RE VISTA
ERGA OMNES
Ano 5, nยบ 7, Agosto 2013, Salvador (BA)
Este livro foi artefinalizado no formato 17x24cm e composto na fonte Calibri e Trajan Pro. Foi impresso em agosto de 2013, pelo processo CTP - Computer To Plate, nas oficinas da Empresa Gráfica da Bahia-Egba., utilizando papel Couchê Fosco LD 150g/m² no miolo e Cartão Supremo LD 250g/m² nas capas. Salvador - Bahia - Brasil
RE VISTA
ERGA OMNES REALIZAÇÃO:
REVISTA ERGA OMNES
EXPEDIENTE Escola de Magistrados da Bahia (EMAB) Diretora: Des. Maria do Socorro Barreto Santiago Coordenadores: Juiz Alberto Raimundo Gomes dos Santos Juíza Ana Maria Silva Araújo de Jesus Desembargadora Cynthia Maria Pina Resende Juiz Edmilson Jatahy Fonseca Junior Juíza Joanice Maria G. de Jesus Juíza Josefa Cristina T. M. Kunrath Juiz Joséfison Silva Oliveira Juíza Marielza Brandão Franco Juiz Mário Augusto Albiani Junior Juíza Nícia Olga Andrade de Ana S. Dantas Juiz Paulo Roberto Santos de Oliveira Associação dos Magistrados da Bahia (AMAB) Gestão - 2012/2013 Presidente: Juíza Nartir Dantas Weber Revista Erga Omnes Conselho Editorial: Juiz Edmilson Jatahy Fonseca Junior (coordenador) Juiz Aurelino Otacílio Pereira Neto Juiz Edson Pereira Filho Juiz Joséfison Silva Oliveira Juiz Walter Américo Caldas Ficha Técnica Revisão de Textos: Tânia Tosta Fotos: Juscelino Pacheco e acervo pessoal ISSN: 1984-5618 Projeto Gráfico e Diagramação José Carlos Baião Ferreira Verbo de Ligação Ilustrações www.verbodeligacao.com.br
Esta revista é uma publicação da Escola dos Magistrados da Bahia, com tiragem de 2000 exemplares. Os artigos assinados não expressam necessariamente a opinião da EMAB e são de responsabilidade de seus autores.
Rua Arquimedes Gonçalves, nº 212, Jardim Baiano, Nazaré, Salvador (BA), CEP: 40.050-300 (71) 3321-1541/0844 secretaria@emab.com.br coordenação@emab.com.br imprensa@amab.com.br www.emab.com.br
REVISTA ERGAOMNES OMNES REVISTA ERGA
EDITORIAL Maria do Socorro Barreto Santiago Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
Na apresentação de mais um número desta publicação que tanto nos orgulha, tenho a satisfação de lembrar alguém muito especial. Filho de Eulália Leal Araújo e João Amado, Jorge Amado de Faria nasceu em Itabuna, em 10 de agosto de 1912. Antes de completar dois anos de idade, mudou-se para Ilhéus, onde viria a passar sua infância. Já em Salvador, com menos de 15 anos começou a trabalhar em jornais e a participar da vida literária, sendo um dos fundadores da Academia dos Rebeldes, grupo de tendência modernista. Seu primeiro romance foi “O País do Carnaval”, de 1931. Seguiram-se diversos livros, muitos deles adaptados para teatro, cinema e televisão, como: “Tieta do Agreste”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e “Gabriela”. Ler Jorge Amado é atirar-se em uma experiência sensorial. A cada página dá para sentir o cheiro do dendê, do cravo e da canela. O dengo da mestiça, a ginga do malandro e a fé do devoto misturam-se na pena daquele que, como ninguém, soube unir pureza e volúpia: Teodoros e Vadinhos. Perguntado sobre os motivos que o levaram a ser um escritor, ele respondeu: “Na verdade, eu não sei fazer outra coisa. Há um número de coisas que todo mundo sabe fazer e eu não sei fazer. Então, primeiro, eu escrevo, porque, bem ou mal, é a única coisa que sei fazer[...]”. Assim, fazendo o que sabia fazer, Jorge nos levou ao mundo. Sim, o levou a nós. Porque seus personagens tinham o nosso nome, a nossa cor e a nossa sensualidade. Comiam o que comemos, usavam os nossos perfumes e rezavam onde rezamos. Era isso que Jorge sabia fazer: contar nossas histórias e nos tornar protagonistas e plateia, livro e leitor. Estamos no centenário do seu nascimento e há muito o que comemorar. Jorge se foi, mas não nos deixou. Está nos livros e na saudade, que é a memória do coração. Se o amor é imortal, quem é Amado vive para sempre. Hoje lembramos Jorge no Cravo e na Canela, na Flor e na Gabriela. Nas Terezas e no Agreste, das Tietas e dos tietes. Vagueia por Terras sem Fim, entre Jubiabás e Balduínos; por vezes se perde de mim, mas se é Capitão de Areia, decerto está com os meninos. Chamem Quincas, gritem Perpétua, tragam Nacib, evoquem Vadinho; quero comunicar a todos que a Santa não sumiu, ela está com Jorge e com Zélia na casinha do Rio Vermelho, abençoando as cinzas de um amor que nem a morte desuniu. Boa leitura
SUMÁRIO ARTIGOS O penalista Jorge Amado - Sérgio Habib Desconstruindo a ordem pública - Bernardo Montalvão A acessibilidade ao Judiciário dos processos da Justiça Desportiva - Camila Santos Maia Jurisdição constitucional - Edvaldo Brito As medidas cautelares - Laís Lisboa Princípio da Reserva Parlamentar - Louise de Melo Cruz A determinação da paternidade na reprodução assistida heteróloga - Nalim Falcão Maracajá Legislação simbólica - Paulo César, Raquel Bezerra e Tagore Trajano Conflito entre princípios - Victor Queiroz O mandado de segurança e as restrições infraconstitucionais à sua efetividade - Edmilson Jatahy Fonseca Junior
10 17 23 35 53 68 80 91 105 121
AÇÃO CIVIL PÚBLICA Ana Conceição Barbuda
127
AÇÃO PENAL PÚBLICA César Batista de Santana
131
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - ADI Gesivaldo Bitto
138
SENTENÇA José Góes Silva Filho
149
ACÓRDÃO Edmilson Jatahy Fonseca Junior
157
POESIAS Oswaldo Bonfim
167
REVISTA ERGA OMNES
Artigos
Sérgio Habib Bernardo Montalvão Camila Santos Maia Edvaldo Brito Laís Lisboa Louise de Melo Cruz Nalim Falcão Maracajá Paulo César, Raquel Bezerra e Tagore Trajano Victor Queiroz Edmilson Jatahy Fonseca Junior
REVISTA ERGA OMNES
O penalista Jorge Amado (Aspectos penais na obra amadiana)
Sérgio Habib
É Advogado Criminal. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Professor de Direito Penal na mesma instituição. Pós-Graduação na Universidade da Sorbonne, Paris. Ex-professor da UNICEUB, Brasília, da FIG, São Paulo e do Curso de Pós-Graduação da Universidade Atual da Amazônia, da UNIFACS, Bahia e da UNIME, Bahia. Defensor Público Federal junto ao Superior Tribunal de Justiça. Ex-Secretário de Estado da Segurança Pública da Bahia. Membro da Academia Brasileira de Direito Criminal, da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, da Academia de Letras de Itabuna e da Academia de Cultura da Bahia. Autor de várias obras jurídicas. Diretor Penal da Revista Consulex, Brasília. Vice Presidente da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas. Palestrante convidado em Universidades brasileiras e do exterior.
Muitos estarão se perguntando, como, certamente, gostariam de me perguntar, qual a ligação, ou por outra, qual a relação de Jorge Amado com o Direito Penal? Jorge Amado era, além de notável romancista, também um penalista? Posso afirmar que sim e que não. Sim, porque ele é um escritor universal e como tal criou personagens com cariz penal. Enquanto romancista penetrou na alma humana, prescrutando-lhe os anseios mais profundos, os desejos mais secretos, os sonhos mais inimagináveis, e, assim, desvendou mistérios e dissipou dúvidas. Não, porque ele não se fechou nos limites da dogmática pura, elaborando conceitos e estabelecendo princípios compatíveis com a ciência penal. Bem como, não aplicou sanção, não condenou ninguém, não se limitou a impor a lei, nem a fazer da culpabilidade o motivo da salvação ou da danação do homem. Por tudo isso, Jorge Amado não foi um penalista na essência da palavra, mas foi sem dúvida um grande penalista na licença da palavra! Em seus trinta e sete romances, encontramos bem mais direito penal do que nas infindáveis obras jurídicas que se escreveram sobre a ciência penal. Os seus personagens são, por assim dizer, a dramatização do Código Penal e de resto toda a legislação extravagante. Ninguém melhor do que ele soube, com elevada arte e particular engenho, demonstrar o iter criminis de um adultério, até bem pouco tempo o adultério era crime e tinha tipicidade no Art. 240 do CP, ou de um crime de mando, descrevendo a conduta do sicário escondido atrás de uma árvore à espreita da vítima cruzar-lhe o caminho. Com
8
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
ele sofremos a angústia do criminoso e a dor dilacerante dos projéteis rasgando a carne do indivíduo marcado para morrer. Quem, por outro lado, melhor do que ele tracejou a saga dos desbravadores do cacau, aqueles homens desassombrados que plantaram os primeiros cacaueiros na região sul da Bahia, nas terras grapiúnas, cujos frutos de ouro impulsionaram décadas a fio o desenvolvimento do estado? Ao narrar-lhes a luta pela terra Jorge Amado terminou por escrever um verdadeiro tratado de direito penal, em que não faltaram tipos penais que foram desde o homicídio qualificado por motivo torpe, ou à traição, ou de emboscada, ou mediante paga ou promessa de recompensa, até o delito de lesões corporais graves ou gravíssimas, passando pelo latrocínio, pela lesão corporal seguida de morte (preterdolosa), pelo roubo, furto, pelos crimes contra os costumes, o estupro, o atentado violento ao pudor, os crimes contra a honra, a calúnia, a difamação e a injúria. Em Capitães da Areia, por exemplo, Pedro Bala, o personagem central, ensinou-nos mais direito penal do que se poderia aprender lendo as glosas dos mestres de Tombo ou as lições da exegese alicerçadas unicamente nas teorias explicativas da ciência pura. Com aquelas crianças abandonadas da sorte no velho trapiche, aprendemos que nem sempre as construções teoréticas fundadas no livre-arbitrismo explicam os desvios de conduta humana e que, em muitos casos, as justificativas encontradas pela Escola Sociológica, lastreada no pensamento de Ferri, apresentam-se bem mais compatíveis com a realidade humana do que se poderia imaginar. Foi preciso, portanto, que os liderados por Pedro Bala, saíssem a furtar pelas velhas ruas da Bahia para que enxergássemos que a dicção do Art. 155 do Código Penal (que trata do delito de furto) ou as normas contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Enfim, que a legislação, seja ele comum ou especial, não pode simplesmente ser aplicada assim, sem mais nem menos, como se no crime do meu semelhante não houvesse um pouco do meu crime. Foi necessário, pois, que o penalista Jorge Amado desnudasse aquelas crianças raquíticas e imberbes para que pudéssemos enxergar que as suas faltas, ou atos infracionais (se se preferir), lá o que forem, não eram tão culpadas como pareciam ser aos olhos de uma sociedade burguesa ocidentalizada com todos os cacoetes e idiossincrasias que podem acometer a uma sociedade elitista e castradora, eminentemente freudiana, ou junguiana, ou pior kafkiana, ou simplesmente foucaultiana como a nossa que constrói presídios com muros altos e grades para que, nos dizeres de Oscar Wilde, Cristo não veja o que o homem fez com o seu irmão. Jorge Amado, sem que o tivéssemos na conta de um penalista, descreveu-nos como se realiza uma tocaia, e das grandes, e como se banaliza a morte quando o assunto é a posse e a conquista da terra. Assim, quem leia Tocaia Grande (a face obscura), terá a oportunidade de incursionar pelos labirintos da natureza humana e retirar-lhe dos escaninhos mais recônditos as virtudes e os pecados, as carências e os excessos. Por certo, a leitura dessa obra magistral ser-nos-á decisiva para compreender a personalidade do delinquente, sua vida pregressa, sua conduta social, sua culpabilidade, seus motivos e razões para delinquir Deste modo não olvidar da participação da vítima, como se estivéssemos a proceder à verdadeira dosimetria da pena, nos exatos termos do Art. 59 do Código Penal. De outra banda, o estudo criminológico procedido
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
9
REVISTA ERGA OMNES
na personagem Damião, o pistoleiro que figura no romance em apreço, revela bem o pensamento do penalista Jorge Amado. Para ele, ninguém é totalmente mau que não possa carregar consigo algo de bom, até mesmo o facínora do Damião, homicida reincidente que demonstra, todavia, arrependimento, o que nos leva a dizer que o homem mau amadiano não é apoditicamente mau. Assim como aconteceu com Damião, outros estariam em idêntica situação, como, v.g., o cangaceiro Lucas Arvoredo, em Seara Vermelha, tão mau que matava sorrindo, como tão bom que estanciava todo o mal apenas para ver um pato de cordas andar atabalhoadamente. Assim, o homem mau da obra amadiana, fosse ele representado pelo pistoleiro Damião, ou pelo temido cangaceiro Lucas Arvoredo, em Seara Vermelha, ou o Capitão Justo, o testicocéfalo que batia em mulheres e as estuprava, como o fez tantas e tantas vezes, até que fosse sangrado com uma faca de cortar carne seca, por Tereza Batista, transformada em “Tereza Medo Acabou”, na obra Tereza Batista cansada de guerra. O homem mau da obra amadiana, repito, apesar de praticar condutas abomináveis, matando, estuprando, sequestrando, espalhando o terror, enfim, praticando crimes hediondos, tinha sempre o seu momento de bondade. Havia nele um lado manso e um gesto largo, a evidenciar que Jorge Amado, como se fora um autêntico demiurgo no ato de criação das personagens, se lhes dotou da capacidade de fazer o mal, igualmente lhes bafejou na alma a possibilidade de fazer o bem, numa simbiose impar como a afirmar que somos todos santos e demônios, nem totalmente santos nem inteiramente demoníacos, mas santos e demônios, ambas as facetas da personalidade humana desapegada de hipocrisias ou desvestida de máscaras. Ao conceber a personagem Zé Trevoada e dotar-lhe da capacidade de fazer o mal, Jorge Amado, como autêntico penalista, erigiu a figura do criminoso sanguinário. O mesmo que encontramos no cotidiano das cidades ou dos campos, aquele que mata sem sentido, aperta o gatilho como quem acende um cigarro, com o mesmo descompromisso ético ou moral de quem pratica gestos banais ou inconsequentes. A capacidade de indignação de que somos possuídos ao nos depararmos com um crime extremamente violento e sem sentido, somente consegue ser superada pela perplexidade em sabermos que somos inteiramente incapazes de explicar a verdadeira razão pela qual o homem mata, rouba, estupra, sequestra, enfim e pratica crimes. Embora saibamos que quando ele resolve ser mau, nenhum outro ser ou criatura consegue suplantar-lhe a capacidade de fazer o mal, já que a espécie humana é a única que mata, não por força de uma cadeia alimentar, mas pelo simples prazer de matar ou simplesmente por matar. Somos, portanto, esses seres complexos e simples ao mesmo tempo. Simples porque sorrimos quando estamos felizes, mas extremamente complexos, pois, na maioria das vezes, por detrás desse sorriso, aparentemente inofensivo e despretensioso, escondese o maior enigma do universo, assim como nos lábios da Gioconda se encerra todo o mistério da natureza humana. Eis como nos apresentamos na grande cena da comédia humana: se, de um lado, criativos e científicos, conseguimos conceber chips e megabytes, cateteres e microssistemas, ipods, ipads, microcelulares, minúsculas câmeras e transistores,
10
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
fertilização in vitro ou clonagem de seres, viagens interplanetárias ou supertelescópios, cirurgias altamente sofisticadas laparoscópicas, até de transplante de face ou coronarianas as mais complexas; enfim, se impetramos avançar tanto no campo da tecnologia e das ciências exatas ou da medicina, continuamos primitivos como nossos ancestrais quando o assunto é explicar a natureza humana, de tal maneira que nos tornamos verdadeiros néscios diante de uma simples pergunta até hoje não respondida eficazmente: por que o homem pratica crimes? Nós outros, criminólogos e penalistas, até que tentamos, erigindo um sem número de teorias, explicar essa capacidade que tem o homem de delinquir, mas acredito que em nenhuma delas conseguimos, com a precisão com que esclarecemos o Big-Bang, desvendar esse grande mistério da natureza humana. Jorge Amado, sem ser penalista, também tentou explanar o crime, fazendo-o admiravelmente por meio de centenas de personagens, inúmeras delas identificadas com o problema penal. Para isso, empreendeu uma viagem espetacular pelos meandros e labirintos da natureza humana, abrindo-lhes os escaninhos mais esconsos. Nessa viagem, verdadeiras entradas e bandeiras da alma humana, impetramos divisar virtudes e identificar defeitos, enxergamos anjos decaídos, assim como nos deparamos, de quando em vez, com beatos e puritanos, fato comum num percurso ou numa jornada em que a paisagem não é outra senão a natureza humana. Subimos e descemos ladeiras da velha Bahia, suas ruas estreitas e sinuosas e seus cais encantados em que tantas vezes atracaram os saveiros, entre eles o Valente, de Guma e de Lívia, de Januário Gereba, gigante do mar, amor de Tereza Batista, ou o navio do Capitão Vasco Moscoso de Aragão, o Capitão de Longo-Curso. Pulsamos juntamente com Pedro Archanjo e com ele enfrentamos o preconceito racial ao discordar das teorias acadêmicas do catedrático Nina Rodrigues (ou Nilo Argolo), sobre a mulatice e a inferioridade da mestiçagem, tão presente em a Tenda dos milagres. No Pelourinho, estanciamos para entender os mistérios que habitavam o velho casarão 68 de porta, a tosse da mulher tísica ou os segredos de Sebastiana, a surdamuda, ou o “dos dentes de fora”, Artur Catoco, tudo isso em Suor. Visitamos o baixomeretrício do 63, na Ladeira da Montanha, e a pensão Monte Carlo, para entender as “putas” e os “vagabundos” da Bahia de todos os santos e de Tenda dos Milagres, percorremos a Feira de São Joaquim para conhecer os malandros do carteado, as rodas de capoeira para ver os “rabos de arraia” dos desordeiros e brigões de rua. Fomos ao subúrbio de Periperi para visitar o adorável Capitão Vasco Moscoso e conhecer de perto o grande mitômano da obra amadiana, o contador de histórias por excelência, o estelionatário dos sonhos, mas, ao mesmo tempo, a personagem das mais amadas de Jorge, que venceu os ventos de todos os quadrantes desde o Simun ao Harmatã, dos ventos Elísios ao Mistral, do Terral ao Aracati, das Monções do Oceano Índico aos ventos do Nordeste, apenas porque sem saber o que fazia, determinou que o seu navio atracado no porto de Belém fosse preso com todas as amarras, com todos os nós. Jorge Amado, que não deixa o seu herói na desonra, sai em sua defesa e salva-lhe o navio, o único que resistiu à borrasca violenta que se abateu sobre a capital paraense. Voltamos no tempo, ao início do século XX, e nos embrenhamos pela Mata Atlântica
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
11
REVISTA ERGA OMNES
e fomos testemunhar o surgimento dos coronéis do cacau, nas terras de Ilhéus, Itabuna e Pirangi, verdadeiras terras do sem-fim. Estudamos os crimes de mando praticados pelos cauaçus e jagunços dos Badarós e do coronel Horácio ou a criminalidade sofisticada dos exportadores de cacau, mais adiante retratada em São Jorge dos Ilhéus e em Terras do sem-fim. Analisamos o perfil criminológico do coronel Ramiro Bastos e a reação corajosa do forasteiro Mundinho Falcão, que ousou enfrentar o poder constituído e instalado na conservadora sociedade ilheense, de meados do século XX, que aceitava a traição masculina praticada pelos coronéis do cacau e suas amantes e abominava a infidelidade feminina, até surgir Gabriela, toda faceira, com sua cor de canela e seu aroma de cravo, e revolucionasse os conceitos até então vigentes. Gabriela é o protótipo da liberdade e a prova viva de que não se pode conter num dique o rio das emoções e sentimentos humanos, restringindo-o nos apertados limites de suas margens. Gabriela rompe esse dique, porque ele é o próprio estuário das emoções, a foz dos sentimentos e o delta das sensações que serpenteiam desde a serra, que é a alma humana, descendo pelo vale das atitudes até chegar à amplidão do mar, que outra dimensão não é senão a totalidade do ser e a essência de nós mesmos. Por meio de Gabriela e de Ester, da baronesa Marie-Claude (Tocaia Grande), casada com o barão de Itauaçu, e que o traiu com o negro Castor Abduim, e de d. Sinhazinha Guedes, Jorge Amado busca explicar as razões do adultério, nem sempre muito bem compreendidas pela tolerância das pessoas. Pela personagem d. Flor, ele demonstra também quanto pode a mulher ser fiel ao marido morto, que somente aceita traí-lo com o próprio desencarnado, criando a figura surrealista de uma relação a três, sendo que um dos integrantes é volátil, gasoso, fluído... alma do outro mundo. Por intermédio das personagens que figuram nas obras Capitães da areia, o sumiço da Santa, Tereza Batista cansada de guerra, São Jorge dos Ilhéus e outras, Jorge Amado procura explicar o furto e o roubo, justificando-os em determinados casos, por razões econômicas ou pelas diferenças de classes sociais, de acordo com a sua visão marxista com a qual ele se identificou durante grande parte de sua vida. Os homicídios qualificados pelas circunstâncias “mediante paga” ou “promessa de recompensa”, estão presentes em inúmeras obras, por conduto de vários personagens, a saber: em o Sumiço da Santa, Zé do Lírio, temente a Deus e ao padre Cícero Romão, foi o pistoleiro contratado pelo coronel Joãozinho Costa para matar o padre Abelardo Galvão, pagamento adiantado, já que “a justiça dos doutores anda emperrada e os filhos-dasputas desses padres estão se fazendo de besta, invadindo terras alheias à frente de jagunços”. Afinal, reservou-se a essa personagem que encarna o pistoleiro de aluguel, o sicário, temível pistoleiro de pontaria certeira e indefectível? Páginas seguintes do romance contam-nos que “Zé do Lírio, pistoleiro pernambucano de fama interestadual, o da pontaria infalível, atirou: matou e abandonou para sempre a profissão. Seis tiros disparados e perdidos. Cinco contra o sacana do padre, um no próprio peito para morrer como um valente.” Zé do Lírio apelou à penitência. Recomendava ao rico a renúncia aos bens terrenos, convocava os pobres para a romaria final do Cariri, aconselhava o abandono do trabalho
12
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
e a prática da oração. Enfim, se não morreu, encantou-se. Há quem diga, todavia, que a “polícia paramilitar às ordens do Exército, engajada na guerra contra a subversão, tomou-o preso, deu-lhe uma surra mestra com bainha de facão, acusou-o de comunista perigoso e o processou por agitação de massas camponesas, até marxista-lenilista lhe disseram”. Eis como terminou a saga de um pistoleiro de aluguel, contratado para matar um padre, cujo crime não teve seguimento no iter criminis. Crime tentado, tentativa perfeita ou imperfeita ou desistência voluntária? São dúvidas que o romancista-penalista levanta, propositadamente. A santa, sumira de verdade? Enfim, tudo isso se passou..., ou não se passou na cidade da Bahia. Em Tocaia Grande (a face obscura), Natário da Fonseca encarna esse papel (pistoleiro), uma vez que era o capataz e jagunço do coronel Boaventura Andrade: “Primitivo nas letras, embora dotado de grande inteligência, a ela tanto bastava seguir religiosamente as ordens do coronel e para tocaiar alguém não precisava de muita sofisticação não, basta uma árvore bem situada e um cabra bom na mira”. Tocaia era a forma preferida de matar-se entre os coronéis do cacau e executada pelos jagunços. Tocaia é a morte espreitando, a emboscada, o homicídio premeditado, qualificado por excelência e pela forma de execução. Coube-lhe a missão de arregimentar jagunços para enfrentar os capangas do coronel Elias, adversário do coronel Boaventura. O capataz Natário, o mameluco, assim chamado pelo coronel Boaventura, possuía todas as características necessárias ao bom jagunço: olhos de lince, ouvidos caninos e movimentos felinos, esgueirava-se como cobra, enfim, era uma simbiose humanaanimal. Por isso, podia “perceber qualquer ruído suspeito: galho sendo quebrado para abrir passagem, escorrego na lama, uma voz, cicio de conversa... Poderá escutar até mesmo, quem sabe, o pio da coruja, mas duvida”. A descrição da tocaia feita por Jorge Amado consegue ser algo genial. A tocaia que se estava a prenunciar seria a maior de quantas se tinha notícia naquelas terras grapiúnas. Chegou-se a dizer que haveria de ser bem maior do que as primeiras lutas travadas entre os coronéis do cacau, dentre os quais Basílio de Oliveira e os Badarós, estes últimos retratados em Terras do sem-fim. Sobre a obra de Jorge Amado, diria Affonso Romano de Sant‘Anna, em posfácio a um de seus romances: “a realidade injeta vida na ficção e a ficção injeta vida na realidade”, de tal sorte que “ali não se sabe se estamos no livro ou na vida”. Assim, é o penalista Jorge Amado. Penalista, anti-dogmata, romancista, itabunense, grapiúna, escritor de putas e vagabundos (como ele gostava de definir-se) e contador de histórias, mas traduzido em nada mais, nada menos, do que em 56 países. Esse Jorge, por todos admirado, acariciado... amado! que foi de tudo na vida um pouco e que foi pouco na vida por ser muito. Jorge de largas ideias, de ideias mais largas ainda, ainda de ideias e de largas, de largas, de ideias e de Jorge... Jorge de ideias penais, ideias penais em Jorge, Jorge, ideias, ideias, ideias... de Jorge. Conferência pronunciada na Academia de Letras Jurídicas da Bahia, em semana dedicada a Jorge Amado, na data de 3 de junho de 2011.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
13
14
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA REVISTA ERGA ERGA OMNES OMNES
Desconstruindo a ordem pública e reconstruindo a prisão preventiva. Uma breve incursão em torno da prisão preventiva a partir de uma análise retórico-analítica, com espeque nos estudos desenvolvidos no âmbito da Filosofia do Direito. Nesse sentido, o texto propõe uma análise filosófico-retórico em torno de um aspecto específico do Processo Penal, qual seja: a questão da ordem pública enquanto hipótese de decretação da prisão preventiva.
Sumário: 1. Desconstruindo a “ordem pública”; 2 Reconstruindo a prisão preventiva. Palavras-chave: 1. Desconstruindo a “ordem pública”; 2 Reconstruindo a prisão preventiva.
Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo
Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) na Linha de Limites do Discurso com a dissertação: O ato de decisão judicial - uma irracionalidade disfarçada. PósGraduado em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação da UFBA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Professor de Direito Penal da Universidade Salvador (UNIFACS); Professor de Processo Penal da UCSAL; Analista Previdenciário da Procuradoria Federal Especializada do INSS. Autor do livro: AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. A importância dos atos de comunicação para o processo penal brasileiro: o esboço de uma teoria geral e uma análise descritiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 215 p. Área de dedicação e pesquisa: Direito Penal, Direito Processual Penal, Hermenêutica Jurídica e Filosofia do Direito.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
15
REVISTA ERGA OMNES
1. DESCONSTRUINDO A “ORDEM PÚBLICA” Quando se reflete sobre a “ordem pública” como hipótese de cabimento da prisão preventiva (CPP, Art. 312), o estudioso do assunto defronta-se com um sério problema hermenêutico, dentre tantos outros. Tal problema refere-se à melhor conceituação que se pode atribuir a essa expressão. Quando se reflete sobre o ato de conceituar, é preciso lembrar que todo conceito é uma metáfora (NIETZSCHE, 2007), vez que é sempre a generalização de um evento singular e irreptível1. Aliás, entre o evento e a linguagem há sempre uma generalização ao quadrado. Há sempre dois abismos gnosiológicos que se colocam entre o evento e o conceito2. O primeiro se encontra entre o evento e o pensamento que este desperta no observador. O segundo reside entre o pensamento e o uso da linguagem. Linguagem que, como se sabe, vale-se do uso de conceitos. Os conceitos, por sua vez, são metáforas da realidade que foi experimentada por meio do arsenal sensorial humano, a partir dos quais se constitui a memória. Ah, a memória, esse arquivo de símbolos, cárcere do aprendizado3 e depósito de culpas. Nesse contexto, é possível concluir que não há uma identificação entre conceitos e eventos4. Conceitos são como máscaras, ao mesmo tempo em que escondem a individualidade do ator, auxiliam na representação de um personagem5. A individualidade do ator é a atuação do ser humano no teatro de sua existência. O personagem é um papel da peça da vida6. Esta peça escrita por um único roteirista: a linguagem7. Uma criança levada que joga dados com os signos8, que brinca com o silêncio9, que se vale dos gestos e abusa da imagem. Eis o que é a razão moderna: um milagre derivado da fé humana na linguagem10. Ciente desses esclarecimentos, a primeira recomendação que é cabível quanto ao uso da expressão “ordem pública” é que seja entoado pela doutrina o réquiem à ingenuidade. Não convém discutir qual seria, em tese, a melhor definição de tal expressão, vez que todo significante tem o seu significado determinado pelo intérprete diante das 1. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira. Trad: Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2007, p. 9. 2. ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 212. 3. BRICMONT, Jean; SOKAL, Alan D. Imposturas Intelectuais: O Abuso da Ciência pelos Filósofos Pós-Modernos. São Paulo: Record, 2006, p. 56. 4. CÍCERO, Marco Tulio. Retórica à Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, p. 33. 5. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veja Editora, 1992, p 45. 6. LUHMAN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Trad. Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus Editora, 2002, p. 23. 7. BLUMENBERG, Hans. Las realidades em que vivimos. Madrid: Paidos, 1999, p 102. 8. AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. O ato de decisão judicial: uma irracionalidade disfarçada. No prelo, p. 193. 9. CUNHA, Tito Cardoso. Silêncio e Comunicação: Ensaio sobre uma retórica do não-dito. Lisboa: Livros Horizonte, 2005, p. 49. 10. ADEODATO, João Maurício. A Retórica Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 27.
16
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
peculiaridades de cada caso e segundo os valores determinantes11. Em suma, se o significante é semântico e sintático, todo significado é pragmático. Logo, discutir se a expressão “ordem pública” deve ser entendida como clamor público ou como a prática de um crime de relevante gravidade12, por exemplo, é uma discussão inútil. Tal discussão só tem algum sentido para os adoradores da legalidade e os beatos da segurança jurídica. Desse modo, é preciso adverti-los: a credulidade é irmã da ingenuidade13. Ademais, é preciso anotar que a linguagem não é o produto de uma convenção racional humana em torno do emprego de alguns signos. Isto porque, se assim fosse, forçoso seria admitir que a razão precede à linguagem, o que é, por óbvio, um absurdo lógico. Afinal, como é possível haver razão sem uma linguagem prévia que a constitua? Sendo assim, a origem da linguagem não se encontra em uma convenção, mas no instinto humano. Aqui, uma vez mais, é preciso invocar Nietzsche (2007), e lembrar que o instinto humano é uma finalidade criada pelo próprio homem de forma inconsciente14. Essa finalidade não é outra, senão a de sobrevivência. Convém salientar que a origem da linguagem se confunde com a necessidade de sobreviver do homem. Logo, a linguagem é uma tentativa inconsciente do homem de sobreviver em um mundo que lhe é inóspito e, ao qual, não se encontra adaptado. A linguagem esconde consigo muitos outros mistérios15. Um deles é a sua relação intrínseca com o tempo. De um lado, somos levados a pensar que o tempo é um produto da linguagem, vez que se trata de uma convenção racional humana. Entrementes, o ser humano, em um dado momento da história, não se sabe exatamente qual nem em que lugar, começou a constituir uma linguagem. Em outros termos, a linguagem é um acontecimento histórico, mas, por outro lado, a história é produto da linguagem16. Eis a teia na qual o bicho homem se encontra envolvido. Não sabe do que fala, nem quando começou a falar, só sabe que fala e que precisa falar, ainda que não saiba, exatamente, se fala do mundo que o cerca, ou, apenas, e o tempo todo, de si próprio17. Esclarecida a natureza metafórica peculiar a todo conceito, logo se percebe que o conceito, “ordem pública”, pode ser desconstruído. Desconstruir não é destruir conceitos, mas reconstruí-los (DERRIDA, 2010)18 de acordo com a singularidade do caso e dos valores envolvidos. Afinal, todo conceito é uma caricatura da percepção19. A percepção, esse fenômeno que o processo penal nomina como prova, é sempre limitada. 11. ROSS, Alf. Tû-Tu. Trad: Genaro Carrió. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1976, p. 31. 12. LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 251. 13. NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 24. 14. NIETZSCHE, Friedrich. Retórica. Trad. Tito Cardoso Cunha. Lisboa: Vega, 2002, p. 44. 15. BLUMENBERG, Hans. Las realidades em que vivimos. Madrid: Paidos, 1999, p.86. 16. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira. Trad. Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2007, p. 22. 17. BRICMONT, Jean; SOKAL, Alan D. Imposturas Intelectuais: O Abuso da Ciência pelos Filósofos PósModernos. São Paulo: Record, 2006, p. 62. 18. DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 37. 19. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 148.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
17
REVISTA ERGA OMNES
Como restringida é a compreensão humana sobre a singularidade do evento, pois o todo é demais para o ser humano (COUTINHO, 2002)20. O ser humano, em tempos de modernidade tardia ou pós-modernidade, não é o super-herói racionalista de Descartes, mas o ser carente de Blumenberg21. Assim falou Zaratrusta22! Logo, o artigo 312 não é uma norma, mas um texto de lei (SOBOTA, 1996)23. O texto de lei não se confunde com a norma, antes colabora de forma parcial com a sua produção. A norma é o fruto da relação dialética entre texto de lei, caso e valor (ADEODATO, 2009)24. Enquanto a lei é genérica, a norma é concreta. À medida que a lei é declarada, a norma é construída. Enquanto existir um seminarista doutrinado pela Escola de Exegese haverá o desejo de que o processo penal busque uma verdade (real, formal, processual, lá qual for...) e de que o intérprete alcance o espírito da norma, como se o processo hermenêutico fosse uma “lipoaspiração epistemológica” (STRECK, 2000)25. Pobres fiéis!
2. RECONSTRUINDO A PRISÃO PREVENTIVA Ora, se a expressão “ordem pública” não é norma, e se a norma não é uma entidade fantasmagórica errante possuída por um espírito obssessor que precisa ser exorcizado pelo sacerdote intérprete, então, é possível reconstruí-la. Eis o ponto, é preciso reconstruir, em tempos de sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997)26, o conceito de “ordem pública”, de sorte a adequá-lo à realidade social contemporânea (bem diferente daquela existente nos idos da década de 40, quando o Código de Processo Penal vigente foi gestado) e harmonizá-lo à natureza cautelar da prisão preventiva. Assim, reconstruir a “ordem pública” é salvaguardar a tão combalida presunção de inocência. Sempre tão propalada, nunca antes pela média tão questionada! Reconstruir a “ordem pública” implica compreendê-la com os olhos de Orwell (1984)27 e com a advertência de Foucault (2007)28 inspirada em Bentham(2008)29. Se for o “clamor publicado” que importa “ordem pública”, então, é a partir da lógica do “reality show” que esta expressão precisa ser reconstruída pelo Processo Penal contemporâneo. Isto 20. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza” de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito, in Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 65. 21. BLUMENBERG, Hans.El mito y el concepto de realidad. Madrid: Herder, 2004, p. 201. 22. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis: Vozes, 2008, passim. 23. SOBOTA, Katharina. “Não mencione a norma!”. Anuário dos Cursos de Pós-graduação em Direito, n. 7. Trad. João Maurício Adeodato. Recife: Universitária da UFPE, 1996, p. 129. 24. ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 214. 25. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 152. 26. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo – Comentários sobre a sociedade do espetáculo. São Paulo: Contraponto Editora, 1997, p. 71. 27. ORWELL, George. 1984. Trad. Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, passim. 28. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 89. 29. BENTHAM, Jeremy. O Panoptico. Trad. Tomza Tadeu da Silva. São Paulo: Autêntica, 2008, passim.
