JORNAL-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE - ANO XIX - ED. 220 - NOVEMBRO / 2019
A REALIDADE DOS MORADORES DE RUA DO CENTRO DE S. PAULO - p. 3 LEIA TAMBÉM:
A AMEAÇA DA DENGUE RONDA OS PAULISTANOS - p. 2
APLICATIVOS DE TRANSPORTE MIRAM PÚBLICO FEMININO - p. 7 PREVENÇÃO DE DOENÇAS ESBARRA NA RESISTÊNCIA DOS HOMENS - p. 8 AS MULHERES AINDA SOFREM OS EFEITOS DA VIOLÊNCIA - p. 9 QUEM USA AS CICLOVIAS E CICLOFAIXAS? - p. 10 GRUPOS DE SEM-TETO LUTAM POR MORADIA E DIGNIDADE - p. 11 POLUIÇÃO AGRAVA PROBLEMAS RESPIRATÓRIOS - p. 12
COPA DOS REFUGIADOS PROMOVE INCLUSÃO DE IMIGRANTES Por Gustavo Honório - p. 5
O mosquito não sente frio A dengue ainda é subestimada nas estações menos quentes do ano Arnaldo Dib Lucca Redua
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s casos de dengue no país aumentaram drasticamente neste ano. De acordo com o Ministério da saúde, o número de casos de dengue cresceu 339% em 2019, mesmo antes de o verão chegar. O Ministério da Saúde aponta que mais de mil cidades no país já estão em estado de alerta e que, se nada for feito, ocorrerá um grande surto da doença. Mesmo com o número elevado de pessoas contaminadas, a dengue não é assunto da mídia e só volta a ser comentada quando chega o verão. A médica Melissa Palmieri, 41 anos, é especializada em prevenção e vigilância na saúde. Ela atua no ramo de controle de surtos de doenças há 15 anos e hoje trabalha na Vigilância Epidemiológica do Município de São Paulo, além de coordenar um serviço de vacinação privado e fazer palestras, principalmente na área de prevenção, para indústrias farmacêuticas. Sobre a prevenção da dengue,
Melisssa Palmieri recomenda a prevenção
ela afirma: “o brasileiro tem um comportamento de bombeiro, portanto só vai agir na hora do incêndio” – que, no caso, seria a doença. “Nunca podemos generalizar, mas a grande maioria dos brasileiros acredita que a prevenção da dengue é responsabilidade do outro ou do governo e não um comportamento que todos nós temos que ter”. Melissa aconselha a população a se prevenir antes de acontecerem surtos da doença. Outra motivação para o esquecimento da doença, de acordo com a especialista, seria o descaso da mídia, que é a grande influenciadora da população e não comenta sobre a dengue enquanto o surto não acontece. Para ajudar na eliminação dos criadouros da dengue, a médica projeta uma campanha em que algum vigilante do governo possa visitar toda população um dia por semana para ajudar na limpeza, procurando por água parada e qualquer potencial de criadouro, mas para isso acontecer seria necessário uma conscientização em massa por parte da mídia, que seria fundamental no processo. Sobre as ações do governo, Melissa fala que trabalha em “portarias” que têm uma função comunicativa. A partir do momento que uma pessoa vai ao pronto-socorro ou a qualquer hospital, e a dengue é dada como positiva, sua ficha, com o endereço, é enviada para os serviços de vigilância em saúde, que farão o bloqueio de criadouros de mosquitos em toda a região do paciente que está infectado, para evitar um futuro surto. Entre as doenças que podem trazer mais perigo para o verão desse ano, Melissa coloca a dengue e o sarampo como as duas maiores preocupações para hospitais e para o Ministério da Saúde. E acrescenta outro problema: a sobreposição de doenças. “As duas causam vermelhidão no corpo e podem ser confundidas”, diz. Vinicius De Oliveira, 35 anos, trabalha com a prevenção direta da
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dengue, fazendo a instalação de telas especiais para impedir a presença dos mosquitos no local da instalação. Ele está no ramo há cinco anos e decidiu ingressar no negócio como uma oportunidade de renda e para ajudar a população, ainda mais depois de mais de um familiar ser infectado. Ao contrário de Melissa, Vinicius acha que o governo tem participação muito limitada na conscientização e prevenção da dengue, já que nas áreas em que atua (zona leste de São paulo) não acontece nenhuma ação de órgãos públicos. Em relação à mídia, ambos concordam que sua participação não é suficiente e que a divulgação só ocorre depois que o surto está acontecendo. Além da instalação de telas para os mosquitos não entrarem nas casas, Vinicius também elimina criadouros nas casas de seus clientes. “Fazendo a tela, nós impedimos a entrada dos mosquitos nas casas das pessoas, mas se tem um criadouro em seu quintal, o risco é o mesmo”. Mas ele cita o mesmo ponto da médica: “Para melhorar, a população tem que facilitar o meu trabalho, porque quem corre o maior risco de ter um criadouro em sua casa é a própria pessoa”.
