ABORDAR O PATRIMÔNIO // um estudo de práticas de conser v ação e restauro na contemporaneidade – entre Itália e B rasil
UFMG // TCC luisa motta
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE ARQUITETURA
ABORDAR O PATRIMÔNIO // u m e s t udo de p rát i cas de conser v ação e restau ro n a c ont em p oranei dade – e n tre It ál i a e B rasi l
LUISA GRASSI MOTTA E SILVA B e lo H ori z ont e , 2017
Trabalho de conclusão de curso apresentado no primeiro semestre de 2017 como requisito para título
de
graduação
em
Arquitetura
obten ção do e
Urbanismo.
Orientação: Celina Borges Lemos Mario Fundarò
Às distâncias Às memórias Às histórias.
“À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, unese a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo”. (BOSI, 1979: 371)
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Introdução
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Cartas Patrimoniais: intervir, conservar, restaurar
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Restauração e Conservação: teorias e conceitos
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Interpretações e posicionamentos: entre Itália e Brasil
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Castello di Rivoli, Torino
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Palazzo della Ragione, Milano
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Chiesa di San G iorgio in Velabro, Roma
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Oratorio di San Filippo Neri, Bologna
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Tempio di Portunus, Roma
CONCEITOS
ITÁLIA EM REFERÊNCIA: A PRÁTICA DO RESTAURO
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ESTUDO DE CASO 1:
RUÍNAS DO COLÉGIO DO CARAÇA, CATAS ALTAS 126
Histórico
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Intervenção
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ESTUDO DE CASO 2:
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO, SÃO PAULO 154
Histórico
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Intervenção
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ESTUDO DE CASO 3:
IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO, MARIANA 182
Histórico
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Intervenção
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Intervir no patrimônio: questões técnicas, espaciais e socioculturais
QUESTÕES TÉCNICAS, ESPACIAIS E SOCIOCULTURAIS
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Considerações finais
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Referências Bibliográficas
PALAVRAS-CHAVE // P a t rimô nio E dificado. Co ns e rv ação. Re s t a uro . I nt e rv e nção patrimonial.
RESUMO // O d i á l o g o entre co nservação e restau ração vai além da qu estão metodológ ica d a i ntervençã o e p a ssa a en volver con ceitos ch ave n o en ten dimen to do p a tr i mô ni o enq ua nto b em cu ltu ral n a con temporan eidade. E sses con ceito s, a m p l o s, co mp l ex o s e mut áveis, su sten tam discu ssões extremamen te din â m ica s, na q ua i s nã o ex i st e um con sen so ou u ma verdade absolu ta. C omo con seq uên ci a , a s i nt ervençõ es t radu zem essa mu ltiplicidade de posicion amen to s e a s sumem uma t ensã o d i a lética con temporân ea. N esse con texto, todo e qua lq uer ti p o d e i ntervençã o d eve forn ecer u m posicion amen to dian te de elem en tos urb a no s e a rq ui tetô ni cos preexisten tes, e essa postu ra crítica terá in fluên cia d i ret a so b re a ma nut enção da memória coletiva e a perman ên cia de f en ôm eno s so ci o cul t ura i s. Ao lon go do trabalh o, o estu do da experiên cia ita lia n a , em co nf ro nto co m a s p ráticas brasileiras, se desen volve en qu an to refer ên cia e d i á l o g o , co m o o b j et i vo de qu estion ar e abrir possibilidades den tro n o con tex t o na ci o na l . Assi m, preten de-se explorar formas de posicion amento e d e co mp reensã o d o p a t ri m ôn io, bem como modos de in tegração às deman d a s soci o cul tura i s, p o r mei o de exemplos práticos de como abordar, agir, in ter vir . O p resente t ra b a l ho b usca, portan to, discu tir o qu e seria in tervir n o patr im ôn io em t ermo s a tua i s, p ro blematizan do os con ceitos qu e su sten tam essa s in ter vençõ es e ex p l o ra nd o possíveis abordagen s dos elemen tos h istóricos, socia is e cul t ura i s na co nt emp oran eidade.