18
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
porque na sociedade do espetáculo a eloquência das imagens substituiu a sonolência das palavras. As relações sociais tornaram-se representações cênicas e os indivíduos foram substituídos por pessoas. Como se sabe, ser pessoa é atuar (HOBBES, 2003)30 segundo o enredo da cultura de massa estabelecido pelas modernas condições de produção. Deste modo, quando o mundo real se tornou uma “república das imagens”, o Processo Penal se tornou um “game show” e a sentença uma mercadoria “fast food” (BAUDRILLARD, 2008)31, os meios de comunicação de massa se transformaram em máquinas de alienação do indivíduo (RAMONET,2007)32. Ora, quando os meios de comunicação de massa foram alçados a tal condição, a média se tornou o “grande irmão”, que tudo vê e a todos vigia. Neste instante, foi reconstruído o significado da expressão “ordem pública”. O clamor público que antes justificava a decretação a prisão preventiva, torna-se, então, motivo de manutenção da liberdade do acusado durante o curso do processo. Afinal, para que prender alguém que se encontra vigiado? Quando o inquérito policial se transformou em chamada de abertura do telejornal que vai ao “ar” em rede nacional, o modelo do panóptico foi reinventado, e o acusado de desconhecido se tornou celebridade. Para que prender alguém que já perdeu a liberdade? Por conseguinte, quando as relações sociais se tornaram mais complexas, as instâncias informais de controle, a exemplo: a religião, diluíram-se e o Direito experimentou uma “sobrecarga ética” (ADEODATO, 2009)33, o Processo Penal se viu obrigado a se adaptar a essa nova realidade. Neste contexto, a expressão “ordem pública” tornou-se motivo de manutenção ou concessão da liberdade ao acusado (CPP, artigo 310, parágrafo único). Assim, a “ordem pública” transformou-se em hipótese de revogação da prisão preventiva, por ausência de qualquer cautelaridade (inexiste o periculum libertatis) e em respeito à preservação da presunção de inocência (princípio que determina a subsidiariedade do instituto da prisão provisória). Afinal, qual é a possibilidade de fuga para o acusado quando este tem o seu rosto mostrado, repetidas vezes, em todo o território nacional? Qual é o perigo que a “liberdade” do acusado traz ao processo, se ele já se encontra vigiado pelas câmeras e encarcerado pelos holofotes? Se a expressão “ordem pública” não é um disfarce hermenêutico (DE MAN, 1996)34 para transformar a prisão preventiva em medida de antecipação de pena, então, força é convir que assista razão à tese aqui sufragada. Quando o Processo Penal se tornou a novela diária do telespectador alienado, o acusado se tornou o Cristo a ser crucificado. Ao acusado resta rogar aos céus e repetir as palavras do Messias dos cristãos: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”35! 30. HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 48. 31. BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade do Consumo. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 123. 32. RAMONET, Ignacio. A Tirania da comunicação. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 46. 33. ADEODATO, João Maurício. A Retórica Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 31. 34. DE MAN, Paul. Alegorias da leitura – Linguagem figurada em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 26. 35. DIVERSOS AUTORES. Bíblia Sagrada (Antigo Testamento. Novo Testamento. Evangelhos. Atos dos Apóstolos). Trad. Antônio Pereira de Figueiredo, notas de José Alberto de Castro Pinto. Rio de Janeiro: Encyclopedia Britanica, 1987, p. 289. EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
19
REVISTA ERGA OMNES
A ACESSIBILIDADE AO JUDICIÁRIO DOS PROCESSOS DA JUSTIÇA DESPORTIVA
O Direito Desportivo é responsável por regulamentar o esporte, sendo um ramo autônomo e constitucional. Baseia-se em um sistema semelhante ao Judiciário comum, mas possui ritos especializados. A Justiça estudada é uma instância administrativa, portanto, para que a parte que se sentiu lesada tenha Acesso ao Judiciário, é necessário esgotar primeiramente as instâncias da Justiça Desportiva. O presente artigo objetiva demonstrar como acontece o Acesso ao Judiciário dos processos Desportivos. Para seu desenvolvimento, houve pesquisas a livros, jornais, revistas e artigos da Internet. Concluiu-se, portanto que apesar deste condicionamento, o Acesso à Justiça não é cerceado. Palavras-chave: Processo. Direito Desportivo. Justiça. Acesso.
Camila Santos da Silva Maia
Graduanda do Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE). E-mail: camilassmaia@hotmail.com. Trabalho de curso como requisito à obtenção do grau de bacharel em Direito. Orientação do professor Tagore Trajano de Almeida Silva. Salvador, 2010.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
21
REVISTA ERGA OMNES
1. INTRODUÇÃO O Direito Desportivo é um ramo do Direito, tão antigo quanto o surgimento do esporte, autônomo e constitucional que regulamenta questões relativas ao cumprimento das normas e regras de prática esportiva, a fim de solucionar qualquer lide que, por ventura, possa surgir. Como toda conduta em sociedade é regulada, o mesmo acontece no mundo dos Desportos. É impressionante observar como foi rápido o aumento do interesse pelo esporte. Diversos fatores são responsáveis por esse interesse, como por exemplo, o surgimento de ídolos e o lançamento de marcas e produtos. Com o crescimento da atração pelo esporte, aumentou a prática, tanto profissional, quanto amadora, e, consequentemente, os conflitos e sua área jurídica. “O interesse do país pelo desportismo vai desde a sua função social (ascensão econômica e combate ao ócio), até o caráter nacionalista” (TASSO, 2008, p. 01). A Justiça Comum não é a instância adequada para dirimir as lides surgidas no campo esportivo. Ela carece de conhecimentos e ritos especializados para processar e julgar as transgressões cometidas no âmbito desportivo. Seria necessária uma instituição competente e autônoma para processar e julgar processos ligados exclusivamente ao Desporto. A Justiça Desportiva é específica e se baseia em um sistema semelhante ao Judiciário. Quando envolve questões relativas às competições, estas não podem enfrentar a lentidão do Judiciário. A Justiça Desportiva consegue a celeridade necessitada, inclusive por adotar prazos mínimos e também por valer-se de outras peculiaridades que serão examinadas neste artigo. “A Justiça Desportiva deve acompanhar a agilidade e a rapidez do esporte, estando, portanto, em constante movimento e evolução, tendo o condão de aplicar o Direito na busca pela Justiça, embasado no fundamento constitucional que lhe garante a própria existência” (DELBIN, 2009, p. 01). Quando ocorre alguma ação ou omissão antidesportiva relativa à disciplina e às competições, os litigantes recorrem às Comissões Disciplinares, aos Tribunais de Justiça Desportiva e ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva. É instaurado um processo, tal como ocorre na Justiça Comum. Segue princípios, comum a todo Direito, e as normas específicas, para que desta forma, busque-se a verdade, a segurança e, principalmente, a tão sonhada justiça. A Justiça do Desporto é considerada Administrativa, não se vincula diretamente à Justiça Comum. Esse fato é causa de uma sensação de insegurança e instabilidade a todos que desta Justiça se utilizam. Primeiro por ser considerado um ramo administrativo, existindo ainda a possibilidade de recorrer ao Judiciário, quando esgotadas as instâncias da Justiça Desportiva; segundo, porque a definição dos seus membros acontece por meio de
22
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
indicação/nomeação. A mudança nesses pontos objetivaria a neutralidade, a segurança e, principalmente, a qualidade dos julgados. “[...] A existência e o bom funcionamento dos órgãos judicantes é fundamental para o desenvolvimento do esporte brasileiro, e para a busca da moralidade e da ética no desporto” (KISHINO, 2009, p. 01). O presente artigo objetiva analisar a Justiça Desportiva. Primeiramente observaremos a sua evolução, conceito e constitucionalidade. Em segundo lugar, o balizamento legal e a competência dos seus órgãos julgadores. Após examinar o conjunto, aprofundaremos no processo desportivo, conhecendo um pouco da sua defesa e dos recursos passíveis de serem utilizados. Após o esgotamento das instâncias desta justiça, e somente após esta, é concedido aos litigantes, o acesso ao Judiciário. Finalmente, iremos verificar então, se o acesso à Justiça é comprometido.
2. A JUSTIÇA DESPORTIVA 2.1 EVOLUÇÃO, CONCEITO E CONSTITUCIONALIDADE A Justiça Desportiva é uma esfera especializada em resolver conflitos de interesses de matérias relativas à disciplina e às competições. Cabe a esta processar e julgar pessoas físicas ou jurídicas que estejam submetidas às suas codificações. Ela surgiu devido à necessidade das entidades se organizarem, preservando, assim, o direito dos desportistas. Em 1988, o Desporto alcançou um patamar constitucional, resumindo em um artigo apenas, obtendo inclusive previsão legal, localizado no Título VIII “DA ORDEM SOCIAL”, Capítulo III “DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO”, Seção III “DO DESPORTO” 1. A lei ao qual o artigo da Carta Magna se refere é o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). Muito se comenta sobre as supostas inconstitucionalidades presentes na Justiça Desportiva. Acontece que esta é desvinculada da Justiça Comum, sendo considerada administrativa. As críticas aumentam, pois os juízes comuns, uma vez não conhecendo a legislação própria em que o Direito Desportivo está inserido, não entendem os procedimentos. As pessoas costumam discutir um assunto que não conhecem e acabam 1. Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados: I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento; III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional; IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional. § 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. § 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final. § 3º O poder público incentivará o lazer, como forma de promoção social.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
23
REVISTA ERGA OMNES
por emitir opiniões equivocadas. Existe uma grande falta de conhecimento sobre a Legislação do Desporto. Não pelo desinteresse, mas por ser um ramo carente de obras doutrinárias. É uma matéria pouco trabalhada dentro do nosso ordenamento jurídico e não lecionada nos cursos de Direito. Talvez por este motivo, aconteçam tantos comentários desastrosos acerca desta Justiça, uma vez que é inerente ao homem discutir, mesmo sem compreender algum tema. O Direito Desportivo não é vinculado diretamente ao Poder Judiciário brasileiro, mas possui grande ligação com diversos ramos, como por exemplo: trabalhista, empresarial, entre outros: A partir da promulgação da Carta Magna, o Direito Desportivo começa a se firmar como um ramo autônomo, aperfeiçoando-se e ampliando a sua abrangência, indo buscar subsídios e amparos no Direito Civil (Contratos de Imagem; de franchising), no direito do trabalho (as relações de trabalho jogador/ entidade de prática desportiva), Direito Penal e Processual Penal (a punibilidade; a dosimetria da pena); Direito Tributário [...]. (KRIEGER, 2009, p. 01). 2.2 BALIZAMENTO LEGAL Já existiram alguns códigos, mas hoje estão em desuso como a lei Zico. Hoje, são três as principais regras que norteiam o Direito Desportivo: O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), o Estatuto do Torcedor e a Lei Pelé. O Estatuto do Torcedor, lei número 10.671/03, que tem como triunfo reconhecer o torcedor como consumidor, obrigando as instituições desportivas proteger o interesse deste, segundo ainda o entendimento de Cianni (2007). Antes dessa lei, existia uma grande dúvida se a relação entre as instituições e os torcedores era de consumo. Convém salientar que se concretizou a ideia de que o torcedor é de fato consumidor, portanto, deve ser tratado como tal, observando o código próprio. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva, foco deste artigo, promulgado em 2003, está em vigor desde janeiro de 2004, tendo sofrido alterações em 2006. É uma resolução ministerial e não uma Lei Federal como as outras. É resultado da unificação de dois outros códigos: o Código Brasileiro de Disciplina do Futebol, que tratava apenas sobre este esporte, deixando carentes os outros; e do Código Brasileiro de Justiça e Disciplina Desportiva que versava sobre todas as outras modalidades desportivas. Rumo à modernização, o Conselho Nacional do Esporte modificou recentemente o Código Brasileiro de Justiça Desportiva. É uma tentativa de adequação de algumas normas do nosso código, às internacionais e sanar algumas distorções. As mudanças promovidas entraram em vigor logo após a aprovação desta reforma. Este código prevê a organização e a composição da Justiça Desportiva, a jurisdição e a competência dos seus
24
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
órgãos. Dispõe, também, acerca das normas processuais, recursos possíveis de serem utilizados, as infrações e as penas atribuídas. Existe o projeto do Estatuto do Desporto, que acabará com todas essas leis esparsas e o código, unificando de uma vez todas as normas que regem o Desporto, facilitando inclusive o entendimento sobre esta matéria. Para o Ex-Ministro dos Esportes, Agnelo Queiroz, a sua importância está em “[...] congregar no Estatuto do Desporto toda a legislação esportiva brasileira, corrigindo-a, aperfeiçoando-a e atualizando-a, de modo a atender aos interesses do esporte e promover o seu desenvolvimento. [...]2”. O velejador, Presidente do Fórum Nacional de Secretários e Gestores Estaduais de Esporte e Lazer, Lars Grael, complementa: [...] Hoje, a legislação esportiva nacional é uma colcha de retalhos, uma obra inacabada e voltada para os interesses mercadológicos do futebol — alguns positivos e outros, nem tanto. Muitas vezes, o desporto olímpico, o paraolímpico, o de aventura, o de lazer e a inclusão social, por intermédio do esporte, ficaram à margem dessa legislação [...]3 2.3 COMPETÊNCIA A Justiça Desportiva é composta por entes autônomos e independentes, que são: as Comissões Disciplinares, os Tribunais de Justiça e os Superiores Tribunais de Justiça Desportiva. Estão previstos no Código Brasileiro de Justiça Desportiva, assim como a designação das suas respectivas competências. A Comissão Disciplinar constitui a primeira instância da Justiça Desportiva e funciona como primeiro grau de jurisdição. É criada pelo Tribunal de Justiça, de acordo com a necessidade, são criadas tantas quanto forem necessárias para agilizar a demanda. Seus representantes são nomeados pelo Tribunal ou Superior Tribunal, dependendo se o campeonato é estadual ou nacional. De acordo com Cianni (2007), elas são constituídas 48 horas antes do campeonato, torneio ou competição e desconstituídas 48 horas após. Os Tribunais de Justiça e os Superiores Tribunais de Justiça têm competência para julgar processos especiais e também aqueles que já estão em grau de recurso. O Tribunal de Justiça Desportiva é a segunda instância, correspondendo à abrangência da entidade regional. Já o Superior Tribunal de Justiça Desportiva é a terceira instância, que equivale à abrangência territorial da entidade nacional.
2. Ata extraída da Audiência Pública para aprovação do projeto de lei número 4874/01, Estatuto do Desporto. Disponível em < http://www.camara.gov.br/internet/Comissao/index/esp/pl487401nt150604a.pdf > Acesso em 11 de novembro de 2009. 3. Ibidem.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
25
REVISTA ERGA OMNES
O curioso é observar que, segundo Decat (2008) haverá quantos Superiores Tribunais, quantas forem as modalidades de esporte, nos fornecendo inclusive exemplos, como junto à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), existe o Tribunal Superior Tribunal de Justiça Desportiva; junto à Federação Aquática do Estado do Rio de Janeiro (FARJ), funciona um outro Superior Tribunal.
3. O PROCESSO DESPORTIVO 3.1 DEFESA A Infração disciplinar, não era definida legalmente, mas após a reforma do CBJD, o seu conceito foi esclarecido no seu Art. 1564. É uma conduta do atleta, quando antidesportiva, seja através da ação ou mesmo omissão, que de alguma forma viole o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, seja nas normas ou nos princípios. É uma conduta que viola o decoro, a dignidade do esporte, também conhecido popularmente como fairplay, ou inclusive que prejudique o bom desenvolvimento das relações do desporto. A parte, a qual tem para si a imputação de fatos, uma infração disciplinar, tem o direito de trazer ao processo os elementos que achar necessário à formalização da sua defesa, podendo inclusive, esta, permanecer calada, se assim desejar, quanto formalizar a sua defesa que são direitos do réu. Mesmo que a parte não tenha a possibilidade de instituir um patrono e um defensor dativo só será nomeado se ela requerer expressamente. Essa declaração expressa não será necessária se o atleta for menor de idade. Isso seria o cerceamento de defesa, uma vez que existe a possibilidade da parte estar desamparada, além de oferecer tratamento desigual5. Porém, outro artigo do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, nos mostra que o Direito Constitucional concedido ao réu de defesa é respeitado. Quando a imputação da infração é a dopagem, uma das mais conhecidas é concedido prazo para a apresentação da defesa escrita e da exibição das provas que desejar. Ultrapassando o prazo, será designado um defensor dativo independente de requerimento. Recentemente, o atacante do Botafogo, Jobson, foi pego em um exame de antidoping, após obter destaque em algumas rodadas do Campeonato Brasileiro de 2009. O resultado indicou a presença de cocaína na urina do jogador. O STJD aplicou uma punição 4. Art. 156. Infração disciplinar, para os efeitos deste Código, é toda ação ou omissão antidesportiva, típica e culpável. § 1º A omissão é juridicamente relevante quando o omitente deveria e poderia agir para evitar o resultado. § 2º O dever de agir incumbe precipuamente a quem: I - tenha, por ofício, a obrigação de velar pela disciplina ou coibir a prática de violência ou animosidade; II - com seu comportamento anterior, tenha criado o risco da ocorrência do resultado. 5. Art. 31. O STJD e o TJD, por meio das suas Presidências, deverão nomear defensores dativos para exercer a defesa técnica de qualquer pessoa natural ou jurídica que assim o requeira expressamente, bem como de qualquer atleta menor de dezoito anos de idade, independentemente de requerimento.
26
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
preventiva, mas abriu vistas de 5 dias para o atleta apresentar sua defesa6. 3.2 RECURSO O recurso é o instrumento utilizado pelo legitimado que sofre prejuízo decorrente de uma decisão para obter a sua modificação, que pode ou não substituir o pronunciamento hostilizado pela parte. Esse pedido de reconsideração somente pode ser interposto pelo autor, pelo réu, pelo terceiro interveniente, pela Procuradoria e pela entidade de administração do desporto. Basta ter interesse processual. Estando diante de uma decisão, a parte vencida pode provocar uma revisão, quando lhe for desfavorável. Também observando o princípio da Motivação, assim como nos processos da Justiça Comum, as decisões dos processos na Justiça Desportiva devem ser fundamentadas, mesmo que sucintamente. Não basta que o auditor profira o seu voto, ele deve dar sua razão. O recurso é o meio hábil que a parte tem para obter uma nova apreciação da decisão que queira sanar alguma controvérsia ou algum vício que prejudicou o andamento do processo. A revisão pode ocorrer pelo mesmo órgão judicante, ou outro hierarquicamente superior, mas antes, devem-se examinar os requisitos de admissibilidade, como por exemplo, o pagamento de emolumentos, sob pena de deserção. Se presentes, a sessão de julgamento será designada e concedida à parte contrária três dias para impugnar o recurso. Para Montenegro (2009), essa decisão tanto pode ser injusta, inválida ou incompleta. Será injusta se a verdade dos fatos não condisser com a decisão. Será inválida se houver no processo algum tipo de nulidade. Por fim, será incompleta se houver a necessidade de um novo pronunciamento, para, por exemplo, sanar alguma contradição existente. Na Justiça Desportiva, de acordo com o Art. 150 do CBJD, não existe a possibilidade de produção de novas provas, mesmo que estas orientem o processo para um desfecho inesperado. Provas novas, mesmo que comprovem a possível não execução da infração, não poderão ser apresentadas. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva dispõe no seu Art. 56, que ”todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos alegados no processo desportivo”. Havia nesta Justiça dois tipos de recursos: o Necessário e o Voluntário. O Recurso Necessário foi revogado pelas Resoluções CNE números 11 e 13 de 2006, suprimindo os Arts. 143 a 145, só existindo hoje o Recurso Voluntário. O primeiro guardava semelhanças como o Reexame Necessário: processos que envolvam os entes federados, União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, além de suas respectivas autarquias e fundações de direito público, estavam sujeitos ao duplo grau 6. Informações disponíveis no site < http://www.direitodesportivo.com.br/noticia.htm> Acesso em: 11 fev. 2010.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
27
REVISTA ERGA OMNES
de jurisdição, havendo ou não apelação. O Reexame Necessário está previsto no Art. 475 do Código de Processo Civil. Deste modo, o Recurso Necessário era interposto de ofício pelo presidente do órgão, geralmente de primeira instância, qual seja a Comissão Disciplinar, em determinadas situações, hipóteses estas taxativas presentes no Código, para ser julgado na instância superior. Não era necessária manifestação da parte, da Procuradoria ou do terceiro interessado, para que a decisão fosse reexaminada. Bastava, apenas, estar no rol de hipóteses. O Recurso Voluntário ainda está em uso. A parte interessada tem três dias para oferecer as suas razões. Pode ser utilizado em qualquer decisão dos órgãos judicantes, salvo aquelas que impuserem multa de até R$ 1.000,00 (hum mil reais), pois não comporta nenhum tipo de recurso; e aquelas emitidas pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva, por ser a última instância desta Justiça, com exceções reveladas no Art. 136 do CBJD 7. A não possibilidade de interpor o recurso nas decisões que estabelecerem exclusivamente a multa de até mil reais é outra forma de cerceamento da defesa. Mesmo que ocorra uma injustiça, devido o baixo valor da condenação, a parte não poderá recorrer. Este recurso é recebido com efeito devolutivo conforme previsão do Art. 147 do CBJD. O efeito poderá ser suspensivo em hipóteses restritas, previstas no código ou quando a parte assim o requerer de forma fundamentada, mostrando a verossimilhança das suas alegações e quando a decisão puder causar prejuízo irreparável ou de difícil reparação. Além do Recurso Voluntário, são também utilizados nos processos da Justiça Desportiva, os Embargos de Declaração. Poderão ser interpostos, em dois dias, caso a decisão contenha algum ponto de omissão, obscuridade ou contradição, tal como ocorre no Processo Civil. O relator terá o mesmo prazo para julgá-lo.
4. OS PROCESSOS DESPORTIVOS NO JUDICIÁRIO O Acesso à Justiça é um princípio Constitucional previsto no Art. 5º, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, todas as pessoas têm o direito de recorrer aos órgãos do Poder Judiciário, assim que desejarem e considerarem necessário. O Estado tem o poder-dever da prestação jurisdicional. A expressão “acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, 7. Art. 136. Das decisões dos órgãos judicantes caberá recurso nas hipóteses previstas neste Código. § 1º As decisões do Tribunal Pleno do STJD são irrecorríveis, salvo disposição diversa neste Código ou na regulamentação internacional específica da respectiva modalidade. § 2º São igualmente irrecorríveis as decisões dos Tribunais de Justiça Desportiva que exclusivamente impuserem multa de até R$ 1.000,00 (hum mil reais).
28
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos (CAPPELLETTI, 1988, p. 08). A coisa julgada formada pelo Administrativo é diferente daquela formada pelo Judiciário. A coisa julgada formada na Justiça Desportiva atinge apenas esta, torna-se indiscutível e imutável, impedindo apenas o rejulgamento da questão nesta Justiça. Contudo, nada impede que a parte ao sentir que seu direito foi lesado com o julgado, recorra às vias da Justiça Comum, como se pode observar no § 1º do Art. 217, da Carta Magna, já supra transcrita. Deste modo, a coisa julgada na Justiça Desportiva só será formada após o julgado do STJD ou quando esgotar o prazo para recurso nas instâncias anteriores. O Poder Judiciário pode ser utilizado, até por ser a forma mais legítima de buscar um Direito, mas antes devem ser esgotadas as vias da Justiça Desportiva, uma vez que está presente para resolver matérias relativas à disciplina e às competições. Seria, ad argumentandum, eivada de inconstitucionalidade qualquer disposição que vedasse o acesso ao Judiciário para dirimir conflitos, o que não ocorre na hipótese em testilha, em que apenas exige-se o cumprimento de um requisito, anterior, para o ingresso na Justiça Comum, que admitirá e julgará – a tempo e modo hábeis – a lide proposta (BRACKS, 2005, p. 02). No entendimento do STF8, o Acesso ao Judiciário sofre uma mitigação. A Justiça Desportiva há de atuar dentro do prazo máximo de sessenta dias, contados da formalização do processo, proferindo, então, decisão final. A própria Constituição federal exige, excepcionalmente, o prévio acesso às instâncias da justiça desportiva, no caso de ações relativas à disciplina e às competições desportivas, reguladas em lei (CF, art. 217, §1º), sem porém condicionar o acesso ao Judiciário ao término do processo administrativo, pois a justiça desportiva terá o prazo máximo de 60 dias, contados da instauração do processo, para proferir a decisão final (MORAES, 2004, p. 2032). Considerando o Direito Desportivo legalmente Administrativo, uma instituição independente do Judiciário, somente poderá a parte que se sentir lesada no conflito, procurar o Poder Judiciário depois de esgotadas as instâncias da Justiça Desportiva ou transcorridos 60 dias do início do processo. A redação constitucional é clara. A Justiça Desportiva possui atribuições para processar e julgar. 8. Constituição Federal da República anotada pelo Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf. jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201959>.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
29
REVISTA ERGA OMNES
Para o acesso ao Judiciário, deve-se esgotar antes, as instâncias da Justiça Desportiva. No entanto, este mesmo autor complementa dizendo “para que não houvesse procrastinação no trâmite do feito e, por conseguinte, impedimento indireto de acesso ao Judiciário, o legislador constituinte foi extremamente sábio e inseriu um prazo máximo de sessenta dias para a manifestação final dessa instância jurisdicional administrativa” (TAVARES, 2006, p. 628-629). Arruda Alvim (2000) acredita, entretanto, que essa reapreciação da matéria pelo Judiciário somente poderá ocorrer sob o ângulo da legalidade, não podendo jamais revisar o mérito da causa. Isso importaria na invasão de poderes, uma vez que não há hierarquia entre os mesmos, não podendo um intrometer-se no outro. A título de exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro prolatou um acórdão, caçando uma liminar, porque não obedeceu ao ditame constitucional de esgotar primeiramente as instâncias da Justiça Desportiva antes de recorrer à Justiça Comum9. “É requisito sine qua non para o ingresso legítimo na Justiça Comum, sob pena de, não cumprido, incorrer o demandante na hipótese de extinção do feito sem julgamento do mérito, por carência de ação, com fincas no artigo 267, VI, do Código de Processo Civil” (BRACKS, 2005, p. 02). Como se pode observar, a Justiça Desportiva não exclui da apreciação do Poder Judiciário, desde que em última instância, os fatos e as infrações disciplinares relacionados com o desporto amador ou profissional.
5. CONCLUSÃO A Justiça Desportiva não faz parte do sistema judiciário estatal. Este fato parece não afetar a sua autonomia para conhecer e julgar os litígios que acontecem nesta seara. É uma polarização da justiça que faz com que todos se beneficiem. As partes, principalmente, por terem auditores, pessoas que, conhecendo da especificidade da matéria, podem julgá-las melhor. Por ser um ramo administrativo, as partes litigantes que se sentirem lesadas, ao término desta instância, podem procurar o judiciário a fim de que solucionem a lide, ou ao menos ter, de forma definitiva uma resposta. A própria Constituição traz uma exceção à regra do Acesso à Justiça. Tal fato somente poderia ser feito pela Carta Magna. Acredita-se que o Poder Constituinte originário acertou ao colocar como requisito, o ingresso à Justiça Desportiva, antes de procurar o 9. APLICAÇÃO DO ART. 217 §1º DA CRFB. – OBRIGATORIEDADE DO ESGOTAMENTO DAS INSTÂNCIAS DA JUSTIÇA DESPORTIVA. – EXAME DE PRESSUPOSTO PARA O DESENVOLVIMENTO VÁLIDO E REGULAR DO PROCESSO. – LIMINAR REVOGADA – DECISÃO REFORMADA. – AGRAVO PROVIDO. Os atletas submetidos ao controle disciplinar da CBA (Confederação Brasileira de Automobilismo), deverão antes do questionamento judicial das medidas a eles impostas pelo órgão desportivo próprio, percorrer todas as instâncias da Justiça Desportiva, conforme determinação constitucional. Caberá ao juízo “a quo” examinar se tal pressuposto para o desenvolvimento válido e regular do processo está presente. Neste passo o que se conclui é que a medida liminar não poderia ter sido concedida, antes da formação do devido processo legal. Impõe-se a revogação da decisão para que se apure se foram respeitadas as normas constitucionais que privilegiam a Justiça Desportiva. Acórdão extraído do Agravo de Instrumento nº 2008.002.17415, julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Disponível em: < http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw> Acesso em: 13 fev. 2010
30
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
Judiciário. Não proíbe, apenas condiciona. Os campeonatos não poderão ser paralisados, enquanto aguardam a mora de uma Justiça como um todo. Mesmo com todo esse anseio pela celeridade, o Direito Desportivo não deixa que a segurança jurídica perca o seu valor. Todas as fases do devido processo legal são respeitadas em alto grau. O esgotamento obrigatório da instância desportivo-administrativa, o Art. 217 da Constituição Federal não faz com que o Acesso a Justiça seja comprometido por dois motivos simples já expostos no trabalho: haver um prazo de 60 dias para finalizar o processo administrativo e existir uma maior qualidade dos julgados, uma vez que é uma Justiça Especializada.
REFERÊNCIAS ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. BRACKS, Paulo. A sinergia entre o Poder Judiciário e a Justiça Desportiva. Disponível em: < http://www. boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=961> Acesso em: 25 abr. 2010. CIANNI, Frederico. Direito Desportivo Brasileiro. Brasília: Fortium Editora, 2007. DECAT, Scheyla Althoff. Direito processual desportivo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. DELBIN, Gustavo Normanton. Fundamento Constitucional da Justiça Desportiva Brasileira. Disponível em: <http://www.confrariadosesportes.com.br/website/juridico_ direito.asp> Acesso em: 25 abr. 2010. KISHINO, Alessandro Kioshi. A importância da Justiça Desportiva. Disponível em: <http://justicadesportiva. uol.com.br/index.asp> Acesso em: 1 out. 2009. KRIEGER, Marcílio. Apontamentos sobre o Direito Desportivo. Disponível em: <http://www.direitodesportivo. com.br/artigos.htm> Acesso em: 11 fev. 2010. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. 1. ed. Porto Alegre: Fabris Editor, 1988. MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2009. MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. TASSO, Fernando. O desporto na Constituição Federal Brasileira. Disponível em: <http://blogextracampo. wordpress.com/2008/09/10/artigo-juridico-o-desportonaconstituica o-federal-brasileira/> Acesso em: 25 abr. 2010. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
31
REVISTA ERGA OMNES
Jurisdição Constitucional: controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. Inconstitucionalidades das reformas. Efetividade dos direitos fundamentais
Sumário: 1. Jurisdição Constitucional. 1.1. Noção. 1.2. As Funções Estatais. O Pensamento de Kelsen. 1.3. Controle de Constitucionalidade. 1.3.1. Sentido Lato. O Pensamento de Themistocles Brandão Cavalcanti. 1.3.2. Sentido Estrito 1.4. Histórico. 1.4.1. No Mundo. 1.4.2. No Brasil. 2. Inconstitucionalidades das Reformas. 2.1. Reforma do Texto Da Constituição Jurídica. 2.2. Cerceamento de Defesa e de Acesso à Prestação Jurisdicional 3. Efetividade dos Direitos Fundamentais. 3.1. Interesses do Presidencialismo Imperial. 3.2. Abstencionismo Judicial de Controle “In Abstrato”. 3.3. A Função do Juiz Natural.
Edvaldo Brito
Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em cuja Faculdade de Direito leciona no Programa de Pós-graduação. Professor Emérito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo). Professor Titular, por concurso de títulos e de provas, de Direito Civil e de Legislação Tributária, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado na Bahia e em São Paulo.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
33
REVISTA ERGA OMNES
1. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
1.1. Noção
É um sistema de providências judiciais específicas técnico-jurídicas, com fundamento na Constituição, que objetiva garantir o exercício regular das funções estatais. Pensar, assim, com Kelsen, é, contudo, aproximar-se da conceituação do Direito como objeto cultural adotada pelo autor deste trabalho, sobretudo, há mais de vinte anos, quando perfilhou o método lógico-linguístico de compreensão do fenômeno jurídico que é um fato, estritamente, social. Sob essa ótica, a jurisdição, seja ou não a constitucional, é essencial à sociedade, entendida, a jurisdição, como mecanismo de dizer o direito, no caso concreto de demanda, reconhecido, apenas, ao magistrado. Dentre os objetos do conhecimento, o cultural é o mais sensível porque ele, sendo real, tem existência, está na experiência e é valorado positiva ou negativamente. Por isso que, o valor sendo uma qualidade desse objeto, o sujeito cognoscente não tem neutralidade quanto a ele, necessitando de técnicas para afastar-se axiologicamente, por exemplo, quando tem de julgar. Essas técnicas representam a tentativa de neutralidade axiológica do julgador, especialmente, no caso constitucional, desde as peculiaridades da norma jurídica constitucional: sua estrutura, suas eficácia e efetividade. Assim, o autor deste trabalho continua reafirmando o que tem escrito1. O texto articulado da Constituição consiste no que se chama de Constituição jurídica ou formal (expressão escrita dos fatores reais do poder) em contraposição à denominada Constituição essência ou material que exprime a vontade política existencial daquelas forças (fatores reais de poder) que, afinal, a outorgam. Esse texto é o repositório legislado dos direitos políticos, civis, econômicos e sociais que, modernamente, por ela são veiculados. Talvez, por causa da forma com que se apresenta, essa sua parte conhecida como dogmática, não tenha gerado as dúvidas que o seu preâmbulo tem experimentado. Hoje, entretanto, agasalha normas que ensejam caracterizações, seja quanto aos aspectos de suas eficácias, efetividade, interpretação e integração; seja quanto à possibilidade de hierarquização entre essas normas. O escrito articulado é, assim, o que se costuma chamar, especificamente, de parte dogmática; alguns excluem do seu seio a estrutura do poder formal (formas de Estado e de governo) a que denominam de parte orgânica. Este texto, de qualquer sorte, tem forma de norma jurídica. A Ciência do Direito “stricto sensu” tem-se ocupado, exaustivamente, do tema norma jurídica. Contudo, vale a advertência de 1. - cf. Edvaldo Brito. A constituição de 1988 e as normas programáticas. In. George Salomão Leite et al. Constituição e efetividade constitucional. Salvador: JusPODIVM. 2008, p.61-69.
