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Ato Ecumênico em Memória dos Mortos e Desaparecidos Cemitério do Araçá, São Paulo, SP, 02 de novembro de 2013, 10h30
"[...] Resta essa faculdade incoercível de sonhar De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade De aceitá-la tal como é, e essa visão Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante E desnecessária presciência, e essa memória anterior De mundos inexistentes, e esse heroísmo Estático, e essa pequenina luz indecifrável A que às vezes os poetas dão o nome de esperança..." (Vinícius de Moraes — “O Haver”)
DE BRAÇOS DADOS NO CAMINHO... Corso: Funeral de um lavrador
[Da Obra de João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”; cena: Funeral de um lavrador, versão de Chico Buarque]
Invocação:
[Inspirada no poema “Em nome de Deus”, da Missa dos Quilombos, de Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra (1982)]
Esta cova em que estás, com palmos medida É a conta menor que tiraste em vida É de bom tamanho, nem largo, nem fundo É a parte que te cabe deste latifúndio Não é cova grande, é cova medida É a terra que querias ver dividida É uma cova grande pra teu pouco defunto Mas estarás mais ancho que estavas no mundo
É uma cova grande pra teu defunto parco Porém mais que no mundo, te sentirás largo É uma cova grande pra tua carne pouca Mas à terra dada não se abre a boca É a conta menor que tiraste em vida É a parte que te cabe deste latifúndio É a terra que querias ver dividida Estarás mais ancho que estavas no mundo Mas a terra dada não se abre a boca.
Damos a vocês as boas-vindas e abraçamos a toda gente que, de braços dados, chegaram a este ato memorial Em nome do Deus dos nossos pais e antepassados. Em nome do Deus, que a todos nos faz da ternura e do pó. Em nome do Deus verdadeiro que amou-nos primeiro sem dividição. Em nome do Deus de todos os nomes (e mesmo dos que não têm nome).
♫ Coro Luther King: Missa do Quilombos [Milton Nascimento]
[A cada estrofe, menciona-se nomes de pessoas desaparecidas ou mortas pelo Terror] A DE Ó Estamos chegando do fundo da terra, estamos chegando do ventre da noite, da carne do açoite nós somos, viemos lembrar. A DE Ó Estamos chegando da morte dos mares, estamos chegando dos turvos porões, herdeiros do banzo nós somos, viemos chorar.
Estamos chegando do alto dos morros, estamos chegando da lei da baixada, das covas sem nome chegamos, viemos clamar. A DE Ó Estamos chegamos do chão dos quilombos, estamos chegando no som dos tambores, dos Novos Palmares nós somos, viemos lutar. A DE Ó
A DE Ó Saudação:
Representante do Comitê Paulista Memória, Verdade e Justiça
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MEMORIAL Ato memorial:
Podemos honrar de muitas maneiras a memória de todas as pessoas que, no passado recente, assumiram tamanho risco e enfrentaram valentemente o terror, a tortura e a morte, para que a ditadura chegasse ao fim no Brasil e em tantos lugares da terra. Por causa deles hoje vivemos novos tempos, nos quais a verdade vai sendo revelada, para que a justiça e a paz posam beijar-se sem pudor. No entanto, sabemos que muito da violência praticada no passado ditatorial ainda nos acompanha hoje. A pergunta “Onde está Amarildo?” ressoa fortemente em nossos ouvidos e continuará a ressoar enquanto as estruturas de repressão do tempo da ditadura continuarem a agir impunemente. Por isso, em nome de Amarildo, honramos também os mortos e desaparecidos de hoje. Hoje podemos prestar nossa homenagem com flores, insenso, fotografias... A quem honra, honra (Romanos 13.7).
♫ Tempo maior:
[Sérgio Marcus Pinto Lopes, Flávio Irala, Ernesto Barros Cardoso]
Tempo maior de esperança Risos e cantos no ar, Abram espaço às crianças, O Reino vai se implantar.
Refrão:
Depoimentos:
Se a luta agora é bem dura, Não há porque enfraquecer. Se agora é guerra e tortura, Um dia vamos vencer. [De familiares das vítimas do extermínio de ontem e de hoje]
Refrão:
♫ Coro Luther King: Viola Enluarada [Marcos Valle]
Flores e frutos, sementes, Reino de graça e esplendor, Bichos amigos da gente, Paz com justiça e amor.
Se a luta agora é bem dura, Não há porque enfraquecer. Se agora é guerra e tortura, Um dia vamos vencer. A mão que toca um violão Se for preciso faz a guerra, Mata o mundo, fere a terra. A voz que canta uma canção Se for preciso canta um hino, Louva à morte. Viola em noite enluarada No sertão é como espada, Esperança de vingança. O mesmo pé que dança um samba Se preciso vai à luta, Capoeira. Quem tem de noite a companheira Sabe que a paz é passageira, Pra defendê-la se levanta E grita: Eu vou!
