PERFIL - A CATARSE LITERÁRIA DE ADRIANO GOMES.

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Estilos Jornalísticos UFRN SETEMBRO 2016

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A CATARSE LITERÁRIA DE

ADRIANO

GOMES IMAGEM: ACERVO PESSOAL

POR STEPHANNY COELHO, MADSON BRUNO, HANA DOURADO, EDMO NATHAN E JONATAS SATURNINO.


A LITERATURA A PARTIR DO INSTANTE QUE RECOMPÕE ESSE SUJEITO COM O ‘EU INTERIOR’ COM O LIVRO, ELE PASSA A DESENVOLVER UMA ESPÉCIE DE COMPENSAÇÃO PSÍQUICA. É CATÁRTICO. A LEITURA É CATARSE, É PRAZER, É CONTENTAMENTO. A LEITURA SALVA NESSE SENTIDO.

ADRIANO GOMES

Sostô! O jornalista, escritor, professor, arte-educador, mestre e doutor em educação, com pós-doutorados em Comunicação e Educomunicação, Adriano Lopes Gomes, de 53 anos, queria mesmo era ser arquiteto. Oitavo filho em uma família de 12 irmãos, o mossoroense mudou-se para Natal aos 16 anos, no intuito de concluir seu ensino médio e prestar vestibular para o curso de arquitetura. Após a frustração em sua primeira tentativa de ingressar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), quis o destino que o jornalismo entrasse em sua vida no vestibular do ano seguinte. Já nos primeiros períodos da faculdade, Adriano ganhou espaço no mercado de trabalho. Começou na Rádio Poti e fez estágio na Cabugi, antes de chegar à Tropical e passar 10 anos atuando também na emissora de televisão do grupo. Pensou em voltar à academia, mas foi novamente atraído pelo jornalismo. Trabalhou como editor do telejornal RN TV 2ª Edição, da até então TV Cabugi. Um ano e dois meses depois, resolveu largar tudo e dedicarse mais uma vez aos estudos. Enquanto fazia sua segunda graduação (em Educação Artística, com habilitação em Música, também pela UFRN), iniciou seu mestrado. Então surgiu um convite que deu novo rumo a sua vida: uma diretora da Universidade Potiguar (UnP) o chamou para ser professor. “Foi quando me encontrei de fato”, relata. Após quatro anos de UnP, Adriano concluiu seu mestrado, fez também seu doutorado e prestou

concurso para ser professor da UFRN - onde leciona há 15 anos, dentre outras, a disciplina de Radiojornalismo. Em sua vida, convergiu educação, leitura e literatura sempre que possível. Já escreveu várias obras de cunho acadêmico, mas foram seus quatro livros infantis que lhe deram mais prazer. O gosto pela escrita começou antes mesmo de ser jornalista. Aos 17 anos escreveu os rascunhos de seu primeiro livro, A Cidade dos Brinquedos (publicado em 1995). Em seguida, surgiram A Montanha das Virtudes (1996), Histórias de Crianças (1997) e A Casa e a Velha (1998). Na época, os livros chegaram a repercutir na cidade. Um deles, a Cidade dos Brinquedos, virou peça e rodou o Estado. Na mente de um dos repórteres, inclusive, surgiu a lembrança da apresentação do texto ainda no ano de 2015. A escrita de Adriano Gomes rendeu e ainda rende. Sua inspiração transpassa o literário infantil e percorre o mundo dos contos. O jornalismo virou uma prática, um reflexo de vida, mas não a paixão. Esta é uma união do seu amor ao teatro, à literatura e à educação. A Comunicação entra como ingrediente nesse misto. Espírita, vegetariano, ator, radialista, jornalista, escritor, sensível. Adriano é aquele que, apesar da experiência de mercado, sente o peso de ser entrevistado ao mesmo tempo que sente a liberdade de recitar um de seus contos, quase sem lembrar que estava em uma entrevista.