34
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
que a influência do positivismo lógico, tentando fazer crer com o seu logicismo2, que o tratamento científico do Direito, enquanto objeto do conhecimento, é o analítico da norma como única modalidade de apreciar-lhe a natureza deôntica, assim, tem operado certos efeitos de resistência naqueles que veem, na experiência, a vida do Direito. Essas advertências relembradas contêm um estudo analítico da norma, porém, na medida em que ele se torna útil à afirmação de que, sob tal aspecto, que é estrutural, a norma jurídica constitucional não se distingue de qualquer outra, no mundo jurídico. Porque, também, nesse conteúdo, de outro lado, avultará a norma como objeto da semiótica jurídica pela reta da pragmática da comunicação humana, uma vez que, somente sob esse ângulo, a norma jurídica constitucional difere das demais normas do mundo jurídico, ao ensejar um modo singular de emissão como mensagem ao receptor, no que se refere à eficácia, à efetividade, à interpretação e à integração. 1.1. 1. Estrutura Analiticamente, a norma jurídica é um juízo porque é um ato do espírito e um ato intelectual, através do qual se afirma ou se nega uma coisa de outra, expressandose na proposição que é a enunciação desse juízo. Embora se possam exprimir juízos com uma só palavra (sim, chegou e quis), em regra a proposição (expressão do juízo) é binária, obviamente, porque consta de dois termos. Logo, o juízo tanto pode ser expresso por uma proposição binária, como mediante uma só palavra3. Os dois termos são o sujeito e o predicado, portanto, o enunciado é um discurso que traduz a relação entre eles. A norma jurídica é, desta forma, uma proposição, o que equivale a dizer, um juízo. Pois bem: analiticamente, ela vem sendo apreciada sob essa ótica a fim de extremála de outras normas, não jurídicas (morais, do trato social, religiosas e técnicas), e, nesta linha, a norma jurídica seria distinta pelo modo como vale (questão da validade); pela sua especifica estrutura hipotético-disjuntiva ou, simplesmente, hipotética (questão da hipótese de incidência e da sanção); pelo modo do seu entrelaçamento num conjunto (problemas das fontes do Direito e do seu sistema piramidal ou em cadeias de normas origens)4. De forma analítica, a norma jurídica não é apreciada na reta da pragmática da comunicação humana, até porque se o fizesse, afastar-se-ia da sua pretensa teoria pura do Direito. Assim, é uma apreciação incompleta, ainda que seja útil ao mister do jurista, essa concepção a que se estuda como concepção normativa do Direito. Deve-se entender, então, que ela não dever ser contraposta à chamada concepção institucional 2. - cf. Direção filosófica, assim definida por CARNAP, a qual acentua, exageradamente, o aspecto lógico — cf.Ulrich Klug. Lógica jurídica Trad. J.C. Gardella. Bogotá: Editorial Temis. 1990 ns. 247 e segs. 3. - cf. CRUZ, Estevão. Compêndio de filosofia. 4. ed. Porto Alegre. Edição da Livraria Globo. 1944, p.307 a 312. 4. - cf. – Ferraz Junior. Tercio Sampaio A Ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas S.A., 1988, p. 57.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
35
REVISTA ERGA OMNES
do Direito. É neste entendimento que este trabalho acrescenta uma dessas concepções à outra. A abordagem, primeiramente, será a normativa, porque é importante, avaliar a questão da estrutura hipotética da norma (disjuntiva ou simplesmente hipotética) no contexto da Constituição que é uma lei exclusiva quanto ao seu entrelaçamento no conjunto (sistema jurídico); depois, a abordagem consistir em institucional, porque há singularidades na eficácia, na efetividade, na interpretação e na integração das normas componentes da parte dogmática da Constituição. As proposições são classificadas em simples e compostas, conforme, respectivamente, constem de uma só proposição ou de mais de uma. A jurídica é composta e é da espécie, identificada quanto à matéria, que consiste em afirmar ou negar o atributo do sujeito. Se tal se faz sem condição, diz-se que a proposição é categórica; se, sob uma condição, é hipotética. Esta comportando uma subdivisão: condicionais, conjuntivas e disjuntivas; estas últimas são aquelas que estabelecem uma incompatibilidade unida a uma alternativa5; ou seja: as proposições hipotéticas disjuntivas são expressas por duas alternativas que se excluem entre si. A teoria egológica do Direito conclui que a estrutura lógica da norma jurídica é revelada sob esse ultimo tipo de proposições. Enveredando-se mais por este caminho, pode-se afirmar que a proposição jurídica é um juízo hipotético do tipo disjuntivo. Para Kelsen, por exemplo, é hipotético, mas, a norma jurídica não é juízo, porque não é “enunciado sobre um objeto dado ao conhecimento. Ela é antes, de acordo com o seu sentido, mandamento e, como tal, comando, imperativo”, ainda que, sendo “expressa em linguagem, em palavras e proposições, pode aparecer sob a forma de enunciados do mesmo tipo daqueles através dos quais se constatam fatos”6. Não é, porém, a opinião exposta nesse trabalho, isto porque, há tempo reconheceu-se que as normas jurídicas não são um mandamento7. Prevalece, hoje, a tese da forma de um juízo hipotético. Insista-se, pois, que, apesar de Kelsen afirmar que a norma jurídica não é um juízo, as suas investigações, (estudando a particularidade do verbo dever ser como cópula que fundamenta toda uma Lógica do dever ser válida para o Direito, muito diferente da Lógica do ser que vale para as ciências que estudam a “Crítica da Razão Pura”), conduzem à estrutura lógica hipotética da norma: “dado A deve ser B”, ou seja: dado que ocorra isto, deverá ocorrer aquilo; dado o fato de ter 21 anos de idade e de ser normal o funcionamento psíquico, deve ser a plena capacidade civil”8. 5. - cf. Cruz, Estevão, ob. cit. p.312. 6. - cf. Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. 3.ed. Trad. de João Baptista Machado. Coimbra. Armênio Amado Editor, Sucessor, 1974, p.111. 7. - cf. ci Romano, Santi. Fragmentos de um diccionario jurídico. Trad. Santiago Sentis Melendo y Marino Ayerra Redín. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América. 1964, p.245 Carlos Cossio. La valoración juridica y la ciência del derecho. Buenos Aires. Ediciones Arayú, 1954, p.6l; Tércio Sampaio Ferraz Junior, ob. cit., p 60. 8. - cf. Cossio, Carlos. La teroria egologica del derecho y el concepto jurídico de libertad. 2. ed. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1964, p.139.
36
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
Palmilhado o dito caminho, enfim, chega-se, dando razão, a Cossio (1964) com a concepção egológica que se orienta pelo objeto (a conduta humana em sua interferência intersubjetiva) nesse caráter estimativo que ele tem, exatamente, porque a norma não contém mando nenhum; “a norma simplesmente diz que dado o fato da liberdade civil de uma pessoa, deve ser o fato de não matar e dado o fato de matar deve ser o fato de sua prisão. O objeto, assim representado, é a CONDUTA HUMANA. A norma enquanto objeto, é um conceito, quer dizer, um objeto lógico e não um objeto real; o objeto real, representado, intelectualmente, por esse conceito, é certa conduta humana”9. A norma, nesses termos, é o pensamento de uma conduta em liberdade. É a estrutura lógica da experiência jurídica. É a classe típica de conceitos de que se utiliza o jurista para mencionar a realidade jurídica no conhecimento científico ou, o que é o mesmo, é o modo de juízo com que opera seu intelecto ao formar aqueles conceitos. Faz, então, valoração jurídica e é esta que leva ao reino dos objetos culturais: “é o sentido de um objeto egológico, como razão do dito objeto; é o sentido de uma conduta humana em sua interferência intersubjetiva. Aqui, a atitude que cabe ao jurista para apreender este dado por compreensão, também é uma adequação necessária e fixa: uma interpretação pré-normativa, base que o faz obter, sob método empírico-dialético, a estimativa positiva do Direito”. Por sua vez, seguido esse método, o conteúdo dogmático da experiência jurídica, leva aos mais diversos objetos. Estes estão, efetivamente, mencionados por imputação normativa tais como os objetos ideais quando a norma menciona algarismos como na prescrição ou nas legítimas hereditárias; os objetos lógicos como a analogia; os objetos naturais como o ano civil, o ano solar, ou como as doenças profissionais no campo do direito do trabalho; os objetos culturais como decorre da referência aos bons costumes. O exposto faz crer que a norma alude a esses objetos e, portanto, a dados da experiência jurídica, razão pela qual vale adotar metodologia no estudo do Direito, que a tenha como um dos seus elementos, para evitar a “teoria de acho”, mas sem optar pelo exagero de adotar somente as abstrações lógicas, dado que a vida do Direito não é a lógica, mas a experiência10 O divulgado, afinal, faz optar pela fórmula egológica da estrutura lógica da norma contendo, como ocorre, também, na formulação kelseniana, dois elementos básicos como duas proposições normativas, porque dizem o que deve ser e não o que é, como o fazem as proposições descritivas ou meramente enunciativas. É de Lourival Vilanova (1977)11 a lembrança de que o dever ser é o operador 9. - cf. Cossio, Carlos. ob. cit. (La teoria egologica [...]), p.531 (La valoracion [...]) p.61. 10. - cf. Ch. Perelman, prefácio à Introducción a la lógica jurídica, edição francesa de 1965, de Georges Kalinowski. Buenos Aires: EUDEBA, 1973. Sobre o tema leia-se Miguel Reale. O Direito como experiência. Introdução à epistemologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. 11. - cf. 11. cf. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: EDUC/Revista dos Tribunais, 1977, p. 29.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
37
REVISTA ERGA OMNES
diferencial da linguagem das proposições normativas, um dos quais subdomínios é o do Direito. Advirta-se, de logo, que a identificação desse dever ser; tão festejado pela escola analítica, não se consegue com a imaginária teoria pura, mas sim com a interferência humana no curso da natureza, com aquilo que von Wright(1979)12 chama de ação. A proposição é identificável como normativa quando se considera todo o repertório em que medra, o qual resulta do entendimento conjunto das concepções normativa e institucional do Direito. Pelo ângulo da concepção normativa consegue-se, apenas, ver o relato; somente a concepção institucional visualiza o cometimento. Esses dois elementos básicos contidos na norma, Kelsen (1986) denominaos de norma primária e norma secundária, enquanto Cossio (1964), de endonorma e perinorma. Kelsen (1986) dizia que era secundária a norma que determina a conduta devida e primária a que descrevia a sanção. Em escrito posterior, ele modificou o pensamento. São suas as seguintes palavras: se se admite que a distinção de uma norma que prescreve uma conduta determinada e de uma norma que prescreve uma sanção para o fato da violação da primeira seja essencial para o Direito, então, precisa-se qualificar a primeira como norma primária e a segunda como secundária e não o contrário, como o foi por mim anteriormente formulado. A norma primária pode, pois, aparecer inteiramente independente da norma secundária. É, também, possível que uma norma expressamente formulada, a primeira, a norma que impõe uma conduta determinada geralmente não apareça, e apenas apareça a norma secundária, isto é, a norma que estabelece a sanção. Desta forma formulam-se reiteradamente normas jurídicas nas modernas leis13. Cossio (1964), antes dessa revelada mudança de posição, já havia invertido os dois elementos: a norma que descreve a conduta, a do relato, é a endonorma e está por ele formulada em primeiro lugar; a do cometimento é a perinorma e vem em segundo lugar. Nestes termos, pois, a norma jurídica é disjuntiva e imputa sanção. São estes termos que evidenciam os elementos da relação jurídica na linha da pragmática: fato temporal é o fato jurídico ou o acontecimento descrito como o propulsor da relação: o jurídica, criando dever pan o sujeito obrigado e direito subjetivo para o sujeito pretensor; prestação é a conduta do sujeito obrigado em face do pretenso; a partir da verificação do fato temporal; sujeito obrigado é o sujeito passivo ou a pessoa que tem o dever a cumprir face ao titular do direito subjetivo; sujeito pretensor é o titular do direito subjetivo. O sujeito ativo ou aquela pessoa que tem a prerrogativa de exigir 12. - cf. Georg Henrik von Wright. Norma y accion — una investigación lógica. Trad. Pedro Garcia Ferrero. Madrid: Editorial Tecnos S.A., 1979, p. 53. 13. - cf. Teoria geral das normas. Trad. e revisão de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, Editor, 1986, p.1 81.
38
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
a prestação; não-prestação é o ilícito a ocorrência do descumprimento do dever pelo sujeito obrigado, como consequência da liberdade humana; sanção e consequência jurídica imputada a nao-prestaçao. É, pelo exposto, que se pode afirmar: esta estrutura dual (endonorma e perinorma) esgota toda a linguagem jurídica. Esta fórmula é melhor do que a do positivismo lógico, seja porque, fugindo da concepção mandamental, insere no contexto jurídico a conduta humana pensada em liberdade tal qual ocorre na realidade; seja porque casa o relato com o cometimento. Se bem que, na sua obra póstuma Kelsen (que morreu em 19.4.1973) deixou modificada a sua opinião anterior numa série de aspecto, para admitir, por exemplo, formulações em razão das formas de normas jurídicas nas modernas leis. É dele, nessa fase, a lembrança de que a estrutura dual pode apresentar uma parte da norma inteiramente independente da outra. Assim, cumpre, de logo, recordar que norma jurídica não é o simples artigo do documento normativo, porque se compõe de dispositivos (artigos, parágrafos, incisos, itens e alíneas) que podem estar em um mesmo discurso normativo, ou em mais de um, considerando-se, sobretudo, o seu modo de entrelaçamento no conjunto (fontes do Direito e seu sistema). Esta observação avulta quando se trata da Constituição porque essa independência, ao ocorrer, terá de ser verificado o entrelaçamento no seu contexto, dado que ela é um discurso normativo exclusivo no sistema, não permitindo integração senão dos seus dispositivos entre si; solucionando antinomias e colmatando lacunas dentro de si ou, quando muito, se ela própria o admitir, com fontes expressamente indicadas14. A conclusão é a de que, na parte dogmática, que tem forma de norma jurídica serão identificadas, sob o aspecto estrutural, normas jurídicas como proposições hipotéticas disjuntivas, consequentemente, de duas proposições uma enunciativa, a do relato (endonorma) e a outra que prescreve a sanção, a do cometimento (perinorma). Este cometimento não se configura, apenas, na linguagem verbalizada do emissor da mensagem normativa, quando esta imputa a sanção, mas, em todo o repertório convencionado que é objeto de análise na reta da pragmática da comunicação humana. Não fosse esse repertório e, em nada, uma norma jurídica constitucional seria distinta das demais componentes do sistema jurídico, porque, no plano da estrutura lógica da norma jurídica, não há diferença de uma para a outra. Pensando-se, assim, há de admitir-se a integração da parte dogmática da Constituição com o seu preâmbulo e com sua parte das disposições transitórias, não só, para, às vezes, formarem, no seu conjunto, uma norma jurídica constitucional, mas também, para dirimir antinomias e colmatar lacunas geradas no exclusivo sistema interno constitucional. Bem como, assim, para se aceitar, nele, a hierarquização, entre si, das normas jurídicas que o compõem, classificáveis em categorias como simples e princípios; para acolher-se a peculiaridade 14.- cf., por exemplo, o §2º do Art. 5º da Constituição.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
39
REVISTA ERGA OMNES
dessas normas quanto à eficácia, à efetividade, à interpretação e à integração. Tudo isto porque, se o pensamento for, somente, o do modelo analítico da Ciência do Direito, não se terá o repertório da norma jurídica constitucional como experiência e, então, será o pensamento incompleto. 1.1.2. Eficácia e efetividade A eficácia e efetividade da norma jurídica constitucional, sempre, foram objeto de reflexão, sobretudo, por causa do entendimento tradicional sobre sua qualificação, em certo ângulo, como sendo o tipo chamado de norma programática. O próprio signo eficácia não tem univocidade, assim, diverge se a concepção for a normativa ou se for a institucional do Direito. Aqui, porém, buscando superar a divergência, adota-se a convenção e não esta ou aquela das concepções, por entendê-las complementares entre si. Deste modo, afirma-se que a norma é eficaz quando irradia efeito, quando produz resultados. A eficácia é um pressuposto da efetividade, porque somente se estabiliza aquela norma que é apta a gerar consequência, tem um relato capaz de ser recebido pelo destinatário15 de modo que não ocorra desconfirmação16 e, havendo esta, ocorra a sanção, tudo formando uma “relação de adequação”17 entre relato e cometimento, com o que já se ingressa no campo da efetividade. O tema da eficácia é bem a prova do inaceitável da concepção normativa, enquanto única modalidade de estudar o objeto cultural chamado Direito, ou como modelo exclusivo da Ciência do Direito. Pontes de Miranda18 é exaustivo ao apreciá-lo, a partir da noção que empresta à relação jurídica, ao revelar que as relações inter-humanas são fatos do mundo, os quais, ao ocorrerem desencadeiam certa consequência. Seu magistério legou a preocupação que se deve ter quanto aos tipos de eficácia conforme a relação jurídica seja básica, intra-jurídica, a que ele denominou de eficacial. Importante, 15. - Destinatário é outro signo sem univocidade. A ideia menos ambígua, e aqui adotada, é a de que o receptor da norma jurídica tida como pensamento da conduta humana na sua interferência intersubjetiva (receptor: o juiz o é do legislador; a comunidade pretensora o é do legislador e do juiz; em retroalimentação, o legislador o é da comunidade pretensora, o é do doutrinador, o é do juiz). Vejam-se sobre as divergências semânticas, as negativas e as afirmações sobre o seu existir: Kelsen, Teoria general del Estado, ps. 71 e 72; Santi Romano, Fragmentos [...], ps. 239 e segs.; Miguel Reale, O direito como experiência (Introdução à epistemologia jurídica), 2. ed. São Paulo: Saraiva, l992, ps. 173 e segs.; Celso Lafer, prefácio ao livro Poder e legitimidade de José Eduardo Faria, São Paulo: Perspectiva, ps.10 e 11. 16. - Desconfirmação é uma das patologias e um dos paradoxos da interação que deve existir na relação entre emissor e receptor da mensagem, na comunicação humana, especialmente, quando estes dois polos são: a fonte normativa (o emissor) e o cidadão (o receptor) porque eles podem influenciar a efetividade da norma. Portanto, o retomo receptor/emissor, no repertório jurídico, jamais pode ser a desconfirmação, a conduta de ignorar a definição do “eu” de outrem, rejeitando-o. Por isso, nesse repertório, o cometimento tem de integrar o discurso normativo. 17. - cf. Ferraz Junior, Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p.l3I. 18. - cf. Tratado de direito privado, tomo I, os. 117 e segs; tomo V, ps. 102 e segs, 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.
40
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
neste ponto, é destacar sua percepção que o tema da eficácia cresce de sensibilidade por ser tênue a sua diferenciação com o da efetividade ou o da validade da norma e, por isso, deve-se evitar confundi-los, especialmente, porque a eficácia será objeto de mais de uma apreciação. Trilhando esta vereda, Miguel Reale (1990)19 aponta para uma eficácia social que, ao invés de dizer respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e de reconhecimento do Direito, seria o seu cumprimento efetivo por parte da sociedade, no plano social: efeitos sociais que uma regra suscita através do seu cumprimento, razão porque, em sentido amplo, o Direito pressupõe um mínimo de eficácia. Na linha da pragmática da comunicação humana, forçoso é tomar o tema pela mensagem a mais purificada possível de ambiguidade, o que se consegue mediante o respeito às relações que os signos dessa mensagem propiciam quando batizada nas águas da linguagem técnica e científica que constitui o objeto (o Direito) ou com que se fala sobre ele. Do exposto, colhe-se que a norma é eficaz quando emitida pela fonte a quem a convenção atribuiu o poder (aptidão para gerar consequência: eficácia formal) e tem um relato como mensagem a ser recebida pelo destinatário sem possibilidade de ele o desconfirmar com sucesso (“eficácia” social ou, propriamente, efetividade). Assim, trabalha-se na área da acepção ampla em que se reconhece, como pressuposto, um mínimo de eficácia ao Direito e se pode distinguir eficácia e efetividade e, com muito mais propriedade, adotar a lição de José Afonso da Silva (1968)20 de que é premissa o enunciado: “não há norma constitucional alguma destituída de eficácia. Todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando sempre numa inovação da ordem jurídica preexistente à entrada em vigor da Constituição a que aderem, e na ordenação da nova ordem instaurada”. No mesmo sentido é o pensamento de Ruy Barbosa (1933)21 que sepulta as dúvidas, afirmando que não há numa Constituição cláusulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos. O tecido da Constituição jurídica enseja tais considerações a fim de que se compatibilize com a Constituição real e, assim, legitime a jurisdição específica que a matéria reclama, pois, no pensamento kelseniano, ela é elemento do sistema que garante o exercício regular das funções estatais.
19. - cf. Lições preliminares de direito, l7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1990, ps. 112 e segs. 20. - cf. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1968, p. 75. 21. - cf. Comentários à Constituição federal brasileira, coligidos e ordenados por Homero Pires, II vol. São Paulo: Editores Livraria Acadêmica e Saraiva & Cia., 1933, p. 489.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
41
REVISTA ERGA OMNES
1.2.1. Natureza. Espécies Essas funções têm por fim gerar o direito positivo, por isso, a sua natureza é a de atos jurídicos dos quais decorrem as normas jurídicas de duas espécies: atos de criação de direito e atos de execução do direito criado. O primeiro grupo é o da legislação ou da produção do direito, onde se situa a lei. O segundo engloba a execução ou a aplicação do direito e consistiria na simples reprodução. Assim, se essas funções não se opõem, ao contrário, coordenam-se, impõese falar, com Kelsen , de legislador negativo que é o juiz operando uma função estatal legislativa, “um ato, por assim dizer, de legislação negativa. Um tribunal que é competente para abolir leis, de modo individual ou geral, funciona como um legislador negativo” e falar, com Nino , de legislador racional, o juiz, uma vez que as funções estatais de execução, afinal dizem o direito (jurisdictio) e não poderiam consistir em simples reprodução do direito criado, até porque, a garantia da Constituição firma-se na regularidade dos atos de execução das leis. Por esta razão, o sistema de controle da constitucionalidade há de envolver os órgãos jurisdicionais de declaração de inconstitucionalidade e aqueles que, incumbidos dos atos de execução, não descurem de examinar se estão trabalhando, dentre tantas, com as normas que, efetivamente, asseguram a força da Constituição.
1.3. O Sistema de Controle de Constitucionalidade
Há de atribuir-se a um sistema as garantias necessárias à proteção da Constituição. Muito se tem discutido se o sistema A ou B é concentrado ou difuso, sem distinguir-se entre controle de constitucionalidade e declaração de inconstitucionalidade. Declaração é ato privativo de órgão jurisdicional. O controle é operado por quantos órgãos estejam incumbidos dos atos de execução das leis e, então, sob essa ótica vale identificar sistemas concentrado e difuso.
1.3.1. Sentido Lato
Os órgãos de controle jurisdicional são provas de que o Judiciário excluiu dos outros dois poderes a função de únicos entes ativos do Estado, mas, a Constituição de 1988 inova, em relação a isso, quando institui, explicitamente, o controle político “stricto sensu” de constitucionalidade, mediante a sustação, pelo Legislativo, de atos normativos do Poder Executivo que contenham excesso regulamentar (cf. o inciso V do Art.49 da Constituição. Tal situação, porém, não implica atribuir ao legislativo a função jurisdicional, porque a mesma Constituição enseja interpretação sistemática pela qual somente admite a jurisdição única, em face da exclusividade deferida ao judiciário para somente ele poder apreciar lesão ou ameaça a direito do respectivo titular. Themístocles Brandão Cavalcanti22 responde a qualquer dúvida em torno da prerrogativa de outro ente político, 22. - cf. Do controle de constitucionalidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p.177 e segs.
42
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
que não o judiciário, para exercer as funções estatais de execução, ao admitir que qualquer órgão pode deixar de aplicar lei por considerá-la inconstitucional. Deste modo, afirma que a apreciação da validade da lei em face da Constituição é função do judiciário, porém, é lícito ao ente aplicar o preceito constitucional, auto-executável, desprezando a lei ordinária que o contrarie, porque aquele que tem a responsabilidade de aplicar a lei pode empregar a maior na hierarquia em detrimento de outra. 1.3.2. Sentido Estrito Aqui, cuida-se de função privativa do juiz. O magistrado, por exemplo, no Brasil, não só declara a inconstitucionalidade de atos normativos como, na busca das suas legitimidades, a constitucionalidade deles. Somente a ele é deferida essa função estatal.
1.4. Histórico 1.4.1. No mundo
A Inglaterra, surpreendentemente, é o berço do controle de constitucionalidade. Surpreende porque lá toda a soberania pertence ao Parlamento e, assim, não deveria haver controle das funções estatais de legislação, até porque a ideia de Constituição jurídica, portanto, escrita e sistematizada, vem dos Estados Unidos de 1787, e somente vai à Europa pelo caminho da França de 179123 que ostenta, historicamente, a segunda norma dessa natureza. Lembra Osvaldo Aranha Bandeira de Mello (1948)24 os atos do parlamento não poderiam ser írritos, como o seriam aqueles contrários ao direito natural, ao direito humano, ou à razão, ou repugnante ou impossível de ser cumprido. Aduz: “não são esses direitos os que o judiciário defende ao declarar certas leis inconstitucionais? A concepção do judiciário como guarda da Constituição, escreve BLACK (1910)25, existiu no sistema inglês e foi imaginada como um baluarte contra os abusos do rei e do parlamento em muitas ocasiões dignas de reparo” Antes de tudo isto, convém salientar que a tradição fazia do rei, senhor absoluto do poder, o único repositório do saber interpretar a lei, quando o magistrado tivesse dúvidas. Era a época francesa do référé au legislateur, seguida pela fase do refere facultatif, em que a interpretação de uma lei era do legislativo, até chegar ao tempo do refere nécessaire quando um dissídio jurisprudencial exigia consulta, também, ao legislativo. 23. - cf. Brito, Edvaldo. Limites da revisão constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. p. 36. 24. - cf. A teoria das constituições rígidas. São Paulo: publicação da Prefeitura do Município de São Paulo: 1948, p. 96-98. 25. - cf. H. C. BLACK. Handbook of the American Constitutional Law, 1910, p.84, citado por Osvaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit. p. 98.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
43
REVISTA ERGA OMNES
Esta é a evolução entre os séculos XVII e XIX, quando a construção pretoriana norte-americana, por obra e graça de Marshall, inaugura o tempo do monopólio jurisdicional do controle de constitucionalidade, por uma corte de justiça, com o julgamento do caso William Marbury contra James Madison, na sessão de fevereiro de 1803 do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América do Norte, certamente, louvado nos Arts. III, seção 2ª e VI26. Disse ele: nula é toda lei oposta à Constituição. [...] Se, pois, os tribunais têm por missão atender a Constituição e observá-la e se a Constituição é superior a qualquer resolução ordinária da legislatura, a Constituição e nunca essa resolução ordinária, governará o caso a que ambas se aplicam. [...] Os poderes da legislatura são definidos e limitados; e para que esses limites não possam se tornar confusos ou apagados, a Constituição é escrita27. Chegados ao século XX ocorre a ideia da Corte Constitucional, não mais por construção pretoriana, porém, insculpida no texto da Constituição escrita (Constituição austríaca de 1920), com a formulação kelseniana de monopólio do controle de constitucionalidade, surgindo o controle concentrado, pelo qual somente um órgão tem competência para declarar a inconstitucionalidade. É, assim, sobretudo, na Alemanha: o Tribunal Constitucional Federal, o Bundesverfassungsgericht tem poderes amplos face ao legislador, tem-nos para exercer o controle da validade das próprias normas constitucionais veiculadas pelos órgãos competentes para a reforma do texto, apesar da idolatria da lei, do império do positivismo rígido, considerando-se que se reconhece que o juiz tem sempre uma parte importante na criação do Direito28. A chamada Lei Fundamental de Bonn, promulgada em 23 de maio de 1949, um dos textos constitucionais europeus de elevado prestígio jurídico, é o autêntico introdutor do sistema de controle concentrado, ao dispor, no item (1) do seu Art.100, sobre a suspensão do processo por um tribunal, toda vez que considerar inconstitucional uma lei, cuja validade dependa a sua decisão, se se tratar da violação da Lei Fundamental. O controle difuso, diversamente, atribui a qualquer magistrado a competência para apreciar a questão, ainda que caiba recurso até a curul do sistema de controle. Lembre-se, de logo, a inexistência de um controle misto; ou ele é concentrado, como o alemão ou ele é difuso, como o brasileiro.
1.4.2. No Brasil
26. - cf. art.III, seção 2ª: The judicial Power shall extend to all cases, in law and equity, arising under this Constitution, the laws of the United States, and treaties made, or which shall be made, under their authority. Art.VI. This Constitution and the laws of the United States wich shall be made, under the authority of the United States, shall be the supreme law of the land. 27. - Lobo, Américo. Decisões constitucionaes de Marshall. Traduzidas por Américo Lobo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1903, p.1, 26 e 25, respectivamente. 28. - cf. Brito, Edvaldo. Limites da revisão constitucional, p. 85-86.
44
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
A inspiração norte-americana, pelas mãos de Ruy Barbosa, deu o modelo brasileiro, cuja fonte, diversamente, não foi pretoriana, mas, a Constituição de 1891. Alfredo Buzaid29, ao referir-se ao texto da própria Constituição de 1891 como introdutor do controle jurisdicional da constitucionalidade, no Brasil, Art.59, §1º, recorda que essa faculdade já existia na Constituição Provisória de 22 de junho de 1890 (Art.58, §1º, “b”) e no Decreto nº848, Art.9º, parágrafo único, letras “a” e “b”. A Constituição de 1891 dispunha sobre o recurso para o Supremo Tribunal quando se questionasse sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais e a decisão do tribunal estadual fosse contra ela. Esse autor giza a importância da lei nº 221, de 20 de novembro de 1894 que no seu Art.13 estabelecia recurso para o judiciário, a fim de anular ato administrativo decorrente de lei manifestamente inconstitucional, autorizando o magistrado a negar aplicação aos casos ocorrentes. A evolução do sistema pátrio propiciou, na Constituição de 1946, a hipótese de suspensão, pelo Senado, da execução da lei, declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal (Art.52, X CF). Nesse mesmo texto normativo aperfeiçoouse a representação de inconstitucionalidade da Constituição de 1934 (Art.34, §2º), regulada pela lei nº2.271 de 22.07.1954, cujo Art.1º atribuía ao Procurador Geral da República submeter ao Supremo Tribunal Federal o exame de ato que lhe chegasse ao conhecimento e que infringisse os preceitos assegurados no Art.7º, VII, da Constituição. A história dessa medida técnica passa pela lei nº4.337 de 1º.06.1964, que revogou a lei nº2.271/1954, regulando a declaração de inconstitucionalidade para os efeitos do Art.7º VII da Constituição de 1946 referente a atos de poderes estaduais que viessem a infringir qualquer dos princípios assecuratórios do federalismo. A legitimidade ativa era do Procurador Geral da República, fosse por conhecimento próprio, fosse por provocação de qualquer interessado. Passa, outrossim, pela Emenda Constitucional nº16 de 26.11.1965 que ampliou a legitimidade, para além dos casos referidos de proteção ao princípio federalista, dando ao Procurador Geral da República a atribuição de exercer, com exclusividade, o juízo de admissibilidade, por isso, cabendo-lhe a prerrogativa de encaminhar a representação ao Supremo Tribunal Federal. Chega-se, afinal, à Constituição de 1988 plasmando o sistema de controle difuso, no plano lato, permitindo que qualquer órgão de execução exerça-o, nos termos da lição de Themístocles Brandão Cavalcanti. Sob o aspecto estrito, deferindo a exclusividade jurisdicional, mas, sem o monopólio de qualquer órgão integrante do Poder Judiciário e ampliando a legitimidade ativa (Art.103). Consequentemente, o sistema brasileiro difuso de jurisdição constitucional está assim esquematizado: Controle “in abstrato” Supremo Tribunal Federal 1.1.1. ADIN – ação direta de inconstitucionalidade 29. - cf. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 30.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
45
REVISTA ERGA OMNES
1.1.2. ADC - ação declaratória de constitucionalidade 1.1.3. ADPF – arguição de descumprimento de preceito fundamenta 1.1.4. ADIO – ação direta de inconstitucionalidade por omissão 1.1.5. Reclamação 1.1.6. MI - mandado de injunção 1.2. Tribunais de Justiça dos Estados
1.2.1. Representação de Inconstitucionalidade
2. Controle “incidenter tantum” (controle “in concreto”)
Discute-se, em face desse sistema, se o Superior Tribunal de Justiça é competente para declarar inconstitucionalidade “incidenter tantum”. A resposta que, aqui, se dá é afirmativa, considerando-se o que foi dito sobre o controle de constitucionalidade em sentido lato. Se o sistema é difuso, assim, se desde o juiz de 1º grau é possível o controle, pela via da exceção, imagine-se o Tribunal da Federação!?, por que não? Questão relevante é, também, a da possibilidade de controle “in abstrato” das normas jurídicas constitutivas de direito criado pelo Município que a construção pretoriana do Supremo Tribunal Federal soluciona mediante a ADPF30.
1.4.2.5. Problemas do controle de constitucionalidade
Trata-se de um juízo sobre normas e não sobre fatos. O exercício desse controle erige o magistrado em um legislador negativo, tal como insculpido por Kelsen, prestigiando o juiz que, na fuga para a lei, viu-se esvaziado31. O processo respectivo é objetivo; não permite composição subjetiva ou inter partes. É incompatível com técnicas similares àquelas introduzidas por emendas constitucionais adotando súmulas e efeitos vinculantes, eficácia erga omnes, repercussão geral e processos repetitivos, considerando que essas técnicas são ofensivas do juiz natural.
2. INCONSTITUCIONALIDADES DAS REFORMAS CONSTITUCIONAIS 2.1 Reforma do texto da Constituição jurídica. Limites. O tema atina com o exercício do poder constituinte. O autor deste trabalho tem tido a oportunidade de defender que essa categoria jurídica é peculiar, por isso, 30. - cf. Almeida Neto, Manoel Carlos de. O novo controle de constitucionalidade municipal. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 166-169. 31. - cf. Brito, Edvaldo. A teoria do contrato e o contrato com pessoa a declarar no projeto de código civil. Tese para professor titular de direito civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. São Paulo: edição do autor. 2001, p. 293.
46
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
distingue-se da competência reformadora do texto por ele produzido32. Há distinção entre o poder constituinte e a competência reformadora do texto por ele produzido. Assim, a autenticidade do poder constituinte está na legitimidade que possui para elaborar a Constituição jurídica e que tem fonte nas atribuições que lhe são inerentes e no procedimento a adotar para cumprir essas atribuições. Por isso, não se confundem a natureza desse poder e a do impropriamente chamado poder constituinte derivado, que é mera competência, logo, não pode ser considerado como um poder e, muito menos, “constituinte derivado”, esta expressão é uma contradição em termos. Enfim, aquele, o poder, é uma potência, este, o derivado, é mera competência. O processo constituinte de reforma tem procedimento diverso daquele mediante o qual se elabora a Constituição jurídica. Rigorosamente, por ser potência, o poder constituinte é fundacional ou originário, porque inaugura uma ordem constitucional ou instaura outra ordem completamente nova ao acionar a sua eficácia atual. Não há, nesses termos, poder constituinte constituído ou derivado, nesse processo de revisão, mas, sim, órgãos com competência para promover modificações na Constituição jurídica, observados os limites dessa atribuição, quais sejam: 1. materiais 1.1 explícitos 1.2 implícitos 2 circunstanciais 3 temporais Poder constituinte é um poder jurídico, com prerrogativa originária, constituindo-se em uma categoria, cujos elementos são soberania, pluralismo e sociedade civil. É entendido como uma eficácia atual, como produto da atuação das forças reais de poder expressas pelos núcleos de decisão formados pelos grupos sociais que, integrantes da sociedade civil, participam da formação da vontade coletiva e, efetivamente, institucionalizam-na criando uma ordem jurídica nova. No plano lógico, esse poder é uma “força histórica efetiva, apta a realizar os fins a que se propõe [...], a plena consumação do fato, a plena consumação do seu objeto que é a criação de uma ordem nova”33. A sua titularidade é a fonte capaz de produzir uma decisão eficaz sobre a natureza da ordem nova, expressando o permanente estado de natureza dessas forças com atividade diferida, porque elas estão, sempre, aptas a serem exercidas, continuamente, que motivadas. Entender, assim, importa em fazer um corte abstrato, num procedimento metodológico sobre a realidade social, sem vínculos históricoculturais, sem ideologias que se contraponham, sem consciência de valores novos; enfim, com reflexões institucionais. É desta forma a lição de Lourival Vilanova quando, 32. - cf. Brito, Edvaldo. Limites da revisão constitucional. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. 33. - cf. Agesta, Sanchez. Princípios de teoria política. 7. ed. 3ª reimpressão. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1990, p.331.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
47
REVISTA ERGA OMNES
para circunstância similar, a da revolução, traça o procedimento metodológico.34 Potência é um tipo específico de poder, de potestade, em termos de Camões35, é uma prerrogativa de gabarito divino, de arbítrio sem condicionantes, salvo aquelas que consistem nos objetivos permanentes da sociedade civil que o legitima, dentre os quais os direitos e as garantias fundamentais do homem, preservados pelo direito internacional. Logo, a fonte normativa assim caracterizada representa uma autoridade suprema, cujas atribuições não derivam de nenhuma outra autoridade formalmente constituída. Ao contrário, é competência, quando derivam. O legislador que reforma o texto da Constituição jurídica, quando o emenda ou o revisa tem a sua atribuição derivada da Constituição jurídica, cujo poder que a elabora é a autoridade que pratica o ato de criação chamado de regra de competência a qual prescreve as condições para que esse ato seja válido e, por isso tenha força normativa. São três essas condições, conforme o magistério de Alf Ross36: 1ª- as que indicam a pessoa ou as pessoas qualificadas para realizar o ato de criação; 2ª- aquelas que outorgam as atribuições dando os limites da matéria objeto da regra que há de ser criada por essas pessoas; 3ª- aquelas que descrevem o procedimento de criação. A Constituição de 1988, ao formular a regra de competência reformadora no §4º do seu Art.60, não outorgou atribuições de modificar o regime jurídico da separação dos Poderes, nem o dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, tal como o fizeram as Emendas nºs.3, de 17.03.1993 e 45 de 08.12.2004. A Constituição formulou o modelo de uma jurisdição constitucional, como sendo a de um juiz natural na perspectiva de um Estado Democrático de Direito promotor do desenvolvimento econômico e do bem estar social, uma vez que deu atribuições a um Supremo Tribunal Federal como corte constitucional sem peias no processamento e no julgamento das ações dos titulares do chamado direito subjetivo público de ação. Essas peias são: a eficácia “erga omnes”, o efeito vinculante, a súmula vinculante e a repercussão geral. Elas vieram pela via de emenda modificadora da competência do Poder Judiciário, atentando, assim, contra o núcleo irreformável atingindo o direito subjetivo público ao juiz natural.