Jornal-Laboratório dos alunos do 2o semestre do curso de Jornalismo do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. As reportagens não representam a opinião do Instituto Presbiteriano Mackenzie, mas dos autores e entrevistados. Universidade Presbiteriana Mackenzie
Centro de Comunicação e Letras
Diretor do CCL: Marcos Nepomuceno Coordenador do Curso de Jornalismo: Rafael Fonseca Supervisor de Publicações: José Alves Trigo Editor: André Santoro
Impressão: Gráfica Mackenzie Tiragem: 100 exemplares.
A luta diária para manter o que resta A conflituosa relação entre o “rapa” e os moradores do Largo de São Bento
Joelma e Aruanã com todos os seus pertences (Fotos: Artur Alvarez)
Artur Alvarez Augusto Gomes
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odos os dias, os moradores de rua do Largo São Bento, localizado no centro de São Paulo, se veem em um drama com a subprefeitura da Sé por conta do “rapa”. Segundo os moradores da praça, o órgão quer que eles saiam do local, por isso relatam que a atuação dos agentes é abusiva e truculenta, e que seus bens são frequentemente confiscados. Para complicar a situação, eles simplesmente não pensam em sair de lá, pois a reforma recente da praça, parte do projeto “Centro Aberto” da Prefeitura de São Paulo, providenciou a instalação de uma espécie de deck de madeira no local, para melhorar o nível de conforto dos frequentadores. Resultado: o lugar se tornou atrativo para os moradores de rua, por ser mais confortável – tem até tomada para celular. “Não tô aqui por causa de droga ou bebedeira não, ok?”, diz
Joelma Ferreira de Souza, 45 anos, que mora há 1 ano e 5 meses no local com seu marido Washington Luís Andrade, 63 anos, e seus fiéis companheiros, o casal de vira-latas Aruanã e Sansão. Eles tiveram problemas com o aluguel do imóvel onde moravam e acabaram na rua. Joelma acusa o “rapa” de agressividade desnecessária – agrediram seu marido em uma ocasião – e de levarem uma pequena mala sua que tinha documentos do casal. Washington denuncia que já encontrou roupas suas sendo vendidas em brechós da região. “Eles pegam o que é da gente aqui e levam pra vender nos brechós”. “Eu tomei um prejuízo no dia 17 desse mês passado agora, o “rapa” esteve aqui e levou praticamente tudo. Levaram uma mala minha com pertences pessoais”, relata Diógenes Moreira, 41 anos, sul-mato-grossense de Bonito e morador de rua há 18 anos. Ele é
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muito vivido, é músico, diz que tocou no Grupo Tradição – mesmo que lançou Michel Teló – e conta que fez “mochilão” pela América Latina. Diógenes chegou à praça há pouco mais de um mês e também está inconformado com a atitude dos agentes da subprefeitura, que levaram inclusive seus documentos. No meio da conversa com Diógenes, Manuel dos Reis Vieira, baiano de 50 anos, entrou no papo e confirmou todas as informações que estavam sendo passadas pelo músico. Estava indignado com essa situação, de o “rapa” sempre passar na praça e causar um alvoroço desnecessário. Reclamou também que os policiais da base da Polícia Militar localizada de frente à praça permanecem imóveis quando o “rapa” os agride. Outro fato peculiar aconteceu durante nossa conversa com Diógenes e Manuel. Um PM da base localizada em frente à praça chamou Joelma e entregou
Dia a dia dos moradores de rua no largo de São Bento, na região central de São Paulo
uma sacola com roupas. Um ato de empatia tão atípico para a realidade deles que o sul-mato-grossense se espantou e falou para gravarmos a cena. Luciano Cintra de Souza, 38 anos, é morador de rua há cinco. Há quatro meses voltou para o local onde dorme todos os dias junto de seu cachorro Beethoven. Ele nos mostrou seu carrinho, que utiliza para carregar todos os seus pertences para todos os lugares. Isso porque ele já foi roubado - tanto pelo “rapa” quanto por outros moradores de rua. “Levo tudo comigo para não perder. Para não chegar aqui e não ter uma surpresa de não ter onde dormir, uma coberta”, diz. Joelma e Diógenes também estão atentos aos seus pertences e relatam que foram roubados por outros sem-teto, até da própria praça. Apesar da realidade de penúria enfrentada diariamente com as visitas da equipe da subprefeitura, todos estão lutando para tentar sair dessa situação. Joelma faz um curso de computação no CIEE Maria Paula e pretende ir em-
bora para subir um “barraquinho” em um terreno seu. Diógenes trabalha com contêineres e no carregamento de caminhões e assegurou que pretende voltar a viver com sua família em Mato Grosso do Sul. Luciano trabalha em obras, vende produtos na feira do rolo e quer construir uma vida menos turbulenta, tanto para ele quanto para Beethoven. Após conversar com o povo do Largo de São Bento, procuramos a subprefeitura da Sé. Em entrevista com Felipe Ramos de Souza, 31 anos, supervisor de Suporte ao Planejamento Urbano da subprefeitura da Sé, trouxemos as reclamações dos moradores do local e o questionamos principalmente sobre a rispidez do “rapa” e sobre os supostos roubos de documentos. Felipe afirmou que sua equipe de zeladoria e limpeza se baseia em um decreto para legitimar sua atuação - 57.069, de 17/06/2016 e atua em 1.105 ruas, com o apoio da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar. E garantiu que a abordagem é
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truculenta apenas nos casos de serem recebidos com agressividade pelos moradores de rua. Segundo ele, sua equipe começou a registrar Boletins de Ocorrência como forma de proteção, quando necessário. Com relação aos roubos de documentos citados pelos moradores, o supervisor deu certeza de que isso não ocorreu. Atribuiu as acusações a uma possível espetacularização dos sem-teto para alimentar um “glamour da sociedade para começarem a vê-los como coitadinhos” e que qualquer um pode ter roubado esses documentos. Finalizando, disse que a perda seria evitada caso o dono estivesse segurando-os ou presente na ocasião. Ao ser informado sobre a resposta de Felipe, Diógenes foi muito seguro ao dizer que estava presente no dia que levaram seus documentos e de Joelma, ausente nesse dia. Disse que pegaram sua mochila e jogaram no caminhão. “A polícia estava em volta e não deixou a gente subir”, relatou com pesar.
