Narrativa - ed. 23

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EDIÇÃO 23 - 2021-1

REVISTA LABORATÓRIO DA DISCIPLINA GRANDE REPORTAGEM

Pajé do jornalismo jornalismo


CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS


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Sobre amor, perda e recomeço Por Isabela Ferreira Aranda, Mateus Ribas Bernardes e Renata Pereira Catrinacho

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Sem procurar o porquê

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Pajé do jornalismo

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Corinthiano em cada detalhe

Por André Casé

Por Isabela Minelli e Fernanda Gasel

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Um racismo pouco falado Por Zeinab Bazzi

Por Ana Luiza Xavier

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Olhares que se comunicam Por Beatriz Dias e Mariana Carvalho

REVISTA-LABORATÓRIO DA DISCIPLINA GRANDE REPORTAGEM

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Reitor: Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Chefe de Gabinete: Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte Pró-reitor de Controle Acadêmico: Prof. Dr. Wallace Tesch Sabaini Pró-reitor de Extensão e Cultura: Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida Pró-reitora de Graduação: Profa. Dra. Janette Brunstein Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto Pró-reitor de Planejamento e Administração: Prof. Dr. Luiz Carlos Lemos Júnior

ANO 15 - EDIÇÃO 23 - 2021-1 PERIODICIDADE SEMESTRAL CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS Diretor: Prof. Dr. Rafael Fonseca Santos CURSO DE JORNALISMO Coordenador: Prof. Dr. André Santoro SUPERVISOR DE PUBLICAÇÕES Prof. Dr. José Alves Trigo EDITORA

Profa. Dra. Patricia Paixão


CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS


Sobre amor, perda e recomeço Carlos e Renata adotaram Karina, após terem que se despedir do pequeno Pedro, com apenas 1 ano e 8 meses Isabela Ferreira Aranda, Mateus Ribas Bernardes e Renata Pereira Catrinacho

Crédito/Arquivo Pessoal/Renata e Carlos

J

unho de 2001. Em uma reunião de amigos, num bar da região de Santo André, no Grande ABC paulista, Carlos Biagini, 22 anos, coordenador de um grupo de jovens na Paróquia São Bento, demonstrava interesse por uma garota de pele clara, cabelos lisos, na cor castanho escuro, lábios rosados e maçãs do rosto bem definidas. Os olhos brilhantes e oblíquos, no rosto que não nega a descendência turca, sobretudo pelos traços marcantes do nariz, vire e mexe detinham-se em Fernanda Alcantara, 18. No entanto, o jovem começou a conversar com outra menina. Essa era um pouco mais velha e seus cabelos, também em tom escuro, possuíam cachinhos nas pontas. Seu nome era Renata e ela tinha 20 anos. A jovem não fazia a menor ideia de que o garoto com quem conversava, na verdade, tinha grande afeição por Fernanda, sua irmã. A conversa durou horas, fazendo com que eles percebessem que tinham muito em comum. Como a caçula iria dormir na casa de uma amiga, o combinado era o pai de Renata buscá-la no bar. Mas Carlos insistiu em dar uma carona. “Deixa que eu te levo.” No fim, ela aceitou voltar com ele para casa, mas nada aconteceu. No dia 14 de julho do mesmo ano, depois de quase um mês de conversas, surgiu o primeiro beijo. O pedido oficial de

Carlos e Renata na fase do namoro.

namoro veio pouco tempo depois. Anteriormente, o jovem planejou com seus familiares uma brincadeira, para dar um susto em Renata. Explicou para a garota que para fazer parte de sua família era necessário que todos seus parentes concordassem com a decisão. Por meio de uma votação em papel, todos escreveram “não”. A situação deixou a menina envergonhada e sem entender o porquê. Após muitas gargalhadas, tudo ficou esclarecido. Diferente do que ocorreu nesse momento em família, na noite do pedido estavam somente os dois em um restaurante. Carlos solicitou que o garçom levasse

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à mesa um botão de rosa colombiana vermelha. No interior da flor havia um anel. Ele também entregou uma carta romântica, com o pedido. A resposta ficou evidente pelas lágrimas de felicidade no rosto de Renata. Carlos encara a companheira como um presente divino. Durante uma temporada de verão, em que estava na praia de Pitangueiras, no Guarujá, decidiu nadar até uma pequena ilha bem conhecida pelos banhistas. “Vou até aonde dá pé”, pensou. A maré acabou subindo e ele, míope e sem óculos, não enxergava nada. Foi aí que começou o desespero. Enquanto nadava para voltar, o


Renata. A condição financeira não era boa, mas Carlos afirma que até hoje há pessoas que comentam sobre a festa. A quantia arrecadada com a clássica brincadeira da gravata foi de R$ 534,00, dinheiro que os ajudou durante a lua de mel. A amizade de Carlos com a atendente da companhia de turismo CVC garantiu ao casal todos os passeios, de forma gratuita, durante sete dias hospedados em Natal, em um resort. No início da viagem, uma guia os deixou em último lugar da fila de atendimento. Sem entender o que estava acontecendo, os dois agiram como foi solicitado. Posteriormente, ao atendê-los, a mulher contou que era apenas uma brincadeira e que eles eram clientes VIPs. Eles haviam sido presenteados pela companhia com um pacote todo gratuito, sendo recebidos em um ambiente todo decorado. Flores, champagne e um quarto arrumado de maneira especial faziam parte da recepção acolhedora. A trajetória profissional dos dois seguiu caminhos diferentes. Carlos é jornalista e Renata, formada em Fisioterapia, atuou grande parte do tempo como bancária. Atualmente, é aposentada pelo INSS, por conta da sua artrite reumatoide. A vontade de ter filhos sempre existiu, porém, devido ao problema de saúde de Renata, o remédio, que devia ser tomado, provocava aborto. Seria necessário ficar um longo período sem ingeri-lo, mas as dores falavam mais alto. Então,

veio a ideia da adoção. No início, Carlos ficou reticente com a proposta, por haver traumas sobre o assunto em sua família. Entretanto, depois de um tempo, Renata conseguiu cativá-lo. Entre muitas questões burocráticas, esperaram três anos na fila para adotar uma criança. Em uma terça-feira, dia 26 de junho de 2016, Carlos estava trabalhando. Às 14h26, o telefone tocou. “Olha apareceu um bebê. Eu queria saber se vocês têm interesse. Só que vocês precisam estar aqui até umas 17h”, disse a assistente social. Carlos estava na Oscar Freire, próximo à região central da capital paulista e, a partir daquele momento, começou uma maratona até a cidade de São Caetano, no ABC. Subiu a Rua Augusta, pegou um ônibus, um metrô e quase morreu de cansaço. Chegou em casa e foi direto para o Fórum, onde soube da história de Pedro. No dia seguinte, foram para o abrigo e conheceram aquele bebê, que tinha apenas um mês de vida. Ao pegar a criança no colo, um misto de emoções tomou conta de Carlos. “Você pensa: ‘nossa, ele vai ser meu filho’. Não é fácil, sabe? Não é algo que você estala o dedo e surge um sentimento do nada.” Em apenas quatro dias, tornaramse pais. Não tiveram uma preparação de nove meses, como em uma gestação - foi tudo muito corrido. De qualquer forma, cada evolução era comemorada e até os mesversários Crédito/Arquivo Pessoal/Renata e Carlos

cansaço foi se acumulando até ele decidir fazer uma prece. “Meu Deus, me ajude! Eu não quero morrer aqui em Pitangueiras”, implorou. Pediu a Deus que colocasse uma mulher religiosa em sua vida, caso saísse bem daquela situação. Seu clamor foi atendido. Assim como fez o papa João Paulo II ao chegar no Brasil, Carlos beijou a areia ao chegar em terra firme. Renata, também pertencia a um grupo de jovens católicos, mas da Paróquia São Francisco de Assis. No dia em que se conheceram no bar eles tinham voltado de suas igrejas. Brigas não faziam parte do namoro dos dois. Muito menos os ciúmes. Pela afinidade, a ideia de casamento começou a fazer parte dos planos do casal. Em 2005 decidiram dar o próximo passo no relacionamento. A oficialização do noivado aconteceu na casa de Gerusa, mãe de Renata. O casamento, enfim, tornou-se realidade dois anos depois. A cerimônia aconteceu na Paróquia São Francisco. O padre presenteou o casal com as decorações. A escolha do vestido de Renata foi um momento difícil, não pela questão da busca de modelos, pois ela não tinha grandes pretensões na época. O problema foi o fato dela sofrer com uma artrite reumatoide. Era necessário fazer o uso de corticoides que causavam inchaço em seu corpo. Carlos sempre a apoiou, deixando claro que isso não os impediria de viver a união que tanto sonhavam. No momento em que ela entrou na igreja, com seu vestido branco, Carlos sentiu enorme emoção. Após as portas se abrirem, não segurou as lágrimas. Em sua mente se passaram todos os momentos difíceis que eles superaram. A festa de matrimônio contou com 200 pessoas, que foram invitadas com convites feitos pelo próprio casal. A decoração das mesas, compostas por arranjos de flores em tons rosados, ornamentava o ambiente. Nas cadeiras e mesas foram usados tecidos na cor salmão, a preferida de