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Você trabalha com o rádio. É impossível não associar o rádio com as radionovelas ou com a narração de histórias presentes em livros, como a clássica história de uma invasão alienígena na terra [Guerra dos Mundos]. Para você, ainda é possível utilizar o rádio, e outros meios de comunicação, para a contação de histórias? É sim. Em algumas localidades do Brasil estão sendo resgatados os esquetes. Esses esquetes rápidos, que são performances teatrais, para atrair a atenção dos ouvintes. O rádio e contador de história tem tudo a ver. Em uma disciplina que ministrei na pós-gradução, eu levei meus alunos para uma emissora de rádio em Santa Cruz. Lá eu queria verificar como se dava a recepção de um conto literário através do rádio. Fomos em caravana e fui contar a história. A tarefa era a seguinte: as pessoas deveriam ligar para emissora e dizer o que tinha entendido do conto e por essa razão ganhava um livro. O que teve de gente ligando para essa emissora… Foi uma experiência incrível. Respondendo a sua pergunta, hoje o rádio tem um viés, uma vertente muito significativa, no sentido de apresentar um componente possível para promover, até, o sujeito socialmente e culturalmente. Interessante é que o rádio pode ser um ponto de intercessão entre gêneros, não é mesmo? Isso. Rádio, teatro e literatura. Você também tem o trabalho de educomunicação. Havia algum trabalho associado com a literatura? Sim. É o trabalho de retextualização. Em que consiste? Uma história é contada e é pedido aos alunos que eles retextulizar o conto apresentado. Os alunos fazem uma releitura, reescrevem e vão para a rádio escolar. Fizemos recentemente na Escola Estadual Francisco Ivo Cavalcanti e agora na ONG Adic, na comunidade Passo da Pátria. Percebem a triangulação entre a literatura, o rádio e o próprio suporte de escrita? Eu posso dizer que o rádio aproxima mais a população da literatura? O rádio é a democratização da voz. É a democratização,

tanto quanto é a educomunicação. Nós que já passamos pelos bancos escolares sabemos o quanto nossa voz é cerceada. O professor é quem tudo sabe, é quem manda, é a última palavra. E o aluno é como se fosse uma tábula rasa, que nada sabe, que precisa ser inoculado com um ‘conhecimentozinho’ aos poucos. E não é assim. Lev Vygotsky, pensador russo, já vai dizer que através da coletividade a gente cresce socialmente. A educomunicação vem recuperar a voz perdida desse sujeito e vem dar voz. Uma prática educomunicativa deve promover o sujeito, delegar a voz e reconhecer o outro como sujeito como importante no ambiente em que ele está inserido. É a chamada formação de ecossistema comunicativo. Não importa se ele está falando bem no rádio, se faz uma boa vinheta, se ele faz um bom texto… O importante é que ele tenha vez e voz. Eu estava trabalhando na escola e a diretora veio falar com nós, os pesquisadores, porque ela não estava gostado do que os alunos estavam dizendo. Aí ela veio pedir para nós interferimos no que eles estavam fazendo. Nós dissemos que não faríamos aquilo, porque fere com o princípio educomunicativo, que é deixar o aluno deixar falar o que pensa e o que quer.

EU NÃO CONCEBO UM BOM JORNALISTA QUE NÃO LÊ A LITERATURA.

Você lançou quatro livros infantis. Como a sua formação de arte-educador e jornalista interferiram nas suas obras? O gosto pela leitura eu passei a ter ainda na minha terra, por volta dos sete anos, em Mossoró. Eu me enveredei na literatura por causa dos textos teatrais. Textos com essa veia teatral. E adorava assistir teatro. Meus primeiros rabiscos começaram bem antes do jornalismo. Com 15 anos eu já comecei a escrever alguma coisa. A Cidade dos Brinquedos eu escrevi aos 15 anos. Ele inclusive virou peça de teatro posteriormente, com um grupo realizando algumas apresentações pela cidade e no interior. A Montanha das Virtudes também virou peça depois. Eu mesmo que bancava meus próprios livros. Era só o prazer mesmo de ver circulando por aí. E quando eu decidi fazer o projeto de pós-graduação, eu não tive dúvida de que era alguma coisa ligada com literatura e literatura infanto-juvenil. E aí, em conversa com os professores da Educação, a gente viu a necessidade de problematizar as questões relacionadas ao contador de histórias, e muito mais com esse contador de história em sala de aula. Eu fiz minha pesquisa em uma escola estadual aqui em Natal. Eu levei os livros, doei e contei em sala de aula. Assim que terminava os encontros com os alunos, eles em seguida corriam para a biblioteca. Aí eu vi o quanto é importante a presença desse contador de história, que desenvolve toda uma performance, com gestos, com palavras e o encanto da voz. Então, a contação é gerar um encantamento. Essa é uma modalidade de leitura. A gente pode ler com os ouvidos. A gente pode desenvolver uma atribuição de sentidos naquilo que está sendo visto e escutado.