2.2. Cerceamento de Defesa e de Acesso à Proteção Jurisdicional
O plano histórico revela que a aliena “a” do item I do Art.102 da Constituição, originariamente e com singela redação, outorgava competência ao Supremo Tribunal Federal para processar e julgar ação direta de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo federal ou estadual. O dispositivo completava-se com um parágrafo, obviamente, único, dando competência, também, para apreciar a “arguição de descumprimento de preceito fundamental”. 34. - cf. Teoria jurídica da revolução. In. As tendências atuais do direito público. Rio de Janeiro: Forense, 197, p. 454. 35. - cf. Camões, Luis de. Os Lusíadas. 12. ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, p.94, 95, 178, 286, 337. 36. - cf. Sobre el derecho y la justicia. Trad. de Genaro R. Carrió. Buenos Aires, EUDEBA Editorial Universitária de Buenos Aires: 1963, p. 78 e segs. El concepto de validez y outros ensayos. Buenos Aires: Centro Editorial de América Latina S.A., 1969, p. 49 segs.
48
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
A alteração desse dispositivo mexeu com dois princípios que vinculam direitos fundamentais, o da separação dos poderes e o dos direitos individuais, no caso, ao juiz natural. A súmula vinculante e os efeitos vinculantes levam ao efeito “erga omnes”, ao efeito do julgado contra todos, o qual há de ser, necessária e expressamente, declarado pelo julgado e valerá para todos os casos iguais. Difícil, contudo, é identificar essa igualdade considerando-se que a vida não sendo lógica, cada caso há de ser, sempre, um caso, por isso, a lógica que o julgado der para colher a identidade será, sempre, discutível. A eficácia “erga omnes”, por ser cabível somente nas circunstâncias descritas na norma constitucional (§2º do Art.102, com a redação dada pela EC nº45 de 08.12.2004) ensejou o efeito vinculante, pois, embora a eficácia seja contra todos, ela não dava efetividade à Constituição no sentido de que pode haver, com a aplicabilidade desse efeito vinculante associado à eficácia “erga omnes”, decisões contrárias às prerrogativas individuais de cada sujeito de direito, titular de faculdades jurídicas peculiares em termos diversos aos do julgado de efeito vinculante e que, fatalmente, seriam reconhecidos, no caso concreto, se não fosse a vinculação. As circunstâncias descritas na norma constitucional supra mencionada são: a) decisão definitiva de mérito; b) proferida nas aços diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade; c) vinculação, apenas, para os demais órgãos do Poder Judiciário para a administração pública direta e indireta nas esferas federal, estadual e municipal. Já a súmula vinculante não se confunde com isto, porque esta pode abranger, também, o Poder Legislativo, na medida em que: a) a decisão versar sobre matéria constitucional; b) for adotada pelo quorum de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal e c) for iterativa. A repercussão geral é uma categoria introduzida no texto constitucional, também, por emenda, a de nº45 de 08.12.2004, consistindo no dever de o interpositor do recurso extraordinário demonstrá-la nas questões constitucionais discutidas no caso, a fim de propiciar o juízo de admissibilidade da medida pleiteada, manifestado por dois terços dos membros da Corte, uma vez que esse é o quorum de recusa do recurso. A lei nº 11.418 de 19 de dezembro de 2006 rege a matéria em nível infraconstitucional, tal como o requer a lei maior e circunscreve a repercussão à relevância econômica, política, social ou jurídica que ultrapasse os interesses subjetivos da causa. Outrossim, haverá repercussão geral sempre que o recurso extraordinário impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
3. EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Sem necessitar concordar com a distinção entre sistema concentrado e controle concentrado, feita por Sérgio Sérvulo da Cunha37, tem ele razão quando aponta a reação conservadora representada pelos: a) interesses do presidencialismo imperial; 37. - cf. Introdução à edição brasileira de Hans Kelsen. Jurisdição constitucional. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
49
REVISTA ERGA OMNES
b) interesses do abstencionismo judicial do controle “in abstrato”. Pontua que o presidencialismo imperial tem armas destrutivas e inaceitáveis, como a medida provisória, o efeito vinculante e a ação declaratória de constitucionalidade, que agridem o nosso controle difuso, atingindo a função do juiz natural que, devendo examinar a lide, considerando que cada caso é um caso, não se pode comportar, senão sob a aplicabilidade das peias já faladas anulatórias da efetividade da Constituição e impeditivas da eficácia social. Assim, apropriadamente, afirmando que “ao êxito aparente e transitório dos autoritarismos sucederá, sempre, a reafirmação das liberdades” e, lembrando Jean Cruet, citado por Carlos Maximiliano: “a tendência racional para reduzir o juiz a uma função puramente automática, apesar da infinita diversidade dos casos submetidos ao seu diagnóstico, tem sempre e por toda parte soçobrado ante a fecundidade persistente da prática judicial”.
50
Que Deus, assim o permita, proteja-nos. Amém.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
AS MEDIDAS CAUTELARES E AS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.403/2011 O presente estudo tem como escopo a apresentação de críticas científicas no que pertine às medidas cautelares e as inovações trazidas ao mundo jurídico pela lei nº 12.403/2011. Com o advento desta lei, o Código de Processo Penal foi alterado sobremaneira em seu Título IX, modificações estas que visaram desburocratizar a persecução criminal, tornando-a mais célere, criando novas espécies de medidas cautelares diversas da prisão e enfatizando a ideia de que a prisão deve ser decretada somente em ultima ratio, uma vez que a regra é a liberdade individual. Objetivando a compreensão das medidas cautelares de maneira mais simplificada, este trabalho procura discorrer sobre os pontos mais relevantes desse tema, individualizando as espécies de cautelares e estabelecendo uma noção comparativa de como eram disciplinadas antes e após a edição da referida lei. Sumário: 1 INTRODUÇÃO 2 DAS MEDIDAS CAUTELARES 2.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES 2.2 PRESSUPOSTOS E REQUISITOS 2.3 DAS CAUTELARES REAIS 2.4 DAS CAUTELARES RELATIVAS À PROVA 2.5 DAS CAUTELARES PESSOAIS 3 DAS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.403/2011 3.1 PRISÕES; 3.2 LIBERDADE PROVISÓRIA 3.3 MEDIDAS CAUTELARES DO ART. 319 DO CPP 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS Palavras-chave: MEDIDAS CAUTELARES. INOVAÇÕES. LEI 12.403/2011.
Laís Conceição Souza Brito Lisboa
Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT). Advogada inscrita nos quadros da OAB/SE. Pós-graduanda em Ciências Criminais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
51
REVISTA ERGA OMNES
1. INTRODUÇÃO No dia 04 de julho de 2011 entrou em vigor a lei 12.403/2011, estabelecendo uma reforma no Código de Processo Penal Brasileiro e tornando-o um meio de deleite de direitos humanos e de proteção contra as arbitrariedades estatais. O objetivo principal dessa reforma foi compatibilizar o Diploma Processual Penal à Constituição Federal de 1988, eliminando, sobremaneira, o caráter autoritário com raízes fascistas em que o CPP foi criado. No antigo sistema, já havia por parte dos magistrados a aplicação do poder geral de cautela, havendo a concessão de medidas cautelares não descritas em lei, mas que se mostravam adequadas ao caso concreto para tornar o processo penal efetivo. A lei 12.403/2011 ao ser instituída extinguiu a bipolaridade cautelar, deixando de existir somente a liberdade provisória e a prisão processual como mecanismos utilizados pelos juízes como cautela e findou por oxigenar a criação de medidas cautelares diversas da prisão, com previsão no Art. 319 do CPP, com o fito de evitar o aprisionamento prematuro do indivíduo, concomitantemente, resguardando a pacificação social, a efetividade da investigação policial, da persecução penal e da prestação jurisdicional. Dessa forma, o desígnio que se pretende atingir com esse trabalho é a análise do conteúdo dessa nova lei nos aspectos que se relacionam com as medidas cautelares, na qual se constata a flagrante preocupação com a ideia de que a regra é a liberdade e de que a prisão é exceção, sendo utilizada somente em ultima ratio em respeito e reverência à liberdade individual e ao princípio da presunção de inocência.
2. DAS MEDIDAS CAUTELARES 2.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES No processo penal, assim como em todos os ramos do Direito, faz-se mister a existência de medidas assecuratórias capazes de garantir a fiel execução das suas finalidades. Nesse contexto, as medidas cautelares caracterizam-se por ser uma forma de proteção dos direitos da vítima de um evento delitivo, da própria coletividade, bem como, um meio de acautelamento de toda a persecução penal, desde a fase inquisitorial até o deslinde da instrução criminal. O que justifica a existência das cautelares é a factível morosidade na entrega da efetiva prestação jurisdicional, servindo como instrumento capaz de afastar os possíveis danos causados pela ação do tempo aos que clamam por justiça. As ideias trazidas por Piero Calamandrei (2000, p. 20) complementam nosso entendimento, quando relata que os provimentos cautelares: Representam uma conciliação entre duas exigências geralmente contrastantes na Justiça: a da celeridade e a da ponderação. Entre fazer logo, porém mal, e fazer bem, mas tardiamente, os provimentos cautelares visam, sobretudo, a fazer logo, permitindo que o problema do bem e do mal, isto é, da justiça intrínseca da decisão seja resolvido posteriormente, de forma ponderada, nos trâmites vagarosos do
52
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
processo ordinário (CALAMANDREI, 2000, p. 20). Não há limite temporal para a permanência da medida cautelar, podendo ela ser substituída, cumulada ou até mesmo revogada, a qualquer momento, a depender da necessidade que se impõe em cada caso concreto. Nesse sentido, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar ensina que: Não há, na lei, prazo de durabilidade da medida. Portanto, a dilação no tempo depende do fator necessidade. A depender do estado das coisas (cláusula rebus sic stantibus), e da adequação ao caso concreto, a cautelar pode ser substituída, cumulada com outra, ou mesmo revogada, caso não mais se faça necessária. Sobrevindo novas provas indicando a sua conveniência, nada impede que seja redecretada (TÁVORA; ALENCAR, 2011, p. 644). Contudo, o protraimento da medida cautelar pode ensejar um constrangimento ilegal, pois exprimi ilegalidade por contrariar dispositivo constitucional previsto no inciso LXXVIII, do artigo 5º da Carta Maior, qual seja a duração razoável, podendo tal ilegalidade ser combatida através do habeas corpus ou do mandado de segurança. Convém ressaltar que apesar desses provimentos cautelares prescindirem de um processo criminal cautelar autônomo, é essencial que se façam presentes os pressupostos e requisitos do processo cautelar. 2.2- Pressupostos e requisitos Para a concessão de uma cautelar, seja ela de natureza privativa de liberdade ou restritiva de direitos, indispensável se faz a observância de dois pressupostos, quais sejam o fumus boni iuris e o periculum in mora, a fim de resguardar o princípio constitucional da presunção de inocência previsto no Art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988. Contudo, ao se tratar de medidas cautelares de natureza pessoal, há que se falar em fumus comissi delicti e periculum libertatis. Em razão de se tratar de uma tutela de urgência, ao analisar o cabimento das medidas cautelares, o juiz deve realizar um mero juízo de cognição sumária não se aprofundando tanto no mérito, ocasião em que o fará no provimento definitivo. Diante disso, o primeiro pressuposto é o fumus boni iuris que pode ser definido como a admissibilidade do direito de punir configurada pela prova de existência do crime (juízo de certeza) e pelos indícios de autoria (juízo de probabilidade). Outrossim, Aury Lopes Jr. entende que: Se o delito é a própria negação do direito, como se pode afirmar que a decretação de uma prisão cautelar está condicionada à comprovação da fumaça do bom direito? Ora, não é a fumaça do bom direito que determina ou não a prisão de alguém, mas sim a comprovação por elementos objetivos dos autos que formam uma EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
53
REVISTA ERGA OMNES
aparência de que o delito foi cometido por aquela pessoa que se pretende prender. Daí o uso da expressão fumus comissi delicti, a ser entendida como a plausibilidade do direito de punir, ou seja, plausibilidade de que se trata de um fato criminoso, constatada por meio de elementos de informação que confirmem a presença de prova da materialidade e de indícios de autoria do delito (LOPES JR apud LIMA, 2011, p. 1155). O segundo pressuposto das medidas cautelares é o periculum in mora, que consiste no perigo de perda da eficácia da tutela jurídica pleiteada quando do momento da efetiva entrega da prestação jurídica ao final do curso da ação penal. Renato Brasileiro de Lima define como sendo: O perigo na demora da entrega da prestação jurisdicional. No tocante às medidas cautelares de natureza real, como o sequestro e o arresto, esse conceito de periculum in mora se ajusta de maneira perfeita, pois a demora da prestação jurisdicional possibilitaria a dilapidação do patrimônio do acusado. Em se tratando de medidas cautelares de natureza pessoal, no entanto, o perigo não deriva do lapso temporal entre o provimento cautelar e o definitivo, mas sim do risco emergente da situação de liberdade do agente. Logo, em uma terminologia mais específica à prisão cautelar, utiliza-se a expressão periculum libertatis, a ser compreendida como o perigo concreto que a permanência do suspeito em liberdade acarreta para a investigação criminal, o processo penal, a efetividade do direito penal ou a segurança social (LIMA, 2011, p. 1156). Além dos pressupostos exigidos para a concessão de toda e qualquer cautelar, é imprescindível a observância dos requisitos da necessidade e da adequação, previstos nos incisos I e II do Art. 282 do Código de Processo Penal (alterado pela lei 12.403/2011). Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se: I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. O primeiro deles é a necessidade, a qual se confunde com os requisitos da prisão preventiva, dispostos no Art. 312 do CPP. Desta maneira, Leonardo Barreto Moreira Alves ensina que: A ‘necessidade para aplicação da lei penal’ (Art. 281, I, CPP) confunde-se com a necessidade de “assegurar a aplicação da lei 54
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
penal” (Art. 312, caput, CPP); a ‘necessidade para a investigação ou a instrução criminal’ (Art. 281, I, CPP) coincide com a ‘conveniência da instrução criminal’ (Art. 312, caput, CPP); e a necessidade de ‘evitar a prática de infrações penais’ (Art. 282, I, CPP) e a ‘adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado’ (Art. 282, II, CPP), em última instância, são motivos relacionados à necessidade de garantia da ordem pública e até mesmo da ordem econômica (Art. 312, caput, CPP), esta última como verdadeira subespécie daquela(ALVES, 2011, p. 59-60). Nesse contexto, o requisito da necessidade denota o cuidado com que o constituinte derivado teve para tentar evitar a prática de novas infrações penais, restringindo a liberdade do indivíduo apenas nos casos expressamente previstos em lei, assegurando a observância do princípio da presunção de não culpabilidade. O segundo requisito é a adequação, que consiste na individualização da medida cautelar, de modo que o magistrado deve escolher dentre todas elas que estão à sua disposição, qual melhor se adequa ao caso concreto, fazendo, assim, um juízo de ponderação. Nas palavras de Marcos Boechat e Bruno Mocam: A adequação quer significar que o encarceramento é a medida que mais se ajusta à gravidade do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do seu autor, as quais, evidentemente, devem ser analisadas em cada caso concreto. Nesse sentido, deve o juiz verificar sempre se outra medida cautelar menos gravosa ao indiciado/acusado é necessária e suficiente para acautelar a sociedade, já que a segregação cautelar passa, agora, a ser considerada medida excepcional (BOECHAT, MOCAM, 2011, p. 03). Ademais, insta enfatizar que a presença do binômio necessidade-adequação é indispensável para a concessão de qualquer medida cautelar, visto que são corolários do princípio da proporcionalidade o qual exerce a dupla função de proibir os excessos e permitir o juízo de ponderação. 2.3 DAS CAUTELARES REAIS As cautelares reais são as medidas cautelares de natureza civil, também chamadas de assecuratórias, que recaem sobre coisas e visam garantir a reparação do dano e o perdimento de bens como efeito da condenação. Neste sentido, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar aduzem que: As medidas assecuratórias visam garantir o ressarcimento pecuniário da vítima em face do ilícito ocorrido, além de obstar o locupletamento ilícito do infrator. Servem também para pagamento EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
55
REVISTA ERGA OMNES
de custas e de eventual multa. Têm caráter de instrumentalidade e se destinam a evitar o prejuízo que adviria da demora na conclusão da ação penal. São elas: o sequestro, a hipoteca legal e o arresto (TÁVORA, ALENCAR, 2011, p. 324). No processo penal brasileiro, são três as cautelares reais, quais sejam o sequestro, o arresto e a hipoteca legal e estão dispostas entre os artigos 125 e 144 do Código de Processo Penal. Insta registrar ainda que, apesar da apreensão de coisas não possuir estritamente natureza cautelar, a restituição de coisas apreendidas quando requerida em juízo, passa a ter natureza de contracautela. 2.4 DAS CAUTELARES RELATIVAS À PROVA Apesar de não serem consideradas como um meio de prova, as cautelares relativas à prova visam colher provas para um processo a fim de assegurar a sua utilização no mesmo ou evitar que o decurso do tempo enseje no perecimento da prova. Como cautelares deste gênero, encontramos a busca e apreensão e a produção antecipada de prova testemunhal. 2.5 DAS CAUTELARES PESSOAIS As medidas cautelares de natureza pessoal consistem nas cautelares que recaem sobre a pessoa do acusado, são medidas privativas (prisões) ou restritivas (medidas cautelares do Art. 319 do CPP) da liberdade de locomoção do acusado durante a persecutio criminis, com o fito de resguardar a eficácia do processo. Outrossim, Marcellus Polastri Lima cita Julian Lopez Masle nos seguintes termos: As medidas cautelares pessoais podem ser definidas como aquelas medidas restritivas ou privativas da liberdade pessoal que pode o juiz ou tribunal adotar contra o imputado no processo penal, com o objetivo de assegurar a realização dos fins penais do procedimento (MASLE apud LIMA, 2005, p. 184-185). Ademais, a lei 12.403/2011, no que tange às medidas cautelares de natureza pessoal, inovou no sentido de extirpar do Código de Processo Penal Brasileiro a bipolaridade que existia, criando novas espécies de medidas cautelares dessa natureza.
3. DAS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.403/2011 Obsoleto e inspirado no modelo fascista italiano de repressão do Estado contra a delinquência, o Código de Processo Penal Brasileiro entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, denominada de “Constituição Cidadã”, tornou-se veemente a necessidade de adequar a redação do 56
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
diploma processual penal aos direitos e garantias presentes na Carta Magna, haja vista a flagrante incompatibilidade entre ambos. Diante dessa exigência, diversos projetos de leis tramitaram no Congresso Nacional com o objetivo de reforma do Código de Processo Penal, dando origem a várias leis, dentre elas a lei 11.689/2008 (alterações no âmbito do Júri), a lei 11.690/2008 (relativa às provas), a lei 11.719/2008 (alteração no procedimento), a lei 11.900/2009 (videoconferência) e a lei 12.403/2011 (prisões e medidas cautelares), esta, objeto desse estudo. A lei 12.403/2011 entrou em vigor no dia 04 de julho de 2011 e alterou dispositivos do Código de Processo Penal no que pertine às medidas cautelares de natureza pessoal, tendo aplicabilidade imediata em obediência ao princípio tempus regit actum, conforme se extrai das palavras de Renato Brasileiro de Lima: Em relação aos crimes praticados até o dia 04 de julho de 2011, data da entrada em vigor da Lei nº 12.403/2011 ainda que a persecução penal tenha início após essa data, o agente continuará a fazer jus à antiga liberdade provisória sem fiança quando verificada a inocorrência das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (LIMA, 2011, p.1129). Antes da lei 12.403/2011, o Título IX do CPP era intitulado “Da Prisão e Da Liberdade Provisória”, o que a doutrina denominava de bipolaridade cautelar do sistema brasileiro. Com o advento da lei 12.403/2011, este título foi alterado e foi denominado “Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória”, o que, ao nosso ver, foi modificado de maneira incongruente, uma vez que a prisão e a liberdade provisória são espécies do gênero medida cautelar. A referida lei inova no sistema processual penal brasileiro ao prever, além das medidas cautelares pessoais que já existiam, novas cautelares de natureza pessoal diversas da prisão, alterando sobremaneira o Art. 319, do Código de Processo Penal. É fato que toda medida que impõe uma restrição total ou parcial da liberdade individual de qualquer ser humano só pode ser decretada pelo juiz. Antes da vigência da lei 12.403/2011, durante a fase judicial, o juiz podia decretar de ofício ou a requerimento das partes e durante a investigação criminal só por requerimento do Ministério Público. Contudo, com a entrada em vigor da referida lei, esta inovou trazendo a possibilidade do juiz decretar a cautelar mediante representação da autoridade policial na fase de investigação criminal. Quando a prisão for decorrente de uma situação de flagrância, ao receber o Auto de Prisão em Flagrante, o juiz poderá relaxar o flagrante quando ilegal, conceder liberdade provisória ou converter a prisão em flagrante em preventiva quando as medidas cautelares diversas da prisão se mostrarem inadequadas ou insuficientes e se estiverem presentes os motivos autorizadores da prisão preventiva. Insta salientar ainda, que o juiz pode intimar a parte contrária para realizar o contraditório quando essa comunicação não inviabilizar a medida cautelar, pois caso isso ocorra teremos o contraditório diferido, a parte se defenderá somente depois da aplicação da medida. A lei 12.403/2011 permitiu a ocorrência da fungibilidade de medidas cautelares. EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
57
REVISTA ERGA OMNES
Assim, o juiz poderá substituir, cumular outra medida ou, em último caso, decretar a preventiva. Segundo esta lei, não pode o juiz aplicar esta fungibilidade mediante representação do delegado e a decretação da preventiva deve ser somente em ultima ratio. Faz-se mister frisar que para a aplicação de uma medida cautelar, é necessário que a infração seja punida isolada, cumulativa ou alternativamente com uma pena privativa de liberdade, com o fito de assegurar que o meio de aplicação da medida não seja mais grave que a suposta punição aplicada no deslinde do processo. Outro ponto inovador foi a possibilidade de, no caso de urgência, o juiz poder requisitar a prisão por qualquer meio de comunicação já que antes só ocorria por telegrama, inovação essa bem relevante, uma vez que serviu para adequar a lei à realidade social. Assim, estudam-se as espécies do gênero medida cautelar, quais sejam as prisões, a liberdade provisória e as medidas cautelares diversas da prisão. 3.1- Prisões A princípio, indispensável se faz mencionar que existem dois tipos de prisão: a prisão pena e a prisão cautelar (também chamada de processual ou provisória). A prisão pena é aquela que decorre do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, do princípio da presunção de inocência, da não culpabilidade ou do estado de inocência, conforme se extrai do Art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República. Renato Brasileiro de Lima a define que: A prisão penal, prisão-pena ou carcer ad poenam, é aquela que resulta de sentença condenatória com trânsito em julgado que impôs o cumprimento de pena privativa de liberdade. Só pode ser aplicada após um devido processo penal no qual tenham sido respeitadas todas as garantias e direitos do cidadão. Além de expressar a satisfação da pretensão punitiva ou a realização do Direito Penal objetivo, caracteriza-se pela definitividade (LIMA, 2011, p. 1195). A prisão cautelar, por sua vez, é toda aquela prisão que antecede o trânsito em julgado, tem natureza excepcional e instrumental, não podendo ser utilizada como uma forma de antecipação da pena, uma vez que para a decretação da prisão cautelar não se faz um juízo de culpabilidade, mas sim de periculosidade. Antes de 2008, as prisões cautelares se dividiam em: prisão temporária, prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão decorrente de pronúncia e prisão decorrente de sentença condenatória recorrível. Todavia, com a reforma que culminou no surgimento das leis 11.689 e 11.719, ninguém mais pode ser preso por uma prisão decorrente de pronúncia ou por uma prisão decorrente de sentença condenatória recorrível. Para a melhor compreensão das espécies de prisão cautelar que vigoram hoje, é de bom alvitre estudá-las de maneira individualizada.
58
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
3.1.1- Prisão em flagrante Inicialmente, é importante destacar que os artigos referentes à prisão em flagrante persistiram inalterados com a reforma do Código de Processo Penal, permanecendo idênticas as hipóteses de flagrância e a formalização do respectivo auto. Para uma corrente doutrinária minoritária, a prisão em flagrante não constitui uma cautelar, mas sim uma pré-cautelar, conforme se extrai do entendimento de Aury Lopes Jr: Não é uma medida cautelar pessoal, mas sim pré-cautelar, no sentido de que não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas destina-se a colocar o detido à disposição do juiz para que adote ou não uma verdadeira medida cautelar (LOPES JR, 2008, p. 63). Já para outra corrente doutrinária, esta majoritária, a prisão em flagrante inicialmente tem caráter administrativo, pois apresenta o seu início através do poder de polícia do Estado conferido a qualquer pessoa do povo, ocasião em que o flagrante será facultativo, e à autoridade policial e seus agentes, sendo o flagrante, nesse caso, obrigatório. Defende essa ideia Guilherme de Souza Nucci quando leciona que: A prisão em flagrante, autorizada pela Constituição Federal (art. 5º, LXI), é uma modalidade de medida cautelar de segregação provisória do autor do fato criminoso, de natureza administrativa, inicialmente, podendo ser realizada por qualquer pessoa do povo ou por agentes policiais. No caso de atuação de particulares, cuidase do flagrante facultativo; quando efetivado por policiais, trata-se do flagrante obrigatório (Art. 301, CPP) (NUCCI, 2011, p. 54). O Código de Processo Penal elenca no Art. 302, quatro hipóteses de cabimento da prisão em flagrante dando origem a três espécies de flagrante, são eles: - Flagrante Próprio, Real ou Autêntico: ocorre no momento do cometimento da infração penal ou quando o agente acabou de cometê-la; - Flagrante Impróprio, Irreal ou Não Autêntico: ocorre quando o agente é perseguido logo após a infração penal, em circunstâncias que façam presumir ser ele o agente do crime; - Flagrante Presumido ou Suposto: ocorre quando o agente é encontrado, logo depois da infração penal, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o agente. Insta registrar ainda, que a prisão em flagrante tem como finalidade interromper a prática delitiva e coletar material probatório e após a constatação da situação de flagrância, o delegado obedecerá ao seguinte procedimento: deve informar a prisão ao juiz, à família do preso ou a pessoa que ele indicar e ao Ministério Público (a informação ao Parquet foi introduzida pela lei 12.403/2011, pois antes não era preciso). Bem como, coletar provas e se estiverem presentes as hipóteses de cabimento lavrará o Auto de Prisão em Flagrante; entregar ao preso a Nota de Culpa; entregar aos condutores o Recibo de Entrega e encaminhar o Auto de Prisão em Flagrante ao juiz no prazo de 24 horas e dentro desse mesmo prazo, cópia integral para a Defensoria Pública se o preso EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
59
REVISTA ERGA OMNES
não declinar seu defensor. Ao receber o Auto de Prisão em Flagrante, se existir ilegalidade o juiz relaxará a prisão, mas se for constatada a legalidade e preencher os requisitos, ele homologará o flagrante. Ocorre que, no antigo sistema, uma prisão decorrente de flagrante podia perdurar até a data da sentença, mas a lei 12.403/2011 inovou no sentido de impor ao magistrado que, ao homologar o flagrante, ele obrigatoriamente deverá ou conceder liberdade provisória (com ou sem fiança) ou decretar medida cautelar diversa da prisão, ou ainda, em último caso, converter o flagrante em preventiva se presentes os requisitos, passando esta a ser a única espécie de prisão cautelar admissível durante a fase processual. 3.1.2- Prisão Preventiva Com previsão no Art. 311 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva consiste na custódia cautelar verificada antes do trânsito em julgado da sentença sendo marcada pelo atributo da judicialidade, uma vez que se trata de um ato escrito e fundamentado por um juiz, podendo ser decretada tanto na fase pré-processual como na fase judicial. Na fase de investigação criminal, o magistrado poderá decretá-la mediante representação da autoridade policial ou por requerimento do Ministério Público. Já na fase de instrução processual penal, poderá ser decretada mediante requerimento do Parquet, do querelante, do assistente de acusação (com o advento da lei 12.403/2011, o assistente passou a ter interesse não só patrimonial como também na prisão) ou de ofício (o que antes ocorria a qualquer tempo, após a lei 12.403/2011 ao juiz ficou restrito a decretação de ofício somente na fase judicial). No antigo sistema, a prisão preventiva só era cabível nos casos do Art. 313, do CPP desde que presentes os requisitos do Art. 312 do mesmo diploma legal. Todavia, a lei 12.403/2011 ampliou as hipóteses de cabimento, pois além dos requisitos do Art. 312, será cabível também sempre que for necessário para garantir a execução de outra medida cautelar diversa da prisão. Nesse contexto, Eugênio Pacelli ratifica essas palavras lecionando que: A prisão preventiva, então, passa a apresentar duas características bem definidas, a saber, a) ela será autônoma, podendo ser decretada independentemente de qualquer outra providência cautelar anterior, e, b) ela será subsidiária, a ser decretada em razão do descumprimento de medida cautelar anteriormente imposta (PACELLI, 2011, p. 33). (grifo do autor) Antes da lei 12.403/2011, a preventiva era cabível quando tratasse de crimes dolosos: punidos com reclusão (pois antes o paradigma era a qualidade da pena); punidos com detenção se o sujeito era vadio ou se não existisse elementos de identificação; que houvesse reincidência e praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher. Hoje, com a nova sistemática, a preventiva é cabível: quando tratar de crime doloso com pena máxima superior a quatro anos (pois agora o paradigma é a 60
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
quantidade da pena); quando houver reincidência; quando tratar de crime praticado com violência doméstica ou familiar não só contra a mulher, mas também contra a criança, o adolescente, o idoso, o enfermo ou portador de deficiência e quando não houver elementos de identificação e o indivíduo se recusa a fornecê-los (nesse caso, a prisão só é cabível até a obtenção desses elementos de identificação). Antes, a preventiva não era cabível nos casos de crimes culposos e contravenções penais. Hoje, além dessas duas hipóteses, também não cabe a preventiva quando o juiz constata que está presente alguma excludente de ilicitude prevista no Art. 23 do Código Penal, quais sejam o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal, o exercício regular do direito, além do consentimento do ofendido. Para a decretação da prisão preventiva, necessário se faz a observância de quatro requisitos: garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal. Além da presença desses requisitos que são alternativos, indispensável também é a presença dos pressupostos da preventiva (prova da materialidade e indícios de autoria), estes sim cumulativos. 3.1.3- Prisão Domiciliar A reforma do Código de Processo Penal de 2011 acrescentou mais uma modalidade de prisão provisória, qual seja a prisão domiciliar. Prevista no Art. 317 do referido Diploma Legal, tal prisão consiste no recolhimento do acusado em seu domicílio, só lhe sendo permitido dela ausentar-se mediante autorização judicial. Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 79) a define como sendo “uma forma alternativa de cumprimento da prisão preventiva; em lugar de se manter o preso em cárcere fechado, é inserido em recolhimento ocorrido em seu domicílio, durante as 24 horas do dia”. Até a edição da lei 12.403/2011, não existia a prisão domiciliar cautelar no CPP, pois a prisão domiciliar que existia era a da lei de execuções penais, na qual só era cabível após o trânsito em julgado. Contudo, essa lei trouxe a prisão domiciliar cautelar para o CPP com a observância dos seguintes requisitos: - se o sujeito tiver idade superior a 80 anos; - se o sujeito tiver debilitado estado de saúde; - se o sujeito for gestante a partir do 7º mês ou se a gestação for de risco; - se a presença do sujeito em casa for imprescindível aos cuidados de menor de 6 anos de idade ou de pessoa com deficiência. Nota-se, por fim que, os requisitos da prisão domiciliar cautelar do CPP são mais rígidos do que os requisitos da prisão domiciliar da lei de execução penal, pois nesta só se exige que o regime seja aberto, que a idade seja superior a 70 anos, que tenha doença grave, que seja gestante ou que tenha filho menor ou portador de deficiência. 3.1.4- Prisão Temporária Prevista na lei 7.960/1989, a prisão temporária surgiu para substituir a antiga prisão por averiguação, uma vez que a partir da vigência da Constituição Federal de EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
61
REVISTA ERGA OMNES
1988, exigiu-se, como regra, uma ordem judicial fundamentada para a decretação de prisões cautelares, é o que a doutrina chama de cláusula de reserva de jurisdição. A prisão temporária é um mecanismo utilizado para assegurar a eficácia da investigação policial na apuração de infrações penais de natureza grave, e, devido à complexidade desses crimes, essa prisão é por prazo determinado, qual seja de até cinco dias quando se tratar de crime comum e de 30 dias se o crime for hediondo, podendo ser prorrogada por igual período em ambos os casos. Nesse sentido, ensina Leonardo Barreto Moreira Alves que: Há prazo fixado em lei para a duração desta prisão (ao contrário da prisão preventiva): em regra, 5 (cinco) dias, podendo ser prorrogado por outros 5 (cinco) dias, mediante decisão judicial fundamentada em extrema e comprovada necessidade (Art. 2º, caput)- princípio da inadmissibilidade de renovação automática. Quando a prisão decorrer de crime hediondo ou equiparado, o prazo é de 30 (trinta) dias, prorrogáveis por mais 30 (trinta) dias (Art. 2º, §4º, da Lei nº 8.072/90), também mediante decisão judicial fundamentada em extrema e comprovada necessidade. (grifo do autor)(ALVES, 2011, p. 74). Essa espécie de prisão cautelar é decretada pelo magistrado, mediante representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público, não podendo ser nem decretada e nem prorrogada de ofício pelo juiz. A prisão temporária só é cabível nos seguintes crimes: homicídio, sequestro e cárcere privado, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, estupro, tráfico de drogas, crimes contra o sistema financeiro nacional, quadrilha ou bando, epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificada pela morte, genocídio e crimes hediondos. Assim, para que haja a decretação dessa prisão, é necessária a presença de dois requisitos alternativos, quais sejam: a imprescindibilidade às investigações no inquérito policial ou quando o investigado não tem domicílio ou residência fixa ou ainda se não há elementos de identificação, acrescido da ocorrência de um desses crimes elencados. Ademais, no momento em que esgotar o prazo da temporária, seja com ou sem prorrogação, o investigado deve ser imediatamente posto em liberdade pelo próprio delegado, independentemente se existe um alvará de soltura, sob pena de incorrer em crime de abuso de autoridade só podendo ser possível a permanência da custódia cautelar se for decretada a prisão preventiva, ocasião em que esta vigorará quando a temporária cessar. 3.2 LIBERDADE PROVISÓRIA A Constituição da República consagra a liberdade provisória como sendo um direito com previsão no Art. 5º, inciso LXVI, segundo o qual “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança”. Dessa 62
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
forma, a liberdade provisória não é uma mera faculdade do juiz, mas sim um direito do acusado, pois a regra é a liberdade e o cárcere constitui exceção. Antes da entrada em vigor da lei 12.403/2011, a liberdade provisória funcionava como uma contracautela substitutiva da prisão em flagrante, conforme ensina Renato Brasileiro de Lima: Funcionava a liberdade provisória apenas como medida de contracautela, na medida em que era cabível para afastar a cautela decorrente da prisão em flagrante, tendo como objetivo precípuo eliminar os danos ao direito de liberdade que poderiam resultar em virtude do recolhimento ou manutenção do indivíduo no cárcere (LIMA, 2011, p. 1452). Com o advento da lei 12.403/2011, a liberdade provisória deixou de ser apenas uma medida de contracautela substitutiva da prisão em flagrante e passou a também ser adotada como uma providência cautelar autônoma, isso porque a liberdade provisória, hoje, pode ser concedida com a cumulação de uma das medidas cautelares diversas da prisão elencadas no Art. 319 do CPP. Frise-se, que a concessão de liberdade provisória pode ocorrer com ou sem arbitramento de fiança e na hipótese de haver fiança, essa só pode ser arbitrada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Não se concede fiança nos seguintes casos: - crime de racismo; - ação de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o estado democrático; - crimes hediondos, tráfico ilícito de entorpecentes e tortura; - se houver sido quebrada a fiança ou não cumpriu a obrigação imposta; - prisão civil ou militar; - se couber preventiva. A fiança pode ser dispensada, reduzida de até 2/3 (dois terços) ou multiplicada por 1000 (mil) e para a fixação da fiança deve-se obedecer aos seguintes critérios: - pena máxima até 4 (quatro) anos : de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos; - pena máxima superior a 4 (quatro) anos: de 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos. A maior e mais relevante inovação trazida pela lei 12.403/2011 referente à liberdade provisória, diz respeito à possibilidade de concessão de fiança pela autoridade policial. Assim, a lei estabelece que se o crime for punido com pena máxima de até quatro anos, o delegado pode arbitrar a fiança, mas se a pena máxima for superior a quatro anos, só quem pode fixá-la é o juiz no prazo de 48 (quarenta e oito) horas. 3.3 MEDIDAS CAUTELARES DO ART. 319 DO CPP Antes mesmo da edição da lei 12.403/2011 que reformou estruturalmente o Código de Processo Penal, já se adotava medidas cautelares não previstas em lei todas EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
63
REVISTA ERGA OMNES
as vezes que se pretendia impor uma medida menos grave que o cárcere. Todavia, a referida lei alterou significativamente o Art. 319 do CPP para assentar um rol de medidas cautelares diversas da prisão, o que não significa que o juiz ficará adstrito a essas medidas previstas em lei, haja vista que poderá aplicar outras a depender da necessidade presente em cada caso concreto já que este rol é meramente exemplificativo. O Art. 319 do Código de Processo Penal prevê as seguintes medidas cautelares: - comparecimento periódico a juízo para apresentar informações sobre as suas atividades; - não frequentar determinados lugares; - não se ausentar da comarca sem autorização judicial; - não manter contato com determinadas pessoas (com vítima, com os comparsas, com as testemunhas, etc.); - não exercer função pública ou atividade econômica ou financeira; - internação provisória do inimputável ou semi-imputável; - recolhimento domiciliar noturno e em dias de folga; - fiança; - monitoração eletrônica. Insta registrar que várias dessas medidas cautelares já são aplicadas como condições para o gozo de livramento condicional, regime aberto ou sursis, ou ainda sendo utilizada como pena alternativa. As medidas cautelares do Art. 319 do Código de Processo Penal como toda cautelar devem ser fundamentadas. Bem como, são proibidas a sua imposição nos casos em que não for cominada pena privativa de liberdade, a fim de evitar a aplicação de cautelares mais gravosas que o resultado final do processo na possibilidade de uma eventual condenação, em obediência ao princípio da proporcionalidade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente estudo, procurou-se examinar de maneira didática e objetiva os aspectos mais relevantes da lei 12.403/2011 que alterou o Código de Processo Penal no que pertine ao estudo das medidas cautelares, estabelecendo seus pressupostos, requisitos e peculiaridades. Diante da análise das inovações trazidas pela lei em comento, constatamos a significativa contribuição proporcionada por essa reforma à legislação processual penal brasileira, uma vez que direitos individuais de suma importância, como a liberdade individual e o respeito ao ser humano, foram priorizados em detrimento do fenômeno da carceirização. A imposição da prisão preventiva como ultima ratio foi a concretização de um ideal há muito tempo pretendido pela comunidade jurídica, notadamente pelos defensores do garantismo penal, passando a aplicar medidas cautelares diversas da prisão de maneira efetiva, sem, contudo, deixar permear no seio da sociedade o famigerado sentimento de impunidade.