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Crédito/Arquivo Pessoal/Renata e Carlos

eram celebrados. O amor de Carlos e Renata por aquela criança aumentava a cada dia. Tudo correu bem até 28 de janeiro de 2018. No dia anterior, a família havia tido uma noite agradável em uma pizzaria, para comemorar o aniversário de Renata. Voltaram para casa, felizes, e foram dormir. Até que gritos de desespero acordaram Carlos. “Fui correndo e quase quebrei o dedão do pé”, lembra. O menino não estava respirando. A decisão mais óbvia era ir ao hospital, mas uma parada cardíaca em Pedro retardou a ação. Ligaram para a emergência. A ligação caiu durante o atendimento. Por sorte, Renata sabia fazer respiração boca a boca. Um momento de alívio. Pedro voltou a respirar. Correram em direção ao carro e rapidamente chegaram no Hospital São Luís, mas o menino acabou falecendo em apenas 6 horas, com 1 ano e 8 meses. Três dias depois, descobriram que Pedro tinha uma variação perigosa do vírus influenza (H1N2). O garoto teve uma jornada breve com seus pais, mas intensa. Conheceu o mar, foi para o interior e até chegou a ir ao retiro da Igreja. Gostava muito do Homem-Aranha e era torcedor do Palmeiras. No hospital, enquanto tentavam reanimar seu filho, Carlos andava de um lado para o outro. Renata desmaiou e precisou ser atendida. “Não conseguia nem rezar, desaprendi. Me ajoelhei na porta do quarto e clamei a Deus. Eu tentava rezar, mas não me recordava de como eram as orações”, lembra. Metade da comunidade da igreja estava presente naquele momento para dar força ao casal. A dor era tamanha, fazendo com que todos chorassem juntos pela perda da criança. Havia mais de 300 pessoas no velório. Apesar da forte comoção, Carlos conseguiu expressar algumas palavras em homenagem ao filho. O momento foi marcado por louvores a Deus e uma salva de palmas para o menino. Carlos prometeu a Pedro que ele e a mulher iriam ficar bem. Contudo,

Carlos e Renata no aniversário de 3 anos de Karina.

depois do enterro, a chegada em casa foi dolorosa. Durante os primeiros dias, os dois não paravam de chorar. Carlos chegou a ficar um mês afastado de seu serviço. Apesar de tudo, não se revoltou com Deus em nenhum momento. Compreendeu que seu filho teve a chance de ser curado da rejeição que teve ao nascer. “Eu lamento essa curta trajetória, mas nunca senti revolta não.” Além da fé, o que ajudou muito o casal foi o tratamento com um psicólogo especialista em luto. Felizmente, Carlos e Renata não desistiram de viver e logo envolveram-se em um novo processo de adoção. Um ano depois da morte de Pedro, perceberam que estavam suspensos da fila de adoção, mas conseguiram ser reavaliados. Em agosto de 2019, chegou Karina, com 1 ano e 8 meses. Coincidentemente, essa era a idade que o Pedro tinha quando faleceu. Para o casal, isso foi um sinal. A história da menina é um pouco mais complicada. Ela havia passado por um processo de adoção ilegal. O procedimento de instituição familiar

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não tinha sido finalizado, portanto existia o risco de ela ter contato com a família biológica - exatamente o que o casal não queria. Independente dos obstáculos, decidiram encarar a oportunidade. O processo de aproximação ocorreu em etapas. O casal foi diversas vezes ao abrigo até que a menina se acostumasse. Precisaram passar dias brincando com ela, dando mamadeira, banho, colocando-a para dormir até que pudessem sair com ela e ficar um final de semana. Ficaram felizes quando puderam levá-la para casa. No mesmo dia, ligaram e avisaram que Karina teria que voltar. Um promotor não tinha conhecimento da situação e cancelou a decisão Mas em poucos dias conseguiram que Karina retornasse para casa. Dessa vez, já estavam com a guarda provisória e até hoje estão à espera da definitiva. Nesse momento de pandemia, a família conseguiu se aproximar cada vez mais. Carlos e Renata estão muito satisfeitos em ver a evolução da filha. Para eles, todo dia é uma alegria, uma grande vitória.


Pajé do jornalismo A trajetória de Washington Novaes, um dos maiores nomes da reportagem ambiental brasileira André Casé

A

ssim que Virgínia Augusta colocou os olhos em Washington Novaes, em uma festa no Rio de Janeiro, na década de 70, ela literalmente desmaiou de emoção. Aquele era o primeiro encontro entre os dois e havia muita expectativa de ambos, já que a rede de amigos de Washington e Virgínia vivia dizendo que eles precisavam se conhecer. Desastroso? Para alguns sim. Para eles, de jeito nenhum. Após acordar do estado de inconsciência, Virgínia viveu um grande romance com um dos maiores nomes do jornalismo ambiental brasileiro. Uma história de amor que durou até 24 de agosto de 2020, quando Washington faleceu. Os dois completariam 50 anos de casados. Tiveram dois filhos: Pedro Novaes e João Novaes. Irmãos que se juntaram aos outros dois rebentos do primeiro casamento do jornalista, com Maria do Carmo Camargo Pascoal: Marcelo

Novaes e Guilherme Novaes. Após complicações provenientes de uma cirurgia para a retirada de um tumor no intestino, o pajé da família Novaes se foi. Encerrou, em Aparecida de Goiânia, o ciclo que começou em Vargem Grande do Sul, interior de São Paulo, em 3 de junho de 1934. Washington Luís Borges Novaes era filho de Henrique Brito Novaes e de Arlinda Rodrigues Novaes, espanhola de nascimento, que veio ao Brasil aos 5 anos de idade. Após sua chegada na terra tupiniquim, Arlinda só voltou a colocar os pés no país de origem em 1990, ano em que o filho recebeu o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha, pela série de artigos “A Amazônia e o Futuro da Humanidade”. Dona Arlinda assistiu ao filho receber o prêmio diretamente das mãos de Juan Carlos I, pertencente à Dinastia Bourbon, Rei da Espanha entre 1975 e 2014. Mas esse foi apenas um dos muitos

prêmios nacionais e internacionais que o “ecochato” (como era ofensivamente chamado por alguns opositores da pauta ambiental) recebeu em sua passagem pela Terra, pelos registros que fez dela. Dois anos depois, foi agraciado com o Prêmio Esso Especial de Ecologia e Meio Ambiente, pela série de artigos sobre a Eco-92, publicada no Jornal do Brasil. Dal Marcondes, jornalista e editorchefe da Agência Envolverde, citou o nome de Aloysio Biondi 16 vezes, ao longo de uma entrevista de 45 minutos, cujo o propósito era me ajudar na produção desse texto. Tal fato despertou minha curiosidade para entender a relação que Biondi teve com Novaes. Segundo João Novaes, filho mais novo do “Pajé do jornalismo”, eles eram próximos desde muito novos, trabalharam juntos na Folha de S. Paulo no início de carreira, mudaram para o Rio de Janeiro e ainda trocaram, também

Crédito/Arquivo da família Novaes

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Crédito/Reprodução/TV Anhamguera

A cultura indígena, tão valorizada por Washington Novaes, influenciou a criação dos filhos do jornalista.

juntos, o caos urbano pelo cerrado goiano. Washington Novaes chegou ao estado do centro-oeste brasileiro com a missão de dirigir a redação do Diário da Manhã. Biondi voltou posteriormente à selva de pedras do Sudeste, mas Novaes permaneceu na terra das veredas de buritis, vivendo ali seus últimos 30 anos. “A gente cresceu nesse lugar, uma selva inexplorada no fim de Goiás”, diz João, ao se recordar com carinho da infância na Fazenda Encantado, de Batista Custódio, dono dessa terra e do jornal em que o “ecochato” assumiu o cargo máximo. Novaes herdou do cerrado uma das características mais difíceis de se obter sem crescer por décadas em uma determinada região: o sotaque. Dal Marcondes diz se recordar de seu avô, quando lembra do jornalista Washington Novaes: “O velho Pergentino Sena era um dentista do interior de Goiás. Era o cara que socorria as pessoas quando tinham problemas dentários. A dor de dente, que é uma das piores dores que existe, ele tratava e pronto. Nunca perguntava se a pessoa tinha dinheiro para pagar ou não”. Se pudesse descrever Novaes em uma

única palavra, Dal escolheria o termo generosidade, característica presente nas atitudes, somadas ao sotaque e ao tom de voz acolhedor, que fazem ele lembrar de seu avô. Já João, ao tentar descrever o pai em uma única palavra, não consegue segurar as lágrimas e diz: “Meu ídolo”. Embora fosse um “workaholic”, Novaes sabia dividir o tempo entre as idas a São Paulo, para gravação na TV Cultura, e a criação dos quatro filhos. E quando não tinham a presença do pai em casa, aprendiam vendo as lições de reciclagem e educação ambiental que ele dava no programa Repórter ECO. Outro aspecto é a influência da cultura indígena no lar dos Novaes, em Goiânia, por meio de artesanatos, que Washington guardava pela beleza e riqueza simbólica. Ainda estão presentes na chácara da família, bem como toda a memória e significados. Mas esses presentes artesanais eram pequenos detalhes perto da relação do jornalista com as lideranças indígenas do Xingu, os pajés. Extremamente respeitado e bem acolhido pelos Kuikuros e pelos Uaurás, Washington foi um dos primeiros documentaristas