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INTRODUÇÃO
01 // INTRODUÇÃO “O conhecimento do modo de preservação está além do mero conhecimento estático dos aspectos formais da obra, suas qualidades e seus encantos. Conhecer, como vimos, é se resolver; é se posicionar dentro da tensão que a obra trouxe” (CARSALADE, 2014: 213).
O presente trabalho busca construir um estudo amplo de aspectos técnicos, artísticos e arquitetônicos em intervenções de conservação e restauro do patrimônio edificado, no sentido de compreender as dinâmicas contemporâneas que condicionam a abordagem frente ao elemento preexistente. Desse modo intenciona um aprofundamento nas bases teóricas para um posicionamento crítico frente ao patrimônio e às ações de preservação nas cidades contemporâneas. Ao longo das transformações urbanas, espaços, objetos e signos se modificam, acompanhando as mudanças pelas quais passam os grupos sociais. Nesse processo, as intervenções no patrimônio, e dentre elas o restauro e a conservação, configuram-se, para Certeau (2000), um registro da heterogeneidade da cidade ao longo do tempo. “O sistema articulado de bens culturais dentro da cidade é permanentemente alterado” (LEMOS, 1985: 19). Quando se estuda a história de um objeto arquitetônico, analisa-se não apenas sua concepção e seu diálogo com o meio urbano, mas também inúmeras intervenções pelas quais passou ao longo do tempo, tanto para adaptação a novos usos, quanto para preservação patrimonial (CARUNCHIO, 1996). Bens, lugares e espaços tra-
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dicionais chegam às gerações como herança, mas sua perpetuação ao longo do tempo é resultado de interpretações e releituras do presente em relação ao passado. “A preservação se faz não na imutabilidade e na cristalização, não na unicidade de conhecimentos aplicados sobre a obra, mas no seu exercício constante, na sua sempre presente abertura” (CARSALADE, 2014: 213). Isso porque se preserva uma identidade em transformação, na qual o bem permanece capaz de se modificar junto com as mudanças socioculturais. Nesse sentido, preservar seria transformar, reconstruir e destruir o passado em termos do presente (ARANTES, 1984). Dessa maneira, qualquer tipo de intervenção sobre o patrimônio assume o caráter de reinterpretação de seus signos e significados, na qual o passado é evocado em um processo de percepção concebido no presente, e a coexistência de todas essas múltiplas evocações funda a dinâmica complexa da cidade. A preservação assume como conceito base a transmissão de um objeto e de suas significações através do tempo. Isso porque a preservação teria como objetivo a manutenção uma cadeia relacional complexa, entre o bem e os sentidos conferidos a ele ao longo do tempo por grupos sociais heterogêneos, inserida em um substrato físico sujeito à degradação. O conceito de preservar, como a transmissão de um bem através do tempo, implicaria na manutenção da continuidade expressiva da obra em sua constante capacidade de abertura de significados. Em outras palavras, objetiva-se a permanência do bem enquanto presença, mas uma presença utilizável através dos tempos (CARSALADE, 2014). É nesse sentido que a questão patrimonial vai buscar a reafirmação de significações com a menor deterioração possível da matéria que o constitui. Para tanto tem-se a estruturação de diversas ações de preservação patrimonial, que não necessariamente implicam em intervenções diretas nos objetos. Den-
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tre essas ações pode-se citar a identificação, a proteção, a conservação, a restauração, a reabilitação, a manutenção e a revitalização de bens patrimoniais, conjuntos de bens e de seu entorno; categorias essas definidas na Recomendação relativa à salvaguarda dos conjuntos históricos e sua função na vida contemporânea, ou Recomendação de Nairóbi, (UNESCO, 1976). A partir de então, o foco da análise se direciona às ações de preservação principalmente no que se refere à restauração e à conservação, práticas que atuam diretamente na materialidade do patrimônio edificado. O diálogo entre conservação e restauração ultrapassa a questão metodológica da intervenção e passa a envolver conceitos muito mais amplos no entendimento do patrimônio em contexto contemporâneo. A opção única e exclusiva pela conservação, por exemplo, envolve o entendimento do patrimônio enquanto documento histórico e, a preservação de sua materialidade, único estado de verdade do objeto, corresponderia à permanência de seus signos e