Crioulo, crioulização

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Crioulo, crioulização Wilson Trajano Filho

Os conceitos são os blocos constituidores de todo pensamento. Isto é verdadeiro tanto para o pensamento do senso comum quanto para o pensamento científico. Este último tem suas regras próprias e demanda que eles sejam os mais bem delineados, precisos e livres de ambiguidades possíveis. Para alcançar essas qualidades, as ciências naturais buscaram na matemática a linguagem que atendia a essa demanda por precisão e clareza. Talvez o exemplo mais conhecido dos leigos em física seja o conceito de energia. Enquanto a palavra “energia” na língua portuguesa tem uma carga de significados que engloba coisas tão diferentes como a capacidade de um corpo ou substância de realizar trabalho, vigor, força física, firmeza, arrojo, potencialidade e dinâmica, para a física moderna energia é o produto da massa e da velocidade da luz ao quadrado, como resume a famosa fórmula de Einstein: E = mc². As ciências sociais também demandam conceitos precisos e bem delineados, mas, por razões que não podem ser exploradas aqui, não recorreram à matemática para desenvolver sua linguagem conceitual. Elas são saberes discursivos cuja linguagem é em larga medida compartilhada por sujeitos e objetos do conhecimento. Ao contrário das ciências da natureza, a grande maioria dos conceitos das humanidades é oriunda da linguagem ordinária, como atestam

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os seguintes exemplos: estrutura, organização, prática, papel, mudança, magia, religião, ritual, casamento, incesto, identidade e parentesco. Certamente existem conceitos antropológicos e sociológicos que não vêm diretamente da língua ordinária, isto é, não são originários da experiência social das comunidades em que vivem os cientistas sociais, mas estes são claramente minoritários e geralmente de pequeno curso, aplicados em contextos muito específicos. Frequentemente eles resultam da criação do cientista social a partir da conjunção de dois ou mais termos de uso corrente na língua. Um exemplo clássico na literatura antropológica é o conceito “cismogênese”, elaborado por Bateson (2008) em sua monografia Naven. Em outros casos, os conceitos se formam a partir de uma espécie de contrabando pelo qual o cientista social lança mão de um termo oriundo da língua falada pelo grupo estudado e o transforma num conceito com maior potencial de generalização e aplicação. Este é o caso dos conceitos “mana” e “hau” tornados clássicos pelos trabalhos de Marcel Mauss. No entanto, o contrabando conceitual é mais comum quando o conceito é oriundo do idioma vernáculo do pesquisador. Uma espécie de poluição semântica quase sempre acompanha esse movimento, na qual muitos dos sentidos originais do termo contrabandeado permanecem habitando, como sombras, sua nova morada como conceito, retirando deste seu potencial de clareza e precisão. Isto aflige os termos “crioulo” e “crioulização”, no percurso que começa na linguagem ordinária alcança o universo conceitual da antropologia, linguística, sociologia e história. Eles são termos polissêmicos, cujos múltiplos sentidos por vezes são contraditórios tanto na linguagem ordinária dos falantes da língua como na linguagem conceitual dos cientistas sociais. Vou tratar da polissemia da palavra “crioulo” em três níveis. Primeiro, ao nível da semântica formal dos dicionários, em que os sentidos são definidos lexicograficamente de modo muito semelhante às definições legais do Estado. Segundo, no plano de uso da

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língua viva. A despeito do que dizem os dicionários os falantes da língua usam o termo “crioulo” — e seus cognatos francês, inglês e espanhol — de modo criativo e dinâmico. Nestes casos, o termo “crioulo” é frequentemente uma categoria de identificação de um grupo social vivendo em meio a outros. Terceiro, analiso o termo enquanto um conceito central na sociolinguístíca e de crescente importância na antropologia. Ao fim, exponho o potencial analítico do par conceitual crioulo-crioulização em competição com outros conceitos contemporâneos que pretendem realizar a mesma tarefa analítica.

