AS MULHERES ATINGIDAS POR BARRAGENS E AS CONTRADIÇÕES DO MODELO ENERGÉTICO
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB São Paulo - agosto de 2010.
Vivemos num mundo onde o modelo de produção capitalista é hegemônico e o consumismo alcança todas as classes sociais. A tecnologia com base na eletricidade é essencial para sustentar e acelerar a lógica do lucro privado em detrimento da garantia dos direitos humanos fundamentais e dos interesses comuns. As conseqüências deste modelo são a concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos, através do controle de territórios com apropriação dos recursos naturais, da exploração da força de trabalho, em particular do trabalho reprodutivo e não remunerado desenvolvido pelas mulheres, gerando desigualdade social e miséria. O atual modelo de produção de energia se pauta sob a lógica de manter e impulsionar um padrão de desenvolvimento baseado no crescimento econômico ilimitado, a partir da apropriação privada e do monopólio das fontes energéticas pelas grandes empresas. Desde a privatização do setor elétrico no Brasil a partir dos anos 90, essa riqueza passou a ser controlada por grandes grupos econômicos, interessados no uso intensivo e na sua venda como mercadoria. É importante ressaltar que a construção de usinas hidrelétricas é marcada pelo desrespeito ao meio ambiente e à sociedade, sobretudo o desrespeito às populações atingidas, que vêem seus modos de vida se alterar drasticamente em nome do chamado “desenvolvimento”. No Brasil, já foram construídas mais de 2.000 barragens. Destas, 650 são exclusivas para a produção de energia elétrica para abastecer as grandes indústrias, o comércio e o consumo das famílias. Essas barragens, segundo dados da Comissão Mundial de Barragens (2000), já expulsaram mais de um milhão de pessoas de suas terras e casas. Segundo informações do Ministério de Minas Energia estão previstas mais de 1.443 barragens nos próximos 20 anos, se construídas expulsarão mais de 800 mil pessoas de suas terras. O que ocorre é que as barragens trazem consigo o discurso e a promessa de gerar emprego, progresso, de respeito à natureza, de energia mais barata para o povo e de garantir os direitos de indenizações das famílias despejadas. No entanto, o que vivenciamos é outra realidade, estima-se que 70% do povo que já foi expulso de suas terras não recebeu nenhum tipo de indenização. E os 30% que tiveram seus direitos atendidos, foram conquistas através da luta incansável dos atingidos. Há uma intransigência por parte das empresas, contra o povo que vive na beira dos rios e são deslocados em função das barragens.
Perante estas informações, temos a ciência de que as mulheres são as maiores vítimas do processo de construção de barragens e expulsão das famílias. Por uma questão histórica, sempre são elas que têm a maior preocupação com as condições, bem estar e segurança da vida. No entanto, o processo de construção das hidrelétricas cria conflitos, gera inseguranças e desestruturações nas relações sócias, comunitárias e nas estruturas familiares. Hoje no Brasil, os donos das barragens são grandes empresas multinacionais, que ganham muito dinheiro com a construção das obras e a venda da energia produzida. Além disso, essas empresas são autoprodutoras e eletrointensivas. No primeiro caso, consomem em suas próprias indústrias de alumínio, siderúrgicas, celulose, etc, grande parte da energia que geram. Já as eletrointensivas são intensas em consumo de energia para a fabricação de seus produtos. Em torno de 665 empresas utilizam mais de 40% de toda a energia elétrica do Brasil, enquanto que toda a população consome não mais que 25%, o restante da energia é consumida nos setores de serviços e pequenas indústrias. As principais empresas são: Vale, Alcoa, Bradesco, Camargo Correa, Votorantim, Oldebrecht, Tractebel, entre outras. Ironicamente, apesar do grande número de usinas hidroelétricas no Brasil e a alta produção de energia, o consumidor residencial paga a 5ª maior tarifa de energia do mundo. Enquanto que a Vale, uma das maiores mineradoras do mundo, paga três centavos pelo KW/h de energia e consome mais de 5% de toda a energia do país, o povo brasileiro chega a pagar 10 vezes a mais que isso pela mesma quantidade de energia consumida, sem contar os impostos (MAB, 2007). A construção das usinas hidrelétricas traz consigo drásticas modificações ambientais, sociais, econômicas e culturais para o conjunto da comunidade local. Estes impactos começam com o planejamento e anúncio da obra, aceleram-se durante a construção e prolongam-se para além do início de funcionamento da barragem. Neste sentido, não existem só impactos concretos e materiais, como o alagamento de terras, florestas, cidades, escolas, casas, como também impactos imateriais e afetivos. Pois, com a perda do território, perdem-se também os laços familiares, a vivência com a comunidade e a referência da vizinhança, entre outros que atacam diretamente a subjetividade, acarretando grandes danos à saúde e segurança das populações atingidas. Atribuir aos projetos de barragens a responsabilidade integral e única pela desigualdade nas relações de gênero seria simplista, mas com certeza altera as condições preexistentes e tende a agravá-las ainda mais, e na maioria acabam sendo “ocultadas” frente todos os mecanismos de ação das empresas (onde a barragem está sendo ou foi construída) e fortalecidas pela cultura de uma sociedade patriarcal e consumista.