Instituto Religare:
[Dirigido por Valéria di Pietro]
♫ Coro Luther King: Suíte do Pescador
[Dorival Caymmi]
Mão, violão, canção e espada E viola enluarada Pelo campo e cidade, Porta bandeira, capoeira, Desfilando vão cantando Liberdade. Quem tem de noite a companheira Sabe que a paz é passageira, Pra defendê-la se levanta E grita: Eu vou! Porta bandeira, capoeira, Desfilando vão cantando Liberdade. Liberdade, Liberdade, Liberdade...
Antígone de Sófocles (clássico da tragédia grega que trata do dever e do direito de sepultar os mortos) Minha jangada vai sair pro mar Vou trabalhar, meu bem querer Se Deus quiser quando eu voltar do mar Um peixe bom eu vou trazer Meus companheiros também vão voltar E a Deus do céu vamos agradecer
Adeus, adeus Pescador não se esqueça de mim Vou rezar pra ter bom tempo, meu bem Pra não ter tempo ruim Vou fazer sua caminha macia Perfumada com alecrim
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COMPROMISSO Oração final: [Luiz Carlos Ramos, inspirado na canção “Drão”, de Gilberto Gil]
Obrigado, Deus ETERNO, por nos mostrar que o amor da gente é como um grão, uma semente que tem que morrer pra germinar, plantar nalgum lugar, ressuscitar no chão: nossa semeadura! Quem poderá fazer aquele amor morrer? Nossa caminhadura, dura caminhada, pela noite escura...? Quem poderá fazer aquele amor morrer se o amor é como um grão? Morre, nasce trigo; vive, morre pão?! Obrigado, Deus ETERNO, por nos mostrar que se o grão se entregar à força do pão, convívio haverá na ressurreição.
Há muito a fazer:
Mas ainda há muito a fazer, pois não podemos descansar enquanto uma única mãe ou pai ou irmão ou irmã ou qualquer outro ente querido ou pessoa amiga derramar lágrimas porque os Direitos Humanos, de quem quer que seja, estejam sendo violados. Defender os Direitos Humanos é defender os nosso direito de viver em paz e justiça juntamente com aqueles e aquelas a quem amamos e a quem devemos respeitar. Há uma maneira bem concreta de demonstrarmos nosso compromisso com a transformação do mundo, inspirados pela memória de todas as pessoas aqui mencionadas nominal ou silenciosamente: podemos nos dirigir a este ossário, onde jazem os restos mortais de tantos companheiros e companheiras, por enquanto anônimos... sim, podemos nos dirigir a este local e realizar um gesto singelo como nossas conquistas e belo como nossos ideais: podemos limpar este lugar, ornamentá-lo com flores, cuidar dele, enfim, do mesmo modo como fazemos com as sepulturas dos nossos antepassados e entes queridos, com o mesmo carinho com que cuidamos do local de descanso dos nossos mais amados amigos e amigas... E podemos fazer isso celebrando e cantando a nossa amizade:
♫ "O que vale é a amizade”:
[Versão de Paulo César Pinheiro para “With a Little Help From My Friends”, de Lennon e McCartney]
O que vale é a amizade Foi sempre o que a gente fez E por essa amizade Eu faço tudo outra vez. É, apesar de não termos Podido mudar esse mundo burguês É, apesar de não ter dado certo Esse sonho que a vida desfez Eu sei que posso contar com vocês Eu sei que posso contar com vocês Sei que posso contar com vocês É, apesar de remar contra a onda E ficar sempre na regra três É, apesar do dinheiro contado E os problemas todo fim de mês Eu sei que posso contar com vocês Eu sei que posso contar com vocês Eu sei que posso contar com vocês
É, apesar do perigo de termos Vivido às margens das leis É, apesar de um de nós quase sempre Tentar desistir de uma vez Eu sei que posso contar com vocês Eu sei que posso contar com vocês Eu sei que posso contar com vocês É, apesar de ser tão desigual Essa luta entre palhaços e reis É, apesar dos pesares ainda A esperança é a nossa lucidez Eu sei que posso contar com vocês Eu sei que posso contar com vocês Eu sei que posso contar com vocês O que vale é a amizade…
O que vale é a amizade…
(Creative Commons, Non Commercial License) Cerimonial preparado por Bispo Dom Fláivio Irala (Igreja Episcopal Anglicana), Reverendo Luiz Carlos Ramos e Reverendo Luciano José de Lima (Igreja Metodista), Reverendo Rogério Bartolomeu (Igreja Metodista Unida Central de Malange, Angola) Participação: Coro Luther King, Maestro Martinho Lutero / maestrina Sira Milani Musicistas: Liséte Espíndola (piano digital), Neusa Cézar, Déa Cristiane Kerr Affini Teatro: Instituto Religare, diretora Valéria di Pietro Arte final d Liturgia: Luiz Carlos Ramos; Texto&Textura Arte do Cartaz: Ary Normanha Geração de imagens –fotos e filmagem– e transmissão do ato em tempo real pela internet: Grupo de Apoio ao Protesto Popular (GAPP) O evento é patrocinado por duas centrais sindicais – CUT e UGT – e vários sindicatos, entre os quais os dos Bancários-SP, Jornalistas-SP, Químicos-SP e Sinsep.