CRIOULO NOS DICIONÁRIOS Busco socorro nos dois mais conhecidos dicionários da língua portuguesa no Brasil, o Aurélio e o Houaiss, para mostrar como a passagem da linguagem ordinária para a linguagem das ciências sociais afeta a precisão e clareza do conceito “crioulo”. Para os falantes da variante brasileira da língua portuguesa, “crioulo” é uma palavra conhecida e usada pela imensa maioria das pessoas no registro coloquial e significa indivíduo de cor negra. Trata-se de um brasileirismo, pois a palavra com este sentido não é de uso corrente para os falantes de outras variantes da língua portuguesa como as que existem em Portugal, Cabo Verde, São Tomé, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Uma passada d’olhos nestes dicionários é bastante para mostrar que o vocábulo “crioulo” tem uma carga de significação muito densa chegando mesmo às raias da contradição. O Houaiss nos informa que na variante falada no Minho (Norte de Portugal), “crioulo” significa criança ou aquele que ainda é de colo. Nas variantes do português da Índia (Damão, Diu e Goa) a palavra se refere à pessoa que é adotada (filho ou flâmulo). Duas outras acepções de natureza regional e brasileira são as de se referir à coisa ou pessoa que é oriunda de determinado lugar ou região (ex. cavalo crioulo) e de designar o cigarro feito

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de palha de milho e fumo de rolo. O Aurélio acrescenta ainda que na variante brasileira falada no Rio Grande do Sul o termo é usado para designar uma pessoa que é oriunda de qualquer parte do estado. Estes sentidos não esgotam a carga de significação da palavra. Os dois dicionários apresentam uma série de outros sentidos para o vocábulo. Uma lista sumária deles inclui: a) pessoa de descendência europeia nascida nas colônias, especialmente nas Américas, em oposição aos nascidos na Europa; b) indivíduo da raça negra nascido nas colônias, em oposição aos nascidos em África; c) cria ou escravo; d) línguas nativas oriundas do contato de um idioma europeu com os idiomas nativos ou importados. Se nos restringimos aos sentidos glosados nos dicionários, a palavra “crioulo” é polissêmica e ambígua, pois designa uma variedade linguística, pessoas brancas e negras nascidas nas colônias, mas de modo exclusivo, coisas e objetos marcados pela autoctonia, relação de servidão e de adoção. Cada um destes sentidos tem maior ou menor centralidade de uso segundo a variante da língua portuguesa falada e segundo o tempo. Se a variante brasileira do presente enfatiza a pessoa de cor negra, independente de sua condição social, no passado a ênfase era posta na sua situação de servidão. Na variante falada presentemente em Portugal, o termo é usado para designar as línguas faladas em Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Em Cabo Verde, “crioulo” é a palavra para se referir tanto à língua nacional — com variantes em cada ilha — como ao próprio cabo-verdiano. Na Guiné-Bissau, este último sentido é praticamente inexistente, sendo o termo usado para designar uma das dezenas de línguas faladas no país.

CRIOULO COMO CATEGORIA DE IDENTIFICAÇÃO O exame dos dicionários faz pouco mais do que ressaltar a polissemia e as eventuais contradições semânticas que acompanham o termo

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“crioulo” e seus cognatos créole, creole e criollo. Este excedente de significação está associado ao que aprendemos quando indagamos pela etimologia da palavra. Os etimologistas parecem concordar que o termo provém do português do século XV. O consenso diz que a palavra portuguesa “crioulo” vem do verbo “criar” e do substantivo “cria”, que por uma sufixação pouco usual veio a dar no susbtantivo e no adjetivo “crioulo”. E do português ele se difundiu sequenciadamente para o espanhol, francês e inglês. Isto condiz com os passos dados por esses impérios no processo de expansão europeia. Portugal foi o pioneiro da expansão e colonização na África e América, seguido pelos espanhóis, franceses e ingleses. A palavra “crioulo” (créole, creole e criollo) tem a ver diretamente com esse processo de expansão dos europeus pelo mundo e com o estabelecimento de colônias nos territórios d’além mar. Ela tem sido usada para se referir tanto às pessoas e objetos como aos modos de vida (culturas) desenvolvidos no novo contexto da colonização. No presente ela é usada numa vasta área que, de norte a sul, vai do sul dos Estados Unidos (Texas e Louisiana) até os países meridionais da América do Sul. De leste a oeste, é de uso corrente na costa ocidental da África (em Cabo Verde, Senegal, Guiné-Bissau, Serra Leoa, São Tomé e Príncipe e Angola), passando pelas ilhas caribenhas de colonização francesa, inglesa e holandesa, até a costa do Pacífico da América Central e do Sul. No mundo índico também o termo é de uso corrente nas ilhas Maurício e Seicheles. Em todos estes lugares, o termo tem o valor de categoria de identificação e aponta para uma forma de nativização que gera pertencimentos étnico, linguístico e cultural. Na Louisiana, creole marca, sobretudo, um pertencimento linguístico e cultural. Seu valor como uma categoria étnica é disputado, já que, a depender do usuário, pode designar tanto os brancos de origem francesa quanto os mestiços que resultaram de intercasamentos entre estes e escravos negros (e seus descendentes). Formalmente, nas Antilhas francesas o termo créole designava os brancos