significados. Ainda que a matéria ao longo do tempo seja transformada e marcada pela passagem do tempo, é justamente essa característica que torna o monumento rico em significados a serem preservados e transmitidos. Por outro lado, a opção por uma complementaridade entre ações de conservação e restauro entende a conservação como um instrumento técnico de consolidação do objeto, enquanto o restauro assume o sentido de intervenção crítica. Crítica esta que busca dialogar com os valores presentes nos bens patrimoniais, sejam eles estéticos ou históricos, evidenciando aspectos e significados específicos, sem alterar a autenticidade e a integridade do objeto. As duas posturas se desdobram em várias outras tendências de ação sobre o patrimônio que integram o debate internacional. Não existe, nos dias atuais, um parecer considerado mais correto: não se trata de uma ciência
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exata, os conceitos são amplos e mutáveis, as discussões extremamente dinâmicas e, como consequência, as intervenções assumem uma tensão dialética contemporânea. A atualidade seria marcada pela constante busca de novas formas de reconquistar uma competência ao edificar e ao habitar o patrimônio contemporâneo, com vistas, ao mesmo tempo, à inovação e à continuidade do antigo (CHOAY, 2011). Desse modo tornase urgente repensar as formas de projeto e intervenção na cidade contemporânea, ao mesmo tempo tradicional e em constante mutação, mas, principalmente, densa em significados. Nesse contexto não existe distinção entre o processo de projetar o existente e o projetar o espaço “em branco”, uma vez que o elemento branco, vazio e inerte não existe. Desde a edificação até a paisagem, qualquer tipo de intervenção deve saber responder ao elemento da preexistência. Saber intervir, enquanto profissional, em aspectos documentais, materiais, formais, memoriais e simbólicos do patrimônio é uma tarefa essencial à manutenção da memória coletiva e à permanência de fenômenos socioculturais. O papel dos arquitetos e urbanistas, juntamente com os habitantes e gestores urbanos, seria o de remover o patrimônio do campo exclusivamente museológico e financeiro para reinseri-lo em contextos e escalas locais de apropriação e reutilização das heranças. Tal objetivo seria alcançável, de acordo com Françoise Choay (2011) a partir de certas condições, sendo necessário, primeiramente, dotar o patrimônio de usos e lugares novos, perfeitamente adaptados à procura contemporânea, reinserindo elementos do passado em um contexto vivo do presente. “Deve-se projetar para a posteridade, um edifício capaz de envelhecer com nobreza e valor estético, capaz de evocar” (ALOISE, 2015: 15). Além disso, é importante discutir o modo de intervenção no patrimônio, como se articula e quais são suas consequências, abrindo mão do mito da intangibilidade
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patrimonial e do formalismo da restauração. Por fim, a intervenção patrimonial na contemporaneidade deve saber agir respeitando o passado, identificando as transformações necessárias e aplicando técnicas avançadas atuais para agir da melhor forma possível. É nessa direção de pensamento que o trabalho objetiva discutir o que seria intervir no patrimônio em termos atuais, problematizando os conceitos que sustentam essas intervenções. O principal aspecto a ser investigado é a conexão entre teoria e projeto na prática da preservação do patrimônio e, para tanto propõe-se um questionamento de como essa intervenção pode ser articulada, dos pontos de vista arquitetônico, técnico, histórico, artístico, cultural e social. A partir da análise da gênese de um projeto no contexto patrimonial, pretende-se avaliar criticamente seus resultados e impactos, buscando clarear seus contornos conceituais e seus desdobramentos metodológicos O interesse em estudar patrimônio cultural surgiu em uma pesquisa acadêmica desenvolvida junto ao PET Arquitetura UFMG, que buscou compreender o papel das relações memoriais na composição do imaginário coletivo, assumindo-se, deste modo, o patrimônio como passível de estabelecimento de relações de identificação e pertencimento no cotidiano. A preservação do patrimônio foi entendida, portanto, como um aspecto essencial na manutenção da memória coletiva e das identidades sociais. Esse processo de investigação do patrimônio teve continuidade durante um intercâmbio acadêmico na Itália, que se abriu como um enorme berço de conceitos e fundamentos da arquitetura, dentro dos quais se encontram inúmeras produções acerca da teoria e técnica do restauro, referência em escala global, além de exemplos vivos de bens culturais preservados. A Itália assume, então, um papel determinante no estudo do patrimônio, configurando-se como referência teórica, técnica, metodológica e estética à elaboração e fundamentação 24