64
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
REFERÊNCIAS ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Sinopse para concursos: processo penal – parte especial conforme lei 12.403, de 04/05/2011, que altera dispositivos do CPP relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares (reforma do CPP de 2011). V.8. Salvador: Jus Podium, 2011. BOECHAT, Marcos; “MOCAM”, Bruno. Esquema da lei 12.403/2011: alterações do CPP. Disponível em: http:// www.4shared.com/document/XXWyZOUc/ESQUEMA_DA_LEI_N_12403-11_-_Al.html. Acesso em: 26.08.2011. BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689. htm. Acesso em: 29.08.2011. CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares. Trad. de Carla Roberta Andreasi Bassi. Campinas: Servanda, 2000. LIMA, Marcellus Polastri. A tutela cautelar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Vol. I. Niterói, Rio de Janeiro: Impetus, 2011. LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade com a constituição. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade: as reformas processuais penais introduzidas pela lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal (caderno de atualização da lei 12.403). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal de acordo com as leis 12.403/11 (reforma do CPP), 12.432/11 e 12.433/11. 6. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Jus Podium, 2011.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
65
REVISTA ERGA OMNES
PRINCÍPIO DA RESERVA PARLAMENTAR Paradigma Ideal dos Atos Regulamentares do Conselho Nacional de Justiça
O presente artigo foi desenvolvido com o intuito de analisar os regulamentos expedidos pelo Conselho Nacional de Justiça criado com a EC nº45/2004. Nessa abordagem foram levados em consideração os princípios hermenêuticos constitucionais e, em especial, as decisões do Supremo Tribunal Federal em torno da matéria. De fato, foram coletadas decisões ora referendando a atuação expansiva do Conselho, ora reconhecendo a inconstitucionalidade das suas manifestações, o que demonstra que o órgão, por vezes, extrapola os limites de seu poder regulamentar invadindo a esfera reservada ao poder legislativo. Palavras-chave: CNJ. Regulamentos. Limites. Reserva. Parlamento.
Louise de Melo Cruz Diamantino Gomes
Advogada e Pós-Graduada pela EMAB em 20/11/2008, no Curso de Pós-Graduação latu sensu Preparatório à Carreira de Magistratura. E-mail: louise_mello@hotmail.com
REVISTA ERGA OMNES
1. INTRODUÇÃO O presente trabalho busca analisar a estrutura e as finalidades principiológicas do Conselho Nacional de Justiça, órgão integrante do Poder Judiciário, criado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Sem a ambição de exaurir as discussões sobre a legitimidade do órgão e de suas atribuições constitucionais, este artigo foi desenvolvido entrelaçado às conjunturas dogmáticas da atualidade e às técnicas hermenêuticas. De fato, alguns Tribunais do país vinham praticando atos déspotas, com distorções jurídicas absurdas, fato social este que desencadeou a necessidade premente da criação de um órgão que lhes fiscalizasse o exercício da função correicional e também administrativo-financeira. Entretanto, extrapolando as prerrogativas que lhe foram constitucionalmente conferidas, o CNJ ingressou ilegitimamente na esfera de poder precipuamente reservada ao Legislativo, atuando com desprezo ao papel da positivação da norma no Estado Moderno. A hermenêutica jurídica, auxiliando na pré-compreensão da estrutura sistêmica do Estado brasileiro e garantindo aos intérpretes atuações segundo métodos préestabelecidos, possibilita a constatação de excesso de poder regulamentar pelos integrantes do CNJ que, vêm realizando uma temerária tradução e interpretação do Direito sem as amarras da previsibilidade inserta nas normas, em comprometimento à Separação dos Poderes do Estado. Nesse contexto, surge a reserva de parlamento ou reserva parlamentar, como princípio inafastável à atuação do Conselho, garantindo a eficácia das decisões do órgão, a coerência no sistema jurídico e a manutenção da estrutura político-administrativa do Estado brasileiro.
2. ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL DO CNJ A instituição do CNJ se deu com a EC 45/2004 que acresceu o inciso I-A ao Art. 92. O caput do artigo 103-B da Constituição1 reza que o Conselho Nacional de Justiça será constituído por quinze membros, com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma recondução. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de nove integrantes do Judiciário, dois membros do Ministério Público, dois advogados indicados pela OAB e dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. De pronto, conclui-se que o CNJ é um órgão híbrido, viabilizando, ao ver dos integrantes da Corte Suprema do país, a erradicação do corporativismo e o estreitamento das relações entre o judiciário e a sociedade2. O § 4º, do Art. 103-B, da Constituição da República enumera as competências desse órgão de cúpula que, precipuamente, realiza o controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário e de situações concretas que surjam no exercício das atividades judicantes, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional3. 1. Art. 103-B, CF/88, acrescido pela emenda constitucional n. 45/2004. 2. STF-Pleno, ADIN 3367/DF. Relator Min. Cezar Peluso. Inf. 383, 13/04/2005. 3. Art. 103-B: (...) § 4º: “Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura...”. EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
67
REVISTA ERGA OMNES
Observa-se que não se trata da criação de uma instância superior controladora da magistratura, já que suas decisões poderão ser revistas pelo Supremo Tribunal Federal quando impugnadas. Diga-se ainda, que o CNJ não é detentor de “poder jurisdicional”, não soluciona litígios. A inovação constitucional chamada “Reforma do Judiciário” (EC nº 45/2004), trouxe, dentre as atribuições do CNJ, o poder para expedir atos regulamentares no âmbito de sua competência que, conforme visto, se restringe à fiscalização da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Assim, atuará como órgão hierarquicamente superior quando do exercício da função correicional e disciplinar dos órgãos, membros e serviços do Poder Judiciário, exercendo, inclusive, controle sobre o mérito desses atos. Diferentemente, o controle exercido sobre a atuação administrativa e financeira dos atos discricionários, será apenas o da legalidade. Já o controle de atos vinculados, por óbvio, será sempre pleno. A Corte Suprema do país, em 23/09/2003, sumulou entendimento pela inadmissibilidade de criação por Constituição Estadual de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário, como forma de preservar o princípio da separação dos poderes e garantir o autogoverno e a autoadministração dos Tribunais4. Contudo, com relação à criação do Conselho Nacional de Justiça, o Supremo sacramentou a constitucionalidade do órgão como integrante do Poder Judiciário (constituído majoritariamente por membros desse poder), e, afirmando que a presença de integrantes à ele estranho, seria uma representação que não interferiria na independência do Judiciário5. Convém retratar parte do acórdão que confirmou a constitucionalidade do CNJ e encerrou as discussões sobre a violação ao princípio da Separação dos Poderes no aspecto da sua composição mista: [...] o CNJ é órgão próprio do Poder Judiciário, composto, na maioria por membros desse mesmo poder, nomeados sem interferência direta dos outros Poderes, dos quais o Legislativo apenas indica, fora de seus quadros e, assim, sem vestígios de representação orgânica, dois dos quinze membros, não podendo essa indicação se equiparar a nenhuma forma de intromissão incompatível com a idéia da separação e independência dos Poderes6.
3. HERMENÊUTICA JURÍDICA E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE De um Estado de Direito fundado na lei, consoante pregavam Hans Kelsen e Savigny, passou-se à uma noção de justiça fundada em princípios e valores constitucionais, com a influência de autores como Alexy e Dworkin, impregnados de senso de justiça e prudência. O princípio da proporcionalidade surge nesse mesmo contexto, materializando a verdadeira Justiça pela utilização da norma positivada de 4. Súmula 649 do STF: “É inconstitucional a criação, por Constituição estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem representantes de outros Poderes ou entidades”. 5. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 499. 6. STF-Pleno- Adin nº 3367/DF – Rel. Min. César Peluso, decisão:13-04-2005, Inf. nº 383.
68
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
forma coerente, harmonizando os interesses antagônicos de uma mesma relação jurídica. Nesse aspecto o princípio funciona como verdadeiro instrumento de efetivação; uma hermenêutica que busca a estabilização das relações. A Corte Constitucional do país reconhece o princípio da proporcionalidade como instrumento essencial à tutela das liberdades fundamentais e à racionalidade do Estado Democrático de Direito. Tal axioma tem incidência sobre todas as esferas de poder, impondo-se, inclusive, como postulado básico de contenção aos excessos do Poder Público. Ora, se assim o é, mesmo um órgão que integre a estrutura do Poder Judiciário, como é o caso do Conselho Nacional de Justiça, há de agir sem arbítrio ou eventuais excessos. Dessa maneira, o Legislativo não pode exercer sua competência de forma imoderada e irresponsável, sob pena de incidir em desvio de poder legislativo7. Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça também não poderia inovar através de resoluções, usurpando a competência do Legislativo, posto que tal conduta é apta a gerar situações de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. O Estado Democrático de Direito está sempre cingido pelo debate entre dogma e liberdade; justiça e segurança (desafio Kelseniano8). A hermenêutica, como teoria de interpretação, exerceria o papel social de busca do consenso, garantindo a harmonia no sistema e também a mais lídima justiça. A interpretação do direito é um ato doador de sentido, inclusive nas atuações de caráter meramente administrativas atribuídas ao Conselho. Contudo, todo ato interpretativo encontra limites na segurança jurídica. Aliás, mesmo a hermenêutica está sempre conflitando com essa segurança jurídica e com a justiça social. Pois bem, como o Direito não se confunde com a lei, sendo ele muito mais amplo, passando por todo direito positivo do país e dos órgãos internacionais, pela jurisprudência e pelos princípios que o informam, a cláusula da proporcionalidade, mesmo que não formalmente positivada na Constituição, pode ser considerada como um dogma que incide diretamente em todas as manifestações de poder do Estado, limitando-o materialmente. Nesse sentido, vale ressaltar a opinião de Kriele: “[...] os direitos somente têm efeito frente a outros direitos, os direitos humanos somente em face de um poder jurídico, isto é, em face a competência cuja origem jurídica e cujo status jurídico seja respeitado pelo titular da competência”.9. Então, o que sobressai, é que: um órgão criado para conter eventuais excessos dos Tribunais que dantes permaneciam incólumes, nunca poderá, sob a escusa da melhor interpretação do permissivo constitucional, extrapolar os limites organizacionais do Estado (princípio da correção funcional), nem desarmonizar-se do princípio da 7. Nesse sentido: HC 92525/ MC-RJ. Relator Min. Celso de Melo, Inf. STF nº 500. 8. A tensão entre o dogma e a liberdade é a necessidade de estabelecer os pontos objetivos de partida e a possibilidade subjetiva de encontrarem-se diversos sentidos. 9. KRIELE, Martin. Introducion a la Teoria del Estado. APUD: Acórdão proferido pelo Plenário do STF, em pedido de habeas corpus, divulgado no informativo de nº501, p. 2.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
69
REVISTA ERGA OMNES
proporcionalidade. A postura avessa a essa conclusão conduz à uma inversão do propósito do legislador e danifica a formatação do sistema jurídico nacional.
4. A DIVISÃO DOS PODERES E A VONTADE DO LEGISLADOR Antes de Montesquieu expor a teoria da tripartição dos poderes, Aristóteles já havia reconhecido a existência de três diferentes funções: a de editar normas gerais, a de aplicar as referidas normas e a de dirimir os conflitos. Ocorre que, na antiguidade Grega, tais funções estavam concentradas em um único órgão (“L’Etat c’est moi” 10). O grande avanço trazido pelo teórico Montesquieu foi interligar cada uma das funções a três distintos órgãos, que exerceriam somente a função que lhes fosse típica. É notória que tal teoria foi adotada por várias nações, mas de uma forma mitigada, já que, além do exercício predominante das suas funções, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo, também exercem extraordinariamente outras, que lhes são atípicas. As transformações experimentadas a partir do século XIX puseram a noção de soberania nacional e o princípio da separação dos poderes como verdadeiros condicionantes de natureza política11, para a revalorização das fontes do Direito. Dessa forma, as atribuições de cada Poder12, que as exercerão de forma independente e harmônica13, tornaram-se indelegáveis. Isso porque, um titular do poder estatal só está autorizado a exercer as funções típicas do outro quando houver expressa previsão constitucional ou delegação pelo poder constituinte originário14. A teoria da divisão dos poderes garantiu a separação entre o direito e a política, regulando a interferência desta na Administração, sendo a separação dos poderes erigida ao patamar de cláusula pétrea, consoante Art. 60, § 4º, III, CF/8815. A Constituição francesa de 1791, aliás, já dava contornos precisos à separação dos poderes, ao prever em seu Art. 1º, cap.V, que nem o Rei nem o legislativo poderiam exercer o poder Judiciário, e ainda, no Art. 3º do mesmo capítulo, proibindo aos tribunais a suspensão na execução de leis ou a prática do poder legislativo. O exercício independente das atividades de legislar, executar e julgar cristaliza a teoria dos freios e contrapesos, segundo a qual o Poder deve permanecer nos limites das suas respectivas esferas de competência. Assim sendo, a emissão de regras gerais compete ao Poder Legislativo; o Poder Executivo pratica atos especiais e concretos, no limite dos atos do legislativo e; por fim, o Judiciário controla o exercício dessas atividades e realiza a pacificação social com justiça16. Por outro lado, devemos contextualizar o tema da separação dos poderes com o sistema posto. Quando o sistema jurídico reconhece a legitimidade na atuação do poder 10. Ou seja: “O Estado sou eu”, famigerada frase de Luís XV. 11. JUNIOR, Tercio Sampaio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, p. 73. 12. Melhor seria falar em ORGÃO, já que o poder, em verdade, é uno, mas exercido por três órgãos distintos. 13. Art. 2º, CF/88: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. 14. O Poder Constituinte Originário é o que instaura uma nova ordem jurídica, podendo ser histórico e estruturar o Estado pela primeira vez, ou revolucionário e instaurar novas ordens subsequentes. 15. [...] §4º: “Não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir: (...) III: a separação dos Poderes”. 16. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado, p. 184-185. 70
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
reformador17, valida não meramente o conteúdo textual das normas, mas ao contrário, o ato de interpretação das mesmas deverá ter por objeto também o sentido que elas expressam, como resultado de um ato criador intencional do legislador. Por assim dizer, a ciência jurídica (dogma) seria um princípio derivado da vontade do emissor da norma18. Assim, ao emitir atos regulamentares com verdadeira força de lei, o Conselho Nacional de Justiça estaria indo além do pensamento do legislador quando esse lhe conferiu o poder regulamentar, usurpando, assim, a competência do Poder Legislativo em franca violação à reserva parlamentar. O reconhecimento da vontade do legislador como sede do sentido das normas (doutrina subjetivista19) conduz, nas palavras de Tércio Sampaio Ferraz, “à impossibilidade de se ignorar o legislador originário; de se colocar o intérprete acima do legislador e da própria norma; e de desvirtuar a segurança e a certeza jurídica, deixando o direito à mercê do interprete”. Essa visão seria bastante conservadora se não assegurasse a estruturação com um mínimo de perturbação social. Explique-se melhor: a CF/88 deu contornos sociais ao Estado brasileiro e essa interpretação da separação dos poderes como limite supra-legal ao exercício do poder regulamentar pelo CNJ é, em última análise, progressista, porque promove o caráter democrático de cunho social do Estado.
5. ANÁLISE DOS REGULAMENTOS DO CNJ Regulamentos da lavra do Conselho Nacional de Justiça, fulcrados no permissivo constitucional acrescido pela EC nº 45 (Art. 103-B, §4º, I), vêm sendo expedidos com nítido conteúdo normativo e caráter de generalidade. A título elucidativo, citemos a Res. de nº 7/2005 que vedou a contratação de parentes de magistrados, até o terceiro grau, para cargos de chefia, direção e assessoramento do Poder Judiciário. Primeiramente, o STF manteve a validade da resolução supracitada no julgamento da ADC 12, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros20. A inovação inserida por ato regulamentar, materializou a aplicação tanto pelo CNJ como pelo próprio STF, da interpretação extensiva da Constituição Federal, ao transpor a vontade do legislador (nos termos vistos no capítulo antecedente) e desconsiderar o método dogmático da sintática21. Posteriormente (em 2008), o Supremo Tribunal Federal aprovou, por unanimidade, a súmula vinculante de número 13, que estabelece a proibição do nepotismo nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do país. As chamadas contratações cruzadas também foram vetadas. A edição da súmula confirmou, em definitivo, a Resolução 7/2005 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dando extensiva legitimação à atuação regulamentar do órgão, já que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, tem efeito vinculante 17. O Poder Reformador é o poder de alterar e atualizar a Constituição. Este poder se subdivide em Reformador de Emenda e Reformador de Revisão. Ademais, é limitado, condicionado e subordinado ao Poder Constituinte Originário. 18. JUNIOR, Tércio Sampaio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito, 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001. 19. Idem. 20. STF - Pleno – ADC-MC 12/DF. Rel. Min. Carlos Brito, decisão: 16/02/2006. 21. Método dogmático de interpretação que busca o significado dentro de um sistema.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
71
REVISTA ERGA OMNES
em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Por sua vez, a Resolução de nº 24 do CNJ, foi declarada inconstitucional pelo STF no julgamento da ADI 3823/DF que, ao regular o regime de férias dos magistrados, afrontou os Arts. 93, inc. XIII, e 103-B da Constituição da República. Isso porque as regras legais que estabeleciam que os magistrados gozariam de férias coletivas perderam seu fundamento de validade pela promulgação da Emenda Constitucional n. 45/2004, que plasmou paradigma para a matéria, contra a qual nada poderia prevalecer. Neste caso, o Supremo realizou a mais perfeita interpretação teleológica e também axiológica22 da norma, ao retirar a eficácia de uma resolução editada pelo Conselho Nacional de Justiça que desprezava o mandamento constitucional inserto na EC nº 45. Com a edição da Resolução nº 51/2008, dispondo sobre a autorização de viagem para o exterior de crianças e adolescentes, o CNJ acabou por ampliar o rol de hipóteses em que a aludida autorização judicial não era exigida, alterando o previsto no Art. 84, da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Aqui, mais uma vez, legisla o CNJ, sem regramento dogmático para o controlar. Em 22 de junho de 2011 o Plenário do STF iniciou julgamento de mandado de segurança impetrado contra decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que determinara, a todos os magistrados do país com função executiva, que se cadastrassem, obrigatoriamente, no denominado Sistema BACEN JUD, para fins de realização de penhora on line. Na ocasião, a Min. Cármen Lúcia, relatora, concedeu a segurança. Ponderou que o CNJ não disporia de competência constitucional ou legal para impor, obrigatoriamente e mediante deliberação administrativa, a adoção de determinada conduta pelo magistrado. A Ministra aduziu que o ato coator mitigaria a independência funcional dos juízes, de maneira a pressionar pela utilização do aludido sistema, sem que essa obrigatoriedade decorresse de previsão legal. A opinião da relatora se coadunou com o entendimento esposado no presente artigo, já que partiu do pressuposto de que a atividade do Conselho não pode transmudarse em legiferante a ponto de inovar a legislação em vigor e fomentar imposição aos magistrados. Entretanto, esse não foi o rumo adotado pelo tribunal. Infelizmente, por maioria, o aludido mandado de segurança foi denegado, tendo sido considerada válida a determinação do CNJ. Desse modo, fixou-se o entendimento de que o Conselho poderia instituir condutas e impor a toda magistratura nacional o cumprimento de obrigações de essência puramente administrativa, como a que determinaria aos magistrados a inscrição em cadastros ou sítios eletrônicos com finalidades estatística e fiscalizatória ou, para materializar ato processual. Vale destacar que, na ação em comento, não só a relatora, como também os Ministros Marco Aurélio e Luiz Fux entenderam que o CNJ não disporia de competência constitucional ou legal para obrigar, mediante deliberação administrativa, a adoção de determinada conduta pelo magistrado; além de haver intromissão de ato administrativo em reserva de legislação federal, o CPC. Confirmando os constantes questionamentos 22. O método de interpretação teleológico busca a finalidade das normas, enquanto que o axiológico é feito com base nos princípios que regem o sistema.
72
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
sobre os limites do poder regulamentar do CNJ, salienta-se, assim, o ementário de uma ação pendente de julgamento pelo plenário do STF: O Plenário iniciou julgamento de referendo de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada pela Governadora do Estado do Pará, contra o § 1º do Art. 22 da Resolução 115/2010, do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que dispõe sobre a Gestão de Precatórios no âmbito do Poder Judiciário ... No caso, o Min. Marco Aurélio, relator, deferira a medida cautelar, ad referedum do Pleno, para suspender, até o julgamento final da ação direta, a eficácia do § 1º do Art. 22 da norma questionada. Na presente assentada, o relator manifestou-se pelo referendo da medida acauteladora. Consignou que o CNJ não possuiria poder normativo e que teria extrapolado sua atuação administrativa ao regulamentar texto constitucional relativamente à EC 62/2009, além de adentrar o campo da execução de débito da Fazenda Pública retratada em título judicial. Reputou que o CNJ atropelara mecanismo que já estaria sendo observado nos Estados-membros, ao dispor sobre a obrigatoriedade de depósito, até dezembro de 2010, correspondente ao total da mora atualizada, dividida pelo número de anos necessários à liquidação, revelando passível de ocorrer em 15 anos. Concluiu que implicações referentes à observância da EC 62/2009 não poderiam ser definidas, em tese, pelo mencionado órgão administrativo. Após, pediu vista o Min. Ayres Britto23. [Grifo nosso]. Contudo, em outra manifestação, o STF referendou ato da lavra do CNJ sobre a destinação de taxa judiciária a entidade de classe: O Plenário indeferiu mandado de segurança impetrado pela Associação Matogrossense dos Defensores Públicos – AMDEP contra decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ e declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da Lei matogrossense 8.943/2003 que — ao alterar a Lei 7.603/2001, que fixou o valor das custas, despesas e emolumentos relativos aos atos praticados no Foro Judicial — instituiu contribuição para a associação impetrante. Na espécie, o CNJ julgara procedente pedido de providências para determinar ao Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso a revisão de seus atos normativos sobre regime de custas, no sentido de expurgar qualquer cobrança de emolumento judicial com destinação a qualquer entidade de classe e/ou com finalidade privada. Alegava a impetrante que a cobrança de custas e emolumentos e o direito à participação da impetrante em parte delas encontraria previsão legal e que o CNJ teria usurpado competência jurisdicional do STF ao retirar a eficácia do art. 1º da Lei 8.943/2008. 23. ADI 4465 Referendo-MC/DF, rel. Min. Marco Aurélio. 9.2.2011.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
73
REVISTA ERGA OMNES
Entendeu-se que o CNJ, sem declarar a inconstitucionalidade dos diplomas legislativos locais, zelara pela supremacia da Constituição Federal, tendo citado vasta jurisprudência do STF no sentido da inconstitucionalidade da destinação da arrecadação de custas, taxas judiciárias e emolumentos a instituições privadas ou entidades de classe. Ressaltou-se, ainda, que o CNJ determinara o encaminhamento da sua decisão à Procuradoria Geral da República para análise das leis matogrossenses, a fim de que esta adotasse as medidas que reputasse cabíveis para sanar eventual frustração dos comandos constitucionais relativos à isonomia tributária24.
6. COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO Diante desse quadro, qual seria a verdadeira posição normativa dos atos regulamentares no ordenamento jurídico brasileiro? Como é cediço, o que distingue o conceito de lei do de outros atos é a sua estrutura e a sua função. As leis têm caráter geral, porque regulam situações em abstrato. Os atos regulamentares, por sua vez, (resoluções e decretos) destinam-se a concreções e individualizações. Há, assim, uma nítida distinção entre a matéria reservada à lei (geral e abstrata) e aos atos regulamentares. A primeira diz respeito a previsão de comportamentos futuros; no segundo caso, dizem respeito às diversas situações que surjam das atividades no plano da concretude25. Uma resolução não pode estar na mesma hierarquia de uma lei, pela simples razão de que a lei emana do poder legislativo, essência da democracia representativa, enquanto os atos regulamentares ficam restritos às matérias com menor amplitude normativa. No dizer de Hely Lopes Meirelles26: “As Resoluções, normativas ou individuais, são sempre atos inferiores ao regulamento e ao regimento, não podendo inová-los ou contrariá-los, mas unicamente complementá-los e explicá-los [...]”. Ora, a resolução é ato de efeito meramente interno, pelo que, só se poderia falar na existência de uma ordem jurídica se os entes que a constituírem estivessem num relacionamento de coerência entre si. Para Bobbio, ao se admitir o princípio da compatibilidade entre normas, para que uma norma seja enquadrada no sistema não bastará apenas a demonstração da sua derivação direta de uma fonte autorizada, mas também a constatação de que ela não se mostra incompatível a nenhuma outra27. A necessidade de existir uma coerência no ordenamento leva a crer que os modais deônticos, sejam eles imperativos, permissivos ou proibitivos devem ser expedidos livres de embaraços, atendidas não apenas as exigências formais (de elaboração do ato), mas 24. MS 28141/MT, rel. Min.. Ricardo Lewandowski, 10.2.2011. 25. Excepcionalmente, as leis terão efeito concreto, como por exemplo, a lei que decreta a desapropriação. De outro lado, não se nega a existência de decretos e/ou resoluções de caráter abstrato, entretanto estes últimos não obstante a abstração que carregam, devem sempre balizar-se na lei que regulam. 26. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros. 2006. p. 182-183. 27. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília. 1999 (reimpressão 2006), p. 80-81.
74
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
também às materiais e de competência. Nesse diapasão, uma sentença judicial deve ser fundamentada e uma lei ordinária aprovada segundo o quorum específico28, mas, também, e principalmente, são atos que devem ser praticados por quem tem a competência constitucionalmente estabelecida para tanto, e mais: em obediência estrita à separação dos poderes. Assim, uma sentença judicial deve ser apta a solucionar a lide, mas acima de tudo, só poderá ser prolatada por um integrante da carreira da Magistratura. Uma lei ordinária deve alcançar o propósito para o qual for editada, mas só terá essa natureza se emanada do Parlamento.
7. RESERVA PARLAMENTAR: Limites ao poder regulamentar do CNJ Seria possível admitir que o Conselho, mediante a expedição de atos regulamentares (na especificidade, resoluções), substitua-se ao Poder Legislativo? O Poder de Legislar é da competência exclusiva do Congresso Nacional, Arts. 44, 48, 59, 60 e 61 a 68, todos da CF, abrindo-se exceção apenas ao Poder Executivo que poderá usar das Medidas Provisórias, Art. 62, com as vedações ali consignadas. Podemos, assim, inferir que o CNJ enfrenta duas limitações: não pode expedir regulamentos com caráter geral e abstrato, em face da reserva de lei; nem pode intervir nos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Ao usar a prerrogativa legal de expedir regulamentos como verdadeira competência legislativa, o Conselho não pratica apenas um ato de inconstitucionalidade formal. Não é apenas o ato em si que é impróprio para veicular tais matérias, o próprio órgão atua em usurpação de poder, desrespeitando a estrutura organizacional do Estado e agindo como verdadeiro ente soberano. É neste sentido que se fala de uma evolução do princípio da reserva legal para o de reserva parlamentar29 como limite paradigmático aos atos regulamentares do Conselho Nacional de Justiça. O constituinte derivado não procedeu a uma delegação ao referido Conselho que fosse capaz de romper com a reserva parlamentar, que assegura a função típica de legislar ao Parlamento Nacional. É uma construção nefasta aceitar que existem as três funções e que ao menos duas delas possam estar legitimamente concentradas nas mãos de um só órgão. Assim, os atos expedidos pelo Conselho assumiriam ao mesmo tempo caráter legislativo e executivo. Com essa linha interpretativa bastaria apenas ao CNJ assumir também as atividades judicantes para que a Constituição, suas cláusulas pétreas, dogmas e princípios fundamentais fossem ignorados e, então, voltássemos a monarquia de Aristóteles. Não se diga que o poder regulamentar (transformado em “poder de legislar”) advém da própria EC 45. Fosse correto este argumento, bastaria elaborar uma emenda constitucional para “delegar” a qualquer órgão (e não somente ao CNJ – porque também o seria ao Conselho Nacional do Ministério Público-) o poder de “legislar” através de regulamentos. Outrossim, os membros do Conselho em equivocada interpretação 28. Quorum de maioria simples ou relativa, ex vi do Art. 47, Cf/88. 29. LENIO, Luiz Streck, Ingo Wolfgang Sarlet e Clemerson Merlin Clève. Os limites constitucionais das resoluções do Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público. Disponível em < http:// ultimainstância.uol.com.br/ensaios/ler_notícia.php?idNotícia=21474> acesso em 15/06/2008.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
75
REVISTA ERGA OMNES
dos limites em sua atuação, substituem-se à vontade geral do povo, símbolo maior da democracia representativa, que não os elegeu para o exercício do poder legiferante. O princípio da reserva parlamentar assume um posto de inegável importância porque além de proteger os princípios Republicanos, estabelece precisamente os contornos do artigo 103-B da CF/88, acrescido pela EC 45/2004. Até o presente momento, os membros do CNJ não atentaram nem ao princípio da proporcionalidade nem ao intuito do legislador, na interpretação da norma constitucional que lhes confere o poder de expedir atos regulamentares na fiscalização da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. O princípio de reserva parlamentar tido como paradigma ideal a esses atos é o aliado mais amplo e incisivo na manutenção dos fins que regem o Estado brasileiro. Não se admite o excesso de poder, a usurpação de competência, nem a violação ao princípio da reserva legal.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS A instituição do CNJ pela EC 45/2004 garantiu a instituição de um órgão com poderes fiscalizatórios sobre a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Trata-se de grande avanço na medida em que possibilita o exercício de um controle efetivo da função correicional dos Tribunais, proporcionando maior segurança aos integrantes da carreira da Magistratura contra eventuais disparidades. Por outro lado, o CNJ estreita a relação entre o Poder Judiciário e a sociedade. Entretanto, com o poder para expedir atos regulamentares no âmbito de sua competência, não podem criar direitos e obrigações e tampouco imiscuir-se (especialmente no que tange à restrições) na esfera dos direitos e garantias individuais ou coletivos. O poder “regulamentador” dos Conselhos esbarra, assim, na impossibilidade de inovar. As garantias, os deveres e as vedações dos membros do Poder Judiciário estão devidamente explicitados no texto constitucional e na respectiva lei orgânica. Qualquer resolução que signifique inovação será, pois, inconstitucional. Como visto, o princípio da Reserva Parlamentar é inerente ao Estado de Direito Democrático e deve limitar a atividade interpretativa e reguladora do Conselho. O princípio da proporcionalidade atrelado à separação dos poderes demonstra que a melhor hermenêutica a ser realizada é a que garante maior segurança jurídica e a consecução dos valores sociais do Estado. Indo muito além da simples expedição de atos normativos, o CNJ passa a legislar sem que o titular absoluto do poder, o povo, tenha elegido seus integrantes ao exercício da atividade legiferante. Daí então, o princípio de reserva parlamentar garante a manutenção da estrutura do Estado Democrático e limita materialmente a atividade regulamentar do Conselho Nacional de Justiça. Tudo em respeito à mais genuína forma de exercício de Poder pelo Estado e aos princípios a que este se submete na condução de suas atividades.