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ali nascidos, mas gradualmente veio a abarcar também os mestiços e os negros antilhanos. Assim, mais do que um marcador étnico ou racial o termo se refere a um pertencimento cultural (supranacional) e linguístico, em especial sob a forma do termo derivado créolité. No mundo hispano-americano contemporâneo, a palavra criollo se refere, sobretudo aos mestiços de brancos e negros, excluindo quase totalmente os povos indígenas e seus descendentes, incluindo os que resultam de intercasamentos étnicos-raciais. No Caribe de fala inglesa, o seu uso é ambivalente e está relacionado à oposição entre o local e o estrangeiro. No registro coloquial do inglês falado na Jamaica, creole significa tanto pessoa ou coisa que é nativa como o indivíduo mestiço, produto dos casamentos entre europeus, africanos e asiáticos. Porém, na Inglaterra, cuja população caribenha é grande e bastante visível, a palavra se refere ao jamaicano ou caribenho, marcando, neste caso, uma diferença cultural e a proveniência estrangeira. Na costa africana, o quadro é um pouco diferente. No Senegal, a palavra créole está em franco desuso. Até o início do século XX, ela designava algo que poderia ser chamado de um grupo de status ou uma elite afrancesada. Os créoles eram um pequeno grupo de famílias nascidas e residentes nas quatro comunas senegalesas — Gorée, Saint-Louis, Dakar e Rufisque — que, desde 1848, tinham direitos de cidadania equivalentes aos dos franceses, apesar de barreiras sociais e legais ao pleno exercício da cidadania. A maioria era formada por franco-africanos, filhos de intercasamentos entre negociantes e governantes franceses com mulheres africanas, geralmente pertencentes à parentela de chefes e notáveis dos estados wolof da região. Os créoles tinham acesso à educação formal, formando o substrato social de onde saíram os primeiros intelectuais e políticos a pleitear alguma autonomia política para os africanos. Devido à ideologia universalista francesa que punha toda a ênfase na assimilação à civilização francesa, os créoles foram assimilados ao longo do tempo, perdendo os traços distintivos que os tornavam um grupo à parte dos

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franceses metropolitanos e dos indígenas das aldeias wolof, serer e fula, reduzindo-se a uma mera elite africana educada. Neste processo, o próprio termo de identificação caiu em desuso. Curiosamente, não se desenvolveu entre eles uma língua crioula como aconteceu nos territórios do que é hoje a Guiné-Bissau e a Serra Leoa. Na Serra Leoa, creole ou krio é uma categoria de identificação que emergiu gradualmente a partir do século XVIII. Seu surgimento está associado ao realocamento na península de Freetwon de negros pobres que viviam em Londres e outras cidades inglesas, de ex-escravos da Nova Escócia (Canadá), nascidos na América, que se tornaram homens livres por terem ficado do lado dos ingleses durante a guerra de independência americana, e de negros livres do Caribe. Vivendo numa comunidade multiétnica e multilíngue, estes realocados desenvolveram ao longo do século XIX um sentimento de identidade coletiva que enfatizava a fé cristã, o valor da educação dos filhos e um sentido de distinção com relação aos africanos do continente. Eles se consideravam negros ingleses e sua elite abraçou as profissões liberais como a medicina, o direito e o jornalismo ou se voltou para o comércio com os africanos do interior. O valor da educação era tão elevado que em Freetown se implantou a primeira universidade nos moldes europeus, o Fourah Bay College, que desde 1876 oferece diplomas universitários em associação com o Universidade de Durham. Por seu elevado padrão educacional, os krios forneceram aos colonizadores ingleses os quadros médios para a administração colonial da Serra Leoa, Gâmbia, Nigéria e Gana. O elevado status social do grupo, o exclusivismo em suas relações sociais, sua fé cristã e sua posição de intermediários no regime colonial acabaram por produzir tensões com os outros grupos étnicos da Serra Leoa. Como sempre foram um grupo demograficamente minoritário, comparado aos temnes, mendes e mandingas, eles foram marginalizados após a independência do país, quadro que só se alterou com o fim da guerra civil que devastou o país no fim dos anos 1990. Desde então, os krios passaram a ser percebidos pelos outros grupos étnicos do país como

