Luiz Carlos Ramos
FIDES EX AUTITU
natal
&texto extura
S達o Bernardo do Campo, 2011
© Luiz Carlos Ramos, 2011 Para adquirir esta obra, escreva para: textoetextura@terra.com.br
Catalogação preparada pela bibliotecária Aparecida Comelli Tavares (CRB 8-3781 251 R147n
RAMOS, Luiz Carlos Natal / Luiz Carlos Ramos. São Bernardo do Campo: Texto & Textura, 2010. 43 p. (Fides ex auditu) ISBN: 978-85-64101-02-9 1. Homilética 2. Natal - Liturgia I. Título II. Série CDD 18ª. ed.
Corpo Editorial Consultivo José Lima Jr. Carlos Alberto Rodrigues Alves Rubem Azevedo Alves Inês de França Bento Paulo Roberto Rodrigues
edições com arte textoetextura@terra.com.br
2011
Prefácio Fides ex auditu “A fé vem pelo ouvir” (Rm 10.17)
APRENDI VÁRIAS COISAS com Schleiermacher, entre elas, que um pregador não deve ter a pretensão de ensinar nada a ninguém, mas tão somente esperar que sua pregação contagie a comunidade com o mesmo sentimento/entendimento que, primeiro, sensibilizou o próprio pregador. É com essa expectativa que publico estas reflexões, que um dia me (co)moveram, na esperança de que também possam reverberar no coração de quem as puder ler. Luiz Carlos Ramos
Sumário O sagrado se fez gente
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Os carteiros, os pirilampos e os sem-teto
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A noite de todas as noites
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Um menino nasceu: O mundo tornou a começar
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Deus, quando vier, que venha armado
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Natal, sorriso e esperança
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Os (verdadeiros) símbolos do Natal
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Olhos de Menino
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O sagrado se fez gente
NÃO, MOÇO. NÃO foi uma noite tão feliz. Fazia frio. O vento cortante feria os lábios, ressecava os ossos. Os que vieram recensear-se abrigavam-se como podiam. Não era tanto por maldade que os moradores do lugar não ofereciam hospedagem. É que eles mesmos viviam tão modestamente, que era com dificuldade que tapavam as frestas e aninhavam-se em seus casebres. Ademais, era muita gente de uma só vez na provinciana e pacata Beth-Lehem. Eu estava ao relento, sob as estrelas de um céu gelado-escuro, como de costume. Não, não. Não é que eu seja uma criatura soturna, boêmia ou romântica. Sou só um pastor. Isto é, sou sem-teto, sem-terra, sem educação, sem-eira-nem-beira... Cuido de ovelhas, só isso — esses animais frágeis e melancólicos, quase tanto quanto eu.
A noite era como muitas outras — porque, na verdade, tudo é igual, a gente é que é sempre diferente. Havia estrelas, havia vaga-lumes, havia sons ao longe: mugidos, latidos, choro de criança... Na mesmice do balanço das árvores, aconteceu alguma coisa diferente aos meus olhos. De repente, as estrelas de sempre pareciam brilhar mais que o normal. Meus ouvidos sintonizaram um choro de recém-nascido. As folhas das árvores pareciam música angelical. Os pirilampos pareciam brilhar gloriosamente. Continuei a caminho do aprisco. As ovelhas, sem perguntar nada, me seguiam tranquilas e pacientes. O choro de criança ficava mais forte, e pude perceber de onde vinha. Uma dessas famílias-sem-nada havia ocupado uma das grutas onde os animais se abrigavam, e ali disputavam aconchego junto a bois e jumentos. O pai tinha o rosto sulcado pelo suor, e franzido pelo trabalho rude. A mãe parecia mais a irmã do recém-nascido, tão jovenzinha. No rosto, a perplexidade de quem contempla o maior dos mistérios: a Vida. Nos lábios, o sorriso tímido. Nos olhos marejados, as gotas salgadas que transbordavam daquelas janelas da alma. 10
Entrei devagar, quase solene. Tudo era tão igual, mas ao mesmo tempo tão radicalmente diferente. Era como se eu não fosse eu. Meus olhos viam o que jamais haviam visto. Meus ouvidos se encantavam com sons tão corriqueiros, como se os ouvissem pela primeira vez. Ajoelhei-me, porque me dei conta de que estava diante do mistério da Vida. Chorei, porque tudo era tão singelamente fantástico. Orei, porque, naquele momento, percebi que estava face-a-face com o Sagrado que habita o cotidiano. Não. Não foi uma noite tão feliz. Continuava frio. O cheiro de esterco ainda era forte. A palha pinicava o recém-nascido. As roupas da mãe estavam sujas de sangue. Eles, como eu, continuavam sem teto, sem agasalho, sem nada. Choravam sorrindo. Sorriam chorando. Tudo era exatamente igual. A única coisa que já não era a mesma éramos eles e eu. Porque nossos olhos viam não uma noite feliz no céu, mas o amanhecer de um novo dia de paz na terra.