76
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
9. BIBLIOGRAFIA BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília. 1999 (reimpressão 2006). BRASIL, Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Lex: Vade Mecum, 6. ed. São Paulo: Saraiva. 2008. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. JUNIOR, Tercio Sampaio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001. LENIO, Luiz Streck, Ingo Wolfgang Sarlet e Clemerson Merlin Clève. Os limites constitucionais das resoluções do Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público. Disponível em < http://ultimainstância. uol.com.br/ensaios/ler_notícia.php?idNotícia=21474> acesso em 15/06/2008. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros. 2006. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas. 2007. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Medida Cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade, ADC-MC 12 / DF. Relator: Min. Carlor Britto. Julgamento: 16/02/2006. Disponível em <http://www.stf.gov.br/ portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso 20/07/2008. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. HC 92525/ MC-RJ. Relator Min. Celso de Melo, Inf. STF nº 500. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/push/loginPush.asp >. Acesso 08/08/2008 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. ADIN 3367/DF. Relator Min. Cezar Peluso. Julgamento: 13/04/2005. Disponível em <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso 20/07/2008. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. ADIN 4495/DF. Relator Min. Marco Aurélio. Julgamento: 09/02/2011. Disponível em <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso 05/07/2012. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. MS 28141/MT. Relator Min. Ricardo Lewandowiski. Julgamento: 10/02/2011. Disponível em <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso 05/07/2012. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. MS 27621/DF. Relator Min. Cezar Peluso. Julgamento: 22/06/2011. Disponível em <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso 05/07/2012.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
77
REVISTA ERGA OMNES
A DETERMINAÇÃO DA PATERNIDADE NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA O presente artigo busca efetivar uma análise do tratamento que vem sendo conferido ao vínculo paterno-filial na reprodução assistida heteróloga (modalidade em que se utiliza célula germinativa de um terceiro estranho ao casal) pela doutrina e jurisprudência. Com o desenvolvimento de uma pesquisa bibliográfica interdisciplinar entre a ciência jurídica e a biológica, e em face do desenvolvimento científico e da possibilidade de utilização de inúmeras técnicas conceptivas, procuramos demonstrar a necessidade do reconhecimento de que a paternidade oriunda da reprodução assistida heteróloga possui pressupostos peculiares, de forma que, apesar da aplicação das regras jurídicas gerais da filiação a esta modalidade, torna-se mister a edição de lei específica que regulamente o tema, evitando abusos e desrespeito a direitos fundamentais. Ressaltamos a coexistência dos diversos critérios identificadores da paternidade, harmonizando-se o respeito à filiação jurídica ou sócioafetiva com o direito ao conhecimento da ascendência genética, tendo sempre como fundamento a dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Paternidade; Reprodução Assistida Heteróloga; Pressupostos.
Nalim Falcão Cunha Maracajá
Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes e em Direito do Trabalho pela Universidade Gama Filho. Pós-graduanda em Direito Processual – EMAB pela ANHANGUERA UNIDERP em convênio com a Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – Rede LFG, Brasil. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça da Bahia lotada nos Juizados Especiais Cíveis da Comarca de Serrinha.
78
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
INTRODUÇÃO A família, como núcleo fundamental da sociedade, apresentou diferentes formas de constituição ao longo dos tempos: deixou de ser essencialmente um núcleo econômico e de reprodução para se configurar, primordialmente, como espaço de companheirismo e troca de afetos. A história da humanidade evidencia o papel de destaque atribuído à formação da família e, consequentemente, à fecundidade. Resolvendo o casal a realização do desejo de procriação, a sua não concretização suscita uma variedade de rações negativas, “provoca no casal uma sequência de desequilíbrios psicológicos, vindo a afetar o indivíduo e a própria sociedade conjugal” (QUEIROZ, 2001, p. 122). Tendo em vista tais aspectos, verifica-se que o problema da esterilidade atinge o ser humano não apenas em sua vida íntima como também em seu convívio social. Uma vez que a solução dos problemas de infertilidade ou esterilidade engloba o direito à saúde1, não se pode negar a possibilidade da utilização das técnicas reprodutivas, entretanto, estas devem ocorrer dentro de certos limites. Das técnicas de reprodução humana assistida, a modalidade heteróloga, em que se utiliza material germinativo de um terceiro (sêmen de um doador, óvulo de uma doadora ou embrião de outro casal) é a que enseja maiores controvérsias, haja vista que não há coincidência quanto aos critérios identificadores da paternidade: vínculo jurídico (presunções legais), biológico (consanguinidade) e socioafetivo (afetividade). Assim, “antes de submeter um casal ao processo de inseminação artificial, os centros de procriação artificial devem assegurar que efetivamente o único tratamento capaz de contornar a infertilidade é a inseminação” (LEITE, 1995, p. 34). Desta forma, não fica ao total arbítrio do casal a escolha da técnica a ser utilizada, devendo observar as limitações por imposições morais, éticas e jurídicas.
1. CRITÉRIOS IDENTIFICADORES DA PATERNIDADE NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA Tendo em vista as três vertentes da filiação, biológica, afetiva e jurídica e os diferentes pressupostos fundamentadores da constituição do vínculo, torna-se mister a análise dos pressupostos para o estabelecimento da paternidade-filiação na reprodução assistida heteróloga. No âmbito da parentalidade-filiação decorrente das técnicas de reprodução assistida, o fato da inexistência da relação sexual faz com que a vontade, associada ao êxito da utilização da técnica, configure-se como pressuposto basilar para o estabelecimento do vínculo da paternidade (GAMA, 2003, p. 761). Deve-se ressaltar que referido pressuposto precisa ser analisado conjuntamente com o princípio do melhor interesse da criança, visto que o direito à reprodução é relativo, 1. De acordo com a conceituação atribuída pela Organização Mundial de Saúde, “saúde reprodutiva é um estado de bem estar físico, mental e social, e não de mera ausência de enfermidade ou doenças, em todos os aspectos relacionados com o sistema reprodutor e suas funções e processos” (GAMA, 2003, p. 446).
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
79
REVISTA ERGA OMNES
devendo atentar para os limites estabelecidos no texto constitucional. Apesar da inexistência de lei específica que regule o tema, existem algumas disposições que buscam controlar as práticas médicas relacionadas ao tema e encontram-se, basicamente, em três diplomas: Código de Ética Médica, Resolução n° 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Lei 8.974/95 (que disciplina os processos de manipulação genética). Leva-se em consideração ainda o risco: a situação jurídico-familiar que envolve dada pessoa que, estando vinculada a outra, assume as consequências advindas de tal vínculo. Na reprodução assistida homóloga (em que utiliza o próprio material genético do casal) a falta de consentimento do cônjuge ou companheiro pode até ensejar separação judicial ou dissolução da sociedade de fato, mas não há qualquer consequência quanto ao estabelecimento do vínculo paterno-filial. A paternidade em relação ao cônjuge ou companheiro é estabelecida, uma vez que nesta hipótese o vínculo baseia-se no liame biológico (Queiroz, 2001, p. 79). Neste sentido, adverte Gama (2003, p. 705) que seria equivalente a hipótese da mulher convencer seu companheiro de que vem fazendo uso de algum procedimento contraceptivo quando, na realidade, não utiliza método algum e, devido à relação sexual, engravida. Como na reprodução assistida heteróloga não há liame biológico entre o pai social e a criança, a vontade é o pressuposto fundamental para o estabelecimento da paternidade, de forma que o consentimento tem papel precípuo na realização de tal técnica. Tendo em vista a peculiaridade dos pressupostos para o estabelecimento da paternidade na reprodução assistida heteróloga, é impossível a impugnação da paternidade se a vontade foi declarada livre e espontaneamente. Nesta técnica inexiste contato sexual, que é substituído pela manifestação de vontade aliada ao êxito da técnica. Nesse contexto, se a manifestação da vontade não for revogada até o momento da concepção e o início da gravidez não será mais possível retroceder no tempo para revogar a vontade, assim como não é possível desfazer a relação sexual já concretizada na hipótese da conjunção carnal.2 A impossibilidade de impugnação da paternidade é evidenciada pelos princípios e deveres da boa-fé e do respeito, ínsitos à dignidade da pessoa humana do cônjuge e da futura criança.
2. REQUISITOS PARA O ACESSO ÀS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA Com o intuito de garantir efetividade aos direitos e garantias da pessoa concebida através da reprodução assistida heteróloga, torna-se mister a análise dos requisitos que 2. Neste sentido, ressalta Leite (1995, p. 374): “As razões que legitimam a tese são de diversas ordens: em primeiro lugar, porque embora a questão possa ser discutida em sua valoração moral e ética, nem a inseminação artificial, nem o consentimento do marido constitui objetivamente um ato ilícito; em segundo lugar, o filho assim concebido não poderia ficar a mercê de posteriores desentendimentos ou mudanças de ânimo dos pais (estabelecido o vínculo da filiação torna-se um direito indisponível), finalmente – e este é, talvez, o argumento mais forte, o marido que tendo consentido propusesse, posteriormente, negatória de paternidade, estaria agindo de má-fé, em manifesta contradição com a conduta anteriormente manifestada. A boa-fé no comportamento e a lealdade da conduta estariam comprometidas em manifesta oposição do Direito.”
80
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
a doutrina majoritária reputa necessários para que, validamente, se tenha acesso a tais técnicas, devendo sempre levar em consideração o princípio do melhor interesse da criança, bem como do tratamento igualitário. Os requisitos subjetivos dizem respeito às espécies de famílias, fundadas na conjugalidade ou não, que possam ser beneficiárias das técnicas de reprodução assistida, bem como a certas condições específicas da pessoa que pretende fazer uso de tal técnica. Tendo em vista que a Carta Magna reconhece em seu artigo 226 como entidade familiar tanto a família matrimonializada como àquela formada por união estável, tanto os cônjuges como os companheiros são beneficiário de tais técnicas. A grande celeuma jurídica vincula-se à possibilidade da utilização da reprodução assistida heteróloga para formar uma família monoparental, qual seja a entidade familiar formada por qualquer dos pais e seus descendentes (artigo 226,§4° da CF/88). No direito comparado, tem-se verificado a tendência em se considerar inadmissível a reprodução assistida em favor de pessoa sozinha, sendo que a legislação espanhola autoriza o recurso a tais técnicas por mulher solteira (SCARPARO, 1991, p. 76). A Resolução n°1.358/92 do CFM assegura a adoção de tais técnicas por qualquer mulher capaz, ressalvando que na hipótese de encontrar-se casada ou vivendo em companheirismo, deve o marido ou companheiro expressar o seu consentimento. Desta forma, os textos normativos pátrios não vedam a utilização de tais técnicas por pessoas sozinhas: No direito brasileiro, há norma constitucional que expressamente cuida do planejamento familiar, estabelecendo a liberdade de decisão do casal acerca deste assunto, desde que respeitado os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável [...]. Tal regra está prevista no §7° do Art. 226 do texto constitucional, sendo que em 1996 sobreveio a lei n° 9.263/96, que passou a regularizar, em nível infraconstitucional, normas a respeito do planejamento familiar, não mais restritas ao casal, mas também ao homem e a mulher, individualmente considerados. De acordo com o tratamento normativo fornecido por esta lei, pode-se depreender o reconhecimento da existência do direito de qualquer pessoa (homem ou mulher) ao planejamento familiar, incluindo a adoção de técnicas de fertilização para que haja a reprodução humana, o que conduz à constatação de que a lei autoriza a monoparentalidade obtida via procriação assistida (GAMA, 2000, p. 15). Apesar de constatar que o ordenamento jurídico pátrio admite a monoparentalidade, referido autor posiciona-se contrariamente à formação de tais entidades na reprodução assistida heteróloga (não de forma absoluta, devendo cada caso ser submetido à análise), uma vez que a Constituição reconhece tais entidades como familiares, mas não as estimula (GAMA, 2003, p. 786). Posicionando-se frontalmente contrário à possibilidade da procriação assistida gerar família monoparental, afirma Leite (1995, p. 336) que “toda criança tem, normalmente, um pai e uma mãe. Em toda criança existe
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
81
REVISTA ERGA OMNES
um direito fundamental ao biparentesco, como vocação natural e legítima de ter um pai e uma mãe, e ser educado por ambos.” Justificando a diferença no tratamento de tal aspecto na adoção e na reprodução assistida, esclarece o autor: A adoção se refere a uma criança já nascida. [...] A adoção objetiva dar uma família a uma criança já existente e é com vista ao interesse desta última que se legitima a adoção. Aceita a inseminação de conveniência (por mulheres solteiras, por exemplo) estarse-ia programando a existência de uma criança a uma família monoparental, o que é igualmente inaceitável (LEITE, 1995, p. 356). As técnicas de reprodução humana assistida, conforme preceitua a Resolução n° 1.358/92 do CFM tem como objetivo auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando tiverem falhado outras técnicas terapêuticas. Desta forma, o acesso às técnicas de reprodução assistida deve ser em caráter excepcional: apenas quando constatada infertilidade ou esterilidade de um dos cônjuges ou ambos, bem como o risco de transmissão de doenças genéticas. Por conseguinte, apenas se admite a utilização de tais técnicas para fins terapêuticos: ou relacionado às pessoas que desejam procriar ou em defesa do direito à saúde da futura criança. Exige-se ainda que o casal possua e desenvolva seu projeto parental de forma que possa oferecer um ambiente familiar adequado. Outro aspecto que deve ser observado é a gratuidade na aquisição de material germinativo de um terceiro estranho ao casal. O ato de doação deve ser entendido como um ato de solidariedade social, tanto que a Carta Magna em seu artigo 199, §4° e a Resolução n° 1.358/92 vedam a comercialização. Outro requisito importante que deve ser salientado refere-se ao sigilo do procedimento e consequente anonimato do doador. Assim, na reprodução assistida heteróloga deve-se manter o anonimato tanto dos doadores do material genético quanto dos receptores. A justificativa para tal pressuposto é a manutenção do equilíbrio da relação jurídica entre as partes envolvidas: se, por um lado, a doação de esperma contribui para consecução do projeto parental do casal beneficiário, por outro, o doador não possui nenhum projeto parental pessoal, nem pratica qualquer ato de índole sexual que gere a sua responsabilidade perante a criança gerada (QUEIROZ, 2001, p. 95). A Resolução 1.358/92 do CFM, no item IV, 3, recomenda que, obrigatoriamente, deverá ser mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas, bem como dos receptores. Apenas por situações especiais e por motivações médicas podem as informações sobre doadores ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardandose a identidade civil do doador. Refutando a tese do sigilo absoluto, Pereira e Silva (2000, p. 250) dispõe que a regra do anonimato absoluto é contrária ao direito ao conhecimento da ascendência biológica: No Brasil, a regra do anonimato não consta de nenhum artigo de lei, mas do inciso IV, números 2 e 3 da Resolução 1.385 do Conselho Federal de Medicina, datada de 11.11.1992. Dessa maneira, nada impede que o filho concebido artificialmente, desde que queira, 82
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
proponha contra o pai biológico, o doador de gametas, ação de investigação de paternidade. Duas são as razões para tanto. Por primeiro, por que ninguém é obrigado por deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. Em segundo lugar, porque o conhecimento da ascendência biológica é direito fundamental do homem, alicerce indispensável da instituição familiar (PEREIRA e SILVA, 2000, p. 250). Lôbo3 (2003, p. 152-153) também defende a possibilidade de conhecimento da ascendência biológica, entretanto, fundamenta tal posição no reconhecimento de que este direito insere-se no âmbito do direito da personalidade, que não possui qualquer vínculo com o estado da filiação. Portanto, se reconhece o direito ao conhecimento da origem genética, mas sem relação de parentesco ou efeitos de direitos de família. O sigilo do procedimento e consequente anonimato do doador são estabelecidos, assim como ocorre no instituto da adoção (em que o registro original é cancelado e lavra-se novo registro sem qualquer referência à origem do novo registro), com o objetivo de tutelar os interesses da criança concebida, para impedir que o acesso a tais informações por outras pessoas ocasione tratamento discriminatório. Entretanto, o anonimato cede diante do direito da própria pessoa ao conhecimento da ascendência genética. Desta forma, o direito à intimidade da pessoa é resguardado em relação à coletividade, sendo que tais informações podem ser obtidas pela própria concebida artificialmente em razão do direito personalíssimo ao conhecimento da ascendência genética. Apesar das semelhanças entre as duas espécies de parentesco civil, não há total equiparação entre elas, de forma que os requisitos formais exigidos para a constituição do vínculo de paternidade-filiação serão distintos. Enquanto na adoção a criança preexiste, na reprodução assistida heteróloga não há sequer a concepção da criança e a gravidez, sendo que a criança a nascer terá vínculos originários com seus pais. Contrariando tal posicionamento, Queiroz (2001, p. 147) defende a utilização de um procedimento similar para os dois institutos: Conforme esclarecido em seção anterior, no ato da assinatura do Termo de Consentimento Informado, o pai social já estaria formalizando a adoção antenatal4, inclusive em cartório, para que a paternidade fosse de pronto estabelecida após o nascimento. Com tal declaração, a criança teria seu estado de filho comprovado, formalizando-se a relação jurídica de filiação (QUEIROZ, 2001, p. 147). Diante de tais distinções e a consequente impossibilidade de se adotar requisitos formais semelhantes e da inexistência de lei específica; aplica-se o disposto no artigo 4° da Lei 3. Neste mesmo sentido, Queiroz (2001, p. 86) posiciona-se contrariamente à adoção de tais técnicas por mulher solteira sob o argumento de ser resguardado o direito da pessoa de obter status de filho sem restrições. 4. Gama (2003, p. 889) preceitua que a presente hipótese não pode se configurar como adoção antenatal pelas seguintes razões: na adoção é preciso desconstituir os vínculos parentais anteriores para no seu lugar haver a constituição de novos vínculos parentais, ao passo que na reprodução assistida heteróloga não se constitui qualquer vínculo entre a criança e o doador do gameta.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
83
REVISTA ERGA OMNES
de Introdução ao Código Civil (LICC) que dispõe que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Em relação aos princípios, deve-se sempre levar em consideração o princípio do melhor interesse da criança. Quanto aos costumes, destaca-se a Resolução 1.358/92 do CFM, que traça regras deontológicas a serem observadas pelos médicos.
3. CONTROLE DA REALIZAÇÃO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA PELO PODER PÚBLICO Tendo em vista a necessidade de defesa dos direitos da criança concebida por tal técnica e o respeito à dignidade da pessoa humana, a falta de controle e assistência do Poder Público pode ocasionar inúmeras ameaças aos direitos (sejam pessoais ou patrimoniais) daquele cuja origem do vínculo de paternidade é a reprodução assistida heteróloga5: Na falta de legislação referente à matéria, os centros de procriação humana assistida proliferam em todo o País e funcionam de forma isolada, de acordo com suas próprias convicções éticas e conquistas científicas. Evidentemente, não se devem realizar todas as inovações biotecnológicas, deixando a cargo de um mero apelo à consciência dos profissionais de saúde em reprodução humana. Afinal, sem uma lei, nada está fora da lei, sendo tudo permitido. Nem a permissividade total nem a proibição total podem ser norteadoras da solução dos conflitos éticos então gerados, e assim a temperança se faz necessária (QUEIROZ, 2001, p. 82). Desta forma, Veloso6 (1997, p. 158) argumenta que a matéria exige tratamento legislativo sistematizado, estabelecendo as hipóteses em que será autorizado o recurso aos métodos de reprodução assistida; do estabelecimento jurídico da paternidade e maternidade nos caso de utilização de material germinativo de um terceiro; para determinar a forma de exteriorização do consentimento para a realização do procedimento; fixar os efeitos jurídicos relativamente às pessoas decorrentes de procriação assistida, equacionando os problemas suscitados pela utilização de tal técnica. O novo Código Civil se refere ao tema apenas em relação à presunção de paternidade. Os demais aspectos, como responsabilidade administrativa, sanções para o caso de descumprimento de alguns requisitos e outros aspectos não estão regulamentados em texto normativo. Diante de tal contexto, torna-se imprescindível regulamentação legislativa específica acerca do tema com o objetivo de tornar efetivas as garantias e 5. Lewicki (2001, p. 107) evidencia a importância da fiscalização e regulamentação da matéria ao citar notícias como a de um “leilão”, via Internet, de “óvulos de modelos” para candidatos a pais que sonham com filhos belos; ou ainda a publicação no Times de Londres em 1994 de um anúncio publicitário de um instituto de fertilização in vitro que prometia fecundação rápida e seletiva. 6. Corroborando tal entendimento, Nicolau Júnior (2005) destaca o papel da ciência jurídica: “O papel do direito não é o de cercear o desenvolvimento científico, mas justamente o de traçar aquelas exigências mínimas que assegurem a compatibilização entre os avanços biomédicos da Humanidade enquanto tal, e como tal, portadora de um quadro de valores que devem ser assegurados e respeitados”.
84
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
consequências da reprodução assistida heteróloga, tutelando os interesses da criança assim concebida. A participação do Poder Público na regulamentação das técnicas de reprodução assistida heteróloga encontra amparo no Art. 197 da Carta Magna: Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Vários são os reflexos da reprodução assistida heteróloga: no âmbito administrativo, penal, tributário, processual e civil. Em relação ao aspecto que envolve a determinação da paternidade, este não foi amplamente regulamentado no Código Civil de 2002, apenas estabelecendo regra superficial em relação à presunção de paternidade. A importância de regulamentação, principalmente quanto aos aspectos civis (requisitos, critérios, modos, espécies e efeitos da filiação oriunda de tal técnica) evidencia-se pela imperiosa necessidade de efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana: o que vemos a respeito da forma como o debate está se encaminhando no Brasil é que, enquanto não houver legislação pertinente às novas tecnologias de reprodução fica mais ou menos “livre” o mercado e as diferentes formas que indivíduos ou casais buscam as novas tecnologias produtivas (GROSSI, 2002, p. 131). A importância do acompanhamento e participação do Poder Público na realização de tais procedimentos fica evidenciada ao analisar o item IV n° 5 da referida Resolução que prevê que as clínicas de Reprodução Assistida deverão controlar as gestações de maneira a evitar que do sêmen do doador ocorra mais que duas gestações de sexos diferentes em uma área de um milhão de habitantes. Tal regra demonstra a preocupação de evitar futuras uniões incestuosas. Desta forma, “o risco de casamentos entre consanguíneos [...] só pode ser evitado com a criação de mecanismos de controle governamental, capazes de avaliar e limitar a ação dos bancos de esperma e centros de reprodução humana” (LEITE, 1995, p. 218). Assim como na adoção o ECA, em seu artigo 47, regula o registro da adoção, proibindo o fornecimento de informações acerca da origem da filiação, mas preservando dados quanto aos pais biológicos para fins de impedimentos, prática similar deve ser adotada em matéria de reprodução assistida heteróloga (GAMA, 2000, p. 20). A maioria dos projetos de lei foi proposta após a Resolução 1.358/92 do CFM e seguem, em sua essência, as disposições da respectiva resolução. Neste sentido, citam-se os projetos de lei n° 3.638 de 1993 de autoria do deputado Luiz Moreira e o do deputado Confúcio Moura tombado sob o n°2.855 de 1997, ambos em trâmite na Câmara de Deputados7. 7. Acompanhando o trâmite dos referidos projetos, citam-se as últimas manifestações: o do Projeto de lei 3638 de 1993, datada de 08.06.2007, encontra-se na COORDENAÇÃO DE COMISSÕES PERMANENTES (CCP) Ao Arquivo - Memorando nº 130/07 – COPER. O Projeto de lei 2855/97, datada de 05.03.2009, encontrase na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) Relator, Dep. Colbert Martins (PMDB-BA), pela constitucionalidade, técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição deste; pela constitucionalidade parcial,
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
85
REVISTA ERGA OMNES
Cumpre ainda citar o Projeto de Lei n° 90 de 1999, de autoria do senador Lúcio Alcântara que trata de aspectos civis, administrativos e penais relacionados à reprodução humana assistida8. Evidenciando a complexidade do tema, os Projetos de Lei em trâmite no Congresso Nacional, não regulamentam de maneira uniforme os aspectos tratados. Tendo em vista a necessidade de edição de lei que regulamente a assistência do Poder Público à reprodução assistida, imperioso a realização de discussões que envolvam a sociedade civil, bem como as diversas áreas acadêmicas, religiosas e morais para a construção de um sistema jurídico de estabelecimento da paternidade decorrente da reprodução humana assistida em consonância com os valores e princípios que fundamentam o ordenamento jurídico brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o desenvolvimento científico, surgiram variadas técnicas de reprodução humana assistida, possibilitando a intervenção do homem no processo de procriação natural; sendo que a modalidade heteróloga, com a utilização de material germinativo de um terceiro estranho ao casal, é a que causa maiores controvérsias, uma vez que a criança gerada através desta técnica possuirá um pai biológico diverso daquele que lhe irá registrar. Por conseguinte, torna-se imperioso o estabelecimento de critérios adequados para a fixação da paternidade, assegurando à prole segurança jurídica quanto ao vínculo oriundo da parentalidade-filiação e, consequentemente, os direitos dele advindos. No âmbito da reprodução assistida heteróloga, as circunstancias da inexistência da relação sexual e de que o gameta utilizado pertence a um terceiro evidenciam a necessidade da consideração de outros pressupostos, como a vontade e o querer, em observância ao princípio da paternidade responsável e o risco da situação jurídica em que a pessoa encontra-se inserida. Entretanto, não propusemos a superação do paradigma biológico da paternidade, uma vez que reconhecemos o direito do reconhecimento da origem genética como direito juridicidade, má técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição da Emenda ao PL 2855/1997 da Comissão de Seguridade Social e Família, do PL 4665/2001, do PL 1135/2003, do PL 4686/2004, do PL 2855/1997, do PL 4664/2001, do PL 6296/2002, do PL 2061/2003, do PL 4889/2005 e do PL 3067/2008, apensados; pela injuridicidade e, no mérito, pela rejeição do PL 120/2003, apensado; e pela inconstitucionalidade, injuridicidade, má técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição do PL 5624/2005, apensado. Disponível em:< http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?=id19976>. Acesso em: 19 maio 2010. 8 . Salientam-se a existência de inúmeros projetos de lei relacionados ao tema, que visam disciplinar regras como acesso às técnicas de reprodução assistida, direito ao conhecimento da origem genética, barriga de aluguel, normas de funcionamento das clínicas de reprodução assistida, conforme se verifica no acompanhamento de projetos de lei organizado por Maria Heleno Lino referente ao assunto no site do Projeto Gente, que se configura como um espaço de debate e informação que reúne profissionais de diferentes áreas, debatendo sobre a aplicação das biotecnologias na área da saúde. Disponível em: <http://www.ghente.org/> Acesso em: 19 maio 2010.
86
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
personalíssimo, mas desejamos demonstrar a necessária aceitação dos princípios da afetividade e da paternidade responsável como valores que também devem ser levados em consideração no momento de se definir a paternidade. Na hipótese de litígios e dúvidas acerca da paternidade, em face da desvinculação dos três critérios, jurídico, biológico e afetivo, deve o julgador buscar uma harmonização dos critérios, levando sempre em consideração os princípios do melhor interesse da criança, da paternidade responsável, bem como da dignidade da pessoa humana. Frise-se que, em razão do ineditismo e complexidade do tema, como expusemos, não existe, ainda, dispositivos cogentes que solucionem as inúmeras questões que podem advir, mas caminhos, alternativas que podem ser adotadas pelo julgador diante do caso concreto. O que não pode ocorrer é a esquiva quanto ao reconhecimento desta nova espécie de paternidade, sob o risco de se permitir que se cometam abusos e desrespeitos aos direitos fundamentais da pessoa humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Câmara de Deputados. (1993), Consulta das Proposições (Tramitação). PL3638/1993. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?= id19976>. Acesso em: 19 maio 2010. BRASIL. Senado Federal. (1999), Tramitação de Matérias (Proposições). SF PLS090/99. Disponível em:<http:// www.senado.gov.br/ sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_ mate= 1304>. Acesso em: 19 maio 2010. FACHIN, Luis Edson. “Paternidade e ascendência genética”, in E.O. LEITE (org.). Grandes temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Aspectos constitucionais, civis e penais, Rio de Janeiro: Forense, 2000. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. ______. “Filiação e Reprodução Assistida: Introdução ao tema sob a perspectiva do direito comparado”. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese IBDFAM, 5, 8-27, 2000. GOMES, Luiz Roldão de Freitas. “Questões jurídicas em torno da inseminação artificial”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 678, 81, 268-274, 1992. GROSSI, Miriam Pillar. “Sexualidade e Reprodução Assistida, direitos e gênero”. in R.P. SILVA & F.B LAPA, Bioética e direitos humanos, Florianópolis: OAB/SC, 2002. JUNGES, José Roque. Bioética, perspectivas e desafios. São Leopoldo: Unisinos, 1999. LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. LEWICKI, Bruno. “O homem construtível: Responsabilidade e reprodução assistida”, in H.H. BARBOZA & V. P. BARRETTO (orgs.), Temas de Biodireito e Bioética, Rio de Janeiro, Renovar, 2001. LINO, Maria Heleno. (2010), Documentos Jurídicos. Disponível em:< http://www.ghente.org/>. Acesso em: 19 maio 2010. LÔBO, Paulo Luiz Netto. “Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus”. Porto Alegre: Revista Brasileira de Direito de Família, Síntese IBDAM, 12, 41-55, 2003. NICOLAU JÚNIOR, Mauro. (2005), “Inseminação artificial, clonagem do ser humano e sexualidade. Os efeitos produzidos na família, do presente e do futuro. O necessário olhar ético ante os direitos fundamentais e os princípios constitucionais”. Jus Navegandi, Teresina, 10, 884, 4 dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
87
REVISTA ERGA OMNES
com.br/doutrina/texto.asp?id+7619> Acesso em: 19 maio 2010. QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Doutrina e jurisprudências. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. SCARPARO, Mônica Sartori. Fertilização assistida: questão aberta: aspectos científicos e legais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. SILVA, Reinaldo Pereira e. “Acerto e desacerto em torno da verdade biológica”. in E.O. LEITE (org.). Grandes Temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Aspectos constitucionais, civis e penais. Rio de Janeiro, Forense, 2000. VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.
88
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA Sobre os riscos de manipulação ideológica do Direito
Sumário: 1. Introdução 2. Direito e Realidade Social 3. Legislação Simbólica 4. Mutação Constitucional 5. Manipulação Político-Ideológica do Direito. 6. Considerações Finais 7, Referências
Paulo Cesar Santos Bezerra
Pós-Doutor em Direito Constitucional. Professor do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Federal da Bahia; Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz e da Faculdade de Ilhéus.
Raquel Tiago Bezerra
Mestranda em Direito da Universidade Federal da Bahia.
Tagore Trajano
Doutorando em Direito da Universidade Federal da Bahia.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
89
REVISTA ERGA OMNES
1. Introdução O presente trabalho tem por objetivo analisar o fenômeno conhecido como Legislação Simbólica, como um dos mecanismos utilizados pelas instâncias de poder para manipulação ideológica do Direito, notadamente nas searas da legislação e da jurisprudência. Pela necessidade de limitação do tema, proceder-se-á um corte metodológico delimitativo, para abordar, mais pontualmente, três conceitos básicos: legislação simbólica; mutação constitucional e manipulação político-ideológica do Direito. Para tanto, partindo-se da análise da relação entre o direito e a realidade social, (BEZERRA, 2008: passim) como pano de fundo, passando-se ao primeiro conceito, a saber, a legislação simbólica, para, depois, partindo da rigidez e mobilidade das Constituições, com as mudanças constitucionais com mudança de texto (revisão e emendas), atingir o conceito de mutação constitucional, que é a alteração da Constituição sem mudança de texto, através da hermenêutica. É exatamente nesse contexto de mutação constitucional que se chegará ao problema da manipulação ideológica do direito, por meio de uma legislação simbólica. O texto se funda, inicialmente, nas reflexões do Professor Marcelo Neves, (2007: passim) para depois, avançar para alcançar o seu objetivo principal que é traçar algumas considerações sobre os efeitos da legislação simbólica sobre a produção e a efetividade do Direito, e, a partir da análise dos discursos muitas vezes inseridos nos textos legais e nas decisões judiciais, denunciar os mecanismos de manipulação ideológica desses discursos.
2. Direito e realidade social Grande e tormentoso problema, que sempre ocupou as discussões jurídicas em todos os tempos, diz respeito à relação entre o direito e a realidade social, mais pontualmente, refere-se à eterna dissociação entre eles. Toda a inter-relação entre direito e sociedade ocorre porque “todas as relações criadas pelo direito inscrevem-se na esfera mais ampla do social sem por isso perder sua marca específica, sua inelutável obrigatoriedade e as consequências (positivas e negativas) que daí decorrem. Em direção a esta realidade, sempre concreta, orientam-se os atores sociais ao tomarem suas decisões” (ARNAUD, 1999, p. 666). Assim, direito e realidade social sempre se buscaram, como elos de uma corrente necessária. O direito é um fato social. Independente de ser um conjunto de significações normativas, de outro ponto de vista é um conjunto de fenômenos que se dão na realidade da vida social (RECASÉNS SICHES, 1965, p. 692.) Desse modo, é o direito inexoravelmente atinente à realidade social. Isso se dá porque “em qualquer agrupamento humano, estão presentes, inevitavelmente, fenômenos de valoração, pelos quais o grupo atribui certos valores a determinadas situações, coisas e ideias”. Essa relação entre a realidade social, condicionante sociocultural da normatividade jurídica, através do costume que é grande elemento
90
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
decisivo na formação do direito, e o próprio direito, não pode ser negada, (MIRANDA ROSA, 1978, p. 57) e porque o direito é um produto cultural e “em toda sociedade de certo grau de complexidade, a vida cultural não só produz suas próprias instituições, como faz com que pareçam existir em um mundo à parte, mas que, em muitos aspectos têm em realidade uma continuidade própria” (MANNHEIM, 1942. p. 41). Contudo, um problema sempre se pôs. Por que o direito é sempre tão dissociado da realidade social? A colocação desse problema não é de agora. Advirta-se, porém, que , quando o problema é colocado, tem-se o direito apenas pela perspectiva da lei escrita. O que se quer dizer é: por que a lei escrita é tão dissociada da realidade social? A ilusão de se legislar para o futuro e o atraso necessário das leis sobre os fatos sociais já foram detectados há muito tempo. Quando Duguit pronunciou em Buenos Aires, em 1911, suas conferências sobre as transformações gerais do direito privado a partir do Código de Napoleâo, suas críticas aos conceitos gerados pelo individualismo liberal se prendiam a uma posição antimetafísica e antiindividualista: ele desejava a superação daqueles conceitos por concepções solidaristas, e vislumbrava tal superação nas tendências legislativas de seu tempo (SALDANHA, 1982, p. 172) As críticas se avolumavam não só com referência ao descompasso entre a lei e os fatos, ou entre o direito e os fatos, mas também sobre a própria inutilidade das leis.1 Por isso, não se pode considerar sem espanto o vasto cemitério de leis revogadas; os Parlamentos contemporâneos consagram a melhor parte do seu esforço legislativo a desfazer obras das assembleias anteriores. “Uma lei por muito tempo ausente da vida jurídica (leia-se social), não pode nela reentrar sem perturbações. Assemelha-se a um marido de um romance popular que, regressando de uma longa viagem, encontra sua mulher muito satisfeita, casada segunda vez; só lhe resta ir embora. Isso porque o direito não domina a sociedade, exprime-a” (CRUET, s.d. p. 252 e 336). Ora, tudo isso ocorre também, e principalmente, porque o direito é uma realidade paralisada e estancada no tempo, quando muito se move lentamente, e a realidade social é mutante, célere e alucinantemente célere, nesses novos tempos. No que interessa aqui, no que tange aos textos constitucionais, isso se dá com maior veemência. Embora alguns vejam a Constituição como ordem hermeticamente fechada, essa visão já não condiz com a realidade. “Uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto o possível com o antigo” (BARROSO, 1999, p. 370). A crítica do autor é pertinente. Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas mudou pouco, se é que mudou. É o tipo de interpretação em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica. A Constituição, pois, deve ser sempre adaptada à realidade social. Nenhum discurso, por si só, consegue dar conta da realidade jurídica construída e ampliada 1. Além de Jean Cruet, na obra citada, também Gaston Morin em La révolte des faits contre le Code Civil. Paris: Flamarion , 1945. p. 36.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
91
REVISTA ERGA OMNES
constantemente (SCHIER, 1997, p. 39). Embora seja uma espécie de lei, é muito mais que uma simples lei, pois, dotada de um procedimento qualificado para sua modificação, é suprema no âmbito normativo de um Estado. Sem essa possibilidade de modificação adaptativa, não passaria de uma folha de papel, sem concretização no meio social (LASSALE, 1985, p. 13). Quando se fala de direito, ordem jurídica, preceitos jurídicos, deve-se ter em conta, de um modo particularmente rigoroso, a distinção entre a consideração jurídica e a sociológica. Qual significação ou, o que é o mesmo, que sentido normativo logicamente correto deve corresponder a uma formulação verbal que se apresenta como norma jurídica. Pelo contrário, na consideração sociológica, se pergunta o que de fato ocorre em uma comunidade em razão de que existe a probabilidade de os homens que participam na atividade comunitária, sobre todos aqueles que podem influir consideravelmente nessa atividade, considerem subjetivamente como válido uma determinada ordem e orientem sua conduta prática (WEBER, 1984, p. 251). Nesse contexto, saliente-se que, se o direito tem de ser observado nos dois sentidos; o normativo, ligado ao que deve ser, e sociológico, atinente ao que de fato ocorre, os textos normativos, mormente os inseridos na Constituição, e a realidade social, precisam caminhar o mais associados possível, para que haja uma verdadeira concretização das normas neles contidos. Diante desse quadro, a Constituição deve adequar-se às exigências inexoráveis da faticidade social, pois o caráter dinâmico das mudanças operadas na realidade circundante, com todos os seus problemas e dificuldades, reflete-se na evolução constitucional dos Estados. Sociologicamente, as Constituições são organismos vivos, em íntimo vínculo dialético com o meio circundante, com as forças presentes na sociedade, como, entre outros, as crenças, as convicções, as aspirações e anseios populares, a economia e a burocracia.