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a pagar direitos de imagem, a respeitar antropologicamente a cultura do índio e a compreender o conceito de representatividade. Em uma viagem de avião, ao retornar do Xingu, encontrou o antropólogo Darcy Ribeiro. Ao sentarse ao lado dele, sem precisar dizer uma só palavra e no intuito de contar o que viu e viveu com os povos indígenas, foi surpreendido pelo antropólogo que disse: “Eu já sei. Essa experiência no Xingu mudou você, não foi?”. Em 1985, Novaes estreou o documentário “Xingu, Terra Mágica” na extinta TV Manchete, com o qual elevou a voz, por meio das lentes do audiovisual, do índio brasileiro. Vinte e dois anos depois, retornou ao mesmo local, mas dessa vez não saiu com os olhos brilhantes e encantados, mas sim marejados e aflitos ao documentar “Xingu, Terra Ameaçada”, que estreou em 2007 pela TV Cultura. “Quando você sobrevoa o Parque Indígena do Xingu, você vê as lavouras de soja. Elas batem na divisa do parque. Há 50 anos, quando aquilo foi criado, toda a região era uma imensa floresta”, disse Dal Marcondes, que foi um dos convidados por Novaes a documentar com ele o


avanço da agricultura, do desmatamento e o impacto para os povos locais. Três anos depois, sem as lentes de Novaes, a Usina de Belo Monte foi construída na região, interrompendo cerca de 100 quilômetros do fluxo do rio Xingu, diminuindo o índice de oxigênio na água e, por consequência, matando os peixes da região, principal fonte de alimento de pescadores e indígenas. Os Kuikuros e os Uaurás ainda não tinham essa preocupação em 2007. Estavam ansiosos para assistir à estreia do documentário, que seria exclusiva para os povos do Xingu. A equipe de jornalistas viajou de São Paulo até o Parque Indígena do Xingu em um avião da FAB (Força Aérea Brasileira). Sem poltronas, a aeronave não podia pousar na alta floresta e nem dentro do parque, porque o aeroporto não era certificado. Pegaram outras duas aeronaves menores até chegar o mais próximo da aldeia possível. Foram recebidos com as comidas locais e por uma estrutura montada com barracas, onde viriam a dormir no cair da madrugada. Naquela noite, foi montado um telão ao ar livre e os criadores do documentário assistiram ao filme ao lado dos personagens da obra, que

tinham as mais diversas reações ao se reconhecerem na tela. As lideranças indígenas possuem tanto respeito por Washington Novaes, que chegaram a lhe contar um grave problema social interno que abalava as diferentes aldeias de maneiras semelhantes: a falta de vontade dos curumins em se tornar xamãs. O processo de transição é longo e demanda esforço por parte do jovem. Para as culturas indígenas, a figura do pajé concentra todo o conhecimento da aldeia, seja em plantas, animais, ervas e medicamentos, seja no culto e na forma de cultuar os quatro elementos. O pajé é uma biblioteca viva e para se tornar um é preciso anos de aprendizado. O documentário foi tão bem recebido que Novaes foi um dos raros jornalistas a ser o centro do programa Roda Viva, na TV Cultura, no dia 30 de julho de 2007. “Eu olhava para o Washington, quando era mais novo, como um semideus, um cara que estava lá em cima e eu aqui garimpando letras”, disse Dal. O jornalista, que criou o jornal Envolverde em 1998, viu uma matéria de Washington Novaes no jornal O Estado de S. Paulo em uma segundafeira, três semanas após o lançamento do seu projeto, citando-o como um

projeto importante e que precisava ser fortalecido. “Naquele momento eu tive a real percepção de que o Washington me via. Independentemente de qualquer coisa, ele me enxergava.” João Novaes presenciou a transição da máquina de escrever para os computadores e a dificuldade do pai em lidar com as novas tecnologias. Mas a chegada da era da informação não tirou do velho Novaes seus dons de armazenar conhecimento. “Meu primeiro trabalho era engraxar os sapatos dele, depois foi lavar carro e depois eu virei arquivista dele. Ele tem um arquivo gigantesco de papel”, disse João, que completou explicando: “Qualquer coisa que você falar de água, biotecnologia, biopirataria, você encontra ali. Ele organizava tudo por pastas. Tinha um Google dele”. Mas antes de recortar os papéis e dividi-los em temas, João foi alfabetizado pelos jornais. Aprendeu a escrever o próprio nome no canto superior direito do jornal em que o pai assinava. Já adulto, ele lembra do seu livro de poesias “Sublimações, a imortal tragédia do amor mortal”, lançado em 2017, que teve a correção e revisão do pai. Ao ser questionado sobre ter um editor-chefe

Crédito/Reprodução/TV Anhanguera

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Crédito/Claudio Tavares/Instituto Socioambiental

dentro de casa, riu e disse “O editor. O editor. O editor” repetidamente, perdendo entonação ao longo da fala. “Em Milão, nós estávamos fazendo uma gravação em uma usina que gerava energia a partir do lixo orgânico, que a propósito, fede horrores, porque é gás metano usado para produzir energia… Gravamos lá dentro e depois fomos pegar um táxi para voltar ao hotel, para não se perder e não errar o caminho. Afinal, não tinha Waze, né? O taxista nos expulsou de dentro do táxi, porque a gente fedia. Fedíamos muito”, disse João entre o riso da saborosa lembrança e o olhar de quem lida com uma cicatriz ainda aberta. No dia em que Washington Novaes faleceu, João foi o responsável por avisar a família sobre a morte do pai. Dal Marcondes tinha contato virtual frequente com Novaes, mas o viu presencialmente pela última vez em 2010, no Rio de Janeiro, durante a cobertura da Rio+20. Ficaram horas trocando figurinhas da vida e conversando na redação provisória montada no Riocentro. Dal conta, aos risos, que certa vez Novaes foi pedir um aumento para a redação do Estadão, mas desistiu porque, ao ver o nível de estresse do setor financeiro do jornal, preferiu “garantir o pichulé que já estava ganhando, do que sair de lá sem nada”. Essa foi uma das últimas lembranças que o editor-chefe da Agência Envolverde guarda do seu “semideus” do jornalismo. “O Washington é um dos gigantes do jornalismo brasileiro. Muitos desses caras que hoje estão no poder odiavam, odiariam e odeiam aquilo que o Washington fazia, porque o Washington era um grande brasileiro, era um cara com respeito enorme pela cultura, pelo patrimônio natural e um crítico feroz da desigualdade, da miséria, da ganância”, conclui Dal ao falar da importância dele para o jornalismo nacional. Dentre as incontáveis lembranças que João carrega do pai, o ensinamento indígena sobre a existência e a morte é um dos mais fortes e está presente na

Para Dal Marcondes, da Envolverde,“Washigton é um dos gigantes do jornalismo brasileiro”.

carta escrita por ele em homenagem a Washington. “Carta ao pajé-sacaca”, escrita no final de setembro de 2020. “A gente é poeira de estrela, a gente já foi tudo e ainda vai ser tudo no universo”, afirma João, ao relembrar

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um dos ensinamentos do pai. E como uma estrela, Washington Novaes reside no céu, mas seu legado brilha na Terra para os que aqui ficam e o admiram, como os Novaes, os jornalistas e os Kuikuros.


Corinthiano em cada detalhe Vitor Guedes casou no Parque São Jorge, tem um filho chamado Basílio e escreveu um livro sobre sua paixão pelo Timão

Crédito/Arquivo pessoal/Vitor Guedes

Vitor Guedes com a esposa Lays e o filho Basílio. O nome do garoto é uma homenagem ao craque corinthiano.