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Os carteiros, os pirilampos e os sem-teto Os carteiros! QUEM INVENTOU O CARTÃO de Natal foi um ilustre remetente a quem, comumente, chamamos Deus. O primeiro cartão de Natal tinha o seguinte teor: “Paz na terra a toda gente porque Deus lhes quer bem”. Utilizando-se de um serviço muito especial dos correios — o aéreo —, porque o remetente queria rapidez e qualidade na entrega da mensagem, Deus felicita a humanidade inteira pelo nascimento do Salvador, que é Cristo, o Senhor. Os carteiros, denominados “anjos”, pelo jornalista Lucas, acabam se envolvendo com o conteúdo de sua mensagem, a ponto de esclarecerem logo de saída que aquela correspondência era uma “Boa Notícia de grande alegria”, e que o seria “para todo o povo”. E, embora, estivessem de serviço, descon-
siderando a orientação de que “prazer e devoção não se misturam”, tais carteiros regozijam-se como se eles próprios, além dos pastores, fossem os destinatários da mensagem. E o sindicato todo do correio aéreo cruzou o céu louvando a Deus e dizendo: “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra a quem Ele quer bem” (Lc 2.14).
Os pirilampos… Diz o texto bíblico que a glória do Senhor brilhou ao redor dos pastores. Brilhar ao redor, em grego, é perielampsen, de onde vem a nossa palavra “pirilampo”. Podemos imaginar, então, que a monotonia das noites daqueles pastores foi quebrada, de repente, por uma infinidade de vaga-lumes que piscavam, brilhavam e voavam ao redor deles: era sinal da glória de Deus entre os humanos. O Natal é isso: o céu invadindo a terra! Deve ser esta a origem dos pisca-piscas que se usam para ornamentar as árvores de Natal. A luz que brilha no meio da noite anunciando: “O povo, que andava nas trevas, viu surgir uma grande luz, e aos que viviam na região da sombra da morte resplandeceu-lhes a luz” (Is 9.2). 14
Os sem-teto... Todo cartão de Natal, além de um remetente, tem um destinatário. O primeiro cartão da história da humanidade foi endereçado aos sem-teto. O jornalista Lucas (2.8), diz que eles viviam a céu aberto. O verbo grego agrauléo, de onde deriva a nossa palavra “agrário”, significa permanecer ao relento. Dizem os comentaristas que esses pastores eram gente muito pobre. Sem ter onde morar, sujeitavam-se a empregos considerados humildes ou indignos pelos de classes sociais mais privilegiadas. Essa escória dos operários, por estar ao relento e por não possuir um teto nas noites frias, pôde testemunhar, em primeira-mão, a invasão da terra pelo céu. Em nossos dias, são tão poucos os que olham para o céu! Na ironia do cotidiano, dentro de arranha-céus cada vez mais altos, as pessoas se distanciam mais e mais do Reino-dos-céus. Esses pastores, ao contrário, cotidianamente, contemplavam as estrelas. Não por opção romântica, ou por interesses astronômicos, mas porque o firmamento era o seu teto, a lua, sua companheira, e as estrelas, suas conselheiras.