Dez a zero para a humanidade Na Copa dos Refugiados, o futebol é pano de fundo para discussões sobre inclusão e preconceito
Apesar da elasticidade, não deu para o goleiro da Venezuela contra o atacante de Camarões Gustavo Henrique Honório de Morais
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mundo passa por uma das maiores crises humanitárias da história em relação à população de refugiados. São mais de 70 milhões de pessoas obrigadas a deixarem suas casas, famílias e vidas para trás por conta de terrorismo, intolerância religiosa, guerras civis, instabilidade político-econômica e diversos outros fatores. Metade desse número refere-se a crianças. Os dados da ACNUR, a agência da ONU para refugiados, são assustadores. De acordo com a instituição, 57% dos refugiados do mundo vêm de apenas três países: Síria, Afeganistão e Sudão do Sul. Além disso, 37 mil pessoas fogem diariamente de conflitos e perseguições. Ainda segundo a organização, o número de refugiados cresceu cerca de 40% nos últimos dez anos, passando de 43 milhões em 2009 para 71 milhões em 2018. O Brasil também sente os efeitos dessa crise mundial. Segundo o CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados), são mais de 11 mil refugiados já reconhecidos em nosso país. Só em 2018 foram realizadas
80 mil solicitações de refúgio, sendo quase 62 mil provenientes da Venezuela, país que passa por uma severa crise humanitária. Esses números tornam-se evidentes ao andarmos nas ruas de São Paulo, onde a diversidade étnica é enorme. Essa população enxerga no Brasil uma chance de recomeçar. Pensando em unir o povo refugiado, retomar a sensação de pertencimento e promover a cultura de origem, um grupo de imigrantes criou a Copa em 2014. Naquela ocasião, a disputa aconteceu somente na capital paulista, com a participação de 16 países diferentes. Neste ano, houve eliminatórias no Distrito Federal, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Participaram 1.200 atletas e 58 equipes de 37 diferentes nacionalidades. Abdulbaset Jarour, sírio, 29 anos, no Brasil há cinco, é um dos responsáveis pelo crescimento do torneio. Ele fugiu da guerra da Síria, que assola o país desde 2011. Já ficou seis anos longe da família. Atualmente, é um dos nomes mais conhecidos da causa no Brasil, busca sempre levar o tema à mídia e se faz presente nas discussões em torno do assunto.
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Participou, inclusive, da novela Órfãos da Terra, da Rede Globo. Desde 2017 como coordenador-geral da Copa, ele explica a origem da competição que, além de levar alegria aos participantes, torcida e amigos, é uma demonstração de superação e um grito de guerra, como quem diz ‘Eu estou aqui! Eu tenho uma vida e uma história! Eu existo e exijo mais que respeito, eu brado por dignidade!’. “A gente usou da linguagem universal, que é o futebol, porque a gente acredita que duas coisas tocam o coração humano: o amor e futebol”, diz. Para Abdu, o evento tem quatro principais objetivos: 1) “Chamar a atenção da população brasileira, mostrar que nós somos seres humanos, nós merecemos respeito”; 2) “Chamar a atenção do olhar preconceituoso e xenofóbico contra a bandeira de refúgio e imigração”; 3) “Chamar a atenção do setor público para olhar mais sobre o nosso caso, porque a gente sofre também sem ter o mínimo de direito como ser humano no Brasil, a gente sofre em relação à documentação...” e 4) “Sensibilizar o olhar do setor privado para termos mais oportunidade, porque os refugiados e imigrantes que
Há três anos no Brasil, vive do futebol de várzea. “Eu sou jogador de futebol. Eu jogava em um time no Grajaú, o Garra Futebol. Ganho 100, 50 reais por jogo”, afirma. Tentou a carreira profissional pelo Botafogo-DF, time da segunda divisão brasiliense. Treinou lá durante um mês, mas, por problemas com o empresário e com a documentação brasileira, não pôde seguir com o sonho – por enquanto. Sua equipe se classificou para a final da etapa São Paulo da Copa dos Refugiados e tentou o bicampeonato na partida única disputada contra o Congo, no Estádio do Pacaembu, no dia 20 de outubro de 2019. Perderam por 2 x 0 e viram a seleção congolesa se classificar para a etapa nacional da Copa, que será decidida no Rio de Janeiro. Apesar da derrota nos gramados, reconheceu que “foi uma oportunidade ter jogado em um estádio que todo Jogador do Congo comemora a vitória após jogo válido pela semifinal mundo conhece, que já tem históchegaram aqui, a maioria deles são cem com o sonho de jogar profissio- ria. Foi uma oportunidade de verem formados, então, precisamos des- nalmente no time do coração, mas que tem gente que quer subir, quer se olhar do setor privado para abrir uma porcentagem inexpressiva atinge ser profissional”. Afinal, qual seria o algumas vagas, que abracem a nossa o objetivo. Para Ejike Steven Otti, um maior sonho desse jovem imigrante? causa”. E ele está coberto de razão. nigerense de 23 anos, contudo, o im- Jogar por alguma equipe profissional Uma pesquisa da ONU apontou que possível não existe. Ele fugiu do seu como Palmeiras ou São Paulo? Ele mais de 30% dos refugiados no Bra- país, o Níger, por causa do terrorismo. mesmo responde: “Conseguir voltar sil têm ensino superior, porcentagem A