3. Legislação simbólica Convém salientar não é o que normalmente ocorre. Quanto o legislador, mesmo o constitucional, precisa dizer, mas não quer dizer quase nada ou absolutamente nada, recorre a artifícios como o da legislação simbólica e dos conceitos jurídicos indeterminados, dando azo a interpretações que permitem a manipulação de intentos subentendidos, nem sempre bem intencionados. Atento a isso, Marcelo Neves a figura da legislação simbólica, depois de constatar que a doutrina geralmente escalona a relação da lei em três variáveis: função instrumental, função expressiva e função simbólica. As três funções coexistem em qualquer situação. A função instrumental pode ser simplificada na ideia de meio-fim. Seria a prática de vontade consciente de atingir um resultado determinado mediante a atividade necessária. A função expressiva é, antes, uma medida de purgação do que um meio de conflito, pois pressupõe uma confusão entre a prática da vontade consciente e a satisfação do resultado almejado. Haveria, então, uma imediatidade entre a medida e a satisfação do referido resultado almejado. A função 92
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
simbólica pode ser representada por um fim imediato e impreciso, inserto no fim representado, sendo que aquele prevalece em relação a esse. É essa terceira função, a simbólica, que interessa de perto ao tema aqui discutido, pois, como salienta o autor, “ há o predomínio, ou mesmo hipertrofia, no que se refere ao sistema jurídico, da função simbólica da atividade legisferante e do seu produto, a lei, sobretudo em detrimento da função jurídico-instrumental” (NEVES, 2007, p. 1). Após citar como fonte de suas reflexões, os pensamentos de Ernst Cassire, Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu, Freud, Jung, Jacques Lacan, Castoriadis, Pierce, Sausurre, Carnap, Luhmann e outros, e, principalmente Harald kindermann, Neves propõe uma tipologia tríplice de legislação simbólica, a partir de seu aspecto teleológico, a saber: a) aquela que serve para a confirmação de valores sociais; b) a que serve para demonstrar a capacidade de ação do estado para a solução de problemas sociais (legislação-álibi); c) a que se presta ao adiantamento da solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios (LENZA, 2011, p. 75). No primeiro caso, o legislador, aparentando estar à frente de seu tempo, regulamenta situações, assumindo posição, em situação de conflitos sociais, atendendo aos interesses do grupo que é destinatário direto da lei e se beneficia de sua promulgação. Aparenta, assim, a uma eficácia que é, seguramente, secundária, frente à valoração do interesse desses grupos beneficiados. São exemplos citados a lei seca, nos Estados Unidos. Os defensores da proibição de consumo de bebidas alcoólicas não estavam interessados na sua eficácia, mas o de adquirir respeito social que lhes assegurasse o status. No Brasil, pode-se entrever essa manobra também na Lei Seca, na lei que obrigava o uso de cintos de segurança, ou de estojos de primeiros socorros nos veículos, e mesmo nas teses defendidas e nas leis promulgadas contra ou a favor da homofobia, para manter prestigio da base de apoio aos parlamentares, como fazem, por exemplo, as bancadas ditas religiosas, na defesa intransigente de posturas radicais. Esconde-se a verdadeira intenção que viaja por trás dos discursos. A “vitória legislativa” funciona para os “vitoriosos” e de degradação para os “perdedores”, sendo irrelevantes os seus efeitos instrumentais. Estabelece-se um perde-ganha que passa ao largo da generalidade e da abstração característica da regra jurídica, para contemplar interesses individuais ou de pequenos grupos, muitas vezes escusos. A segunda espécie de legislação simbólica diz respeito à necessidade de o estado demonstrar sua capacidade de ação frente aos conflitos sociais e aos grandes problemas sociais, a conhecida legislação-álibi. Além de atender aos objetivos da primeira espécie de legislação que é a confirmação de alguns valores de determinados grupos, vai além e fixa como objetivo o de assegurar confiança nos sistemas jurídicos e, principalmente, nos sistemas políticos. É por isso mesmo que, todo grupo que chega ao poder, procura logo se cercar de nova legislação, muitas vezes apenas “novas roupagens” para velhos conceitos, buscando a legitimação de suas políticas. É esse tipo que serve mais à manipulação político-ideológica seja da Constituição, seja da legislação infraconstitucional, acabando EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
93
REVISTA ERGA OMNES
mesmo por influenciar os Tribunais em sua produção jurisprudencial. Diante de grandes conflitos ou problemas sociais (endemias, catástrofes, desastres ecológicos e violência urbana) a legislação-álibi logo é produzida como uma resposta pronta e rápida dos governos e dos Estados. Assim, a legislação-álibi tem o poder de introduzir um sentimento de bem-estar na sociedade, solucionando tensões e servindo “a lealdade das massas” (LENZA, 2011, p. 76). É o que ocorre, constantemente, com a legislação penal, muitas vezes insatisfatória e imprópria para a solução de problemas como criminalidade e violência. “O uso abusivo da legislação simbólica pode produzir o efeito contrário ao pretendido, isso se, o fracasso das finalidades pretendidas pelos donos do poder, porque pode levar à descrença no próprio sistema jurídico, resultando que o público se descobre enganado e os autores políticos mostram-se cínicos” (NEVES, 2007, p. 40). Recentemente ocorreu uma leva de legislação simbólica desse segundo tipo, podendo-se apontar um: o exemplo da catástrofe provocada pelas chuvas na região da serra fluminense. Diante da catástrofe, logo os governos estadual e federal, para fazer valer sua presença, tal a mobilidade popular e de solidariedade social disparada em todo o território nacional, baixou portarias e decretos, firmou convênios e liberou orçamentos, logicamente fazendo veicular toda essa sua “pronta providência social” nos meios de comunicação, com ampla publicidade político-partidária que, se de um lado, convenceu correligionários e simpatizantes e mesmo aqueles que nem o eram tanto assim, de que o governo estava “fazendo sua parte” e estava “presente e era capaz de solucionar os problemas”, por outro, decorridos tantos meses, tem gerado um desencanto para os atingidos pelo desastre, que estão em situação de espera angustiante, fato veiculado pelos mesmos meios de comunicação que se prestaram a divulgar essa “sensibilidade governamental”. Esse é o tipo de legislação que mais se presta a fabricar e legitimar as políticas públicas encetadas pelos governos. Por fim, o terceiro tipo de legislação simbólica, serve para adiar a solução de conflitos por meio de compromissos dilatórios. O exemplo das vítimas das enchentes, também serve a esse tipo de legislação simbólica. Aliás, as grandes catástrofes sociais conseguem a proeza de servir aos três tipos de legislação simbólica. Servem para confirmar valores de certos grupos, as doações generosas acobertadas por descontos no imposto de renda e outros benefícios fiscais; a legislação-álibi para mostrar a capacidade do estado em “solucionar“ os problemas sociais e o adiamento desses mesmos conflitos através de compromissos e cartas de intenções que jamais saem do papel. Nesse caso, não se produz uma legislação imediata, mas se firmam pactos que não se fundam no conteúdo do texto normativo, mas a transferência do conflito para um futuro indeterminado. Em alguns casos, passa o consenso momentâneo, o tema não volta jamais às pautas de discussões. A legislação que se tem produzido em nome da realização da copa do Mundo e das Olimpíadas a serem realizados no Brasil, mascaram, ideologicamente, as verdadeiras intenções, priorizando a função simbólica em detrimento das funções instrumentais (de efetividade) e expressivas, do direito produzido.
94
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
4. Mutação Constitucional A doutrina alemã utiliza o termo Verfassungsänderung, para significar a possibilidade de revisão formal da Constituição, acompanhada de sua letra escrita, e o termo Verfassungswandlung, na acepção de mudança de sentido de algum princípio do sistema constitucional vigente, de mudança de sentido que se realiza sem atingir o texto. Assim, “as inevitáveis acomodações do direito constitucional à realidade Constitucional realizam-se só de duas maneiras, às quais a teoria geral do estado deu o nome de reforma constitucional e mutação constitucional . Assim, uma Constituição jamais será idêntica a si própria, estando constantemente submetida ao pantha rei heraclitiano de todo ser vivo” (LOEWENSTEIN, 1970, p. 164/165). Ao lado da reforma formal da Constituição, em suas modalidades de revisão e emenda, há, também, a mudança informal, aquela que se opera, sem que mudança do texto ocorra. É mudança também conhecida como transição constitucional ou revisão informal (CANOTILHO, Op. Cit. p. 231), processos oblíquos (FERRAZ, 1996, p. 12); processos não formais (BISCARETTI DI RUFFIA, 1986, p. 86); mudança material (PINTO FERREIRA, 1984, p. 123); vicissitude constitucional tácita (MIRANDA, 1991, p. 133). Nota-se que o critério adotado para as denominações foi aquele que levou em conta o fato de o processo de mudança não estar expressamente previsto na Constituição. Portanto, mutação constitucional consiste na alteração da Constituição segundo um processo informal, à medida que não se encontra prevista no próprio conjunto das normas constitucionais, em contraposição aos processos que são ditos formais, porque estão expressamente regulados. Na sua acepção formal, mutação é o processo de alteração, e na acepção material ou substancial, o resultado mesmo desse processo. Materialmente constitucional que é a mutação tem fundamento na adequação sociológica da Constituição, em sua dimensão material. No poder constituinte em sentido amplo, espontâneo e informal. No que diz respeito aos limites das mutações, estes são necessários. Se as reformas formais previstas nas Constituições para as revisões e emendas, submetem-se a limitações2, os meios informais sofrem limitações, assim não fosse, poder-se-ia incorrer em insegurança jurídica total. Se necessária à adaptação do texto à realidade social, não menos necessária a prudência para não cair em estado de anomia, mesmo em presença de leis escritas. Por ser uma expressão do próprio Poder Constituinte Material, encontra limites e influências estranhas ao mundo jurídico, sejam de ordem moral, política, ideológica, social, religiosa, cultural, enfim, toda sorte de circunstâncias que se manifestam na comunidade à qual pertence a Constituição. Além disso, a mutação não pode atingir a letra da Constituição, o que só ocorre com um processo formal, mas tão somente mudarlhe o sentido, o alcance ou o significado. É função constituinte implícita, portanto, mais limitada que a formal, operada via interpretação, práticas constitucionais e construção constitucional. 2. Sobre limites do poder de reforma constitucional, ver UADI LAMMÊGO BULOS, Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 33 e seguintes, onde discorre sobre todos os tipos de limitações.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
95
REVISTA ERGA OMNES
Uma teoria jurídica dos limites da mutação constitucional só ocorreria “mediante o sacrifício de um dos pressupostos metódicos básicos do positivismo: a estrita separação entre direito e realidade, assim como os que constituem sua consequência, a inadmissão de quaisquer considerações históricas, políticas e filosóficas do processo de argumentação jurídica. A separação metódica entre direito e realidade, com o intuito de se obterem parâmetros jurídicos para determinar os limites da mutação constitucional, esbarra em um problema de magnitude extrajurídica, pois dita realidade resulta inevitavelmente, apesar da separação metódica, juridicamente relevante: incapaz por definição de operar no interior da norma mesma, modifica por assim dizer desde fora do direito constitucional de uma forma explicável só politicamente, não juridicamente, ao fazer ocupar seu lugar por uma situação constitucional divergente, que, desprezando as normas da Constituição, torna-se ela mesma direito (HESSE, 1992, p. 90). A mutação constitucional processa-se lentamente e de modo imperceptível. É identificada mediante exame comparativo do entendimento atribuído ao mesmo texto constitucional, aplicado em épocas diferentes, em momentos cronologicamente afastados entre si. No Brasil, após a Constituição de 1988, havia uma leitura de sentido de se conceder aos sindicatos, representatividade apenas de seus associados, e, como estava prevista no capítulo de direitos e garantias fundamentais, houve quem dissesse que somente a esses direitos permitir-se-ia a representação sindical. Mais tarde, esse sentido interpretativo mudou para admitir-se que os sindicatos representariam toda a categoria profissional e na defesa de quaisquer direitos. A doutrina tem apontado quatro espécies de mutações: a) mutação constitucional que não vulnera a Constituição; b) mutação constitucional em decorrência de prática que viola preceitos da Constituição (GARCIA PELAYO, 1951 p. 126); c) mutação por impossibilidade do exercício de determinada atribuição constitucional; d) mutação constitucional através de interpretação (VERDÚ, 1984, p. 179). Observa-se que tal classificação inclui mutações constitucionais em decorrência de prática que viola preceitos da Constituição. Contudo, advirta-se, não se refere à alteração do texto constitucional, mas a costumes e práticas que lançam as normas constitucionais ao desuso, consequentemente, à ineficácia. No referente à espécie “d”, a saber, mutações constitucionais inconstitucionais, não se traçarão muitas considerações, na medida em que é próprio da mutação não mudar os textos constitucionais. Em nosso sistema isso seria atacável. Mesmo sem mudar os textos, contudo, as mutações podem ir de encontro aos mesmos, o que leva alguns a denominar-lhes de inconstitucionais. Porém, correta é a assertiva segundo a qual esses são casos de mutações informais e a inconstitucionalidade é matéria posterior, como efeito. Como as mudanças formais não deixam de ser revisão ou emenda até que a inconstitucionalidade seja declarada, assim também a mutação não deixa de ser mutação, até que sua inconstitucionalidade seja declarada. É problema a ser tratado em sede de controle de constitucionalidade. Assim, “os desvios do processo informal de alteração constitucional somente podem ser coibidos mediante um eficaz e abrangente sistema de controle da constitucionalidade. Não são inofensivos e nem devem ser tolerados, mas a correção deve ser feita com os instrumentos e nos limites do sistema previsto 96
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
na Constituição, alcançando especial importância nesse mister o controle constitucional não organizado, acionados por grupos de pressão, pela opinião pública e pelos partidos políticos (ZANDONADE, Op. Cit. p. 210).
5. Manipulação político-ideológica do Direito: O tema da manipulação não é novo e já aparece no primeiro documento com fisionomia constitucional do ocidente, a saber o Instrumento f Government inglês, de 1653. O Art. VIII determinou que “nem o próximo Parlamento que se convoque, nenhum parlamento posterior, durante o lapso de cinco meses, a contar do dia de sua primeira reunião, será suspenso, prorrogado ou dissolvido, sem seu próprio consentimento”. A expressão “cinco meses” foi, de maneira enviesada, interpretado por Oliver Cromwell em sentido de meses lunares e não meses solares, como já era comum e normal da palavra mês. O fim de tudo isso foi dissolver o Poder legislativo uns dias antes dos que realmente correspondiam para se poder fechá-lo. Não obstante isso, essa patologia jurídica não tem sido tratada com a observância merecida pela crítica doutrinária. Tanto a legislação simbólica quanto a mutação constitucional tem servido, muitas vezes, de mecanismo de verdadeira manipulação político-ideológica do direito. No que se refere à mutação constitucional, pode-se apontar uma grande vantagem, quando feita devidamente, que é a possibilidade de se atualizar o sentido das normas constitucionais, como ocorre nos Estados Unidos, quando a Suprema Corte, através de suas decisões, vai atualizando o sentido da Constituição para adequá-la aos novos tempos. Essa plasticidade que a mutação confere à Constituição é benéfica, no sentido de que, uma vez não sendo alterada a toda hora por revisões e emendas, a Constituição tende a gerar um grande sentimento de constitucionalidade no povo, verdadeiro destinatário de suas regras e princípios e detentor do poder, em ultima ratio. Em nome da mutação constitucional, no entanto, tem-se incidido em verdadeira desconstrução da estrutura da Constituição, gerando uma grande insegurança jurídica para os jurisdicionados, isso tanto em sede de legislação apenas simbólica, mas, principalmente, por parte das cortes judiciárias superiores, que, em nome da mutação constitucional, têm incidido em interpretações enviesadas e ambíguas, muitas vezes servindo a manobras político-ideológica de grupos interessados. A manipulação da legislação, mormente da Constituição significa a conjunção de três fatores essenciais: a) o uso ou utilização da Constituição, o que significa reduzi-la à condição de objeto ou ferramenta manejada pelo manipulador, que, em vez de servir à Constituição, serve-se dela; b) com ardiz, vale dizer, à mercê de uma manobra, artifício ou engano, treta geradora de uma interpretação manipulativa da Lei Suprema, procurase fazer passar “gato por lebre” constitucional; c) em proveito de um interesse particular ou inferior, A MANIPULAÇÃO CONSTITUCIONAL NUNCA É GRATUITA OU INOCENTE, MAS VAI BENEFICIAR ALGUÉM. Sempre haverá um ganancioso ou provedor de manobras manipulativas: aquele ou aqueles que constituem o suporte garantidor do esquema (BULOS, 1997, p. 70-71). Já se tem procurado listar as espécies de técnicas manipulativas, apontando as hipóteses de: EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
97
REVISTA ERGA OMNES
a) dar às palavras da Constituição um sentido absurdo e rebuscado; b) interpretar isoladamente um artigo da Constituição ignorando concordância com outros, ou magnificar uma cláusula da lei suprema, reduzindo o valor das restantes; c) realizar afirmações dogmáticas de fatos ou de direito; d) praticar analogias improcedentes; e) mal uso de princípios jurídicos; f) consumar distinções inexatas; g) Inferir uma razão incongruente; h) aplicar métodos interpretativos opostos; i) postular como regra, mas não a aplicar sempre; j) inventar exceções que a Constituição não prevê; k) legitimar competências inconstitucionais; l) praticar arbitrariamente as funções de “precisão” e de“ “determinação” dos vocábulos constitucionais” (SAGÜÉS, 2005, p. 383-389). A manipulação pode ser ainda: a) ideológica; b) governativa; c) partidista; d) narcisista; e) forense; f) tolerante ou agressiva (SAGUÉS: 383-389). A ideológica trata de fixar distintos cenários, onde pode desarvorar-se a manipulação da Constituição. No caso do Brasil, qualquer interpretação que vá de encontro ao Estado Democrático de Direito, finalidade maior da Constituição, será manipulativa desse tipo. Já a manipulação governista diz respeito à leitura do texto constitucional em favor do grupo que está no poder. Sabendo-se que o direito é um discurso de poder, manipular o seu discurso de forma ideológica não é tarefa das mais difíceis, porém a mais dificilmente detectada porque é próprio das ideologias mascararem a realidade. O tipo partidista é aquele no qual o texto constitucional ou legal é utilizado para legitimar a ação dos partidos políticos concretos. Suas cláusulas podem ser torcidas tanto para fundar determinados projetos, como para justificar fatos consumados ou comportamentos em trâmite, enquanto que tipo forense é praticado para defender postiras em processos, seja para acusar, ou para defender, para reclamar ou rejeitar ou aceitar demandas, levando a Constituição a ser recortada, estendida, mal-entendida, exagerada e desvirtuada, tudo a gosto dos protagonistas de um juízo, para sustentar suas pretensões. Um Tribunal também pode sustentar uma interpretação manipulativa para emitir determinado tipo de sentença. No Brasil é o exemplo da lei que forçou os aposentados a voltarem a contribuir para a previdência e o Supremo Tribunal Federal se esperou em buscar fundamentos para afastar a flagrante inconstitucionalidade por estar atentando contra direito adquirido, ato jurídico perfeito, e nos casos de aposentadoria conseguida por sentença judicial transitada em julgado, em atentado à coisa julgada. Além disso, feriu o princípio da isonomia ao obrigar apenas aos aposentados do serviço público a voltarem a contribuir. Constitui um misto de manipulação governista e forense (VERDU, 1984, p. 183). No caso da manipulação tolerante ou agressiva não se trata de um tipo específico, mas de se identificar o seu TOM. Algumas vezes a conduta manipulativa é pacífica e discreta (por isso não percebida), mas, não raras vezes trata em ridicularizar quem pensa diferente do grupo manipulador. Observa-se muito isso nas assembleias de paralização e nos discursos de partidos políticos ou sindicais. Defende-se a democracia, desde que se comungue com as ideias do dominador ou do grupo. A manipulação da legislação não está contemplada na Lei ou na Constituição, mas 98
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
surge da dimensão fática ou existencial do direito, da experiência jurídica, e é fruto da própria natureza humana, em boa parte hedonista, egoísta e propensa à mentira, o que se deve combater. A jurisprudência nacional está recheada de exemplos de manipulação interpretativa, às vezes não muito clara em termos de intenções. Assim, quando o Supremo Tribunal Federal decide que: HC 96772 / SP - SÃO PAULO HABEAS CORPUS Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 09/06/2009 Órgão Julgador: Segunda Turma E M E N T A: “HABEAS CORPUS” - PRISÃO CIVIL - DEPOSITÁRIO JUDICIAL - REVOGAÇÃO DA SÚMULA 619/STF - A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA - CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, n. 7) - NATUREZA CONSTITUCIONAL OU CARÁTER DE SUPRALEGALIDADE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS? - PEDIDO DEFERIDO. ILEGITIMIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL, AINDA QUE SE CUIDE DE DEPOSITÁRIO JUDICIAL. - Não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito judicial. Precedentes. Revogação da Súmula 619/STF. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AS SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO INTERNO BRASILEIRO E A QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA. - A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7). Caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos e o sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. - Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, Art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes. - Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de supralegalidade? - Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea. HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. - Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
99
REVISTA ERGA OMNES
O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs. - Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano. [...] incide numa interpretação equivocada do Art. 5º e §§2º e 3º da Constituição Federal de 1988, senão vejamos: Art. 5º,§ 2º diz, verbis: os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte; § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (GRIFOS NOSSOS) Sabe-se que a Constituição não se interpreta em tiras e sim de modo sistemático, como um todo lógico. Ora, o que observa nos dois parágrafos em análise é que: o primeiro confere ao rol de direitos fundamentais elencados no Art. 5º o caráter de lista exemplificativa e não taxativa, prevendo a possibilidade de outros direitos serem gerados pelos tratados e convenções internacionais. Por seu turno, o parágrafo 3º confere status de Emenda Constitucional, passando a ser texto constitucional, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que passem pelo mesmo processo legislativo das Emendas, previsto no Art. 60 da Constituição Federal. Extrair da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, apenas por ser norma mais favorável, um direito fundamental da pessoa do depositário infiel para eximi-lo da pena de prisão, deixando-o absolutamente impune e inseguro o credor, vai uma distância muito grande. É interpretação que não revela as verdadeiras intenções que estão por trás do discurso fundamentador da decisão. Isso causa insegurança jurídica sem precedentes, em nome de uma hermenêutica que se pretende avançada e descomprometida.
6. Considerações finais Desse modo, a modificabilidade é atributo que não pode ser negado à Constituição, 100
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
que tomada como um sistema aberto de regras e princípios, deve-se manter viva e atenta à evolução da realidade que pretende normar. Para tanto, a efetividade de suas normas deve ser buscada através de sua correlação com a realidade social, pelo que se impõe a criação ou o reconhecimento de mecanismos a preservar a abertura do sistema, possibilitando, através das alterações, a permanência da Constituição como sistema normativo consonante com a realidade (ZANDONADE, 2001 p. 252). Através de uma interpretação e de uma construção aberta e permanentemente crítica do ordenamento jurídico posto, para adaptá-lo à realidade social sempre mutante, é que se poderá permitir maior ajuste social da norma, permeando a possibilidade de que as normas saiam do papel, para se concretizarem no seio da sociedade permitindose, assim, um maior acesso à justiça (tomada essa em sentido lato de acesso à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia e a um meio ambiente saudável), tendo como fio condutor o princípio da dignidade da pessoa humana, que também só se concretizará através do acesso de todos às condições mínimas de vida e sobrevivência. Tudo isso porque as normas estão em eterno devenir, jamais se imobilizam ou se estratificam, evoluem no dia a dia, através dos costumes, da interpretação e das decisões judiciais (construção mutacional), nas lições dos professores de direito, nas argumentações dos advogados. O seu ser reside em estar-se realizando, porque não são documentos prontos e acabados. As Constituições têm vida (BULOS, 1999, p. 194.) Por isso mesmo não se pode pretender matá-las.
7. Referências ARNAUD, André – Jean. Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. BARROSO, Luís Roberto. Natureza jurídica e funções das Agências Reguladoras de serviços públicos. In Boletim de direito administrativo. Ano XV N.º 6, Junho/ 1999. __________. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. BEZERRA, Paulo César Santos. A PRODUÇÃO DO DIREITO NO Brasil: sobre a dissociação entre direito e realidade social e o direito de acesso á Justiça. Ilhéus-Ba: EDITUS, 2008. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. ________Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. CRUET, Jean. Vida do direito e a inutilidade das leis. Rio de Janeiro: s.d. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986. GARCIA PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado. Madri: Editorial Revista dio Occidente, 1951. HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de estudios Constitucionales, 1992. LASSALE, Ferdinand. Que es una constituición? Buenos Aires: Ediciones Siglo Veinte, 1946.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
101
REVISTA ERGA OMNES
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. LOEWENSTEIN, Kar. Teoria de la Constituición. Barcelona: Edciones Ariel, 1970. MANNHEIM, Karl . Libertad y planificación social. México: Panuco, 1963. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra, 1991. MIRANDA ROSA, F.A.de. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007. RECÁSENS SICHES, Luis. Tratado de sociologia. Rio de Janeiro: Globo, 1965. SALDANHA, Nelson. Transformação e crise no direito: uma visão histórico-crítica. In Revista de direito civil. Ano 6, N.22, Out/ dez, 1982. SCHIER, Paulo Ricardo. A Hermenêutica constitucional: Instrumento para a implementação de uma nova dogmática jurídica. In Revista dos Tribunais. Ano 86 V. 741, Julho, 1997. VEDEL, Georges. Manuel élémentaire de droit constitucionnel. Paris: Librairie du Recueil Sirey, 1949. VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de derecho político. Madrid: Technos, 1984. WEBER, Max. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura, 1984. ZANDONADE, Adriana. Mutação constitucional. In Revista de direito constitucional e internacional. São Paulo: N. 35 Ano 09, abr / jun , 2001.
102
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS: O PRINCÍPIO DA CELERIDADE E O DEVIDO PROCESSO LEGAL A EXPERIÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS CÍVEIS
Sumário: 1. Introdução 2. Conceito e Função dos Princípios 3. Conflito entre princípios e a sua solução 4. O Princípio da Celeridade e à sua aplicação nos Juizados Especiais 4.1 Acesso à Justiça e Efetividade do Processo: A Implantação dos Juizados Especiais 4.2 A Aplicação do Princípio da Celeridade nos Juizados Especiais 5. O Princípio da Celeridade e o Devido Processo Legal 6. A Experiência dos Juizados Especiais Federais Cíveis 6.1 A Criação dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Considerações Iniciais 6.2 Decisões Céleres ou Decisões Justas? 7. Conclusão
Victor Carvalho Queiroz
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
103
REVISTA ERGA OMNES
1. INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo fazer uma abordagem acerca da aplicabilidade do princípio da celeridade no âmbito dos Juizados Especiais Federais Cíveis (JEFs). O conflito entre este princípio e o do devido processo legal e suas implicações na esfera de direitos dos litigantes é o tema central que, aqui, procuro enfrentar, a partir da minha experiência vivida no desempenho da função de assessoria perante a 21ª Vara Federal/JEF, da Seção Judiciária do Estado da Bahia. Não posso deixar de registrar, outrossim, a grande contribuição da Teoria Geral do Direito e da Hermenêutica Jurídica para este estudo, na medida em que os sistemas jurídicos modernos acolhem os princípios em larga escala, sendo a ciência da interpretação do direto, hoje, dominantemente principiológica.
2. CONCEITO E FUNÇÃO DOS PRINCÍPIOS Os princípios podem ser considerados como as proposições genéricas que informam uma ciência, constituindo a sua base valorativa. É preciso logo que se diga que os princípios não se confundem com os valores. A função dos princípios não se resume a atribuir uma qualidade positiva a determinado elemento. A sua realização não fica, também, na dependência de meras preferências pessoais. Ao contrário, os princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado ideal de coisas a ser buscado. A relação entre princípios e valores adstringe-se, assim, tão-somente ao fato de que o estabelecimento de fins implica qualificação positiva de um estado de coisas que se quer promover. No caso da ciência jurídica, podemos entender os princípios como enunciados genéricos, expressa ou implicitamente previstos no ordenamento jurídico pertinente, voltados a iluminar tanto o legislador, na sua função de elaborar as leis, como o intérprete, ao aplicar as normas ou sanar omissões. São, pois, espécies de mandamentos nucleares do ordenamento jurídico que, por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, servem de critério para a sua exata compreensão e inteligência. Deste modo, os princípios jurídicos são exigências feitas a todo e qualquer ordenamento jurídico que pretenda ser coerente com sua própria pretensão de legitimidade e validade. Na brilhante definição de Humberto Ávila (2003, p. 70): Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisa a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.
104
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
Enquanto as regras podem ser definidas como normas imediatamente descritivas, uma vez que estabelecem com exatidão qual o comportamento devido para a concretização dos fins mediatamente previstos, os princípios podem ser considerados normas cuja principal característica é, justamente, a determinação de realização de um fim juridicamente relevante, por isso que imediatamente finalísticas. Por outro lado, os princípios, ao estabelecerem fins a serem atingidos, exigem a promoção de um estado de coisas que, por sua vez, impõe a adoção de condutas necessárias à sua realização. Já o caráter primariamente prospectivo dos princípios decorre do fato de determinarem tais normas um estado de coisas a ser atingido, diferentemente das regras, que possuem caráter primariamente retrospectivo, já que descrevem uma situação de fato conhecida pelo legislador. São os princípios, ainda, normas primariamente complementares e preliminarmente parciais. Quer isto dizer que não se resolve uma lide, utilizando-se somente princípios, devendo outras razões serem consideradas para se chegar a uma solução específica, uma vez que aqueles abrangem apenas parte dos aspectos decisivos de um conflito de interesses. Extrai-se, também, desse conceito para a aplicação dos princípios deverá o operador do Direito justificar sua decisão de interpretação, verificando se o comportamento a ser escolhido, ou já escolhido, é adequado para resguardar o estado ideal de coisas a ser buscado ou preservado.
3. CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS E A SUA SOLUÇÃO Costuma-se afirmar que quando duas regras colidem entre si a solução deste conflito se dá, invariavelmente, com a declaração de invalidade de uma delas ou com a criação de uma exceção. Para resolver a antinomia entre regras são clássicos os critérios da especialidade (norma especial revoga a geral) e o temporal (norma posterior revoga a anterior). No entanto, nem sempre a solução para o conflito entre regras se regerá por essas formas. Já quando dois princípios entram em conflito (assim, por exemplo, em certos litígios em que estejam em causa os princípios da celeridade processual e das garantias de defesa) deve-se atribuir uma dimensão de peso maior a um deles, mediante processo de ponderação ou balanceamento (weighing and balancing, Abwägung), uma vez que não há no sistema jurídico uma meta norma que oriente sobre que princípio deve ser privilegiado e qual deve ser depreciado em um determinado caso concreto. Assim, diante da inexistência de diretrizes normativas, absolutamente definidas em todo tempo e lugar, para fixar a dimensão de peso ou de importância entre princípios concorrentes ou conflitantes, caberá ao intérprete ponderá-los, a fim de chegar a uma conclusão que lhe permita aplicar o princípio que, no caso concreto, seja o mais relevante e o mais adequado à justa composição da lide. Insta ressaltar, contudo, que a ponderação não é método privativo de aplicação dos princípios, uma vez que, em alguns casos, a solução para o conflito entre regras depende também EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
105
REVISTA ERGA OMNES
da atribuição de peso maior a uma delas, sem que a outra perca sua validade. De modo geral, pode-se afirmar, inclusive, que a atividade de ponderação de razões é qualidade comum a qualquer aplicação de normas. É preciso, assim, que se reconheça que os princípios, bem como as normas em geral, possuem um caráter provisório que poderá ser ultrapassado por razões havidas como mais relevantes pelo aplicador do Direito, diante do caso concreto. Tal constatação não torna falsa, contudo, a afirmativa de que, ao contrário do que acontece com as regras, que, normalmente, colidem no plano abstrato, inserindose a resolução deste choque na problemática da validade das normas, os princípios sempre entram em conflito no plano concreto, estando a sua solução relacionada, pois, com a problemática da aplicação das normas. Daí dizer-se que os princípios necessariamente são carecedores de ponderação.