Falando agora pelo lado oposto. Como a literatura influencia nós, comunicadores, até mesmo na graduação? Eu não concebo um bom jornalista que não lê a literatura. A literatura é a arte de uma expressão estética muito mais voltada para essa perspectiva da formação desse sujeito. Por exemplo, os livros de literatura reúnem uma grandeza de informações, tanto quanto repertório, lexical e semântico, que eu usava para trabalhar em disciplina. Quando eu ministrava a disciplina Comunicação Comparada, eu trabalhei com o livro Palomar de Italo Calvino. E aí os alunos se surpreendiam. Perguntavam o que o livro tinha a ver com o jornalismo. Palomar tem tudo a ver com essa questão da revelação dos sentidos. A gente deixava um ou dois encontros para discutir o livro de literatura. Algumas pessoas ainda acham absolutamente esquisito que eu ainda conto histórias para meus alunos da graduação. Acham esquisito porque não entendem que a literatura não tem idade, não tem espaço. Ela simplesmente existe. Ela existe como obra inacabada e deve estar presente e circulando em todos os espaços, principalmente no ensino de educação infantil e superior. Na educação infantil como uma base e no ensino superior como uma meta. O aluno que tem bom repertório de leitura de literatura, eu digo sem pestanejar, vai fazer um bom texto. Porque ele vai ser capaz de pontuar com as situações as quais conviveu na leitura e com as quais convivem diariamente. Ficção e realidade estão muito próximos.


Você sente mais prazer na produção literária ou jornalística? Literária. Não tenho a menor dúvida. Estou retomando a minha produção de contos e vou tentar publicar. O que é técnica e o que inspiração? E o quanto é aplicado no jornalismo? Eu não sei como responder sobre a inspiração. É algo tão natural. Um dia estava na praia e comecei a contemplar o mar. E saiu o texto “Há mar”. Falei um pouco do mar, que abraçava os continentes, acolhia os lagos, os oceanos e saiu o conto. No jornalismo a gente parte de uma realidade e ressignifica essa realidade nos nossos textos. Eu não defendo essa história do ‘nascer com um dom’. Eu acho que todos nós podemos ser escritor, desde que seja manifestado o desejo, haja um esforço constante e leia muito, muito, muito. Quanto mais a gente lê, mais temos condições de escrever uma boa matéria. Você falou da importância da leitura. Que autor você indica como ponto de partida para aqueles que querem começar a escrever? Os autores literários. Italo Calvino, Marina Colasanti, os clássicos da literatura, os textos de teatro. Enfim, tudo aquilo que te dê prazer. Eu acho que leitura não tem indicação ou fórmula. O que me deu contentamento, para você pode não dar. Leia aquilo que você tenha paixão. Leia revista, leia quadrinho, leia. Cada um vai encontrando seu percurso de leitura. Qual a sua visão da produção e consumo literário, e até mesmo jornalístico, em meio as novas tecnologias? A leitura não vai morrer. Vivemos na contemporaneidade é a ressignificação da leitura. Os jornais estão diminuindo suas tiragens, mas há um aumento do suporte digital. Em vez do papel, temos o e-book. Na minha concepção é uma questão de tempo e esse suporte irá imprimir um novo comportamento de leitor. Nunca se escreveu tanto quanto agora. Não podemos atrelar a leitura ao que é tradicional ou aos 10 mais recomendados pela revista Veja. Quando você vai assistir um filme, você lê. Quando você escuta uma música, você lê. A leitura está presente em diversas formas. A leitura, a rigor, é a atribuição dos sentidos. Esses novos meios sociais são um caminho alternativo para leitura. Você acompanha algum jornalista escritor? Não. Eu não tenho afinidade ideológica e partidária com a maioria deles. E aqueles que se tornaram escritores, como Hunter Thompson, José Saramago? Não.

IMAGEM: EDMO NATHAN

Você falou anteriormente que as coisas mais importantes para o consumo e promoção da literatura seria o trabalho realizado na base e na universidade. Falta hoje políticas públicas para educação, em toda a estrutura de ensino? O que é necessário para aplicação de políticas públicas na rede de ensino? Eu trabalho há 19 anos como professor. Há 19 anos eu trabalho com políticas de leitura no ensino fundamental, médio e superior. Aqui no Estado há políticas de leitura. Por exemplo, faço parte do Programa Nacional de Incentivo à Leitura. O Proler está completando 20 anos no Rio Grande do Norte. Ou seja, há políticas no Estado. O que eu sinto profundamente é que o professor não lê. Como é que o professor vai seduzir e encantar seus alunos, se ele mesmo não lê? Dois verbos não comportam o imperativos. Amar e Ler. A pessoa tem que ler porque gosta, porque sente prazer. A leitura quando é imposta, ela perde a grandeza. A gente vê a leitura nas escolas como pretexto para trabalhar a gramática e a língua portuguesa e nada disso leva a lugar nenhum.