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Olhar para o céu! Ouvir as estrelas! Aconselhar-se com a lua... Isto é Natal: levantar a cabeça; reconquistar a dignidade, ser visitado por Deus! *** Depois dessa leitura do relato do primeiro Natal, as coisas nunca mais serão as mesmas para mim. Agora, toda vez que eu vir um carteiro, levando apressado alguma importante correspondência, ou abrir o meu e-mail, me lembrarei do anjo de Deus e de sua mensagem: “Nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor!” Quando vir, embaixo dos viadutos e nas sarjetas, aquela gente pobre e sofrida que vive a céu aberto, me lembrarei de que foram elas os destinatários do primeiro cartão de Natal de toda história da salvação, e unir-me-ei a elas na contemplação das estrelas. O Evangelho diz que o sinal da chegada da salvação seria uma criança envolta em panos. Assim, toda vez que eu vir uma criança que ainda usa fraldas, me lembrarei que Jesus nasceu. E quando vir aquelas crianças vestidas de trapos nos sinalei16
ros, me lembrarei que são elas, hoje, este sinal, e de que delas é o Reino, o Novo Céu e a Nova Terra. Ainda há choro, mas os cartões continuam chegando e dizendo: — Não faz mal, é Natal! E, logo, de novo, Ano Novo‼
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A noite de todas as noites DE TODAS AS NOITES, em todos os tempos e lugares, nenhuma há que se compare àquela do vilarejo de Belém da Judeia, testemunhada por humildes camponeses sem teto e suas ovelhas pacíficas. Por quê? Afinal, camponeses dormindo ao relento sempre os há; ovelhas pacíficas nunca deixaram de existir; forasteiros desabrigados até hoje abundam; crianças pobres envoltas em trapos se veem aqui como acolá. Por que, então, aquela noite tornou-se memorável e única? Nisto está justamente o diferencial: Deus decidira visitar-nos, não no extraordinário do tempo, mas na simplicidade do cotidiano e, por isso mesmo, tocou o âmago da vida humana. Até então, os deuses insistiam em manifestar-se em episódios extraordinários e, por isso, o povo continuava sem Deus no dia-a-dia.
Só um Deus que se encarna em nossa carne, e se revela no cotidiano de homens e mulheres, e se faz criança entre as nossas crianças, é que, assim, aconchegado nos braços da humanidade, pode ser amado sobre todas as coisas. Só um Deus plenamente humano pode ser reconhecido entre os humanos como verdadeiro Deus. É esta a mensagem incomparável do Natal: Deus é uma criança que sente a nossa sede e a nossa fome, o mesmo calor e o mesmo frio, e que brinca com você e comigo. Somos seus amigos e amigas, e ele nos ama mais do que à própria vida. Deus é uma criança que chora de saudade; e que se sente feliz ao sentar-se conosco à mesa para repartir o pão da justiça e o cálice da alegria. Deus é uma criança que não teme a cruz, porque o seu amor é tão grande que vence o medo e sobrevive à morte. São essas as razões que fazem daquela longínqua noite em Belém da Judeia a mais importante e especial das noites de toda a história, e de todas as estórias. Naquela noite, o poema se fez corpo, Deus se fez gente, e vimos a sua glória, como a glória de um filho único e querido do Pai. E o Deus criança habitou entre nós, cheio de graça e de bondade... que é a maior de todas as verdades (cf. Jo 1.14). 20
Um menino nasceu O mundo tornou a começar* FOI NUMA NOITE de lua, nas veredas do grande sertão... Riobaldo atravessava os ermos da caatinga quando ouviu os gemidos de parturiente que vinham de um misérrimo casebre, enterrado na solidão. A mulher estava só, com suas dores e seu ventre inchado. Não obstante suas andanças o tivessem preparado mais para agente funerário que para obstetra, naquela noite o jagunço não teve escolha, a força irresistível da vida o convertera em parteira. Foi assim que, pelas mãos de um jagunço, no fundo do sertão, mais uma criança “saltou pra dentro da vida”**. A essa altura da narrativa, ao som do choro do recém-nascido, Guimarães Rosa colocou as seguintes palavras na boca do extasiado Riobaldo: “Um
menino nasceu. O mundo tornou a começar. E saí para as luas...” O milagre do recomeço do mundo acontece a cada parto. Sim, o mundo recomeça todas as vezes que, vencendo tantas forças contrárias, a vida sobrevive. Nas veredas dos nossos urbanos, mas não menos perigosos, sertões, tornamo-nos jagunços cada vez mais cruéis, rudes e selvagens. Extorquimo-nos mutuamente, violentamo-nos, mutilamo-nos, agredimo-nos, ignoramo-nos, executamo-nos com fúria tal que deixaria perplexo o mais impiedoso cangaceiro. Em noites enluaradas, como a que banhou aquele casebre, tudo pode acontecer. Nossas crendices nos dizem que, em tais ocasiões, há homens que viram feras terríveis, e que vagam pela noite destilando horror e morte. Entretanto, nesta história, o luar do sertão transformou Riobaldo de uma maneira totalmente inusitada: fez daquele ser, embrutecido pela crueza do cangaço, um anfitrião terno, pronto para acolher nos braços a reinvenção do mundo. O Natal é isso: Deixarmos que as estrelas e a lua nos transubstanciem em anfitriões da vida. Anoitecemos brutas feras, para amanhecermos par22
teiras da humanidade. Façamos desta uma noite feliz, pois nasceu mais uma criança e o mundo tornou a começar. Feliz Natal!