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menos propensos ao tribalismo e como tendo um importante papel na reconstrução nacional, em especial graças ao valor que dão à educação e a língua crioula por eles falada, que vem se tornando a mais importante língua nacional. O termo “crioulo” é usado na Guiné-Bissau basicamente para se referir à língua falada originalmente pelos africanos e luso-africanos que residem nas povoações fortificadas que os portugueses construíram no século XVII para comerciar com as populações indígenas. Não é, portanto, uma categoria de autoidentificação, como é o caso dos krios da Serra Leoa e foi o caso dos créoles do Senegal. Os termos de identificação usados por este grupo foram muitos ao longo do tempo. No passado eles se chamavam filhos da terra, portugueses da terra, brancos da terra, cristãos (kristons), grumetes etc. Nenhum destes termos, porém, tem o poder de abarcar a totalidade do grupo. Historicamente, os falantes do crioulo eram majoritariamente luso-africanos (muitos com descendência cabo-verdiana) ou africanos que viviam em estreita dependência destes. O comércio foi desde sempre a principal atividade do grupo e era através de sua prática que ele se reproduziu como uma sociedade distinta tanto das sociedades indígenas que circundavam as suas povoações quanto dos portugueses metropolitanos. Foram eles os principais atores engajados nos movimentos nacionalistas que elevaram à independência do país. Os casos do Senegal, Guiné-Bissau e Serra Leoa se diferenciam dos crioulos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe porque as populações crioulas do continente têm vivido em estreito contato com os agentes coloniais e com as sociedades indígenas, se reproduzindo basicamente através da incorporação de valores, práticas, símbolos e, sobretudo, gente destas duas vertentes civilizacionais. Nos casos insulares, não havia população nativa com quem conviver, de modo que os grupos crioulos que nas ilhas emergiram marcavam sua identidade somente por meio da relação com o colonizador, que sempre representou, no caso português, um poder largamente fragilizado e ausente.

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OS CONCEITOS CRIOULO E CRIOULIZAÇÃO Como conceitos, as categorias “crioulo” e “crioulização” também têm sido fontes de polêmicas e dissensos. Os estudiosos do fenômeno raramente querem dizer a mesma coisa quando usam estas categorias analíticas. Como conceitos associados a processos de identificação, eles são portadores de uma elevada carga ideológica acerca de como as sociedades e culturas crioulas surgem, se organizam e se reproduzem num contexto de assimetrias de poder (o contexto colonial) onde prevalecem muitas vezes violentas relações de dominação e subordinação baseadas na cor e origem social. Para examinar mais detalhadamente este par conceitual, começo no domínio onde os conceitos “crioulo” e “crioulização” têm uma carga ideológica comparativamente menos densa. A sociolinguística é o campo disciplinar em que estes conceitos primeiro tomaram forma nas ciências sociais. Para os sociolinguistas, crioulo é um tipo de língua natural que emerge em situações de contato linguístico. Crioulização é o processo que descreve o surgimento de um crioulo. Quando grupos de pessoas oriundas de muitas comunidades linguísticas diferentes interagem com alguma regularidade num cenário em que nenhum dos participantes conhece a língua dos outros surge o problema de se comunicar e, com isto, de garantir a continuidade da interação. Algo assim aconteceu quando os barcos portugueses chegaram à costa ocidental da África em meados do século XV e passaram a negociar com populações locais que falavam línguas diferentes como o beafada, banhum, cassanga, manjaco, entre outras. Neste contexto desenvolveu-se uma forma comunicativa muito simples e instável, limitada pelo kit linguístico de que dispunham e orientada pelas estruturas cognitivas desenhadas para o aprendizado de uma segunda língua. Com o contato entre os grupos ficando mais regular, essa forma comunicativa rudimentar se estabilizou e se tornou uma língua franca que permitia a interação regular entre eles e a realização de trocas comerciais. Crioulo, crioulização | 83