Isabela Minelli e Fernanda Gasel

E

que Gooooool. Coringão na frente. Olha o espetáculo, olha a emoção e a motivação. Olha a festa no Brasil. Você enche de lágrimas os olhos desse povo. Você enche de felicidade o coração desta gente. Corinthians, o grito sufocado de um povo. O grito do fundo do coração de um torcedor. Depois de 20 anos, a Fiel está explodindo. 22, 23, duas dezenas de anos na cabeça desse povo, tumultuando meu povo. O Corinthians, que, na explosão, exibe o maior espetáculo do território brasileiro. Corinthians, você acima de tudo é a alma deste povo. Você liga a imagem do sorriso e a felicidade

das raízes do povo, Corinthians. Hoje a cidade é do povo. Tem que ter festa alvinegra. Tem que cobrir as ruas da cidade de paixão e loucura. Com felicidade que desabrocha e contagia o povo pelas avenidas. Hoje é o verdadeiro dia do povo. Hoje mais do que nunca a cidade é do povo. Festa do povo. Basílio, 37 minutos do segundo tempo. Doce mistério da vida este Corinthians. Inexplicável Corinthians. Vai buscar alegria no fundo da alma do povo. Foi assim que Osmar Santos narrou o gol de Basílio, 8 minutos antes do fim da partida contra a Ponte Preta. Gol que deu ao Corinthians o título de Campeão Paulista de 1977. Oitenta mil pessoas no estádio invadiram o campo

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após a vitória, um êxtase que durou mais de uma hora no meio do gramado. A comemoração se estendeu às ruas da cidade. Os corinthianos lotaram bares, restaurantes, espalham-se pelo Parque São Jorge, pelo centro de São Paulo, pelo Bixiga. Aquele jogo ficou marcado na história da nação corinthiana, especialmente na vida de Vitor Guedes, que nasceu no ano do título, no dia 26 de janeiro, 8 meses e 17 dias antes da data do gol, e cresceu ouvindo sobre a importância daquela partida. Loiro, de cabelos lisos e olhos claros, é filho de mãe são paulina e pai corinthiano. Saiu da maternidade em São Paulo vestindo o manto do Corinthians. Desde então, não se lembra de um dia em que não foi torcedor da Fiel. O amor pelo futebol vem de


família. Seu pai é português, nasceu em 1950 e chegou ao Brasil com 4 anos. Desde então tornou-se torcedor do clube alvinegro. Em 1977, o Sr. Viriato ganhou dois presentes: o nascimento do primeiro filho e pela primeira vez viu o Timão ser campeão. Segundo Maria Dolores Ruiz, mãe de Vitor, o menino já nasceu com a bola nos pés. Antes mesmo de andar, aprendeu a chutar. Sua irmã, Marília Ruiz, nasceu um ano depois. Sair do hospital com a camisa do time do pai tornou-se uma tradição da família. Marília, que assim como Vitor e o irmão Marcos é jornalista esportiva (atua na Bandsports TV), nasceu antes da hora, mas isso não foi um empecilho. Viriato desceu na loja do hospital, comprou uma camisa do Corinthians e vestiu a menina. Crédito/Arquivo pessoal/Vitor Guedes

— Vitor, para de falar isso. Você está sendo machista! — Mas, Marília, é o que acontece na maioria das famílias. Quando o pai torce para um time e a mãe para outro, normalmente o filho torce para o time do pai e a filha para o time da mãe. Você deveria ser São Paulina — São Paulina? Nunca! Vitor cresceu jogando bola. Aos 6 anos, ele e o pai saiam de casa, deslocavam-se por São Paulo de ônibus até a zona leste, para bater bola no terrão do Parque São Jorge. Lá o menino vestia sua camisa branca, shorts preto, meião e chuteira. Treinava pelo seu time. Sua vida girava em torno do futebol, como a de toda sua família. Esse era o principal assunto dos almoços de domingo. Até havia alguns palmeirenses, como a avó Cida, que ouviu um “Chupa vovó”, depois de perder um clássico contra o Corinthians. Também havia alguns são paulinos, mas a torcida alvinegra sempre foi predominante. E quem torcia para outro time tinha que ouvir as gozações e brincadeiras. “Pra mim, futebol é isso! É perder, ganhar, zoar e aguentar.” Vitor é totalmente contra o que acontece atualmente. Para ele, a geração atual não sabe perder ou ganhar. Na sua época, ir ao estádio era diversão, brincar

Vitor com os pais e os irmãos, em diferentes momentos de sua infância. A devoção ao clube alvinegro sempre esteve presente.

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fizer durante a partida pode impactar o desempenho do seu time. Final de jogo: 1 para o Corinthians, 1 para o Palmeiras. O resultado seria definido nos pênaltis. Depois de 12 anos de jejum, o Palmeiras foi campeão. O humor de Vitor mudou no mesmo instante. Após a derrota, ele se isola. Procura não transformar seu temperamento em um inferno para os outros. Engana-se quem pensa que um dia essa emoção irá mudar e ele vai parar de se importar com a derrota do time. Um dos grandes fatores que faz esse amor continuar do mesmo jeito é sua profissão, o jornalismo. No ensino médio, já sabia que seria da área de Humanas, assim como sabia que não gostaria de trabalhar em escritório. Não é uma pessoa que aguenta burocracias, não sabe lidar com papelada, é desorganizado e, por isso, queria algo dinâmico. Entrou aos 18 anos na Universidade Metodista de São Paulo. Queria trabalhar com jornalismo esportivo ou político. Sua paixão por política começou por

causa do futebol. Aos 5 anos viu surgir a Democracia Corinthiana, movimento progressista liderado por um grupo de futebolistas corinthianos, como Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon, grandes nomes do time alvinegro. Foi o maior movimento ideológico da história do futebol brasileiro. Viu esse movimento crescer e começou a pesquisar o que era democracia. Sua família é completamente de direita, porém sempre foi o filho das opiniões contrárias, e com política não seria diferente. Deixa claro que é de esquerda desde criança, e não tem medo de assumir seu posicionamento. Começou sua carreira no jornal impresso, e optou pela área de jornalismo esportivo. Foi nesse período que descobriu sua paixão pela escrita, por contar histórias. Decidiu unir a paixão pelo texto ao fanatismo pelo Corinthians e, durante a sua carreira, escreveu o livro “Paixão Corinthiana”. Durante dez anos foi colunista do “Agora São Paulo”, jornal popular do

Crédito/Arquivo pessoal/Vitor Guedes

e zoar a torcida do time adversário. Ele sempre ouviu os jogos, poucos eram televisionados. Sua família ligava o rádio e todos acompanhavam a partida. No dia seguinte, chegava eufórico da escola, ligava a televisão e assista aos gols. Seu Viriato tinha medo de levar as crianças ao estádio. Depois de muito insistir com o pai, em 1987 Vitor conseguiu o feito. Foi acompanhado de seus primos. O Pacaembu estava lotado. Era dia de clássico, Corinthians e Palmeiras. Todos vibravam, de cada um dos lados era possível ouvir o hino da torcida. 3 a 0 para o Corinthians. Esse jogo ficou marcado na vida do jornalista. “Foi o primeiro Corinthians e Palmeiras que eu fui, é uma rivalidade muito maior que as outras. É uma disputa que me deixa nervoso, fico puto quando o Corinthians perde. Quando ganha, fico uma semana rindo que nem idiota, nada me abala.” Vitor já viu o Corinthians ser campeão e cair para a segunda divisão. Acompanha o time sempre, como torcedor e como jornalista. Cobriu diversos clássicos, viajou para o Japão para reportar a partida do alvinegro contra o Chelsea, mas nada se compara ao que sentiu no primeiro clássico que assistiu, quando era novo. Dia de jogo, para Vitor, é todo o dia. Mas quando seu time tem uma partida importante, sua vida muda. Foi assim naquele 8 de agosto de 2020. Acordou e logo olhou para a estátua de São Jorge, padroeiro do Timão, que tem na cabeceira. Ao se arrumar para o trabalho, certificou-se de escolher as cores certas. Não usa verde nem por um decreto. Na redação, uma figura de São Jorge em seu computador o acompanha. Ao chegar em casa, no final da tarde, estava nervoso e apreensivo. Foi se trocar e colocar sua vestimenta da sorte: uma camisa do Nelson Mandela, que comprou na África do Sul. A blusa é preta e traz o escrito “Mandela” nas costas. Depois do jantar, sentou-se do lado direito, mesmo lugar que se sentou nos últimos dois jogos que o Corinthians venceu. Ao seu lado, algumas estátuas, medalhas e imagens de São Jorge. O jogo começa. Vitor acredita que tudo o que ele

Filho do jornalista sendo batizado pelo jogador Basílio.

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grupo Folha de S.Paulo, que deixou de circular em 28 de novembro de 2021. Todos os sábados publicava uma crônica. Decidiu reuni-las e juntá-las em um livro. Apesar do nome, a obra escrita por Vitor não trata do clube em si. É um livro sobre a relação pessoal dele com o time. São histórias de amor e de cotidiano. “O time aparece como plano de fundo.” Muitas dessas crônicas são homenagens ao seu único filho, Basílio, e à sua mulher. Vitor, que hoje atua como colunista do portal UOL (também do Grupo Folha), é casado com Lays Guedes. Ruiva de olhos castanhos, ela tem como marca um sorriso gigante e, assim como o marido, é corinthiana. O jornalista sempre deixou muito claro para a esposa seu amor pelo futebol. Lays admira a devoção do companheiro pelo clube alvinegro. Não se importou com o fato de a festa de seu casamento ser realizada no Parque São Jorge. Não bastava ser lá, o casal entrou na cerimônia ao som do hino do timão. Vitor sempre soube qual seria o nome do seu filho e avisou para Lays desde que eles começaram a namorar, em 1997.

decidido o nome do meu filho. Ele vai se chamar Basílio, igual o jogador. — Tá doido? Meu filho não vai ter esse nome não, vão zombar dele na escola. Até lá você muda de ideia.