organização fundamentalista islâ- lá e dar um abraço nela. Já faz temmaior que a de brasileiros natos, que mica Boko Haram matou seu pai. Sua po que eu estou aqui e a gente só mãe continua lá. “Estou aqui, mas pen- conversa pelo WhatsApp. Esse é meu é de aproximadamente 15%. O sírio planeja um futuro sando nela, é difícil”, diz, emocionado. maior sonho”. grande para o campeonato. Disse que já está conversando com organizações da França para realizar uma Copa do Mundo dos Refugiados. “Qual é a diferença entre a Copa do Mundo e a Copa do Mundo dos Refugiados? A Copa do Mundo é algo de profissionalismo, de taça de ouro, de dinheiro. Nessa aqui o título é muito maior. É o título das pessoas que deixaram seus países, familiares, amigos e procuraram uma nova vida para recomeçar. O título aqui é humano. Imigrar é um direito humano”, defende. Para driblar o preconceito, ele filosofa: “Minha religião é o amor, a minha raça é a humanidade, a minha pátria é o mundo. Sou cidadão do mundo, somos todos filhos da mesma terra. Então, não me julgue antes de me conhecer”. Milhões de brasileiros cres- Ejike Steven Otti, autor de dois gols, ganha a vida no futebol de várzea
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Motoristas empoderadas Aplicativos como Lady Driver oferecem serviços exclusivos para mulheres, mas o acesso ainda é limitado Catarina Di Rienzo
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erviços como Uber, 99 e Cabify trazem uma série de facilidades para os usuários. Mas o público feminino nem sempre é atendido de forma satisfatória. Nos últimos anos, várias mulheres começaram a relatar comportamento abusivo e assédio de alguns motoristas e passageiros. Por não haver nenhum contato ou conhecimento da pessoa que vai conduzir, ou mesmo do passageiro, não há como saber o que esperar. Esse é o medo de mulheres como a estudante de nutrição Anna Beatriz de Oliveira, 21 anos. Ela relata que estava em uma corrida no Uber e sugeriu ao motorista um caminho melhor e mais seguro. A resposta: ele era homem e entendia de trânsito melhor que ela. “Fiquei tão Luciana relata que trabalha como motorista de aplicativo há um ano e meio transtornada que não tive reação. Fiquei sentada no banco de trás em sexo feminino. “A proposta é muito A jovem também diz que o app poestado de choque até chegar no meu boa e dá muito mais segurança”, diz deria estar funcionando melhor, pelo Luize Maximo. Anna Beatriz também fato de só ser abrangente nas duas destino”, diz. Além de Anna, a estudante de relata que acha de extrema relevância maiores capitais do Brasil. Luciana Koyama Ângelo, 43 administração Luize Maximo, 18 anos, o aplicativo, já que atualmente passacontou de uma situação vivenciada na mos por inúmeros constrangimen- anos, é motorista de aplicativo e coFrança. A jovem diz que assim que o tos, vindo especialmente de homens. menta um pouco sobre como é ser motorista notou que ela era estran- Mesmo com essa opção, no entanto, uma mulher no ramo. Ela gosta muito geira começou a ter um comporta- todas as empresas deveriam fazer tes- de dirigir, mas também segue no ramo mento inadequado. O moço começou tes psicológicos com seus motoristas pela necessidade. Luciana já sofreu a falar do seu corpo, deixando Luize antes de eles iniciarem o atendimento um assalto enquanto trabalhava. Ela diz que um menino de rua roubou seu constrangida e com medo. Por não ao público, diz a jovem Luize. Isabela Paiva Matias Felix, 20 celular. E confessa que os aplicativos estar em seu país de origem e não ser familiarizada com o lugar, ela diz que anos, já utilizou o aplicativo Lady Dri- realmente não dão muita proteção teve medo que ele a levasse para ou- ver, mas relata que isso ocorreu em aos motoristas. Em relação a abuso ou tro lugar, em vez do destino definido. pouquíssimas vezes, pelo fato de a assédio, Luciana comentou que nunca Para evitar situações como demanda ser muito alta para poucos passou por isso. Por precaução, no essas, o aplicativo Lady Driver foi cria- motoristas, além de o serviço ter um entanto, ela tenta trabalhar só de dia. do. O serviço idealizado por Gabriela preço mais elevado. “Eu acho a ideia “A gente corre muito risco, principalCorrea só aceita mulheres (motoris- do aplicativo bem útil porque, como mente quando as pessoas fazem chatas ou passageiras). Ele já está em são mulheres, elas entendem o papel mada em lugar perigoso” diz. Quanto funcionamento em São Paulo e em e as situações, que muitas vezes são ao aplicativo Lady Driver, a motorista uma parte do Rio de Janeiro. Homens complicadas, vividas por outras mu- diz que o desinstalou, pois em sua cisó podem entrar como acompanhan- lheres”, diz Isabella. O aplicativo tenta dade, Mogi das Cruzes, o serviço não tes das mulheres que solicitaram a quebrar o estereótipo de que mulhe- funciona. Além disso, ela revela que a corrida. O aplicativo tem uma enor- res dirigem mal e não prestam tanta segurança para a motorista não é tão me relevância para as mulheres, pois atenção. Segundo ela, as motoristas garantida, pois muitas vezes mulheres muitas dizem sentir-se mais seguras tentam fazer seu serviço com muito entram no carro acompanhadas por com motoristas e passageiras no mais competência do que os homens. homens.