do trabalho. O questionamento se funda na percepção de uma diferença de abordagem do patrimônio no Brasil e na Itália, e busca investigar direções que o restauro e a conservação poderiam assumir no contexto brasileiro. Isso porque, ao fim do curso de arquitetura e urbanismo, permanece o interesse por compreender o como intervir sobre o patrimônio considerando todas as suas complexidades extremamente em voga em termos atuais. Essa dúvida tem origem na constatação da grande quantidade de trabalhos teóricos para o estudo e a problematização do patrimônio no Brasil e, ao mesmo tempo, do grande número de intervenções sem conexão com as teorias do restauro e com as problemáticas do patrimônio, assumindo, algumas vezes, uma abordagem arbitrária. Surge então o grande questionamento, que determinou o rumo do trabalho de conclusão do curso, de como aconteceria a ponte entre teoria crítica e prática. Ou ainda, em outras palavras, como um projeto de conservação e restauro, coerente com as complexidades contemporâneas analisadas, encontra referências, se materializa e se relaciona com a população. Se é já um consenso a necessidade e a relevância da preservação do patrimônio, bem como sua importância em contextos socioculturais, o papel do arquiteto urbanista deve ser o de conhecer os instrumentos para agir em prol de bens culturais, preservá-los e integrá-los às dinâmicas urbanas. Desse modo a prática profissional da arquitetura no âmbito do patrimônio torna-se responsável por materializar a densa bagagem da teoria crítica do restauro e integrá-la a um cotidiano vivido, dinâmico e complexo. O trabalho proposto parte de um estudo de conceitos delimitadores do patrimônio cultural e de aspectos teóricos decisivos para as práticas de preservação de bens, no caso, bens que compõem o patrimônio edificado. Propõe-se uma revisão de literatura acerca da preservação patrimonial, incluindo dois conceitos-chave: conservação e restauro,
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que assumem interpretações e significados diversos em contexto internacional. Na primeira parte do capítulo 2 tem-se, portanto, uma análise da delimitação desses dois conceitos nas conferências internacionais do patrimônio, que foram responsáveis pela produção das chamadas Cartas Patrimoniais. As cartas estudadas abrangem um período de 1931, com a Carta de Atenas, até 2000, com a Carta de Cracóvia. O recorte das cartas a partir dos conceitos de conservação e restauração foi responsável pelo fim das análises em 2000, mais de 15 anos atrás. Isso porque após essa data a maioria dos documentos produzidos em contexto internacional centra a atenção na questão do patrimônio imaterial, até então nova e pouco fundamentada. No segundo ponto do capítulo 2 a abordagem da conservação e da restauração se estrutura em uma revisão de literatura com base em importantes autores do patrimônio, como John Ruskin (1819-1900), Viollet-le-Duc (1814-1879), Camillo Boito (1836-1914), Alois Riegl (18581905), Gustavo Giovannoni (1873-1947), Cesare Brandi (1906-1988), Françoise Choay (1925-), Gianfranco Spagnesi (1933-), Marco Dezzi Bardeschi (1934-), Giovanni Carbonara (1942-), Maria Piera Sette (1950-), Muñoz Viñas (1963-), entre outros. O trabalho dos teóricos do patrimônio, em contexto internacional, é mencionado quanto às suas principais ideias e contribuições e quanto às teorias que mais dialogam com os conceitos de conservação e restauração presentes no debate contemporâneo patrimonial. O objetivo não é construir uma história linear e formal do restauro, até porque tal linearidade nunca existiu, mas abordar conceitos essenciais às questões de preservação em termos atuais. Nesse processo fica evidente a influência do debate patrimonial italiano na estruturação do trabalho, com a constante referência a conceitos e métodos desenvolvidos no país. A Itália tem grande tradição na discussão internacional e teve grande influência no delineamento da postura brasileira de gestão e ação sobre o patrimônio. 26