— Lays, eu sempre avisei a todas as minhas namoradas que eu já tenho

Vitor estava certo. O filho Basílio, loiro igual ao pai, com os olhos

Depois de 11 anos de relacionamento, eles decidiram ter um bebê. Ela sempre quis um menino, mas estava apreensiva com a história do nome. — Eu não vou nem discutir. Eu te avisei em 1997 que, se a gente tivesse um filho, ele se chamaria Basílio. Eu quero esse nome desde os meus 11 anos. Você vai estar na mesa de parto e eu vou sair para registrá-lo. — Vitor, mas não é por eu não gostar do nome, ou por não querer fazer a homenagem, a questão é se ele vai gostar. Você não acha que ele pode se sentir mal por ter um nome tão diferente? — Na minha família outras pessoas têm nome de jogador e todo mundo ama. O jogador Basílio marcou o ano em que nasci, marcou um título muito importante, marcou a nação corinthiana. Ele vai gostar, e vai ser corinthiano igual o pai, pode confiar.

Crédito/Arquivo pessoal/Vitor Guedes

Vitor entrevistando o jogador Zé Maria.

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castanhos da mãe, e dono de um sorriso encantador que aparece todas as vezes em que se refere a Vitor, adora o nome que tem e é fanático pelo Corinthians. O jogador Basílio acabou se tornando seu padrinho. Vitor fez o convite e o craque aceitou. O batizado aconteceu na Capela São Jorge. “Essa é a minha maior felicidade, saber que meu filho ama o nome que eu escolhi e torce para o mesmo time que eu. Quando batizei o Basílio, cheguei a pensar: ‘e se ele não for corinthiano’? Mas, no fundo, sempre soube que seria.” Vitor se mudou com a família para a zona leste de São Paulo, no bairro do Belém. A vida inteira sabia que, quando comprasse uma casa própria, seria nessa região, o lugar que para ele desde a infância, mesmo não morando, considerava sua casa, por conta do Corinthians. Foi na zona leste também que realizou um dos seus melhores trabalhos jornalísticos: a cobertura da construção da Arena Corinthians, do começo ao fim. Na época, ele trabalhava na BandNews FM, e foi convidado pela rádio para realizar esse projeto, o mais difícil que já enfrentou. Chegou em Itaquera quando não havia nenhum tijolo no local, cobriu todos os passos da construção do estádio, que durou três anos. A cobertura de meses e meses teve bastante repercussão. Em sua profissão nunca deixou de lado seu amor pelo time. Não esconde de ninguém que é corinthiano, diferentemente de muitos jornalistas que preferem não revelar o clube do coração. Atualmente, o jornalista, além de escrever para o Agora, participa como comentarista do programa Baita Amigos, do canal BandSports. O Corinthians tem influência na sua vida desde o nascimento. Desde a sua opção ideológica, até o lugar onde mora. Está em todos os aspectos de sua vida. Em seu filho, seu casamento, profissão, família, cotidiano, valores, prazeres e no seu jeito de ver o mundo. “Se um dia eu perder a emoção que eu sinto ao assistir a um jogo do Corinthians, é sinal de que a vida está perdendo o sentido.”


Sem procurar o porquê Marco Túlio Lanza relembra de seu acidente, sem tristeza ou lamentos: “eu evolui” Ana Luiza Xavier

A “

Créditto/Arquivo Pessoal/Marco Túlio Lanza

o futuro atleta Marco Túlio. Seu treinador e amigo, Adolfo Guilherme”. A dedicatória está presente no livro “Voleibol à Beira da Quadra”, escrito pelo extreinador da equipe masculina de vôlei do Minas Tênis Clube. Adolfo morreu sem saber que Marco, seu aluno, não se tornaria um atleta, mas herdaria a perseverança de resistir diante das dificuldades. Marco Túlio Lanza nasceu no dia 18 de fevereiro de 1971 e, desde pequeno, subia no telhado para empinar pipa ao som dos gritos de sua mãe, pedindo para que descesse. Sua infância foi toda na casa dos avós maternos, aos cuidados e criação de Elsa, amiga e funcionária da casa. Como toda criança, precisava gastar energia. Era tão agitado que os pais o colocaram em todos os esportes possíveis. De uma forma natural e espontânea, puxava os amigos para as brincadeiras, pegava a bola e dividia os grupos. Sempre o protagonista da turma. No ensino médio, conseguiu uma vaga no colégio técnico da cidade. Não foi fácil. Teve que deixar o time do professor Adolfo Guilherme. Sem o controle dos monitores do colégio antigo, matava aula para jogar bola e baralho. Na faculdade se envolvia em tudo que era projeto. Foi responsável pela organização de festas e jogos. Teve mais um contato com o volêi e, dessa vez, o esporte lhe apresentou seu

Marco Túlio Lanza não deixou de lado as atividades que lhe dão prazer.

futuro. “Ela fazia Arquitetura e eu Biologia, na mesma faculdade. A gente jogava vôlei nos jogos universitários. Foi assim que ficamos amigos. Um dia ela me chamou para uma festa, mas desanimei quando a vi convidando outros meninos”, conta Túlio, ao falar de Adriana Serra Lanza, sua esposa

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há 26 anos. “Fui para casa. Eu estava deitado quando meu amigo me ligou.” — Cara, onde você está? — Ah, eu vim deitar. Tô em casa quase dormindo. — respondeu Túlio. — Tem gente te procurando aqui. — Quem? — A Adriana.


Créditto/Arquivo Pessoal/Marco Túlio Lanza

O menino Marco Túlio.

— Ah é? — perguntou Túlio animado. — Tô indo! Adriana e Túlio ficaram conversando por horas na festa. Ele a levou embora e o bate-papo se estendeu no carro até cinco horas da manhã, quando ficaram pela primeira vez. Namoraram por quatro anos, casaram-se em 1994 e, no ano seguinte, nasceu Letícia, sua primeira filha. Mudaram-se para Barra Mansa, no interior do Rio de Janeiro. Em 1999, tiveram outro filho, Bernardo.

O acidente Sábado, 31 de março de 2011. 14h30: Marco Túlio tinha acabado o último módulo do MBA em Agronomia na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), quando se dirigiu ao carro para pegar a estrada e voltar para casa. Já estava acostumado com a rotina de toda sexta-feira depois do almoço ir para Campinas assistir à aula da noite e a do sábado de manhã. Dirigir de volta pra casa, durante as quase cinco horas que separam Campinas de Barra Mansa, para ele,

era algo normal. Entrou no carro, colocou a carteira ao lado do câmbio automático e seu celular no compartimento da porta ao seu lado. Deu partida no veículo. 18h50: Uma chuva forte caia e seu barulho atingia o interior do carro. As gotas pesadas batiam no para-brisa, com a necessidade de acionar o limpador na velocidade máxima. Com as duas mãos no volante, Marco Túlio notou que o caminhão do seu lado, levantava uma onda de água na pista que estava muito molhada. Logo após o pedágio de Itatiaia, embaixo da passarela que liga a cidade com a rodoviária, há uma curva leve. Naquele momento, o ponteiro do seu velocímetro marcava uns 80 km/h. Começou a virar o volante para fazer a curva, mas o carro aquaplanou e, ao perder o controle, foi em direção a uma mureta de concreto. “Nossa! Vai bater na mureta”, pensou, enquanto tirava as mãos do volante e levantava as pernas, na tentativa de protegê-las contra o impacto. O carro não bateu de frente. Foi em direção à mureta, mas rodou.

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Passando dela, bateu de ré no guard rail que a sucedia. A barra se abriu e a ponta solta rasgou uma das portas traseiras do carro, invadindo o automóvel. A ponta da barra de metal atravessou com toda a força o veículo e, acompanhando a rotação do carro, saiu arrancando completamente sua porta. Quando o automóvel parou, o guard rail estava no colo de Túlio. “Vou levantar um pouco o guard rail”. Esse foi seu primeiro pensamento, em meio ao silêncio que sucedeu a batida. A barra de ferro, pesada demais, quase não se mexeu com a força que ele fez, mas o movimento mínimo possibilitou que ele visse sua perna esquerda no chão. “Nossa, foi feio o acidente. Eu não posso apagar. Se eu apagar vai ser pior.” Um homem, que morava próximo do local, aproximou-se e saiu correndo para ajudar. Outro homem, um caminhoneiro, também se aproximou ao passo que o primeiro falava para Túlio: — Cara, a perna que está embaixo da barra está sangrando muito. Assim que ouviu o comentário, o caminhoneiro tirou a própria blusa e fez um torniquete na perna que sangrava, levantou-se e dirigiu o olhar à passarela pedindo ajuda: — Precisamos de uma camisa! Alguém joga uma blusa para fazermos um torniquete! — gritava já que o outro rapaz, pego desprevenido, estava sem camisa. Um rapaz que estava descendo a escadaria da passarela, tirou sua blusa e a deu para o caminhoneiro que, rapidamente fez o torniquete na perna amputada. — O senhor está bem? Túlio respondeu que sim com a cabeça e, em seguida, pediu um celular emprestado para ligar para a


Crédito/Arquivo Pessoal/Marco Túlio Lanza

“Foco é fundamental! Você precisa definir bem uma meta”, destaca Marco Túlio, ao falar sobre como agiu para se recuperar logo do acidente.

esposa. —Adriana, aconteceu um acidente. Estou indo pro hospital de emergência de Resende, me encontra lá. Ao chegarem, os paramédicos assumiram o resgate. Um dos médicos começou a fazer perguntas e Túlio respondia tranquilo. — Vamos precisar de um maçarico para cortar a parte do guard rail que está aqui — explicou o paramédico. —Maçarico?? Não precisa não. A perna de cá já está solta — disse, colocando a perna amputada em cima da barra. Dá mais uma empurrada que eu puxo a perna direita e vocês me puxam para cima. Aí vai dar pra sair. Os médicos acolheram suas sugestões. Depois disso, o posicionaram na maca e partiram para a emergência. O caminho até o hospital não era longo, em menos de uma hora chegariam, mas os minutos, para Túlio, eram uma eternidade.