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Eles fogem dos médicos Público masculino que busca atendimento para prevenção de doenças ainda é baixo Giovanna Carvalho Júlia Lara
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s homens no Brasil, ainda hoje, têm uma grande resistência em frequentar consultórios médicos. De acordo com uma pesquisa do Centro de Referência da Saúde do Homem, 50% dos homens só procuram um médico quando a doença já está em estágio avançado. A cada oito mulheres que vão ao ginecologista, apenas um homem vai ao urologista. Muitos usam o argumento de que o serviço público de uma Unidade de Saúde Básica (UBS), por exemplo, funciona das 8h às 17h, e por ser em horário de trabalho da maioria, não podem faltar no serviço para ir em consultas. Márcio Veiga Lemes, 58 anos, é enfermeiro há 33 e coordenador de uma UBS em Suzano, na região metropolitana de São Paulo. Ele diz que o homem procura menos assistência médica em relação à mulher por ainda existir uma certa resistência com exames, principalmente o de toque, que pode detectar câncer de próstata. “Na campanha do Novembro Azul, que funciona como estímulo para que os homens façam os exames preventivos, a procura aumenta, mas não o quanto deveria”, diz. Márcio conta que muitas vezes o homem só vai ao médico quando a mulher o obriga, e que muitas das doenças poderiam ser evitadas com consultas prévias e o tratamento necessário. Apesar de o câncer de próstata ser o de maior incidência na população masculina, outras doenças, como a AIDS, causada pelo vírus HIV, também precisam ser discutidas. A psicóloga Vivian Salles Alvarez, 34 anos, de Campinas, é especializada em medicina preventiva e tem uma grande experiência no acompanhamento de homens que convivem com o HIV. “Nessa área há uma pequena diferença em relação a outros campos da saúde quando pensamos em masculinidade”, diz. Como a AIDS, quando foi descoberta, na década de 1980, era muito relacionada à homossexualidade, isso gerou uma falsa
ilusão, que persiste até hoje, de que os homens heterossexuais não precisam se preocupar com a doença.A medicina já mostrou que essa noção é equivocada, mas a cultura permanece. Em 2009 foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral a Saúde do Homem, criada depois de uma consulta pública para auxiliar nas necessidades de saúde dos homens. A política funciona muito bem no papel, mas não é muito efetiva. “A resolução é bem técnica e quer garantir, do ponto de vista do comprometimento do Estado com a saúde, que se passe a formular mais programas de saúde e pensar em como esses homens podem ser mais bem cuidados, levando em conta todos os determinantes sociais”, explica a psicóloga. Vivian também fala sobre o entendimento das relações de gênero dentro do contexto da saúde. “Quem começou a estudar gênero foram as feministas, foi a partir do movimento feminista que tivemos uma mexida nessas questões para poder problematizá-las e, com isso, problematizar a masculinidade também”, explica. Ela também
diz que os homens têm diariamente a necessidade de fazer a manutenção dos símbolos de sua masculinidade, e ser um homem que cuida da saúde não condiz com esse ranço cultural. “Essas questões estão muito na nossa cultura, no nosso tempo histórico”, explica a especialista. “Os serviços de saúde foram pensados e desenhados a partir da saúde da mulher e das crianças, então a maneira como os pacientes são abordados e até mesmo os horários de serviço dificultam muito que os homens cheguem”, conclui. Diante do Novembro Azul, Vivian conta que a descoberta antes da doença não é comprovadamente necessária para um melhor resultado no tratamento e cura como para o câncer de mama. “Eu acho que é uma estratégia parecida com o que vem se fazendo no Outubro Rosa para as mulheres, que cria um controle de corpos. Eu tenho dúvidas se o Novembro Azul pode levar a uma mudança cultural”, diz Vivian, que questiona ainda se, de certa forma, não estamos reduzindo a saúde do homem a um problema da próstata.
