Magazine Reportagem 01.2018

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MAGAZINE

REPORTAGEM

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O MUNDO À FRENTE DAS OBJECTIVAS

ARQUIVO Inspirado na vida diária contemporânea

Fotografias

Deixar a máquina ali, é sinal de que no dia seguinte pretende retomar do ponto onde largou, como se a noite, o descanso, os pesadelos das crianças, o jantar em família, o jogo do Benfica e consequentes intermináveis comentários noite dentro, não se intrometessem no respirar da sua arte. E na verdade ela não o desilude.

RUI MIGUEL CUNHA

Texto VANESSA PEREIRA

JANEIRO FEVEREIRO


ARQUIVO VOL.01 Dias há em que, ao regressar a casa e à rotina da família, larga a máquina onde calha. À mercê dos filhos, dos gatos de estimação, exposta ao pó e à vida da casa. A esses, normalmente, seguem-se os dias em que limpa a máquina como se polisse uma arma e guarda-a com gestos meticulosos e desanimados numa gaveta escura e de preferência bastante inacessível. Pode ser que assim a esqueça ou se esqueça dela. Mantendo-a longe da vista é mais provável que consiga manter afastada de si a ânsia de lhe pegar. Mas é nos dias em que deixa a máquina para trás, largada no banco do pendura do carro, que sente que tirou as melhores fotos. Não é uma questão de superstição mas é como se sentisse que o dia lhe correu bem e não quer quebrar essa onda. Antes deixa que esse tumulto se desfaça tão natural e suavemente quanto retorna ao mar alto, naquele vai-vem cadenciado que todos aqueles que nascem e crescem perto do mar interiorizam e integram em todas as suas acções, mesmo sem saberem. Deixar a máquina ali, é sinal de que no dia seguinte pretende retomar do ponto onde largou, como se a noite, o descanso, os pesadelos das crianças, o jantar em família, o jogo do Benfica e consequentes intermináveis comentários noite dentro, não se intrometessem no respirar da sua arte.

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Deixar a máquina ali, é sinal de que no dia seguinte pretende retomar do ponto onde largou, como se a noite, o descanso, os pesadelos das crianças, o jantar em família, o jogo do Benfica e consequentes intermináveis comentários noite dentro, não se intrometessem no respirar da sua arte. E na verdade ela não o desilude. No dia seguinte ali está no mesmo sítio, largada mas obediente e disponível para dar continuidade ao que ambos começaram. Foi o início do projecto que guarda na tal gaveta; a mesma onde, nos dias de desalento, esconde a máquina, as lentes e tudo mais, penalizando-a, penalizando-se e, sem saber, aperfeiçoando-se; preparando-se para um novo tumulto. Essa cadência, entre o vazio e o pleno, desânimo e inspiração, maré cheia e maré vaza, é previsível, expectável, mas ver que uma onda consegue sempre, ainda assim, galgar inesperadamente areal acima, a caminho de toalhas abusivamente entendidas para reservar espaço de descanso numa praia repleta de gente, quer dizer que há ímpetos que apesar de previsíveis não podem, e se calhar nem devem, ser travados e muito menos contidos.

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NÃO É UMA QUESTÃO DE SUPERSTIÇÃO MAS É COMO SE SENTISSE QUE O DIA LHE CORREU BEM E NÃO QUER QUEBRAR ESSA ONDA.

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Há qualquer coisa de tranquilizador e justo em ver alguém levar de volta para casa toalhas e lancheiras encharcadas em água salgada envolta em areia.

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Por isso, aproveitou a maré, o vento, e deixou-se ir, evitando ao máximo navegar à bolina, mais conduzido que conduzindo. E a máquina ali, no lugar do pendura, sem cinto de segurança nem rede de protecção, embarcou com ele.

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Num dos livros que leu recentemente, não de fotografias, mas daqueles com texto, muito texto, de contos talvez, havia um homem como ele e uma máquina como a sua e ambos viviam uma qualquer aventura que incluía todos os ingredientes indispensáveis a uma boa ficção.

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A sua relação não deve tanto à imaginação embora goste de crer que sim e não raras vezes se questiona sobre a normalidade de tudo isto; dele, da máquina, dos dois juntos.

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Uma coisa é certa, é naquela relação que consegue descobrir, por vezes inadvertidamente, a beleza que ousa esconder-se na estranheza dos detalhes da vida quotidiana dos outros; dos reformados que jogam dominó na marginal duma pequena vila, dos que apenas se passeiam despreocupadamente, ou esperam por alguém ou alguma coisa, na rua duma capital cosmopolita, dos que ainda vão ao barbeiro, das crianças que ainda brincam na rua. 01.2018 magazine REPORTAGEM

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Depois duma fase de secura de vontade, de aridez e descrença atravessou-se-lhe aquele dia de inquietação. O tumulto durou vários dias em que a máquina vivia entre o carro e o seu pescoço.

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A vida dos outros corria-lhes pela frente, não em contínuo, mas como uma montagem de instantes e eles, juntos, sempre juntos, só precisavam de conseguir capturar a beleza daqueles momentos de que talvez ninguém se lembraria no regresso a casa depois desse dia mas dos quais eles guardariam registo para os dias que vêm depois.

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Juntos tornavam-se num só, imperceptível, e por isso, perante a lente, os outros parecem expôr as suas máscaras, despem-se delas, das evidentes e das outras. Fazendo com que, em cada fotografia, seja ainda mais possível ver além do óbvio.

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Aproveitaram-se o quanto puderam, na certeza de que, como sempre, à maré cheia seguir-se-ia uma vaza. Durante estes dias, a relação entre eles cresceu, fortaleceu-se e tornou-se evidente perante todos. Já nada conseguiam esconder.

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Ele fotógrafo de corpo inteiro e ela máquina de fotógrafo pendurada no pescoço do corpo inteiro, ou segura entre as suas mãos. Como seria de esperar, nessa relação, como em todas as relações felizes, existe amor e este deu os frutos. Assim nasceu o Arquivo. Vanessa Pereira (Texto ficcional)

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