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Na maioria das vezes verifica-se que as mulheres têm forte resistência em sair do território, não vêem a possibilidade de mudanças daquele espaço, por isso, persistem em continuar ali. Já os homens com mais facilidade vêem a possibilidade de ganhar compensação financeira em sair do local. Um dos fatores que justifica isto é que, historicamente, os homens vinculam-se às atividades que geram ou movimentam recursos (dinheiro – a produção), já as mulheres, na sua maioria não. Logo, o raciocínio masculino tem mais ênfase na questão econômica, enquanto que as mulheres consideram outras dimensões da vida. Estas observações ecoam em Marx: “são as relações de produção que determinam a consciência”. A maioria das mulheres atingidas pelas barragens mantém uma relação próxima com a terra, usam os recursos da natureza principalmente para garantir a alimentação. Usam outros bens destinados ao consumo da família, como chás, energia da lenha para cozinhar e aquecer, etc. Além de fortalecer suas relações através do artesanato, da troca de receitas, de sementes e produtos. Neste sentido, as mulheres são as principais vítimas com as perdas imensuráveis (econômicas e afetivas) e desagregação das comunidades. Essa mudança não implica apenas na perda deste espaço de poder e decisão das mulheres, mas no aumento da sua dependência econômica com relação ao mercado de consumo. Vale ressaltar que no que tange ao trabalho fora de casa, muitas perdem sua identidade e há uma precarização das condições de trabalho com a chegada destes mega empreendimentos em uma região.
Novas ameaças na vida das mulheres no pico da construção de uma hidrelétrica
Quando as empresas se instalam nas regiões para iniciar a construção de uma barragem, junto chegam muitas pessoas. Estes sujeitos encontram uma situação despreparada nos municípios, sem estruturas básicas e sem dinheiro para apoiá-los, agravando os problemas sociais. Mesmo que o discurso para o convencimento da construção da obra seja o do “progresso, emprego e desenvolvimento local”, a prioridade não é para trabalhadores que ali já vivem, muitas empresas trazem de outras regiões parte de sua mão-de-obra qualificada. Sem contar, que geralmente o número de operários necessários no auge de uma grande obra não condiz com a realidade local. Isso leva a estimular muitos trabalhadores migrarem em busca do tão sonhado emprego, de forma rápida inchando as cidades, quando o período da obra civil acaba, os empregos também acabam junto, criando uma desestrutura social. Ainda com relação ao trabalho, como forma de inserção social e apropriação do discurso do “compromisso social e desenvolvimento”, as empresas criam empregos temporários para as pessoas
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da região que devem ser disputados entre homens e mulheres. As empresas propagandeiam que tem como meta empregar 2% de suas vagas para mulheres. Estes elementos podem ser confirmados com base no caso da Tractebel, uma multinacional da Bélgica que hoje é dona de nove barragens no Brasil já construídas, e tem somente 704 trabalhadores empregados, mas uma fatura média de três bilhões de reais por ano, que são de posse da empresa privada. Com o início das obras e a chegada de um grande numero de operários, na sua grande maioria homens, as condições de vida das mulheres e as desestruturações familiares ficam ainda mais vulneráveis. São fatores que pelos exemplos históricos, elevam o nível de doenças sexualmente transmissíveis, incidindo o aumento de casos de gravidez de adolescentes e de prostituição. Além disso, no período intenso da obra, freqüentemente ocorre a instalação de “negócios da prostituição”, popularmente conhecidos como “zonas”, próximas ao canteiro de obras da barragem ou próximo ao alojamento dos trabalhadores. Essa estratégia das empresas tem o objetivo de “entreter” os operários, que estão longe de suas famílias, envolvê-los a diversões ilusórias reforçando um valor capitalista machista de tratar as relações humanas como mercadorias, onde a mulher é a mercadoria e o “prazer” é mérito do homem. Estamos presenciando esta realidade nas obras das hidrelétricas do Rio Madeira, em Rondônia. Recentemente matérias publicadas no jornal A crítica, de Manaus, escancaram o caso da prostituição da região1: Em poucos lugares da Amazônia o “hit” de Odair José tem encontrado tantos fãs como em Jaci Paraná, distrito do município de Porto Velho (RO). Desde o início das obras das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em 2008, milhares de mulheres de todo o Brasil migraram para a região em busca do dinheiro dos operários. Juntas, as usinas são o maior canteiro de obras em andamento do Brasil e uma das principais vitrines do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em dois anos, porém, Jaci Paraná se transformou num imenso mercado de sexo a céu aberto funcionando 24 horas por dia onde mulheres e adolescentes são a principal matéria-prima. Jaci Paraná é um antigo vilarejo de pescadores a pouco mais de 100 quilômetros da cidade de Porto Velho. Mas a chegada de quase 10 mil homens para a construção das usinas mudou a rotina de seus moradores. Dezenas de bordéis de madeira foram erguidos à beira da BR-364, disputando espaço com farmácias, açougues e igrejas. “Isso aqui virou um inferno. As mulheres se vendem em plena luz do dia. Tenho uma filha e 1
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tento protegê-la do jeito que dá”, diz a agricultora Maria Martins, 49, mãe de uma adolescente de 12 anos (grifo nosso). E a proximidade entre os prostíbulos e o canteiro de obras da empreiteira Camargo Corrêa, a maior a atuar na construção da usina de Jirau, é impressionante. Da portaria do alojamento até os primeiros prostíbulos, a distância não chega a 1,2 mil metros. Um deles ganhou o apelido de “Usina do Amor”. Os fatos pontuados não esgotam as conseqüências na vida das mulheres em decorrência das construções de barragens no atual modelo energético. São inúmeros os efeitos sofridos pelas mulheres, e as incoerências que este modelo trás, agravam ainda mais as contradições históricas nas relações de gênero. Porém, nosso objetivo é denunciar esta situação de violação dos Direitos Humanos, colocar a discussão em pauta, e valorizar as lutas históricas protagonizadas por mulheres e homens, como sujeitos políticos no processo de transformação social, onde a vida e novas relações sociais sejam a base fundamental de um novo projeto de sociedade.
“Água e energia não são mercadorias”
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