* Exclamação de Riobaldo, personagem de João Guimarães Rosa, no romance Grande Sertão Veredas. ** Esta expressão é de João Cabral de Melo Neto, em seu impagável Morte e Vida Severina. 23
Deus, quando vier, que venha armado “Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher...” (Gálatas 4.4) “Exultai, vós que sois justos, porque aquele que traz justiça nasceu neste dia. Exultai vós que estais fracos e vós que estais enfermos, pois aquele que traz a cura nasceu neste dia. Exultai, vós que estais em cativeiro, porque o vosso verdadeiro Senhor nasceu neste dia. Exultai, vós que sois livres, porque aquele que traz libertação nasceu neste dia. Exultai, todos os cristãos, porque Jesus Cristo nasceu neste dia. Seu nascimento não tem fim e principia onde termina.” (Santo Agostinho)
PARA QUALQUER UM, o tempo pareceria absolutamente impróprio. Não se podia descer de Jerusalém a Jericó sem se correr o risco de ser assaltado ou ser vítima de tentativa de homicídio. Era difícil conse-
guir um emprego, fosse de carpinteiro ou pescador, até mesmo um bico de bóia-fria. As escadarias e os cruzamentos eram disputados por molambos que imploravam esmolas. Os que tinham algum recurso, o iam perdendo aos poucos para a ganância dos coletores de impostos. Revoltas e quebra-quebras pipocavam por toda parte. Os cidadãos andavam armados. A polícia era violenta. A pena de morte exibia com orgulho seus troféus no alto das colinas ensangüentadas. Ao que tudo indica, Deus, se quisesse visitar a terra naquela época, deveria seguir o conselho do Riobaldo, que dizia: — Deus, mesmo, quando vier ao sertão, que venha armado. Mas não foi assim. Para os estranhos e teimosos profetas bíblicos, aquele tempo inoportuno era, na verdade, a plenitude dos tempos, o kairós, o tempo exato para que Deus irrompesse na história. E, a despeito de todas as condições desfavoráveis, “o verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14). Deus nasceu desarmado. Sendo a luz do mundo, tudo o que se via eram dois olhos negros, brilhando no meio da noite. Sendo Palavra de Deus e Verbo divino, tudo o que sua boca podia fazer era chorar e sugar satisfeito o leite materno. 26
Sim, Deus nasceu desarmado. Lá está ele! Aquele, a quem os céus não podem conter, nasce do ventre de uma mulher pobre e aconchega-se no calor daqueles braços de mãe. Sendo o Senhor do universo, hospeda-se em uma estrebaria. Tendo a história nas mãos, dorme numa manjedoura. De fato, Deus veio num tempo inoportuno para os que lucram com as armas, com os juros e com a morte, porque a sua chegada propõe um basta! a tudo isso. Para nós, que queremos a paz, que almejamos a justiça, e suspiramos pela vida, Deus nos vem em boa hora. Porque nós também clamamos: — Basta! Não queremos mais tanta violência. Não queremos mais tanta corrupção. Não suportamos mais tanta injustiça. Não queremos morrer indignamente. Queremos a plenitude dos tempos. O tempo da graça. O tempo de Deus... É desse tempo que nos fala, sempre de novo, o Natal; e é ele que anuncia, sempre de novo, o Ano Novo. Sim, Deus continua a nascer entre nós. Mas não se deve procurá-lo entre os que estão armados até os dentes, nem mesmo entre os que ocupam as tribunas dos poderosos. Ele estará sempre por perto a nos olhar com dois olhos negros e brilhantes, e a nos dizer, sem 27
palavras, que a vida é uma criança frágil e vulnerável que precisa ser embalada com ternura, protegida com cuidado e alimentada com carinho. Que, neste Natal, o Filho de Deus, que por amor, se fez filho do homem, nos dê a graça de nos tornarmos, todos, irmãos e irmãs caríssimos e, portanto, filhas e filhos do Deus altíssimo.