A este jargão estabilizado, os sociolinguistas chamam de pidgin. Trata-se de um tipo de linguagem com o léxico reduzido, com regras sintáticas extremamente simplificadas. Sua característica mais importante é o fato dele não ser a língua nativa de ninguém, sendo apenas uma língua auxiliar, geralmente voltada para as atividades comerciais. Seu material básico são as formas linguísticas existentes nas línguas maternas daqueles que o falam, com uma certa predominância da língua do grupo mais poderoso. É por isto que no caso dos pidgins que surgiram com o processo de expansão europeia se fala em pidgin de base inglesa, francesa ou portuguesa. Este último foi o que predominou nos primeiros séculos da expansão europeia na África e Ásia. Se os contatos comerciais entre falantes de um pidgin tornam-se mais regulares e duradouros, com o passar do tempo nascem crianças nesta comunidade emergente onde ele é falado. Quando isto acontece, os sociolinguistas dizem que o pidgin se transforma num crioulo. Trata-se de uma língua natural como qualquer outra, apesar de manter alguns traços distintivos próprios como uma elevada variabilidade. Ele tem seu léxico expandido. As estruturas cognitivas que o estruturam passam a ser aquelas desenhadas para a aquisição da linguagem, cuja natureza é universal. A sintaxe é complexificada com o surgimento de artigos, preposições, partículas marcadoras de tempo aspecto e modo e regras morfológicas para a construção das palavras. O material linguístico com que é constituído provém das línguas faladas no contexto em que ele foi criado. O crioulo, não é, porém, um mero sincretismo ou mistura de elementos das línguas envolvidas. Não é também uma língua desestruturada e desregrada como queriam crer no passado os agentes coloniais portugueses com relação aos crioulos de base portuguesa falados em Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Infelizmente esta é uma visão ainda preponderante em certos meios metropolitanos europeus e mesmo nos países africanos onde crioulos são falados. Este autor ouviu inúmeras vezes de guineenses e

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cabo-verdianos com quem interagia que o crioulo é um português cansado ou mal falado. Os conhecimentos da socioliguística ainda não foram difundidos e internalizados o bastante para quebrar com o preconceito que hieraquiza e aloca prestígio às línguas por meio de fatores extralinguísticos como o poder político, econômico e simbólico, bem como as cosmologias que o conformam. O cenário que conduz ao surgimento de línguas crioulas é bastante raro nos encontros intersocietários que conhecemos historicamente. A expansão lusitana pelo mundo deu luz a uma conjunto diferente de pidgins e crioulos de base portuguesa na África (em Cabo Verde, em toda a costa da Guiné e nas ilhas de São Tomé e Príncipe), Ásia (em Macau, Goa, Diu, Málaca, Timor), Caribe (o papiamentu falado nas ilhas Aruba e Curaçao) e, provavelmente, no Brasil. Nos casos africano e caribenho, é provável que tenha havido inicialmente um pidgin de base portuguesa, que se estabilizou muito rapidamente em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe (provavelmente em duas ou três gerações depois da ocupação), dando luz aos crioulos falados nestes arquipélagos. Um pouco mais tarde os falantes do crioulo cabo-verdiano se lançaram pela costa africana a comerciar com as populações nativas, que já tinham o pidgin como língua auxiliar. No fim do século XVI se assentaram em povoações da costa e, passadas algumas gerações, esse pidgin ganhou falantes nativos e se transformou num crioulo falado na costa entre o Senegal e a Serra Leoa. Conforme os portugueses passaram a sofrer a concorrência dos outros impérios europeus, sua área de influência se encolheu, assim como a do crioulo de base portuguesa, se restringindo atualmente à Guiné-Bissau e à região senegalesa da Casamansa. Ao norte, ele simplesmente deu lugar ao francês do Senegal e ao inglês da Gâmbia. Ao sul, na Serra Leoa, o antigo crioulo português foi relexificado, transformando a sua estrutura de superfície com a incorporação de palavras oriundas da língua inglesa, mas mantendo sua estrutura profunda — sintaxe, fonologia e estruturas morfológicas. E assim nasceu o krio, crioulo