Hospital do Homem é referência como o único em tratamento a laser do câncer de próstata
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Mulheres sob ataque Desde julho, foram 1720 denúncias de lesão corporal por toda a capital muito mais alto, a situação parecia muito mais intensa. A mulher gritava por socorro, então eu e meu irmão decidimos chamar a polícia”, diz. Sobre esse tipo de acionamento da Polícia Militar, a região concentra 6% dos chamados de toda a capital. Segundo o delegado Luciano, “infelizmente quanto menos educação social a pessoa tem, mais ela acredita que a mulher pode ser objetificada e colocada em segundo plano, e isso incrementa a violência”. O bairro é habitado por famílias de baixa renda e, além das agressões contra a mulher, também é um dos mais afetados pela criminalidade em São Paulo. O delegado Luciano orienta as vítimas quanto ao procedimento jurídico do caso Depois do atendimento poGiovanna Reis do Boletim Estatístico Eletrônico, so- licial, é fundamental que as vítimas mente em agosto foram 790 casos de sigam para uma rede de apoio. Na violência doméstica contra lesão corporal dolosa contra mulhe- delegacia do bairro, elas são encamia mulher é um problema res, além das 845 denúncias de amea- nhadas para o Centro de Referência que afeta toda a cidade de ça em toda a cidade. O delegado con- da Mulher (CRM) Maria de Lourdes São Paulo. Alguns bairros, ta que depois de aberto o boletim de Rodrigues, também no Capão Redonno entanto, concentram um número ocorrência é feita a medida protetiva do. A unidade foi inaugurada em 2016, maior de ocorrências. A região do e o procedimento segue com o re- atende o bairro e as regiões do CamCapão Redondo, na zona sul, de acor- colhimento de depoimentos e laudos, po Limpo e Jardim Ângela, e é coordo com levantamento feito pelo jor- para o indiciamento do autor. Depois denada pela assistente social Lucélia nal Folha de S. Paulo com base na Lei o caso segue para o fórum e há a Ferreira, de 42 anos. Os CRMs realide Acesso à Informação, é a campeã eventual condenação. Todo o proces- zam atendimento psicológico e jurído número de registros. Os chama- so pode levar mais de dois anos. “Ain- dico, oficinas de educação financeira dos são atendidos pela Polícia Militar da temos muita recorrência, já que e grupos reflexivos para empoderae encaminhados para denúncia ao infelizmente as medidas protetivas mento feminino, de forma a agir tanto 47º Distrito Policial, onde o delegado são ineficientes e as penas são mui- de forma preventiva quanto remediaLuciano Di Aretta, 39 anos, é o res- to baixas, muitas vezes cumpridas em dora. “A violência doméstica ocupa ponsável pelo registro dos boletins de regime aberto. Então o próprio autor um lugar de invisibilidade e naturalido crime vê isso como uma chance dade. Mesmo nos dias atuais e com os ocorrência desses casos. Apesar de a função ser majo- de fazer de novo”, afirma o delegado. avanços que tivemos com a Lei Maria O retrato da violência não é da Penha, ainda temos uma sociedade ritariamente da Delegacia da Mulher, hoje três dos cinco cartórios do Dis- recente. Ouvindo moradores da re- machista, que encara a violência dotrito se dedicam aos inquéritos de vio- gião, percebe-se que a agressão de méstica como caso a ser tratado no lência doméstica. “A Polícia Civil tem mulheres, principalmente por seus seio familiar”, conta a coordenadora. como função a repressão ao crime, companheiros, já ocorre há muito Lucélia trabalha com polítientão, quando as vítimas chegam aqui, tempo. Muitos casos acabam virando cas públicas desde 2013 e hoje, com elas vêm narrar uma ocorrência para rotina na comunidade e seguem até o restante da equipe, realiza um traregistro, e inicia-se o inquérito policial. mesmo sem denúncia, muito menos a balho personalizado para cada vítima Muitas vêm buscar medidas protetivas. efetiva punição dos agressores. A es- que chega, dadas as diferentes situaHoje já estou fazendo o segundo aten- tudante Déborah Barbosa, de 17 anos, ções a que foram submetidas. “Nosso dimento do dia”, relata o delegado. Na é moradora da região desde criança e desafio cotidiano é dar voz a essas sala de espera, outras três mulheres já ouviu diversos relatos do tipo. A ga- mulheres e condições concretas de aguardavam o mesmo atendimento, rota conta que durante o ano passa- viver uma vida sem a violência dodo era acordada diversas vezes pelos méstica, apesar das marcas que isso mas não quiseram dar entrevista. Segundo levantamento da Se- sons de brigas e gritos vindos de uma deixa em cada usuária que atendecretaria de Segurança Pública a partir das casas vizinhas. “Uma noite ficou mos”, afirma Lucélia.