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Se um professor não gosta de ler porque ele teve problema na educação de base e não recebeu estímulos na universidade, não deveria então haver mudanças no ensino acadêmico para estimular a leitura? Sem dúvida nenhuma. Nós precisamos ter políticas de leitura. Aqui na UFRN não tem. Na Biblioteca Zila Mamede já teve um período que levava um escritor uma vez por mês, mas desapareceu. Hoje vivemos em um país que lamentavelmente lê menos de um livro por ano e o índice de analfabetos funcionais chegou a 35%. Quem mensagem você deixa para aqueles para os antigos e futuros leitores? Que a gente possa perceber a literatura como algo que

deve estar presente na nossa vida de alguma maneira. Que a gente possa entender que você foi tocado pela literatura não porque me disseram que era importante e sim porque você descobriu que era importante. Eu me descobri como leitor aos 35 anos, porque antes eu não reconhecia a importância da leitura na minha vida. Você não lê para ser bom jornalista. Você lê, porque gosta. Gostando, ao ler, você produz melhor, você é mais alegre. A literatura toca. Ela tem sensibilidade. Leia por paixão e não por obrigação. Quando nos tornamos leitores, a gente passa a entender a realidade da vida de uma maneira diferente. A gente recolhe a realidade e internaliza em nossos corações como se fosse algo que projetou dentro da gente, porque nós entendemos aquela realidade de outra maneira. A leitura é um doce encantamento que é capaz de reestruturar as nossas almas e nossos sentimentos. Eu vou terminar com a leitura de um conto de minha autoria.

A Princesa e o Pássaro Todos os dias a princesa era surpreendida com o canto do pássaro. Tão lindo como as sinfonias, tão envolvente como as manhãs. De tanto a visitá-la, tornaram-se amigos. A princesa falava com ele como se compreendesse a sua expressão. E o pássaro apenas respondia com os gorjeios para daí ganhar o voo entre as árvores do imenso jardim. Quando ele partia, a tristeza tomava a alma. Afinal, aquela presença reduzia as intermináveis horas de solidão. Sem querer perdê-lo, com o mesmo canto e a mesma beleza, a princesa o prendeu em uma gaiola. O pássaro se quer ofereceu resistência a clausura. — Pronto. Pelo menos o terei todos os dias e todas as horas cantando para mim, além de me fazer companhia, é claro — dizia a princesa em voz baixa. Mas o pássaro já não era mais o mesmo. Não cantava mais, não batia mais as asas, não queria saber de mais nada. — Vamos, canta — suplicava a princesa quase chorando. O pássaro, porém, permanecia na mesma. Naquele quarto nunca mais se ouvira o canto matinal do pássaro e a princesa preferiu devolver à liberdade. — Triste, assim, prefiro perdê-lo. Sem cantar, assim, prefiro de volta ao seu mundo. E abriu a porta da gaiola. O pássaro não voou. A princesa ainda o tangeu. O pássaro não voou. Deixando-lhe entregue as suas vontades, a princesa deitou-se e foi dormir. E teve sonhos de ouro. Sonhou que era um pássaro com lindas e enormes plumas brancas. E que cantava em altíssimo sonido de acasalamento, a espera do seu parceiro em manhas de sol primaveril.

No dia seguinte, ao acordar, viu que o pássaro não estava mais ali. Ao lado da gaiola, um jovem belo e sorridente, a se desfazer das penas que caiam aos seus pés.


ILUSTRAÇÃO: LUDOVICA

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A última pergunta. Para você, a literatura salva? Como? Salva. É até bíblico. A literatura a partir do instante que recompõe esse sujeito com o ‘eu interior’ com o livro, ele passa a desenvolver uma espécie de compensação psíquica. É catártico. A leitura é catarse, é prazer, é contentamento. A leitura salva nesse sentido. Ela é relevante no ponto de vista da psicologia, nas emoções, dos sentimentos, porque eu me reencontro naquela obra. É um efeito aisthetico. Eu sou coautor, eu me projeto na obra e eu promovo a catarse.

FOTOGRAFIAS: EQUIPE DE REPORTAGEM


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