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de base inglesa falado na Serra Leoa. Relexificação semelhante deve ter ocorrido com o pidgin estável ou crioulo de base portuguesa falado no Caribe. A melhor evidência é o papiamento falado nas Antilhas holandesas em que ainda subsistem um grande número de termos portugueses sob uma camada lexical de fonte espanhola e holandesa. Mais importante do que a definição e análise dos atributos constitutivos dos pidgins e crioulos é o estudo do processo que produz essas formas de linguagem. Este processo é chamado de crioulização. Do ponto de vista sociolinguístico, a crioulização é um processo de mudança linguística num contexto de contatos entre línguas. Como ela não se dá num vácuo sociológico, a crioulização é consequência de um determinado tipo de compromisso alcançado por grupos pertencentes não somente a comunidades de fala diferentes, mas a grupos que também são econômica, social e politicamente desiguais. Defendo, contudo, que tal desigualdade não pode tomar a forma de uma assimetria radical, mas antes, pressupor uma interdependência e um relativo equilíbrio de forças entre as comunidades envolvidas. Se houvesse uma assimetria radical, o compromisso não seria alcançado e a língua crioula não surgiria. Em seu lugar teríamos apenas mais um episódio de violência radical — que não é de todo incomum na história da expansão europeia — em que uma língua tomaria o lugar das outras. O estudo de pidgins e crioulos e dos processos de crioulização é um campo vasto e dinâmico, oferecendo à sociolinguística novas rotas para tratar de velhas questões. Uma delas é a da origem da linguagem, questão até então irrespondida pela linguística, antropologia e biologia evolutiva, por se localizar nos primórdios da humanidade e pela falta de evidências empíricas que fundamentam as hipóteses explicativas. Uma vez que os crioulos são línguas naturais como qualquer outra forma vernacular, como muitos deles surgiram muito recentemente — alguns com pouco mais de um século de existência —, havendo às vezes um registro escrito de seu aparecimento, eles servem como casos exemplares para se atacar a questão da origem da linguagem.

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Um segundo conjunto de questões renovadas pela crioulística é o que gira em torno do tema da variação linguística. Os crioulos têm na sua heterogeneidade interna e na variação um de seus traços distintivos. Não estou aqui me referindo nem à variação livre nem às regras variáveis existentes em toda a língua, mas num tipo específico que os sociolinguistas chamam de contínuo pós-crioulo. São variações estruturadas e sistemáticas existentes num contexto em que se encontra também presente a língua lexificadora (em Cabo Verde, o português, na Jamaica, o inglês, no Haiti, o francês). A isto os sociolinguistas chamam de situação de descrioulização. O estudo das variações e do contínuo pós-crioulo em situação de descrioulização põe em questão a ideia de que as línguas são entidades autocontidas e discretas, separadas umas das outras por fronteiras bem delineadas. Em vez de unidades discretas, a crioulística mostra que as variações sociolinguísticas têm uma natureza contínua e implicacional. Isto pode parecer muito técnico, mas qualquer falante nativo do português pode vivenciar intuitivamente a ideia de contínuo quando está em processo de aprender o crioulo de Cabo Verde ou Guiné-Bissau. Em suas interações verbais com os falantes do crioulo, ele nunca saberá ao certo que língua está falando, onde termina o português e começa o crioulo e vice-versa. Os conceitos “crioulo” e “crioulização” não são ferramentas analíticas exclusivas da sociolinguística. A antropologia e a história têm se beneficiado deste par conceitual nos últimos 30 ou 40 anos. No restante deste trabalho vou focalizar dois tipos de abordagens diametralmente opostas aos mencionados conceitos, deixando claro minha preferência pela segunda, sem, contudo deixar de ressaltar as suas limitações. A primeira abordagem tem natureza particularista e historicista. Foi desenvolvida por antropólogos e historiadores das sociedades caribenhas. Ali se desenvolveram sociedades crioulas formadas por europeus e africanos trazidos como escravos para trabalhar nas plantations de cana-de-açúcar. Um de seus maiores proponentes,