19h59: A ambulância e Adriana chegaram juntas ao Hospital de Emergência de Resende. Ela parou o carro e saiu correndo para vê-lo. Assustada e nervosa, seus olhos encheram de água. — Pode ficar tranquila, vai dar tudo certo. Eu não estou sentindo dor, está tudo bem. — afirmou o esposo, conseguindo fazer com que ela relaxasse um pouco. 22h45: Já eram quase 23h e Túlio permanecia no biombo desde a hora que chegara. Estava deitado esperando, ouvia aparelhos apitando e seus médicos discutindo: “onde está o vascular, precisamos dele para operar, não dá pra tentar recuperar a perna sem ele”. — Dra Simone! — chamou pela médica responsável por ele — Se tiver que amputar a outra perna, amputa. Só me levem logo pra mesa de cirurgia, em vez de ficar esperando esse vascular.

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No caminho da sala de cirurgia, mexia a cabeça para ver a movimentação do hospital. Olhou para o rosto da enfermeira que estava empurrando a maca e disse: — Fica tranquila. Vai dar tudo certo.

Recuperação — Ô vizinho! Bom dia! Bora acordar? No dia seguinte, Túlio já estava fazendo brincadeiras dentro da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) com os pacientes próximos dele. No domingo de Páscoa recebeu alta. Em casa, começou a pensar nas reformas que teria que fazer no lar que acabara de construir. A casa de dois andares agora precisava de elevador, rampa para cadeira de roda, ampliação das portas do banheiro e quartos. Acostumado a não ter que depender de ninguém, decidiu que voltaria a andar o mais rápido possível. A busca pela recuperação da sua independência começou e sua


urgência por liberdade o convenceu a procurar clínicas particulares. Partiu para São Paulo para uma consulta com o Dr. Marco Antônio. O médico explicou detalhadamente todos os passos da recuperação, como ela é feita e sua importância, mostrando preocupação e atenção. Créditto/Arquivo Pessoal/Marco Túlio Lanza

— Você foi muito bem operado, mas por um médico que queria salvar sua vida. Agora eu quero fazer uma operação para que você possa ter o melhor coto possível, para que você possa ter a melhora necessária para poder se adaptar a próteses — o médico explicou claramente, fazendo com que Marco Túlio entendesse e aceitasse o procedimento. Em 25 de maio, quase dois meses depois do acidente, Marco realizou a cirurgia para adaptação do coto em uma das pernas e, um mês depois, no dia 26 de junho, passou pela mesma cirurgia na outra perna. Depois dos procedimentos, seus cotos estavam prontos para receberem as próteses e ele poderia começar o tratamento de reabilitação. O fato de as sessões serem individuais foi o diferencial. Sua fisioterapeuta, Mônica, ficava dando apoio, dicas e atenção a todo momento. Em meados de setembro ele já estava com uma perna, no final do mês, com as duas. Em outubro já estava andando. — Coloca o andador para frente, dá um passo, levanta o andador, coloca ele pra frente, dá outro passo e assim vai. — explicou a fisioterapeuta, fazendo gestos e mímica, para que fosse o mais clara possível. Assim que ouviu a explicação, Marco Túlio se sentou e colocou o andador na sua frente, ficou em pé, olhou para ela, levantou o andador e saiu andando direto. — Você é doido — gritou Mônica. — Não, eu só quero andar, quero

Marco Túlio com a esposa Adriana e os filhos.

muito andar. — soltou o andador — Só um minutinho — disse saindo pelo corredor. Quando voltou, Mônica o encarou sem entender o que estava acontecendo. — Mônica, eu te amo! Depois de três meses você me fez fazer xixi em pé. Eu não aguentava mais fazer xixi sentado. — disse brincando.

Nossa conversa Durante toda a entrevista para esta reportagem, Marco Túlio, um homem grande e grisalho, sorria ao lembrar momentos da sua trajetória. Seus olhos pequenos e puxadinhos se fechavam, quando as covinhas do seu sorriso apareciam. Ele ria das próprias brincadeiras que fazia toda vez que a conversa tomava um rumo mais sério. A leveza da sua fala e seu sotaque mineiro conduziram uma conversa que poderia se estender por horas, facilmente. “Foco é fundamental! Você precisa definir bem uma meta. No meio do caminho você sabe que vai ter que desviar de obstáculos, mas sempre

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mantendo seu foco à frente”, explicou sobre como conseguiu se recuperar tão bem do acidente. Entrevistei Marco Túlio pela tela do computador, por conta da pandemia. Conversamos por duas horas e eu, que muitas vezes me distraio fácil, fiquei atenta a tudo que ele falava. A riqueza de detalhes do seu relato conquistou minha atenção. Por dias, enquanto escrevia essa grande reportagem, as frases mais marcantes da entrevista ficaram na minha cabeça. “Eu acredito muito que aconteceu, porque era pra acontecer. Encaro a vida dessa forma, sem ficar procurando o porquê. Aconteceu? Levanta a cabeça e vai embora.” Eu queria traçar a diferença, a transformação, queria entender quem era o Túlio antes e quem é o Túlio depois do acidente e, para ser objetiva, perguntei a ele sobre essa possível mudança. “De forma alguma sou a mesma pessoa. Esse acontecimento me proporcionou uma evolução de espírito e de caráter. As pessoas podem ver o fato de eu ter perdido as pernas como algo negativo, mas não penso assim. Eu evolui. Aprendi a conviver com a diversidade.”


Um racismo pouco falado Orientais sofrem desde a infância com generalizações, estereótipos e atitudes desrespeitosas Zeinab Bazzi

D

foram muito emocionais em toda a minha família”, relata. Marcia até arrisca dizer que o forte elo familiar preservado pelos japoneses é resultado das perdas que tiveram no período dos conflitos. “Meu avô, mesmo tendo tantas perdas na

Crédito/Arquivo Pessoal/Marcia Takenata

urante um passeio escolar, aos 6 anos de idade, Marcia Takenata passou por uma situação que se repetiria diversas vezes ao longo de sua vida: as monitoras insistiam em encostar em seu rosto, dizendo que ela parecia uma bonequinha. “Faziam comentários sobre mim, pegavam no meu cabelo. Quando você é uma criança, você não tem ideia do que é isso.” Hoje, aos 19 anos, a estudante de eventos sabe o quanto essa atitude é invasiva. Seus avós, tanto por parte paterna como materna, são imigrantes. Por muito tempo Marcia teve dúvidas sobre qual seria sua verdadeira identidade: se japonesa ou brasileira. “Na minha infância, nunca foi algo que eu batia no peito e dizia ‘sou isso’”, conta. O cenário mudou quando ela entrou para a militância. “Fui entender minha origem, quando percebi meu lugar na sociedade, quando vi o tanto que minha família passou para eu estar aqui nesse momento.” Seu avô e sua bisavó vieram ao Brasil em torno da década de 40. Inseridos no contexto da II Guerra Mundial, o objetivo era tentar a vida em um país novo. Parte da família ficou para trás. Seus avós inicialmente tinham planos de voltar para a terra natal – algo que não fizeram. O motivo: vieram para cá com a expectativa de ganharem

muito dinheiro e conseguirem sustentar seus entes do outro lado do mundo. Isso não aconteceu. Os traumas foram algo presente nessa mudança de vida, principalmente após o Japão ter perdido a guerra. “As cicatrizes

Marcia Takenata: “mesmo tendo outras qualidades, eu era a japa, a olho puxado”.