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Ciclovias para quem? Quem são as pessoas que usam as faixas exclusivas para bicicletas nas ruas e avenidas de São Paulo Tom Sarfati Kosminsky
ideia das ciclovias muito positiva, e que hoje não saberia como se locomover para certos lugares, onde não há metrô, pois a família só tem um carro, que quase não fica parado em casa. Com isso ele tem que procurar diferentes meios de transporte e, nessa busca, encontrou a ciclovia para frequentar lugares distintos. Também entrevistamos um motorista, Alexsandro Pereira, 39 anos, para ouvir a opinião de quem está atrás do volante. Ele começou dizendo que não usa nem a ciclovia e nem a ciclofaixa. “Quando quero Movimento de ciclistas na Avenida Paulista pela manhã andar de bicicleta vou ao parque, Uma ação recente da Prefei- imagina com as ciclovias da mesma cor não fico no meio da rua”, diz. Além tura de São Paulo tem causado estra- do asfalto, os carros vão passar sem disso, Alexsandro afirma que, apesar nhamento em motoristas, ciclistas e dar a menor bola, e se forem parados, de as ciclovias serem uma boa ideia pedestres. No lugar das vias tingidas vão dizer que não viram a linha. Isso é para melhorar o trânsito em São de vermelho, a administração munici- mais uma forma de mostrar como o Paulo, acabam tendo o efeito conpal está pintando faixas simples para ciclista não tem vez em São Paulo”, diz. trário. “Não melhoram, porque ninisolar o espaço das bicicletas da via de O ciclista Martin Mello, 20 guém usa, e com isso acabam mais circulação de carros e motos. A nova anos, faz curso pré-vestibular e tem atrapalhando do que ajudando a padronização, para alguns, pode au- um ponto de vista um pouco dife- reduzir o congestionamento, já que mentar ainda mais o risco de aciden- rente. Na visão dele, os motoristas os carros não podem usar a faixa tes, pois não deixa muito claro o es- são bem respeitosos com as ciclo- das bicicletas, ficam com uma faixa paço que pode ser utilizado por cada vias, “apesar de algumas exceções, a menos para andar, e muitas vezes meio de transporte. de alguns que não respeitam”. Além não há nenhum ciclista usando o esPara entendermos melhor o disso, Martin garantiu que achou a paço”, afirma. que acontece, e mais sobre essa mudança, entrevistamos o ciclista Bruno Ponciano, 26 anos. O entrevistado garantiu que usa as faixas exclusivas quase todos os dias, e completou dizendo que a família dele tem carro, mas que o veículo quase não é usado, pois todos preferem, além das ciclovias, o metrô e o uber, este último apenas quando estão com pressa. Além disso, disse que as ciclovias são muito úteis, pois “além de ser um instrumento para diminuir o trânsito em São Paulo, é uma excelente maneira de estimular um novo meio de locomoção para a cidade”. Perguntamos a Bruno o que ele achou da mudança que vem sendo implantada nas ciclovias. Ele afirmou que, apesar de a mudança não ser muito radical, a novidade é muito pior para o ciclista. “Se com as ciclovias em vermelho alguns carros não respeitam, Patinetes ocupam espaços das bicicletas na ciclovia
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A busca pela dignidade População que depende de programas habitacionais sofre com possíveis cortes Matheus Fonseca Wesley Fernandes
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ma proposta governamental realizada no último mês de setembro, que prevê um corte de pelo menos 41% da verba destinada ao programa “Minha Casa, Minha Vida”, levou milhares de pessoas à porta do posto de atendimento da Receita Federal localizado no bairro da Luz, no centro de São Paulo. Moradores e integrantes da União Nacional por Moradia Popular (UNMP) foram às ruas em busca de uma habitação digna para suas famílias e para batalhar pela diminuição da exclusão social das classes menos favorecidas. No programa “Minha Casa, Minha Vida”, indivíduos e famílias que ganham até 1.800 reais por mês podem receber, em alguns casos, um subsídio equivalente a 90% do preço do imóvel. Com a provável aprovação da redução da verba destinada ao programa, é possível que até as obras que estão em andamento sejam interompidas devido à falta de recursos. “A população que detém uma renda inferior a três salários mínimos é a mais afetada economicamente, sobretudo num quadro de crise como o vivenciado nos últimos anos. Não dá para falar em cidadania sem emprego, renda, moradia, saúde e educação. Essas famílias já estão excluídas, de certo modo, na medida em que não têm atendidas suas necessidades de bem-estar básicas”, afirma Eliana Marcondes Pralon, socióloga que tem especialização em políticas públicas de combate à pobreza. Na concepção da pesquisadora, caso realmente ocorra o corte na verba disponível para o “Minha Casa, Minha Vida”, as consequências para a população e economia podem ser gravíssimas. “Assistiremos a um aumento ainda mais absurdo
Manifestação da União Nacional por Moradia Popular perto da Estação da Luz
do déficit habitacional, pois as famílias com o perfil para atendimento no programa não conseguirão arcar com o custo de aluguel, nem adquirir um imóvel no mercado”, diz. Ela ainda complementa: “é visível o aumento da população de rua nos centros urbanos, com destaque para a cidade de São Paulo. Quem passa à noite pelas ruas sob o Minhocão vê um quadro exemplar de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza”. O termo déficit habitacional se refere a um determinado número de famílias que vivem em condições de moradia precárias em um bairro, cidade, estado ou país. As pessoas que não possuem moradia também estão inclusas nessa condição. Atualmente, no Brasil, segundo um levantamento feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) em parceria com a Fundação Getulio Vargas (FGV), quase 8 milhões de pessoas estão dentro do chamado déficit habitacional, um crescimento de mais de 7% em 10 anos. O sonho da casa própria para a população mais pobre está direcionado ao programa de moradia popular, e se o corte for mesmo aprovado, esse número ten-
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de a aumentar consideravelmente. Durante a manifestação, cidadãos de todas as idades carregavam faixas e bandeiras com frases de apelo ao governo para uma melhor condição de moradia a todos, principalmente os mais pobres. Ecoavam gritos e cantos contrários às medidas do governo atual nos arredores da estação da Luz. A maioria dos manifestantes, de baixa renda, mostrava preocupação com a decisão do governo de cortar os programas de moradia. E outros também se mostravam contrários à exclusão social e à migração para a periferia da população mais pobre. Ao ser questionada sobre as medidas tomadas pelo presidente Jair Bolsonaro, a diarista Marinete de Oliveira, 52 anos, diz: “Eu moro de aluguel, acho que é horrível esse corte, o pobre também precisa morar, não é só rico”. Ela complementa dizendo: “o objetivo da manifestação é moradia, nós lutamos para termos onde morar e para termos menos desigualdade social. Todo mundo tem direito de morar na cidade, que fica mais perto do nosso trabalho, não é só na favela que o pobre tem direito de viver”.