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Sidney Mintz (1996) argumenta que a crioulização é um fenômeno histórico, especificamente caribenho, de criação ou construção cultural. Segundo ele, o contexto da plantation, em razão da composição demográfica, dos códigos de interação entre os diversos grupos sociais, das várias categorias de situação de servitude existentes, e dos mecanismos e tecnologias de manifestação da violência e da subordinação, deram à luz uma sociedade original, nem africana nem europeia, com estruturas de reprodução originais e com lutas identitárias específicas. Trata-se de um processo histórico de natureza extranacional e extraimperial, sendo transversal às unidades políticas que existiram no passado (as diversas colônias) e que existem no presente (os estados nacionais caribenhos), apesar de haver muita heterogeneidade em seu interior. Para os defensores desta abordagem, o uso dos conceitos crioulização e sociedades e culturas crioulas fora do contexto caribenho retira o potencial explicativo dessas categorias. Esta visão historicista e particularista da crioulização sofre por não explicar casos histórica e estruturalmente relacionados ao Caribe, como o caso cabo-verdiano, o qual, por sua vez, está associado a processos semelhantes de construção cultural original na costa da Guiné e na Serra Leoa. A segunda abordagem antropológica à crioulização se inspira fortemente nos achados da sociolinguística. A ideia geral que a preside tem a ver com uma analogia entre língua e cultura. Esta ideia foi proposta pelo antropólogo sueco Ulf Hannerz (1987), que vê como crioulas as sociedades e culturas contemporâneas do chamado Terceiro Mundo. Nelas há um fluxo regular de coisas, valores, símbolos e práticas sociais que tornam as fronteiras entre as culturas mais porosas e flexíveis. Esta condição da contemporaneidade nos obrigaria, segundo ele, a rever, como os sociolinguistas fizeram com relação à língua, as nossas ideias de sociedades e culturas como entidades autocontidas, discretas, separadas uma das outras por fronteiras fixas. A abordagem de Hannerz tem seu ponto fraco na generalização

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muito ampla que faz da crioulização, tornando um processo especial e raro de fluxo intercultural num mero sincretismo.

IMPACTO DO CONCEITO Apesar das debilidades apontadas acima, o conceito de crioulização é bastante poderoso para lidar com os fluxos interculturais que dão origem, por via de uma nativização, a novas unidades socioculturais. Creio que ele compete vantajosamente com os conceitos rivais de hibridização, sincretismo, globalização e mestiçagem por trazer uma nova visão da sociedade e cultura como entidades que não são autocontidas, nas quais impera uma grande heterogeneidade interna. Inspirado nos estudos de variação sociolinguística, a metáfora da crioulização permite entender melhor a dinâmica dessas sociedades, sua reprodução e as suas tensões estruturais.

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TRAJANO FILHO, W. A construção da nação e o fim dos projetos crioulos. In: CRUZ e SILVA, T.; ARAÚJO, M. G. M.; CARDOSO, C. (Org.). Lusofonia em África: história, democracia e integração africana. Dacar: CODESRIA, 2005. . Uma experiência singular de crioulização. Brasília: Departamento de antropologia da UnB, 2003. (Série antropologia, 343) VEIGA, M. Diskrison Strutural di Língua Kabuverdianu. Praia: Instituto Caboverdiano do Livro, [1982]. VEIGA, M. (Org.). 1º Colóquio Lingüístico sobre o Crioulo de Cabo Verde. Praia: INIC, 2000.

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