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vida, sempre foi alguém caloroso, acolhedor.” Mas um dos maiores obstáculos que enfrentaram e continuam tendo que lidar é outro: o preconceito. Ele sempre esteve presente, embora não de forma tão explícita, como ocorre com a população negra. “É uma discriminação mais sutil”, explica. As informações e lutas contra o racismo são a cada dia mais disseminadas e as pessoas estão tendo mais consciência do que passam. Marcia já sentiu isso muitas vezes na pele. Sua vida escolar foi marcada por fases difíceis. Era a única japonesa em sua sala, e uma das três asiáticas na escola onde estudava. Comentários sobre seus olhos e estereótipos, especialmente sobre sua capacidade intelectual, foram recorrentes. Os japoneses e seus descendentes são tidos como a “minoria modelo”. Por muito tempo, sentiu-se enquadrada em um rótulo por ser quem era, por ter as características

herdadas de suas raízes. “Mesmo tendo outras qualidades, outros dons, eu era rebaixada e me tornava apenas o que definiam pra mim”, desabafa. Era “a japa”, “a olho puxado”, e isso a incomodava. Esteticamente, intelectualmente. Sentia uma cobrança constante para atender a determinadas expectativas. Revoltas por ser quem era foram frequentes durante sua adolescência. O período que por si só é conturbado era agravado pelas comparações. Via suas colegas fazendo amigas rápido, via suas colegas namorando e se sentia rebaixada. Uma vez ouviu falar: “A Marcia é feia por causa do olho. Se ela tivesse o olho maior, quem sabe eu gostasse dela.” Essas mini opressões eram repetidas e tudo isso a fazia se sentir refém. Para a jovem, alguns fatores contribuem para que as pessoas sejam racistas. “Falta representação asiática na mídia”, diz. Ela também destaca as desigualdades nos

padrões estéticos, com privilégio para as pessoas brancas. O foxy eye (tendência que busca levantar e alongar o olhar) é um exemplo. “Por que um olho puxado em uma pessoa branca fica bonito e em uma pessoa amarela, que já tem esse traço, é feio?”, questiona. A libertação de Marcia foi recente. Pautas sobre feminismo foram a chave. A partir daí conheceu a militância amarela e decidiu abraçála. “Não é só porque isso corre nas minhas veias, é algo que carrega muita história. Meu povo carrega muita história que é apagada e eu tive sede de descobrir e entender mais o motivo dessa comunidade ser tão afetada no Brasil.” Hoje se reconhece como nipobrasileira, sem nenhum temor em assumir sua identidade. Em sua casa, há traços da cultura: um templo onde oram pelos antepassados, o arroz japonês está presente todo dia na mesa, sua vó faz seus próprios sushis. “A Marcia de agora é uma pessoa que sabe de suas origens. Ela tem uma base boa e está desconstruindo padrões, quebrando estigmas. É um caminho que ainda está sendo trilhado. A Marcia do futuro vai ser uma pessoa melhor resolvida.”

Opressão entre os oprimidos Crédito/Arquivo Pessoal/Marcia Takenata

Generalizada pelos ocidentais como “japonesa”, Gabriela Shimabuko é, na verdade, okinawana. Mas afinal de contas, o que é ser okinawana? Ela explica que Okinawa é um reino independente que foi anexado ao Japão de forma bélica. “Temos línguas diferentes, temos uma cultura diferente, temos uma etnia que se compõe por essas dimensões sociais muito diversas das do Japão central.” Estudante de Ciências Sociais da Unesp (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) e militante do movimento asiático, ela aponta certa discriminação dentro da comunidade japonesa para com

Marcia no colo de sua mãe, Julia Ando.

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Crédito/Arquivo Pessoal/Gabriela Shimabuko

os okinawanas. “Em gerações mais antigas, há japoneses que odeiam o povo Okinawa e vice-versa. Há muito resquício daquela coisa: os colonizadores são civilizados, os colonizados são os bárbaros.” Okinawa é uma ilha minúscula. Cerca de 70% dela é ocupada por bases americanas. “Meu avô disse que, após a I Guerra, Okinawa estava toda estraçalhada. Lembramos muito de Hiroshima e Nagazaki, mas a batalha de Okinawa foi bastante sangrenta. E quando a ilha se recuperou do conflito, os Estados Unidos a ocuparam militarmente.” Aos 26 anos, Gabriela teve entendimento sobre suas raízes recentemente. Frequentou escola católica por anos. Sua família sempre manteve tradições xamânicas próprias, e ela questionava a prática espiritual. Mas sua aproximação com culturas indígenas a fez se conectar com suas origens. “Passei a entender Okinawa como uma cultura originária, e percebi que sentir vergonha da minha ancestralidade é um projeto político.” A generalização que ocorre muitas vezes com relação a quem tem traços orientais, além de desrespeitosa, reflete ignorância. “Não somos da mesma maneira”, destaca. Cada comunidade tem espaços muito institucionalizados, mas há o mito da homogeneidade. “Do ponto de vista europeu, todo o resto do mundo é o mesmo”, critica. Em 2016, seu avô foi para a terra natal e visitou túmulos da família e outros locais com cercas os separando. Em sua tradição, a terra tem muita importância espiritual. “Nossos ritos de morte se estendem por até 33 anos, e quando meu avô falou sobre essa terra ancestral, isso me tocou. Foi com essas coisas se acumulando ao meu redor que eu notei a importância de preservar a cultura. Mas preservar de uma forma militante.” Enquanto crescia, Gabriela sofria com a pressão estética: não atendia

Gabriela Shimabuko: “Do ponto de vista europeu, todo o resto do mundo é o mesmo”.

ao padrão da branquitude, e menos o padrão de oriental – branquinha, magrinha. “Todos esses acúmulos foram apontados ao longo da minha vida. E há a questão de ser fetichizada, sendo tratada como um animal exótico.” Uma memória a marcou. Durante o ensino básico, recebeu uma tarefa para montar sua árvore genealógica, mostrar para a turma de onde ela “veio”. Crianças brancas tinham uma lista de países que “soavam importantes”. “Eu trazia o Japão, que de acordo com os livros, nunca teve importância política.” Dentro de sua comunidade também enfrentou problemáticas. Gabriela sofreu pressão da família para performar a feminilidade e atender as expectativas culturais impostas às meninas. Cobranças para se casar e seguir a heterossexualidade compulsória foram alguns obstáculos

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que enfrentou. “Hoje vemos as pessoas que são fãs de K-Pop se interessarem pela cultura oriental”. Mas, segundo Gabriela, há uma problemática por trás disso. O descendente e verdadeiro responsável pela manutenção da cultura perde espaço para quem tem interesse pela fetichização dela. Ela relembra que, quando pequena, era humilhada pelas suas raízes. “É fácil para não descendentes ocuparem esse espaço, eles não carregam essa carga emocional”, completa. Para ela, a luta para acabar com o preconceito deve envolver mudanças na mídia, é preciso retratar as diversidades. É preciso ir atrás de diversas bolhas, conscientizar para além do nicho em que se está inserido. “É necessário mudar a percepção das comunidades sobre a gente, mas a nossa própria também.”


Olhares que se comunicam Cumplicidade e individualidade: a história das gêmeas Deborah e Natália Ana Beatriz Dias e Mariana Carvalho

Crédito/Arquivo PessoalDeborah e Natália

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Crédito/Arquivo PessoalDeborah e Natália

E

ra para ser só mais um dia comum de escola. Assistir às aulas, curtir o intervalo, voltar para ouvir a explicação de mais alguns professores e ir para casa. Só que um acontecimento mudaria tudo. Deborah Bispo Pereira ficou sabendo por uma amiga que João tinha mandado um bilhete para Natália, sua irmã gêmea. João foi seu primeiro amor, daqueles que vêm e roubam o coração no início da préadolescência. Ao ler o recado, saiu de sua sala e encontrou com a irmã no meio do pátio do colégio em que estudavam. Puxou-a pelos cabelos e gritou, furiosa, para todos ouvirem: — Eu não acredito que você fez isso comigo! Hoje, em meio a gargalhadas, as irmãs contam a história que aconteceu, quando tinham 11 anos.

Bivitelinas, elas foram geradas em placentas diferentes na mesma barriga, há 21 anos. Talvez esse seja o motivo por Natália lembrar mais a mãe fisicamente e Deborah se parecer mais com o pai. Pele negra, sorriso largo que toma conta do semblante, olhos de jabuticaba, cabelos ondulados e escuros como a noite. São essas as características que as duas têm em comum. As diferenças cabem a cada um enxergar. Para nós, o incomum está em um detalhe nos cabelos: Deborah deixa os fios até os ombros, Natália opta por um comprimento mais longo. “Quando a gente era pequena, a gente se parecia mais.” Deborah se vira para a irmã e retruca dizendo que acha o contrário. Deborah e Natália formam um par alto astral e se comunicam muito pelo olhar. Elas compartilham pensamentos ao relembrar da infância pelos bairros de Itaquera e Itaim Paulista, na zona leste de São