Essa estruturação do pensamento e da prática patrimonial na Itália e também no Brasil é o principal objeto do terceiro item do capítulo 2, no qual a experiência italiana é adotada, não como objeto comparativo – o que poderia ser bastante injusto –, mas como referência e diálogo, para questionar e abrir possibilidades dentro no contexto nacional. A partir do estudo de conceitos e tendências de pensamento do patrimônio, tem-se a estruturação do capítulo 3, que propõe uma análise da prática do restauro na Itália. Para tanto faz-se um estudo de cinco intervenções de restauro italianas realizadas entre o fim do século XX e início do XXI, organizadas por ordem exclusivamente cronológica, que abordam as diversas posturas restaurativas em voga no país. Dentre os cinco casos escolhidos – Castello di Rivoli, Torino; Palazzo dela Ragione, Milano; Chiesa di San Giorgio in Velabro, Roma; Oratorio di San Filippo Neri, Bologna; Tempio di Portunus, Roma – predomina uma alternância entre as duas principais tendências restaurativas italianas, identificadas como Escola de Roma e Escola de Milão. O capítulo foi desenvolvido no primeiro semestre de 2017 durante um período de quatro meses de pesquisa na Itália, com colaboração de Marina Pugnaletto e Maria Grazia Turco, integrantes do corpo docente da Università di Roma La Sapienza. Em seguida, com a mesma lógica dos estudos de casos práticos, propõe-se uma análise crítica, mais aprofundada, de três intervenções de conservação e restauro no patrimônio realizadas na segunda metade do século XX no Brasil. O objetivo inicial dos estudos de caso realizados nos capítulos 4,5 e 6 originalmente era compreender as atuais possibilidades de abordagem do patrimônio edificado, ao investigar com quais conceitos e teorias se estabelece um diálogo durante o processo de projeto. No entanto, ao longo do desenvolvimento do trabalho de conclusão de curso encontrou-se uma 27
grande dificuldade em identificar intervenções de fato contemporâneas, principalmente na região sudeste do Brasil, que apresentassem um posicionamento claro na preservação do patrimônio em seus aspectos materiais e imateriais. Essas intervenções consolidadas e conceitualmente bem definidas foram encontradas, no Brasil, no final do século XX, enquanto o século XXI permanece como contexto complexo a ser investigado. A partir de então, a distribuição dos três objetos de estudo, do fim do século XX, ao longo dos capítulos 4, 5 e 6 se faz em ordem exclusivamente cronológica, uma vez que as intervenções de restauro analisadas não seguem uma linha ou tendência específica a ponto de permitir um ordenamento ideológico. O primeiro objeto, o conjunto arquitetônico do Colégio do Caraça, em Catas Altas. O edifício em ruínas, após sofrer um grande incêndio em 1968, recebe uma intervenção de restauro em 1989/90 que o refuncionaliza e o adapta para receber atividades culturais e educativas. A intervenção de restauro no Caraça trouxe uma abordagem nova para o contexto do patrimônio no Brasil, conformando-se como marco na história do restauro no país. O estudo de caso do edifício do Caraça permite o questionamento da relação entre matéria e memória, ao evocar uma espacialidade do passado através de uma reimaginação de seu uso e da inserção de elementos claros do presente. A segunda edificação a ser analisada, a Pinacoteca do Estado de São Paulo, entra em uma discussão muito em voga no dinâmico contexto urbano atual: a necessidade de reutilizar, “refuncionalizar” e adaptar o patrimônio às demandas contemporâneas cosmopolitas. A intervenção realizada traz uma percepção crítica do espaço muito clara, com uso de materiais contemporâneos e com a viabilização de novas formas de leitura do bem em um contexto presente. Por fim, o terceiro bem a ser estudado, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo em Mariana,
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exemplar típico da cultura mineira construído a partir de 1762, permite uma discussão acerca do posicionamento restaurativo diante de uma perda significativa de matéria, em razão do restauro realizado em 2000 após o infortúnio de um incêndio. Além disso, vem à tona também a questão dos impactos dessa perda de matéria à dimensão imaterial do bem, uma vez que o patrimônio se constitui nessa grande complexidade entre o concreto e o abstrato. A Igreja do Carmo em Mariana, bem como o diálogo com os outros dois objetos de estudo brasileiros e com as posturas italianas, permite a construção de reflexões acerca da verdade e da objetividade na restauro, questionando aspectos como a distinguibilidade e os limites da intervenção. Tem-se, portanto, que, ao analisar os aspectos condicionantes de uma intervenção de restauro, é possível repensar soluções encontradas para