Respirar está cada vez mais difícil Qualidade do ar da região metropolitana de São Paulo interfere em casos de doenças sazonais Andrei Semensato Maria Eduarda Blumer
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fato de a cidade de São Paulo ser avaliada como uma das mais poluídas do mundo não é novidade. Mas os impactos que a qualidade do ar deste grande centro urbano tem causado na saúde das pessoas são dignos de preocupação. Segundo pesquisas da USP, a quantidade de substâncias prejudiciais à saúde inaladas em uma hora de deslocamento no trânsito de São Paulo equivale a fumar cinco cigarros por dia. Para se ter uma ideia, apenas em um dos postos de Assistência Médica Ambulatorial, a AMA do Jardim Peri, na zona norte da cidade, cerca de 54% dos atendimentos foram relacionados a problemas respiratórios em setembro deste ano. O Instituto de Saúde e Sustentabilidade e a Escola Paulista de Medicina realizaram estudos sobre o impacto da poluição na saúde das pessoas, e as expectativas para os próximos anos não são positivas: até o ano de 2025 são esperadas 18 mortes diárias se a condição do ar em São Paulo não melhorar. Além disso, o SUS deve arcar com quase R$ 60 milhões devido às 11 internações, também diárias, de pessoas com sintomas de doenças respiratórias. Rodrigo Cataneo, 36 anos, é enfermeiro há seis anos do AMA do Jardim Peri e responsável por enviar os diagnósticos dos pacientes por meio de um sistema de identificação às SUVIS (Supervisões de Vigilância em Saúde). Ele acredita que a poluição atmosférica de grandes cidades como São Paulo é incomparável com a de regiões rurais. O enfermeiro explica que as doenças respiratórias se intensificam no inverno, não apenas pelo clima frio e seco, mas também pela permanência das pessoas em lugares mais fechados. A pneumologista Roberta Fittipaldi, 37 anos, do Hospital Israelita Albert Einstein, confirma a prevalência de doenças respiratórias em grandes centros urbanos, principalmente
em meses mais frios. “Nossas vias aéreas não são acostumadas com o tempo frio, nem com o ressecamento, por isso são aquecidas pela temperatura corporal e também naturalmente umidificadas pelo corpo. Porém, se o ambiente externo deixar essa via aérea mais ressecada e mais fria, ela perde seu mecanismo natural de defesa e assim a pessoa se torna mais suscetível a infecções virais”. A médica afir-
os dois. Ela explica que já teve várias crises que resultaram em internação. “Sempre tenho crises quando ocorre mudança de estação. A poluição piora muito, é notável, quando saio de São Paulo não fico mal”, acrescenta. Quando se trata de saúde pública, na opinião de Rodrigo, as pessoas costumam procurar os postos de saúde apenas quando estão doentes, e esse conceito deve ser quebrado pela
Rodrigo Cataneo garante o atendimento gratuito indiscriminadamente
mou que, no inverno, predominam as doenças virais, com cuidados maiores para o vírus da gripe, que tem variantes muito perigosas, especialmente em populações idosas. A passagem para a primavera também pode ser prejudicial para pacientes que tenham alguma doença alérgica, como asma ou rinite, pois as mudanças de temperatura e de umidade relativa do ar podem piorar o caso. Roberta explica que não existe diagnóstico específico para um certo poluente inalado. A única certeza, segundo ela, é que um paciente com uma doença pulmonar já existente pode ter sua condição exacerbada. Esse é o caso da estudante Mariana Augusta Federzoni, 16 anos, diagnosticada com asma e bronquite desde
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população, que deveria procurar o serviço para se manter saudável. “Se todas as pessoas tivessem esse conhecimento, os postos de saúde não estariam tão cheios quanto hoje estão, a gente só atenderia os casos de doenças agudas. Os postos ficam lotados e as pessoas pegam uma recepção cheia de gente com todo mundo trocando o mesmo ar”, conclui. Roberta conta que há pouco tempo voltou de um congresso europeu no qual a uma das discussões foi sobre a importância da tecnologia na luta contra a poluição atmosférica na saúde das pessoas. Ela não tem muitas expectativas para a adoção de tal sistema no Brasil, uma vez que, segundo ela, o país ainda engatinha no controle da poluição ambiental.