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Paulo. Uma mudança de escola, por volta dos 6 anos de idade, mexeu com os sentimentos de Natália, mas a presença de Deborah foi reconfortadora, afinal, as duas passavam pela mesma situação. “Era importante que ela estivesse comigo”, lembra. Diante da tela que nos separa (nossa entrevista foi realizada por videochamada, em função da pandemia do novo coronavírus), as irmãs se entreolham ao pensar sobre como é a relação delas nos dias de hoje. Natália abre o jogo e diz que na adolescência até pra tomar banho as duas saíam na porrada. Mas que hoje é tudo mais saudável, às vezes uma discussão cá e outra lá. Concentrada e, dessa vez sem olhar muito para a irmã, Natália diz que Deborah é muito extrovertida. Confirmando as palavras, Deborah faz graça para a câmera. Os papéis se invertem e Deborah começa a


descrever a irmã como “focada em seu próprio mundinho”, dando a entender que é fria e até indiferente. Natália nitidamente se impressiona com o comentário e, não conseguindo ficar séria por muito tempo, cai na gargalhada. “Ela é pé no chão, responsável com as coisas. Eu já não tenho essa responsabilidade”, complementa Deborah. Um acontecimento que dividiu sentimentos entre elas foi quando Natália recebeu a notícia de aprovação em um concurso. Em setembro de 2018, depois de ter prestado algumas provas, soube que havia conseguido o emprego dos sonhos. “Ela é a louca dos concursos”, diz Deborah caçoando da irmã, complementando que ficou feliz com a notícia, pois sabia o quanto aquilo era importante para ela. Natália resolveu contar sobre a sua aprovação no grupo da família no WhatsApp. Uma mensagem de parabéns e cheia de carinho por parte do pai foi enviada. Logo em seguida a notificação de mais uma mensagem subiu na tela, dessa vez não tão agradável. — E você, Deborah? Quando vai

passar no concurso? O chão poderia estremecer, mas convicta em relação às conquistas e vontades de Natália, Deborah percebeu que as realizações de sua irmã eram diferentes daquilo que almejava para si mesma e não deixou que o que foi dito pelo pai caísse como um peso em seus ombros. Entretanto, nem sempre foi assim. Aprofundando na questão, as meninas abrem o coração e relatam que a cobrança sempre existiu e isso nunca foi bom. Avós, tios, amigos e até elas mesmas chegaram a acreditar que as duas precisavam ser iguais. Foi só quando as gêmeas completaram a maioridade que perceberam o quanto essa comparação afetava a vida de ambas. A partir disso, cartas foram colocadas na mesa. Deborah que até então era vista como inteligente por todos, despertava em Natália uma necessidade árdua de se “matar” nos estudos. Por outro lado, Deborah ouvia que Natália era como a mãe e, por isso, se desdobrava para copiar tudo o que a irmã fazia e quem sabe, com sorte, se tornaria tão boa quanto ela. Ex-rivais, as meninas confessam

anos depois que a conversa foi um divisor de águas entre elas. Contudo, a cobrança ainda se instala vinda de fora, já que as irmãs gêmeas passam por momentos e fases diferentes. Ao passo que Natália se encontra noiva e funcionária pública, Deborah está solteira e em busca de um emprego. Por outro lado, Deborah é fluente em inglês, sempre teve facilidade com a língua e isso cai em comparação com a irmã, que voltou a estudar o idioma agora. Pelo fato de terem a mesma idade e a mesma fonte de educação, as pessoas costumam esperar que ambas sejam iguais. O que muitos não percebem é que tal demanda acaba gerando impactos negativos na vida delas. Gêmeas, mas diferentes, as irmãs contam que sempre dividiram quarto, dormiam em beliches e não conseguiam respeitar a individualidade de cada uma por conta do pequeno espaço que tinham que compartilhar em casa. “Eu percebi que uma coisa que estava me dando muito gatilho e estava me fazendo voltar a ficar mal era justamente a forma como a gente estava se relacionando”, conta Crédito/Arquivo PessoalDeborah e Natália

As gêmeas no aniversário de 4 anos: Deborah, como sempre, empolgada, e Natália aparece na foto chorando.

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que se via na obrigação de estar bem, mesmo não estando e aquilo foi a gota d’água de toda a situação. Natália, por outro lado, se lembra das festas em que foi abandonada pela irmã e diz, olhando de canto de olho para Deborah, em tom de provocação: — Já aconteceu umas três vezes… — Duas vezes… Aconteceu duas vezes! - retruca Deborah, tentando se defender da acusação da irmã. O diálogo segue. Não muito convencida, Natália continua e

explica que toda a situação de comemorar sem a irmã era estranha. Ela se sentia deslocada, já que a família costumava cantar parabéns primeiro para a Deborah (que nasceu primeiro) e depois para ela. Deborah olha com ternura para a irmã e dá leves tapinhas no ombro dela, como se a consolasse da situação. Os aniversários separados aconteceram com 18 e 20 anos. Um a Deborah não chegou para cantar parabéns e, no outro, ela acabou saindo da festa, após uma discussão dos pais. A gêmea em sua defesa,

Crédito/Arquivo PessoalDeborah e Natália

Deborah. Ela relata que viu sua saúde psicológica ficar em um estado fragilizado e tomou uma atitude radical: decidiu que deveria sair de casa. Depois de sentar para conversar com sua mãe e com Natália, chegou à conclusão de que seria melhor passar um tempo com uma tia. A gêmea conta que a situação era como uma ferida aberta que a todo momento era cutucada. Um tempo de respiro que num primeiro momento foi difícil: a saudade bateu na porta. Mas foi um período necessário para cuidar do seu eu interior e para refazer as relações familiares. Natália também nos dá seu olhar da história, e reitera para a irmã não levar como algo ruim aquilo que vai dizer: “O fato da minha irmã ter ficado fora foi um alívio. No sentido de que ela estava tendo muitas crises e era muito difícil pra mim, eu não sabia como lidar”. A rotina das duas estava afetada. A cobrança em Natália para cuidar da sua irmã era diária. A decisão tomada por Deborah foi um momento de respiro para todos. É claro que ambas sentiam falta da convivência, mas quando se viam os momentos eram bons e a relação se fortificava. Oito meses se passaram, a tia delas viu que o melhor seria mesmo Deborah voltar para casa. Todas conversaram. Ela não se sentia preparada para isso, mas, novamente, era necessário. A solução? Mudar de casa, cada uma ter seu espaço, sua privacidade e individualidade. Natália conta que, a partir disso, as brigas diminuíram e muito. “A gente aprendeu a se respeitar”, concorda Deborah. É nesse cenário que as irmãs se lembram de outras situações em que as coisas ficaram conturbadas. Os aniversários. Ao entrar no assunto, Deborah conta que foi exatamente em um deles que tomou a decisão de se mudar. Completando 20 anos, mas se sentindo triste, a gêmea desabafa

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acrescenta que na segunda vez a família já tinha se conformado com o “bolo” e preferiram tirar o melhor da situação. “Eles pegaram uma foto minha do álbum de formatura e colocaram na parede.” Deborah confessa que hoje a situação é razão de muitas risadas. Ainda comentando sobre essas datas, Natália aproveita a brecha para fazer outra observação e caçoa a irmã: “No de 19 [anos] ela não fugiu, porque foi uma festa surpresa...” Aqui se instaura uma contradição. Deborah sempre foi a mais empolgada para assoprar as velinhas. Ao mesmo tempo em que ama confraternizar, confessa que nestes dias se sente muito pressionada com as comparações e cobranças. Mas é claro que esses pensamentos vieram só quando a juventude começou. A primeira gêmea é dona de uma memória invejável e se lembra bem do aniversário de 4 anos de ambas. No dia, elas ganharam muitos brinquedos. Um dos presentes foi um salão de beleza para crianças, que tinha secador de cabelo, escova e durou por vários

anos. Na festa, Deborah, como sempre, estava super empolgada para os parabéns. Natália, por sua vez, chorava apoiada na mesa. Tudo era sempre muito decorado. Roupas, cabelos e presentes iguais. Família e vizinhança reunida numa alegria só. Esse era o cenário das festas anuais. As roupas iguais são quase sempre selecionadas para os irmãos gêmeos na infância. Com Deborah e Natália não foi diferente. A roupa era igualzinha, só mudava a cor. Carinhosamente, elas se lembram do bamba da Floribella que acompanhou-as por um bom tempo. Na adolescência, tudo mudou e cada uma entendeu seus gostos. Deborah gosta de preto e roupas de couro e Natália é mais dos vestidos e estampas florais. Apesar disso, Deborah confessa que às vezes a irmã tentar roubar algumas roupas dela. As gêmeas se lembram do fatídico episódio da camiseta preta. Natália precisava de uma blusa preta para usar em um evento da Igreja. É claro que a Deborah tinha inúmeras em seu guarda-roupa e, um pouco a

contragosto, emprestou uma delas para a irmã. Acontece que depois de usar, Natália acabou alargando um pouco a camiseta, o que fez com que Deborah, apegada à peça, ficasse triste e nunca mais usasse a roupa. “Não sei se vou estar falando mal de você, mas assim, às vezes você é um pouco brega. Eu sou mais estilosa eu acho”, diz Deborah, em tom de deboche. Apesar de serem diferentes em muitos aspectos, ambas concordam que a melhor parte em ser gêmea é ter alguém que cresce junto com você e compartilha as mesmas experiências. Mesmo com rotinas muitas vezes diversas, Natalia relembra que era muito bom ter alguém para ir junto para a escola, fazer as lições e, é claro, brincar. Já Deborah completa que, apesar de cada uma seguir o seu caminho, lá no fundo as duas sabem que a outra sempre vai estar ali, pra ajudar. A dupla, que conversa pelo olhar, tem riso solto e deixa qualquer um com vontade de ouvir suas histórias.

Crédito/Arquivo PessoalDeborah e Natália

Para Deborah e Natália, a melhor parte de ser gêmeas é ter alguém sempre ao lado para compartilhar experiências.

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