responder à passagem do tempo, à degradação, à ressignificação e à refuncionalização em termos atuais. Esse aprofundamento é importante para discutir critérios e métodos práticos para agir sobre o patrimônio e, para tanto, propõe-se a discussão de exemplos de intervenção. Isso porque, de acordo com Feiffer (1989), qualquer tipo de orientação para intervir sobre o patrimônio pressupõe um estudo panorâmico de casos resolvidos relacionados, a serem utilizados como referência ou diálogo, ainda que cada objeto patrimonial tenha suas características únicas a serem consideradas como determinantes. Com essa análise pretende-se, portanto, explorar formas de posicionamento frente ao patrimônio, bem como modos de integrá-lo às demandas socioculturais, por meio de exemplos práticos de como abordar, como agir, como intervir. Para o desenvolvimento dos capítulos de estudo de caso, tanto no Brasil quanto na Itália, foram adotadas técnicas de pesquisa documental, bibliográfica, pesquisa de campo, além de observação direta intensiva. Para a estruturação do estudo teórico, tem-se o
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suporte de livros, artigos, teses, documentos, dossiês de tombamento, entrevistas e fotografias, que embasaram as discussões construídas. No caso das intervenções de restauro brasileiras analisadas, tem-se a realização de visitas a campo, acompanhadas de registro fotográfico, para maior compreensão da dimensão espacial-arquitetônica dos bens estudados. Para a análise de cada objeto brasileiro são observados aspectos como o contexto histórico da concepção do bem, implantação e uso; contextualização de intervenções ao longo do tempo, se existentes; projeto da intervenção realizada; técnicas e soluções projetuais adotadas; diálogo com teorias e conceitos do patrimônio; influência de conceitos italianos; impactos sociais da intervenção. No entanto, a organização das informações de cada objeto de estudo e linha percorrida para se chegar a uma crítica das intervenções de restauro, dependeu da documentação e das informações disponíveis. Isso porque, em cada caso brasileiro o processo de restauro se desenvolveu em um contexto diferente, com dificuldades e necessidades diversas, e, como consequência, os documentos encontrados não seguem uma mesma linha de organização. É importante ressaltar, porém, que essas diferenças na disponibilidade de informações não impedem a percepção das intervenções em suas características mais relevantes e, portanto, faz-se possível a construção de uma visão crítica acerca dos objetos de estudo. Ao longo do capítulo 2 tem-se um estudo dos conceitos e documentos patrimoniais, o que nos leva a perceber que o fim do século XX foi responsável por despertar uma maior atenção a um aspecto relacional do patrimônio. A partir de então nota-se a ampliação das categorias patrimoniais, além de uma maior preocupação com a integração entre bens culturais e grupos sociais. É nesse processo de ampliação patrimonial que se insere uma longa questão social e participativa, por meio da qual grupos
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sociais passam a colaborar em intervenções sobre o próprio patrimônio. Essa questão social foi identificada como uma preocupação crescente dos órgãos patrimoniais brasileiros e elementos comum, em escalas variadas, às intervenções analisas. Diante das complexas questões imateriais encontradas durante os estudos de caso, o capítulo 7 objetiva indagar sobre as particularidades socioculturais de cada projeto por meio da análise de seus aspectos locais e das relações de pertencimento. Nessa linha de raciocínio, o capítulo abre também questionamentos acerca da atuação popular em processos de projeto do patrimônio, investigando as possibilidades de participação. O trabalho se conclui com a elaboração de um foto-livro anexo ao livro principal, no qual se propõe a complementação imagética da pesquisa. Para além da visualização objetiva dos bens patrimoniais estudados, a proposta do foto-livro é trazer uma construção subjetiva, que expresse uma percepção individual das complexidades que envolvem os objetos patrimoniais, delineando assim um espaço urbano heterogêneo em constante reinterpretação. Nesse contexto afirma-se a grande importância das intervenções no patrimônio, uma vez que seriam formas de posicionamento frente ao passado, influenciando diretamente nas leituras individuais e na apropriação dos signos que compõem a cidade.
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LUISA MOTTA luisagmotta@gmail.com