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Natal, sorriso e esperança “Havia, naquela mesma região, pastores que viviam nos campos e guardavam o seu rebanho durante as vigílias da noite. E um anjo do Senhor desceu aonde eles estavam, e a glória do Senhor brilhou ao redor deles; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, lhes disse: Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto vos servirá de sinal: encontrareis uma criança envolta em faixas e deitada em manjedoura. E, subitamente, apareceu com o anjo uma multidão da milícia celestial, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem.” (Lucas 2.8-14)
SABE QUAL É O SORRISO mais caro do mundo? Aprendi com o padre Rômulo Cândido de Souza: O da Mona Lisa – que fica no Louvre, protegido atrás de vidros a prova de balas.
Aquele sorriso misterioso tem sido objeto de discussão há séculos. Por que a Monalisa sorri? O padre Rômulo, certa vez, mostrou esse quadro de Da Vinci para uma menina de sete anos. Depois de observá-lo em silêncio por um tempo, a menina perguntou: — Ela está grávida? Uma criança percebera o que nenhum erudito crítico de arte ainda havia notado: a Mona Lisa sorri porque tem uma criança dentro dela. O padre Rômulo conclui: criança é sinônimo de sorriso. Não existe criança anônima. Todas elas já têm um nome dado por Deus: Sorriso. Os céticos, ao lerem o relato dramático do Natal, riem. Mas seu riso é o de gente grande, porque acham tudo muito ingênuo. Que tal olharmos para o quadro pintado pelos evangelistas como aquela criança de sete anos olhou para o quadro da Mona Lisa? Talvez possamos rir um outro riso e descobrir que o Natal é esperança. Mas esperança por quê? Para aqueles que cresceram e têm dificuldades para ver sem o auxílio de raciocínios lógicos, sugiro pelo menos três razões para demonstrar que o Natal é esperança, à luz de Lucas 2 e dos relatos paralelos: 30
A Primeira razão é que o Natal quebra a monotonia do céu, da terra e do nosso cotidiano. Monotonia é indício de desânimo e de desesperança, por essa razão a esperança renasce quando algo diferente acontece – como na narrativa evangélica. A monotonia do céu é quebrada com o aparecimento de uma estrela diferente que, por sua beleza, obriga as pessoas a erguerem a cabeça e a olharem para o céu, a desviarem os olhos da escuridão e das trevas e a olharem para a luz. Além da estrela, surgem no céu os anjos cantores que enchem o mundo de música — o que equivale dizer que enchem o mundo de Deus! A monotonia da terra também é quebrada com a invasão dos pirilampos, que são identificados por Lucas como sendo a expressão da glória de Deus. Pequenas luzes entre as árvores que piscam e anunciam o fim das trevas e a chegada da aurora. Nem a monotonia do cotidiano resiste ao advento da gravidez e do parto, pois modificam e revolucionam o dia-a-dia de qualquer família. Um parto interrompe o trabalho dos pastores — e o faria com qualquer outro operário, porque ninguém 31
resiste à vida. Nem mesmo os animais da estrebaria permanecem indiferentes, pois seu sono é interrompido porque Deus resolveu visitar a terra e comungar numa eucaristia ecológica. A segunda razão pela qual entendemos que o Natal é esperança é que o Natal traz boa nova (boas notícias) Nada nos dá mais esperança do que boas notícias de alegria, de paz e de salvação. Natal é boa nova de alegria porque anuncia o nascimento de mais uma criança. A vida é tão sagrada, que basta o seu irrompimento para que com ela nasça a alegria — “nasceu uma criança, o mundo tornou a começar” (Riobaldo). Onde nasce uma criança, a casa se enche de risos e de alegria. Natal é boa nova de paz porque esse que nasce é o príncipe da paz. E os anjos advertem: pode haver paz na terra se tivermos boa vontade. Paz não é uma questão de humor, mas uma disposição da vontade humana. Querer a paz é a primeira condição para se obter a paz. Natal é boa nova de salvação porque a criança que nasce é o Salvador. A salvação está nas coisas simples e frágeis, como essa criança, e não nos poderosos mísseis ou nas atômicas bombas. Poder e 32
