lembranças só acontecem no espaço habitado, uma vez que habitar é criar vínculos e reinventá-los constantemente.

Fonte: foto da autora, 2014.

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Figura 25: A constituição de qualquer elemento em Biribiri não carrega apenas sua existência, mas também uma projeção de redimensionamento ou reedificação da cidade. A cidade real não tem, portanto, figuras ou forma, pois estas são conformadas a partir dos imaginários individuais.

Fonte: foto da autora, 2014.

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Figura 26: A utopia no sentido de habitar relaciona-se concomitantemente à reinvenção da cidade e à permanência desta nos imaginários coletivos, perpetuando vínculos locais de identificação e pertencimento com o espaço urbano.

Fonte: foto da autora, 2014.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das análises realizadas foram percebidas questões ainda complicadas atualmente no que se refere à gestão do patrimônio. Primeiramente tem-se uma grande dificuldade de conciliar estratégias de conservação necessárias à preservação dos bens com os interesses e investimentos dos proprietários. Esse papel de intermediação entre população e preservação dos bens caberia aos órgãos públicos de gestão do patrimônio, não apenas no modo de intervenção ou exigência, mas também na forma de educação patrimonial. Uma vez que se verificam espaços tombados, presume-se a existência de uma relação importante com a memória coletiva e com as identidades culturais locais. O que pode estar faltando é uma educação patrimonial no sentido de reconhecimento coletivo - pelo próprio grupo social vinculado à determinado patrimônio - da importância conservativa, com o objetivo de prolongar a manutenção de processos mnemônicos próprios e interiores ao grupo. Realizando-se um recorte sobre todas as instâncias abrangidas pelo patrimônio, considera-se a questão das company towns, que no Brasil aparecem frequentemente vinculadas à propriedade privada. Isso porque grande parte dessas vilas operárias surgiu a partir de uma mesma iniciativa privada que viabilizou a instalação fabril. A dificuldade atual de manutenção desses espaços parte, primeiramente, de tombamentos tardios e permanece quando da citada dificuldade de conciliação entre interesses públicos e privados para conservação. Outro impasse encontrado quanto à gestão patrimonial seria o crescente interesse mercadológico, que atua tanto em busca de brechas nas leis de conservação, quanto na forma de espetacularização lucrativa. É importante ressaltar que, por maior que seja a posição significativa ocupada por um espaço perante uma população, esse interesse social e memorial não tem sido capaz de resistir às movimentações mercadológicas e seus interesses. Não é raro se observar edifícios antigos isolados, mantidos como monumentos, em um entorno que não dialoga com o ponto referencial ali existente. Quanto à espetacularização, é muito comum a atribuição do título de "restauro" ou "conservação" a intervenções sobre o patrimônio que mantêm uma fachada 88


histórica higienizada envolvendo um interior completamente descaracterizado. Esse é o principal risco pelo qual vem passando Biribiri, através da transformação do conjunto urbano e arquitetônico em um cenário ausente da passagem do tempo. Essas intervenções elitizam o espaço, criam uma memorialização controlada e dificultam a manutenção de vínculos antigos entre grupos sociais específicos e patrimônio. E o resultado é a perda gradual de relações sociais de identificação e pertencimento, causando também uma apatia coletiva quanto ao destino possível do patrimônio. Diante das possibilidades realistas e pessimistas atingidas, busca-se uma utopia a ser reedificada em um cotidiano gregário e democrático. Idealiza-se uma revitalização que garanta procedimentos técnicos de conservação sem excluir o patrimônio de sua dimensão social e ativa cotidianamente. Nesse aspecto, defende-se o retorno do habitar em Biribiri, mas com a criação de um espaço de usufruto coletivo, aberto e colaborativo. "Em suma, se o patrimônio é produzido coletivamente, é necessário garantir que haja igualmente uma fruição coletiva dele" (MENEGUELLO, 2000:1). Por fim, afirma-se que a significação presente no povoado de Biribiri permanece não apenas nas lembranças coletivas locais ou nas memórias literárias delineadas, mas também em sua imagem prospectiva urbana. Ainda que o conjunto situe-se em condições de ruínas, o espectro idealizado do que foi ou do que poderia ter sido, subsiste e nutre o imaginário coletivo local, garantindo sua continuidade enquanto elemento referencial.

89


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