salvação não combinam. Salvação rima com sorriso de criança, beijo de mãe e abraço de pai. A terceira razão que mostra que o Natal é esperança é que ele sinaliza o Reino de Deus. Nos evangelhos, os sinais do Reino são as estrelas e os pirilampos, a mulher grávida e parturiente, e o recém nascido usando fraldas. As estrelas brilham no céu e são sinais universais da presença de Deus na imensidão do infinito. São grandes luzes para iluminar grandes trevas. Já os pirilampos brilhando no meio do mato são sinais da presença de Deus na terra. São pequenas luzes para iluminar as pequenas sombras do nosso cotidiano. Seja como for, Deus está entre nós: às vezes com fortes holofotes; outras, com pálidos lampiões tremeluzentes refletidos no brilho dos olhos das crianças. A mulher grávida e que está para dar à luz sinaliza que é a humanidade que gesta e dá à luz Deus. É das nossas entranhas, dos nossos vazios e dos nossos sonhos que nasce a possibilidade de o Verbo se tornar carne e habitar entre nós, como uma criança: cheia de graça e de verdade. 33
A criança que ainda usa fraldas deve ser, para nós, advertência constante: Deus está entre nós – não com os trajes suntuosos dos poderosos monarcas ou com as roupas de grife dos ricos e famosos, nem com as vestes caras de presunçosos colunáveis. Deus está entre nós na maioria das vezes trajando panos rotos, pobres trapos e singelas fraldas. Concluindo, o Natal é mensagem de esperança porque Deus nos visita quebrando a monotonia do nosso cotidiano e nos renovando a esperança. O Natal é mensagem de esperança porque é sinal do Reino: Deus está entre nós! Reconheçamos, pois, as grandes manifestações e os pequenos sinais de sua presença entre nós e em nós. O Natal é mensagem de esperança porque traz boas notícias — sejamos também nós portadores e portadoras das boas notícias do céu para a terra. Sorria, Deus está entre nós! Feliz Natal!
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Os (verdadeiros) símbolos do Natal (Cf. Lucas 2.8-20 e Mateus 2.1-11) A NARRATIVA BÍBLICA DO NATAL, conforme as encontramos nos Evangelhos, particularmente o de Mateus e o de Lucas, é repleta de elementos simbólicos colocados em destaque no grande evento pelo qual a glória de Deus visitou a humanidade na simplicidade de uma criança recém-nascida. Hoje, queremos recordar alguns desses símbolos, mas em lugar de destacar as estrelas, a manjedoura e os animais, queremos resgatar a presença humana, demasiadamente humana, daqueles e daquelas que testemunharam o primeiro Natal. Pastores que viviam nos campos O Evangelho de Lucas inicia a narrativa do Natal de Jesus fazendo referência aos pastores que
viviam nos campos. Esses trabalhadores do campo foram os primeiros a ver no céu o sinal da salvação porque não tinham um teto sobre sua cabeça. Esses pastores eram trabalhadores muito humildes, chegavam mesmo a ser desprezados como indignos e discriminados por pertencerem à base da pirâmide social. Quem seriam hoje os que vivem a céu aberto? A mensagem do Natal nos nossos dias deveria alcançar em primeiro lugar os que estão desabrigados, e por isso vivem nas ruas, os que trabalham no sereno ou se revezam nos turnos da noite. Os primeiros símbolos bíblicos do Natal contemporâneo deveriam, então, ser os sem-teto, os sem-terra, os andarilhos, os vigilantes e porteiros, e todos aqueles e aquelas que passam as noites sob as estrelas, à espera de uma boa nova de salvação. Anjos mensageiros Os Evangelhos dizem que uma multidão de anjos povoou o céu na noite do Natal, cantando e louvando a Deus, e diz ainda que anunciavam uma boa notícia que glorificaria a Deus no céu e traria paz para todos na terra. Esses anjos eram mensa36
geiros, portadores de notícias e informações importantes. Quem são os anjos mensageiros contemporâneos? os portadores das notícias que nos chegam hoje? São os carteiros, os office-boys e os motoboys; são também os jornalistas, repórteres e todos esses profissionais que se arriscam para que as informações cheguem até nós. Anjos, portanto, são todos aqueles homens e aquelas mulheres que em algum momento nos trazem boa nova que dão alegria, informações que de alguma forma glorificam a Deus e trazem paz à terra. Mulher grávida e parturiente “Nascido de mulher”, assim chegou o Salvador. Maria foi escolhida para ser a mãe de Jesus. Nos tempos bíblicos, ser mulher, por si só, significava ter de enfrentar uma condição de preconceito e discriminação, ainda maiores do que nos nossos dias. No caso de Maria, havia um agravante: além de ser pobre, ela ficou grávida antes de se casar. Mesmo assim, os pastores foram orientados a procurar por uma mulher que acabara de dar à luz uma criança, porque isso lhes serviria de sinal de que ali estava o Salvador. 37
Seríamos nós capazes de tratar as mulheres grávidas e, em particular, as mães sozinhas e pobres, como portadoras da salvação? Magos do Oriente Diz a tradição do Natal que uns Magos visitaram o Salvador Sabe-se muito pouco sobre eles: que eram do Oriente, que eram magos, que observavam as estrelas e isso é praticamente tudo. A criança de Belém se constitui em ponto de encontro de parentes e vizinhos, mas também de desconhecidos e estrangeiros. Sendo do Oriente e sendo magos, esses senhores provavelmente não professavam a religião de Israel. Observadores de astros, eram uma mistura de astrônomos e astrólogos, meio cientistas e meio feiticeiros. Ainda assim, são recebidos pela família do Salvador. Seria o encontro, a aproximação e o diálogo entre as diferentes religiões mundiais, um dos símbolos do Natal? Os nossos dogmas adultos nos afastam, mas o Deus menino nos aproxima. Não precisamos concordar em tudo, nem acreditar nas mesmas coisas, mas podemos nos encontrar para servir a Deus no serviço uns dos outros, servindo até mesmo aos que não crêem. A salvação não é exclu38
sividade de uns poucos, mas um dom oferecido do Céu para toda a Terra. E as diferentes expressões de fé podem nos presentear com seus conhecimentos, sua sabedoria e sua amizade, como fizeram os magos a Jesus. Criança que usa fraldas Mas o maior de todos os símbolos bíblicos do Natal é a criança. Os pastores foram orientados a procurar “uma criança envolta em faixas e deitada em manjedoura” (Lc 2.12), e este seria para eles o grande sinal de que estavam diante do “Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2.11). Essa criança era uma criança pobre. Não tinha berço, nem usava trajes nobres. Era uma criança simples que vestia trapos. Contudo, trazia dentro de si um amor tão grande, que foi capaz de salvar o mundo. Deus no colo de uma mulher... Deus nos braços da humanidade... O Natal não nos fala, então, de um Deus furioso, vingativo ou violento; ao contrário, ele nos fala de um Deus frágil e terno, um Deus bom e alegre, um Deus como você e eu. Feliz Natal! 39
Olhos de Menino NUMA ÉPOCA DE TREVAS, quando todos andavam cabisbaixos e desesperançados, estranhos viajantes contemplavam o céu. Seus olhos vasculhavam a escuridão infinita enquanto seus queixos apontavam o horizonte. Um pequeno ponto luminoso na vastidão tornou-se razão suficiente para uma longa jornada. Partiram do Oriente. Olhos nas estrelas, pés na estrada… … rumo ao horizonte. — Que haverá no horizonte? Quando lá chegavam descobriam a resposta: — Outro horizonte! O povo continuava a viver em trevas, enquanto os viajantes seguiam
guiados pelos pequenos pontos luminosos naquele mar de escuridão. Tanto andaram que um dia chegaram. Tinham diante de si a porta entreaberta de um casebre. Com aqueles olhos acostumados a procurar luz na escuridão, entraram na casa escura. Lá estavam… … duas contas brilhando no meio das trevas. Aproximaram-se. Era Ele! Deus! Mas com olhos de menino… brilhando no meio da noite. Deram-lhe presentes. Deus brincou com eles. Voltaram felizes porque brincaram com Deus. Diz-se que, desde então, aqueles viajantes também se tornaram meninos; e que quando voltaram para o seu povo, que ainda vivia nas trevas, seus olhos também brilhavam, cada vez mais intensos como estrelas ao anoitecer… 42
‌ porque tanto mais escura a noite, mais brilham as estrelas. E o povo que andava em trevas foi iluminado, e aos que viviam na região da sombra da morte resplandeceu-lhes a luz (Is 9.2).
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