4. O PRINCÍPIO DA CELERIDADE E A SUA APLICAÇÃO NOS JUIZADOS ESPECIAIS 4.1 ACESSO À JUSTIÇA E EFETIVIDADE DO PROCESSO: A IMPLANTAÇÃO DOS JUIZADOS ESPECIAIS A criação dos Juizados Especiais representou o advento de uma nova forma de prestar jurisdição, atendendo aos anseios de todos, principalmente da população de baixa renda, de uma justiça apta a proporcionar uma prestação de tutela simples, rápida, econômica e segura, capaz de levar à liberação da indesejável litigiosidade contida. Ao cogitar da implantação dos Juizados Especiais com competência para “causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo” (Constituição Federal de 1988, Art. 98, inc. I), visou o legislador constituinte combater graves problemas de acesso à justiça, como os relacionados com as custas e a demora dos processos e demais embaraços (econômicos, culturais e sociais) que frequentemente se interpõem entre o cidadão que pede justiça e os procedimentos predispostos para concedê-la. Sobre a definição de acesso à justiça, oportunas são as palavras da renomada professora Ada Pellegrini Grinover: Acesso à justiça, longe de confundir-se com acesso ao judiciário, significa algo mais profundo: pois importa no acesso ao justo processo, como conjunto de garantias capaz de transformar o mero procedimento em um processo tal, que viabilize, concreta e efetivamente, a tutela jurisdicional (GRINOVER, 1988 apud THEODORO JÚNIOR, 2004, p. 417). O direito passa a ser encarado, então, não apenas do ponto de vista de seus 106
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
produtores e do seu produto, mas, especialmente, pelo ângulo dos consumidores do direito e da Justiça. De seu turno, o processo deve ser compreendido não mais como um fim em si mesmo, mas como instrumento que serve à realização das pretensões resistidas ou insatisfeitas de direito material, como instrumento voltado à efetividade dos direitos e da pacificação social. Assim, a Lei nº 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, com aplicação subsidiária aos Juizados Especiais Federais, conforme determina o artigo 1º da Lei nº 10.259/2001, dispôs, logo em seu artigo 2º, sobre os princípios norteadores desse novo sistema processual, in verbis: “Art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação”. Dessa forma, a fim de se atender o procedimento sumaríssimo constitucionalmente assegurado para os processos que correm perante os Juizados, quer no âmbito dos Estados e do Distrito Federal quer no âmbito da União, necessário se faz que as demandas sejam rápidas para a solução dos conflitos, simples no seu tramitar, informais nos seus atos e termos e o menos onerosas possível aos litigantes, exigindo-se para isso, a prevalência da forma oral no tratamento da causa. 4.2 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CELERIDADE NOS JUIZADOS ESPECIAIS Dentre os princípios orientadores do processo nos Juizados, um tem maior destaque, talvez consequente da revolta da população com a sempre e tão conhecida lentidão da justiça brasileira: o princípio da celeridade. Com efeito, a maior expectativa gerada pelo Sistema dos Juizados é a sua promessa de celeridade que, com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004 que entre outras alterações acrescentou o inciso LXXVIII ao artigo 5º da Constituição da República e implementou a Reforma do Judiciário, foi alçada à garantia fundamental, verdadeira cláusula pétrea, devendo incidir não apenas na esfera dos Juizados, mas no âmbito de todo e qualquer processo judicial e administrativo. Pode-se afirmar, pois, que um dos propósitos da criação dos Juizados, orientados pelo princípio da celeridade, foi combater o clima de impunidade e de descrédito no Poder Judiciário, através de um sistema ágil e simplificado de distribuição da Justiça pelo Estado. A aplicação do princípio da celeridade no campo dos Juizados Especiais, refletida em todas as fases do processo, pode ser constatada em vários dispositivos da Lei nº 9.099/95, dentre os quais merecem destaque os seguintes: a) Possibilidade de instauração imediata da sessão de conciliação, caso ambas as partes compareçam perante o juízo, dispensados o registro prévio do pedido e a citação (Art. 17 da Lei nº 9.099/95); b) Concentração dos atos em audiência: sempre que possível, a EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
107
REVISTA ERGA OMNES
apresentação da defesa, a produção de provas, a manifestação sobre os documentos apresentados, a resolução de incidentes e a prolação da sentença devem ser feitas em uma única audiência (Arts. 28 e 29 da Lei nº 9.099/95); c) Vedação à intervenção de terceiros e à assistência, a fim de que a causa não se torne complexa, retardando o seu julgamento (Art. 10 da Lei nº 9.099/95); 9.099/95);
d) Impossibilidade de citação por edital (Art. 18, § 2º, da Lei nº
e) Inadmissão de reconvenção, ressalvada a possibilidade de formulação de pedido contraposto, desde que fundados nos mesmos fatos descritos na inicial do autor (Art. 31, caput, da Lei nº 9.099/95); f) Redução dos prazos, em geral, para a prática de atos processuais, a exemplo da interposição de recurso, no prazo de dez dias, contado da ciência da sentença (Art. 42, caput, da Lei nº 9.099/95); g) Registro, por escrito, apenas dos atos essenciais, devendo a prova oral ser colhida fonograficamente, isto é, os depoimentos das partes, das testemunhas, dos peritos etc. devem ser gravados em fitas magnéticas, dispensando-se a redução a termo (Arts. 13, § 3º e 36 da Lei nº 9.099/95); h) Sentenças e acórdão concisos, sendo prescindível o relatório (Art. 38, caput, da Lei nº 9.099/95); i) Obrigatoriedade de se proferir sentenças condenatórias líquidas, tornando muito mais célere a execução do julgado (Art. 38, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95); j) Suspensão, e não interrupção, do prazo para recurso contra sentença, no caso de interposição de embargos de declaração (Art. 50 da Lei nº 9.099/95); k) Recebimento do recurso, em regra, apenas no efeito devolutivo, não se aplicando, pois, a norma contida no Art. 520 do CPC, aplicável ao processo civil em geral (Art. 43 da Lei nº 9.099/95); l) Descabimento de ação rescisória, fazendo coisa soberanamente julgada a sentença ou acórdão contra o qual não caiba mais recurso (Art. 59 da Lei nº 9.099/95). De seu turno, dentre os dispositivos explícitos da Lei nº 10.259/2001 que permitem a agilização dos processos nos Juizados Especiais Federais Cíveis podemos 108
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
citar:
a) a inexistência de prazo diferenciado para a prática de qualquer ato processual pelas pessoas jurídicas de direito público, inclusive para a interposição de recursos (Art. 9º da Lei nº 10.259/2001); b) a irrecorribilidade, em regra, das decisões interlocutórias, importando em um sistema recursal reduzido, hábil em facilitar a efetivação do processo (Art. 5º da Lei nº 10.259/2001); c) a falta de previsão legal para aplicação do reexame necessário, ainda que a União, suas autarquias ou fundações sejam vencidas na causa (Art. 13 da Lei nº 10.259/2001); d) o pagamento, após o trânsito em julgado da decisão, independentemente de precatório, no prazo de sessenta dias, contado da entrega da requisição, por ordem do Juiz do Juizado, à autoridade citada para a causa (Art. 17 da Lei nº 10.259/2001).
5. O PRINCÍPIO DA CELERIDADE E O DEVIDO PROCESSO LEGAL Se é correto afirmar que o maior escopo do Sistema dos Juizados Especiais é a realização da justiça de forma ágil, simples e objetiva, não é menos certo dizer que todos os demais princípios fundamentais à orientação do universo processual civil, desde que estejam em sintonia com o espírito dos Juizados Especiais, têm ampla e irrestrita aplicabilidade no aludido microssistema. Assim, no campo específico do direito processual, é impensável não se falar do princípio do devido processo legal, que, nas palavras do ilustre professor Paulo Henrique dos Santos Lucon “[...] tem o valor supremo de demonstrar a indispensabilidade de todas as garantias e exigências inerentes ao processo, de modo que ninguém poderá ser atingido por atos sem a realização de mecanismos previamente definidos na lei” (LUCON, 2001 apud DIDIER JUNIOR, 2005, p. 4). Assim, a justa composição da lide só pode ser alcançada quando prestada a tutela jurisdicional dentro das normas processuais traçadas pelo Direito Processual Civil. É por isso que “Faz-se modernamente uma assimilação da ideia de devido processo legal à de processo justo.” (THEODORO JÚNIOR, 2003, p. 23). Tal a importância deste princípio que o legislador constituinte tratou de inseri-lo entre os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, conforme se pode verificar da leitura do texto do inciso LIV, do artigo 5º, da Carta Magna, in verbis: Art. 5º [...] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. A garantia do devido processo legal, porém, não se exaure na observância das formas da lei para a tramitação das causas em juízo. Com efeito, o devido processo
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
109
REVISTA ERGA OMNES
legal traz em seu bojo outros desdobramentos, representados pelas garantias do juiz natural e de acesso à justiça; pela obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões judiciais; pelos princípios dispositivo, do contraditório, da ampla defesa, da igualdade entre as partes, da segurança jurídica, do duplo grau de jurisdição, da congruência entre o pedido e o pronunciado, da eventualidade, entre outros. Nenhum desses subprincípios, que compõem o princípio maior do due process of law, pode ser desprezado para que se chegue a uma rápida solução do litígio. Não é outro, aliás, o ensinamento de José Maria de Melo e Mário Parente Teófilo Neto, para quem: [...] não se deve perder de vista que acima de celeridade processual o Juizado especial tem que procurar atingir a Justiça. De que adianta a rapidez na tramitação dos feitos se tal ocorre em prejuízo notório para o direito de alguma parte causando assim injustiça? Certamente o Juizado não foi criado para isso (MELO & TEÓFILO NETO, 1997 apud CHIMENTI, 2005, p. 174). Destarte, estando diante de um conflito entre princípios, quaisquer que sejam eles, deverá o intérprete/aplicador da lei seguir o método indicado no capítulo 3 deste estudo. Terá, portanto, o juiz do Juizado, estadual ou federal, a importante tarefa de exercer, constantemente, atividade de sopesamento de razões e contrarazões, processo de ponderação, a fim de verificar, no caso concreto, a qual dos princípios (celeridade ou devido processo legal) se deve atribuir maior peso, para que seja realizada a melhor prestação jurisdicional. Neste sentido, precisa é a lição do professor Joel Dias Figueira Júnior (2005, p. 69), ao comentar o artigo 2º da Lei nº 9.099/95: Diante de vários princípios interligados entre si, existe uma referência legislativa geral que o juiz terá de aplicar no caso concreto, mediante valorações adicionais, o que dá, por exemplo, com a colisão de princípios orientadores, em que haja, então, de ser estabelecida a prevalência de um sobre outro, dado não serem os princípios, em geral, hierarquizáveis em abstrato. Assim, mediante um processo de balanceamento (weighing and balancing, Abwägung), deverá o magistrado dizer quais as razões por ele havidas como mais relevantes para escolher um princípio em detrimento do outro. Note-se, por oportuno, que na colisão entre princípios, todos eles devem ser aplicados na integralidade de seu sentido, não podendo nenhum deles ser totalmente desprezado, devendo, isto sim, um princípio receber uma dimensão de peso maior, sendo, pois, este o aplicável ao caso concreto.
110
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
6. A EXPERIÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS CÍVEIS 6.1 A CRIAÇÃO DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS CÍVEIS. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Os Juizados Especiais Federais Cíveis – JEFs, disciplinados pela Lei nº 10.259/2001(LJEF) e criados por imposição constitucional, vieram dar concretude ao princípio do acesso à justiça (Constituição Federal de 1988, Art. 5º, inc. XXXV), implementando o grande projeto de democratização do Judiciário, já iniciado com a instituição dos Juizados Especiais de Pequenas Causas (Lei nº 7.244/84) e, posteriormente, com o advento dos Juizados Especiais Estaduais (Lei nº 9.099/95). Ao contrário, porém, do que ocorre nos Juizados Especiais no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, onde a relação jurídica processual é travada, em regra, entre particulares, os JEFs representaram a oportunidade de os jurisdicionados buscarem o reconhecimento de seus direitos quando os entenda violados pelo Poder Público Federal. Nesse contexto, procuro fazer uma análise acerca da aplicabilidade do princípio da celeridade nos Juizados Especiais Federais, a partir da experiência que tive no desempenho da função de assessoria perante a 21ª Vara Federal/JEF da Seção Judiciária do Estado da Bahia. Abordo também aqui a questão atinente ao conflito entre os princípios da celeridade e do devido processo legal e suas implicações na esfera de direitos dos litigantes que se socorrem dos JEFs. De início, cumpre chamar atenção para o fato de que, diferentemente do que se passa com os Juizados Especiais Estaduais, no foro em que se encontrar instalada Vara do Juizado Especial Federal, sua competência será absoluta, não cabendo ao autor optar por ajuizar sua ação em uma Vara de JEF ou em uma Vara Federal comum (LJEF, Art. 3º, § 3º). Daí, a escolha por um rito mais célere, mera faculdade nos Juizados Estaduais, torna-se uma imposição quando a lide versar sobre matéria da competência da Justiça Federal, cujo valor não ultrapasse o limite de sessenta salários-mínimos. Ressalte-se, outrossim, que nos JEFs o princípio da celeridade ganha ainda mais importância, tendo em vista a urgência natural no atendimento dos hipossuficientes que demandam em face da Previdência Social para pleitear verbas alimentares. Também não se deve esquecer que, visando facilitar o acesso à justiça e torná-la mais democrática, o legislador infraconstitucional facultou às partes a possibilidade de formular suas pretensões sem o patrocínio de advogado, em toda e qualquer causa da competência dos JEFs, independentemente do seu valor ou grau de complexidade (LJEF, Art. 10, caput).
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
111
REVISTA ERGA OMNES
6.2 DECISÕES CÉLERES OU DECISÕES JUSTAS? No âmbito dos Juizados Especiais Federais, alguns pontos merecem ser destacados, para que se percebam as situações em que o princípio da celeridade (leia-se, redução ao máximo do tempo do processo) colide com o princípio do devido processo legal ou com algum dos subprincípios que o integram, exigindose do magistrado uma atividade constante de ponderação, que o permita proferir uma decisão justa. O primeiro ponto refere-se à ausência de oportunidade de o autor oferecer réplica à contestação apresentada pelo réu, mesmo que nesta sejam alegadas preliminares, não se aplicando nos JEFs, pois, o disposto no Art. 327 do Código de Processo Civil, o que violaria, em tese, o princípio do contraditório. Com efeito, nos JEFs, devido à repetição de ações com os mesmos fundamentos de fato e de direito, cujas sentenças dispensam a produção de provas, a exemplo das ações de revisão de benefício previdenciário, aliada à quase-inexistência de acordos no âmbito desse microssistema, é frequente os juízes suprimirem a fase de tentativa de conciliação e até a de instrução e julgamento, julgando o feito e intimando as partes para ciência da sentença, sem a realização de uma única audiência. Dessa forma, apresentada a contestação, são os autos imediatamente conclusos para a prolação da sentença, o que acaba por tolher o direito do autor de se manifestar acerca de alguma preliminar suscitada pelo adversário ou sobre algum documento juntado com a defesa. Isso ocorre, repise-se, em nome da celeridade. O segundo ponto relaciona-se não diretamente com o princípio da celeridade, mas com outro que está umbilicalmente ligado àquele: o princípio da informalidade. Como dito alhures, nos JEFs, com o escopo de facilitar o acesso à justiça, foi concedido às próprias partes o jus postulandi, dispensando-se as solenidades para os atos processuais, que passaram a poder ser praticados pelos próprios litigantes, sem a obrigatoriedade de intervenção técnica de advogado, independentemente da complexidade da causa. Apresentam-se, aqui, dois problemas. O primeiro diz respeito à situação de enorme desvantagem fática e jurídica do indivíduo que litiga no JEF, desassistido de advogado, em relação à parte contrária que, invariavelmente, será a União, alguma de suas autarquias ou fundações ou uma empresa pública federal, representadas por procuradores bem preparados e dotadas de um aparato jurídico e administrativo grandioso. Tal situação se agrava ainda mais quando se sabe que a Defensoria Pública da União não dispõe de recursos materiais e profissionais para atender satisfatoriamente a população carente que necessita de uma assistência judiciária gratuita. O descaso com que é tratada pelo Estado, refletido na ausência de uma estrutura adequada, termina por dificultar, e, às vezes, até impossibilitar, o desempenho pela Defensoria Pública do seu papel constitucionalmente previsto (Constituição Federal de 1988, Art. 134) de prestar orientação jurídica e defesa dos 112
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
necessitados. Verifica-se, destarte, claramente, a colisão existente entre o princípio da informalidade, que permite à parte demandar sem o patrocínio de advogado e o princípio da isonomia processual, que representa o direito de litigar em igualdade de condições (princípio da paridade de armas). O segundo problema é uma decorrência do primeiro, pois ao buscar compensar o desequilíbrio processual existente entre as partes e tornar mais célere o processo, o que se tem visto são juízes desempenhando o papel que, a rigor, seria do demandante, de trazer aos autos as provas de suas alegações, ameaçando de forma concreta a imparcialidade do magistrado no processo, pois que funciona este como verdadeiro inquisidor ou investigador de fatos incertos. Cite-se, por exemplo, a rotineira consulta ao PLENUS, cadastro informatizado disponibilizado pelo INSS a juízes, servidores e estagiários, por meio do qual se “investiga” se o autor da ação possui um benefício previdenciário, qual a sua data de início (DIB), se o mesmo já foi revisado, e ao Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), programa que permite saber, entre outras coisas, quais os vínculos empregatícios que uma pessoa já teve, a duração desses vínculos e a situação do segurado perante a Previdência Social. Deste modo, deverá ter o aplicador da lei importante função hermenêutica e razoável dose de bom senso, uma vez que caberá a ele solucionar o conflito entre princípios informadores do processo, interpretando-os de forma a que se chegue à decisão mais justa, seja atribuindo maior peso ao princípio dispositivo, iniciativa das partes na instrução probatória, seja valorando mais o princípio da verdade real ou material, consubstanciado na busca efetiva da verdade dos fatos, não sendo suficiente a mera verdade formal ou processual, esta baseada em presunções. Outro ponto em que se verifica a colisão entre os princípios da celeridade e do devido processo legal, nos JEFs, se refere à dispensa de intimação das partes para oferecerem quesitos e indicarem assistente técnico quando da determinação, pelo juiz, da realização de prova pericial, ressalvados os casos de ações previdenciárias e relativas à assistência social (LJEF, Art. 12, caput e § 2º). Há aparente violação, aqui, dos princípios do contraditório e da ampla defesa, dando-se preferência, mais uma vez, à rápida solução do litígio. Questão interessante em que se percebe o choque entre os princípios da celeridade e da ampla defesa também pode ser vislumbrado, a partir da leitura do artigo 51, inciso I e §§ 1º e 2º da Lei nº 9.099/95, subsidiariamente aplicável aos JEFs, por força do Art. 1º da LJEF. Com efeito, o aludido dispositivo confere ao juiz, quando o autor deixar de comparecer a qualquer das audiências do processo, a possibilidade de extinção do feito, independentemente de prévia intimação pessoal das partes, ainda que a ausência tenha decorrido de força maior. Neste caso, consoante dispõe o § 2º do Art. 51 da Lei nº 9.099/95, o juiz poderá isentar o autor do pagamento de custas, mas não terá este oportunidade de alegar sequer questão de força maior para justificar EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
113
REVISTA ERGA OMNES
o seu não comparecimento à audiência, uma vez que o processo é extinto sem a sua prévia intimação pessoal, na forma do § 1º do mencionado dispositivo. Nos JEFs, essa situação é ainda mais grave, pois a parte autora, normalmente desacompanhada de advogado, também não é intimada da sentença que extingue o processo sem exame de mérito, malgrado seja essa intimação uma exigência, conforme se infere da norma contida no Art. 8º, caput, da LJEF. Por fim, um último ponto merece ser destacado: a limitação, nos JEFs, ao duplo grau de jurisdição. Nos Juizados Especiais, havendo recurso de uma das partes, ou de ambas, os processos são enviados para as Turmas Recursais, colegiados de juízes de primeiro grau, como segunda e última instância, ressalvada, apenas, a hipótese de existência de matéria constitucional que viabilize a interposição de recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal. Não há, assim, recurso para os tribunais que formam as instâncias superiores da justiça comum. Essa regra, embora se aplique também aos Juizados Especiais dos Estados e do Distrito Federal (Art. 41, caput, e § 1º, da Lei nº 9.099/95), toma outra dimensão nos JEFs, em razão da sua competência absoluta (LJEF, Art. 3º, § 3º). Não terá, pois, o autor a opção de ajuizar sua demanda numa Vara Federal comum, possibilidade esta ofertada no âmbito dos Juizados Estaduais, sendo forçado, então, a suportar a restrição imposta ao seu direito de ter sua pretensão conhecida e julgada por dois juízos distintos, com competências hierárquicas diferentes: os de primeiro grau (juízes singulares) e os de segundo grau (Tribunais Superiores).
7. CONCLUSÃO A crise da Justiça está na ordem do dia. Até aqueles que nunca precisaram se socorrer do Poder Judiciário estão cientes das suas mazelas, principalmente no que toca à morosidade dos processos, seu alto custo, burocracia, complicação procedimental e sobrecarga dos tribunais. Nesse contexto, a criação dos Juizados Especiais veio resolver, ou ao menos reduzir, o problema do acesso à justiça. Ao ter como princípios norteadores a oralidade, a simplicidade, a informalidade, a economia processual e a celeridade, esse microssistema representou mais do que o advento de um novo procedimento, o sumaríssimo, significou e significa o surgimento de uma nova forma de prestar jurisdição, de um novo processo, despido de obstáculos à realização do verdadeiro direito. A promessa de celeridade foi, sem dúvidas, a maior expectativa gerada pela implantação do novo Sistema dos Juizados Especiais, talvez devido à revolta da população com a tão conhecida e famigerada lentidão da justiça. Vários são os dispositivos da Lei nº 9.099/95 e da Lei nº 10.259/2001 que consagram a aplicação do princípio da celeridade, consubstanciado na redução ao máximo do tempo do processo, visando proporcionar aos jurisdicionados uma prestação de tutela simples e ágil.
114
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
A rapidez na solução do litígio, entretanto, não pode desprezar os outros princípios orientadores do universo processual, tais como o devido processo legal, síntese geral da principiologia da tutela jurisdicional, ou algum dos subprincípios que o integram, como, por exemplo, a ampla defesa, o contraditório, a paridade de armas e a segurança jurídica. Como bem ressaltado por Cândido Rangel Dinamarco, citado por Humberto Theodoro Júnior (2004, p. 422): O juiz é livre para dar ao feito o procedimento que se revelar mais adequado à rápida e justa composição da lide. Claro é, contudo, que não poderá afastar-se das garantias fundamentais do devido processo legal, cabendo-lhe orientar-se, com liberdade, mas com respeito às necessidades de segurança das partes, sua igualdade e amplas possibilidades de participação em contraditório. Diante do conflito existente entre os princípios da celeridade e do devido processo legal, terá o magistrado que ponderá-los, exercendo, para isso, atividade de sopesamento de razões e contra-razões, a fim de verificar a qual dos princípios deverá atribuir maior peso, velando sempre pela solução mais justa,, aquela que cause o menor prejuízo possível às partes. Nota-se, pois, que o peso ou a importância do princípio a ser aplicado se decide pelo intérprete à luz do caso concreto. No âmbito dos Juizados Especiais Federais, a cautela do juiz na hora de fazer prevalecer um princípio em detrimento do outro deve ser redobrada por três motivos. O primeiro diz respeito à competência absoluta dos JEFs, que impede o autor de propor sua demanda numa Vara Federal comum e, consequentemente, de ter seu processo mais bem resguardado pelos princípios da ampla defesa e do contraditório. O segundo motivo relaciona-se com a fragilidade do princípio da paridade de armas, igualdade entre as partes, no microssistema dos JEFs, uma vez que o demandante, geralmente pessoa humilde e desacompanhada de advogado, terá como parte adversária um ente da Administração Pública Federal, representado por procuradores de notável saber técnico e amparado por uma grande estrutura jurídica e administrativa. Além disso, a Defensoria Pública da União, carente de recursos, não consegue cumprir satisfatoriamente sua missão constitucionalmente prevista no Art. 134 da Lei Maior. O terceiro motivo para a maior atenção do juiz durante o processo de ponderação de princípios decorre do grande número de ações em que se pleiteiam verbas alimentares, em face da Previdência Social. Assim, o princípio da celeridade, nesses casos, passa a ter ainda mais importância e sua aplicação se impõe, a fim de que os valores a que têm direito os segurados, normalmente idosos e carentes economicamente, lhes sejam pagos sem demora excessiva. EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
115
REVISTA ERGA OMNES
Diante de dois grandes valores igualmente relevantes, celeridade e justiça, a importante tarefa dos magistrados que atuam nos Juizados Especiais será, então, a de tentar chegar a um equilíbrio, tendo-se em vista que “Um processo extremamente demorado não é, certamente, capaz de produzir resultados justos. Por outro lado, um processo rápido demais dificilmente será capaz de alcançar a justiça da decisão” (CÂMARA, 2004, p. 23). A grande busca pela efetividade do direito não pode, assim, em nome da rapidez na prestação jurisdicional, violar as garantias das partes no processo, sob pena de se ter uma solução célere, porém, injusta. O equilíbrio deverá ser sempre o alvo visado pelo juiz no caso concreto, a fim de que o outrora dificultoso acesso ao Judiciário se transforme no pleno acesso de todos a uma ordem jurídica justa.
REFERÊNCIAS ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. BRASIL. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br>. Acesso em 28.09.2006 BRASIL. Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br>. Acesso em 28.09.2006 BRASIL. Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br>. Acesso em 28.09.2006 CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais: uma abordagem crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. CHIMENTI, Ricardo Cunha. Teoria e Prática dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais: (Lei n. 9.009/95 – Parte Geral e Parte Cível – comentada artigo por artigo em conjunto com a Lei dos Juizados Federais – Lei n. 10.259/2001). 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: Teoria Geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias; TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Juizados Especiais Estaduais Cíveis e Criminais: comentários à Lei 9.099/1995. 4. ed. reform., atual. e ampl. — São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 116
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
_________. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais: comentários à Lei 10.259, de 10.07.2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. LUCON, Paulo Henrique dos Santos, “Devido Processo Legal Substancial”, in DIDIER JUNIOR, Fredie (org). Leituras Complementares de Processo Civil. 3. ed. rev., ampl. e atual. — Salvador: JusPODIVM, 2005. PÉREZ, Michelle Miranda. Capacidade Postulatória e Garantia da Paridade de Armas no âmbito dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Revista Jurídica da Seção Judiciária do Estado da Bahia, Salvador, ano 5, nº 6, p. 77-83, abr. 2006. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, vol. I. 39. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. _________. Curso de Direito Processual Civil, vol. III. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
117
REVISTA ERGA OMNES
Edmilson Jatahy Fonseca Júnior
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA), pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Bahiana de Direito, pós-graduando em Processo Civil pela PUC/SP e em Atividade Judicante pela Escola de Magistrados da Bahia (Emab) em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA).
O mandado de segurança e as restrições infraconstitucionais à sua efetividade Desde a década de 60, o legislador vem impondo restrições à concessão de liminar em mandado de segurança e à própria execução desses julgados quando contrários aos interesses da Fazenda Pública. Inicialmente, a Lei n°. 4.348/64, em seu Art. 5°, parágrafo único, vedou expressamente a execução provisória, bem como, a concessão de liminar em mandado de segurança, cujo teor do decisum seja a reclassificação ou equiparação de servidores públicos, ou ainda a concessão de aumento ou extensão de vantagens. Ademais, o Art. 7° da referida lei assegura efeito suspensivo ao recurso ou remessa necessária, no caso de concessão da segurança, nos termos supracitados, contra a EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
119
REVISTA ERGA OMNES
Fazenda Pública. Outra restrição em benefício do Poder Público encontra-se disciplinada no Art. 1°, caput e § 4° da Lei n°. 5.021/66, que estendeu a vedação da concessão de liminar em mandado de segurança também à hipótese em que acarrete o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias ao servidor público federal, estadual ou municipal. Posteriormente, as liminares conferidas em ações cautelares foram prejudicadas com as mesmas vedações, em decorrência do Art. 1° da Lei n°. 8.437/92. Em 1997, com a entrada em vigor a Lei n. 9.494, que passou a disciplinar a antecipação genérica da tutela em face do Poder Público, houve a ampliação das restrições aludidas, além da proibição da execução provisória contra a Fazenda Pública: Art. 1º Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992. [...] Art. 2º-B A sentença que tenha por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive de suas autarquias e fundações, somente poderá ser executada após seu trânsito em julgado. Hoje, a nova lei do mandado de segurança, Lei nº 12.016/2009, em nada acrescentou ao ordenamento, pois apenas reuniu, em um só diploma, regras existentes em leis esparsas que já impunham restrições e proibições ao cabimento de medidas de urgência e execução provisória contra o Poder Público. Assim, através dos seus artigos 7º, § 2º e 14, § 3º, confirmou todas as disposições proibitivas e restritivas no tocante à medida liminar, antecipação de tutela e execução provisória em sede do remédio constitucional contra a Administração Pública. Aliado ao entendimento da doutrina mais qualificada, impõe afirmar que as previsões legais são todas flagrantemente inconstitucionais destoando por completo da ordem constitucional e do modelo por ela criado para o mandado de segurança. O mandado de segurança sempre foi considerado como um dos mais importantes instrumentos processuais da denominada tutela jurisdicional das liberdades públicas, haja vista a rapidez e eficácia na proteção judicial dos direitos fundamentais, face às ilegalidades e abusos de poder. A essência do instrumento mandamental consubstanciase justamente na possibilidade de se movimentar a máquina judiciária para proteção/ defesa de direito subjetivo líquido e certo lesionado ou ameaçado de lesão por ato de autoridade pública. Impensável, portanto, que a aptidão para assegurar a fruição integral e in natura do 120
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
bem da vida sejam obstaculizadas, frustradas ou minimizadas por qualquer disposição infraconstitucional. Vale salientar, que nem mesmo por alteração constitucional isso seria possível vez que em sendo o mandado de segurança garantia fundamental, seria cláusula pétrea, imune a modificações por parte do constituinte derivado. Sobre o tema, leciona MARINONI que: é inadmissível qualquer medida proibitiva relacionada com a concessão de liminar em mandado de segurança, sob o fundamento de que sua aplicação implicaria morosidade e ausência de efetividade da prestação da tutela jurisdicional; configuraria ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Além disso, dizer que não há direito a tutela antecipatória contra a Fazenda Pública em caso de fundado receio de dano é o mesmo que afirmar que o direito do cidadão pode ser lesado quando a Fazenda Pública é ré. Continua ainda afirmando que “a execução provisória no mandado de segurança caracteriza-se como instrumento indispensável para a própria efetividade da garantia constitucional, equivalendo à subtração da execução provisória à destruição do remédio constitucional, sendo inconstitucional qualquer norma que venha a proibir a execução provisória, uma vez que cabe à norma infraconstitucional apenas regulamentar a previsão constitucional e não redesenhar a hipótese normativo-constitucional, amputando-a”. Em que pese seja essa a posição majoritária da doutrina, o Plenário do STF em 02.10.2008, no julgamento da ADC nº 4, reconheceu a constitucionalidade da Lei 9494/1997, passando a cassar, através de reclamação interposta diretamente na referida Corte, qualquer decisão antecipatória da tutela em desfavor da Administração Pública que contrariasse o disposto em sua decisão. Entretanto, com o passar do tempo, o STJ e o próprio STF, em seus julgados, vêm mitigando as limitações constantes das legislações infraconstitucionais, em especial à Lei 9494/1997, no que se refere às medidas de urgência e a execução provisória contra a Fazenda Pública. De fato, frequentemente os Tribunais Superiores vêm se manifestando no sentido de que tais vedações devem ser interpretadas de forma restritiva, devem-se ater às hipóteses expressamente previstas na legislação infraconstitucional. Em outros casos, tidos como excepcionais, as normas proibitivas têm sido totalmente afastadas por conta da urgência da medida. Por essa razão, vê-se reforçado o entendimento de que todas essas proibições não são absolutas, podendo ser relativizadas à luz das circunstâncias do caso concreto, segundo o princípio da proporcionalidade. Convém trazer alguns desses julgados: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. CONCESSÃO DE GRATIFICAÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DE SENTENÇA CONTRA FAZENDA PÚBLICA. ART. 2º-B DA LEI N.º 9.494/97. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. I- O c. Superior Tribunal de Justiça, no desempenho
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
121
REVISTA ERGA OMNES
da sua missão constitucional de interpretação da legislação federal, deu uma exegese restritiva ao Art. 2º-B da Lei n.º 9.494/97, no sentido de que a vedação de execução provisória de sentença contra a Fazenda Pública deve se ater às hipóteses expressamente elencadas no referido dispositivo. II -A decisão judicial provisória que determina apenas direito à percepção de gratificação pelo servidor - sem o pagamento imediato dos valores pretéritos - não se enquadra entre as situações previstas na referida lei. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp 964427, Ministro FELIX FISCHER, DJe 23.06.2008, Decisão: 30/05/2008). PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. HIPÓTESE DE CABIMENTO. ART. 2º-B DA LEI Nº 9.494/97. PRECEDENTES. 1. Agravo regimental contra decisão que desproveu agravo de instrumento. 2. A jurisprudência do STJ é no sentido de que, excluídos os casos estatuídos no Art. 2º-B da Lei nº 9.494/97, é cabível a execução provisória contra a Fazenda Pública. A propósito: REsp nº 890631/MG, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 18/09/07; REsp nº 775618/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 06/08/07; AgRg no REsp nº 658518/RS, Relª Minª Laurita Vaz, DJ de 05/02/07; AgRg no Ag nº 802016/PE, Relª Minª Laurita Vaz, DJ de 05/02/07; EDcl no REsp Nº 790303/MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 09/11/06; EREsp nº 638620/SC, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 02/10/06; AgRg nos EREsp nº 757565/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, Corte Especial, DJ de 01/08/06; AgRg no REsp nº 507974/ RS, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ de 19/06/06; AgRg no REsp nº 416956/SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 26/06/06; REsp nº 702264/SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 19/12/05; REsp nº 695681/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 29/08/05, AgRg no Ag nº 396626/SP, deste Relator, DJ de 18/02/02, entre tantos outros na mesma linha. 3. Agravo regimental não-provido. (AgRg nos EDcl no Ag 884191, Ministro JOSÉ DELGADO, DJe 24.04.2008, Decisão: 25/03/2008). PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR. LIMINAR DE CARÁTER SATISFATIVO. SAÚDE PÚBLICA. DIREITO DO CIDADÃO E DEVER DO ESTADO. DECISÃO ASSENTADA EM DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. É vedada, como princípio geral, a concessão de liminar de caráter eminentemente satisfativo, excepcionando-se as hipóteses de providências médicas urgentes...”(REsp nº 109.473/RS, relator o Ministro Hélio Mosimann, in RSTJ 127/227). PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA DECISÃO QUE DEFERIU LIMINAR EM AÇÃO CAUTELAR - CARÁTER SATISFATIVO – EXCEPCIONALIDADE - VIOLAÇÃO À LEI FEDERAL NÃO CONFIGURADAFORNECIMENTO PERIÓDICO E CONTINUADO DE MEDICAMENTO (ACETATO DE DESMOPRESSINA) - DIABETE INSÍPIDA - SITUAÇÃO EMERGENCIAL - DIREITO À VIDA - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA - LEI 8.038/90 E RISTJ, ART. 255 E PARÁGRAFOS - PRECEDENTES. 122
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
- É vedada a concessão de liminar contra atos do poder público, em ação cautelar, que esgote, no todo ou em parte, o objeto da ação. - Na hipótese, a prestação cautelar liminar não tem o caráter satisfativo, por isso que o fornecimento do medicamento é periódico e continuado; caso em que estaria sendo negado direito indisponível e absoluto à vida, já que sem o medicamento a recorrida não sobreviveria. - Interpretação restrita do Art. 1º, §§ 1º e 3º da Lei 8.437/92. - Divergência jurisprudencial que desatende às determinações legais e regimentais para demonstração do dissídio pretoriano. Recurso não conhecido. (REsp nº 93.658/RS, relator o Ministro Francisco Peçanha Martins, in RSTJ 124/202). Em assim sendo, as limitações impostas pelo legislador pecam no vício da inconstitucionalidade ao estabelecer restrição desarrazoada e inconciliável com o remédio constitucional, retirando do mandamus a máxima eficácia, incorrendo na quebra do princípio da Separação dos Poderes, bem como, na ofensa à própria garantia fundamental do mandado de segurança e do acesso à Jurisdição. Diante disso, cabe ao magistrado, no caso concreto, recusar a aplicação dessas regras no exercício do controle incidental de constitucionalidade. Esse também é o posicionamento esposado por Cássio Scarpinella Bueno: “E o juiz poderá, quando entender ser o caso, deferir a tutela antecipada contra a Fazenda Pública, mesmo naquelas hipóteses em que outros diplomas legislativos, não mencionados pelo Art. 1º, da Lei n. 9494/97 vedam tal iniciativa. Isto porque, mesmo com a lei restritiva, é dado ao juiz do caso concreto, no exercício do difuso de constitucionalidade, afastar sua incidência por entendê-la agressiva aos cânones do Art. 5º, XXXV, CF.” Portanto, uma vez verificada a preponderância do princípio constitucional do acesso à justiça em face dos valores que inspiraram as normas proibitivas, essas últimas deverão ter a sua incidência afastada, no caso concreto.
REFERÊNCIAS ALVES, Geraldo Magela. O novo processo de execução: comentários aos artigos 566 a 795 do CPC, de acordo com as leis 11.232/2005 (execução por título judicial) e 11.382 (execução por título extrajudicial). Belo horizonte: Del Rey, 2007. ASSIS, Araken de. Manual de execução. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. BUENO, Cássio Scarpinella. O poder público em juízo. São Paulo: Max Limonad, 2000. ______________. A Nova Lei do Mandado de Segurança. São Paulo: Saraiva, 2009. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. São Paulo: Dialética, 2007. DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. v.2. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. FUX, Luiz. Mandado de Segurança. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
123
REVISTA ERGA OMNES
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 3. MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil Interpretado. 4. ed. Barueri: Manole, 2004. MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. v. 5. Campinas: Millennium, 2000. MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil: teoria geral dos recursos, recursos em espécie e processo de execução. São Paulo: Atlas, 2007. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da (org.). Execução Contra a Fazenda Pública. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2003. ______________ Execução Contra a Fazenda Pública. São Paulo: Malheiros, 1999. SOBRINHO, Delio José da Rocha. Prerrogativas da Fazenda Pública em juízo. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1999. THEODORO JUNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. ______________ Processo de Execução. 22 ed. São Paulo: Leud, 2004. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil. v. 2. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
124
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
AÇÃO CIVIL PÚBLICA Ana Barbuda Ferreira
REVISTA ERGA OMNES
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DA BAHIA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA PLANTÃO JUDICIÁRIO COMARCA DO SALVADOR – ESTADO DA BAHIA Ana Barbuda Ferreira
Juíza de Direito do Estado da Bahia. Bacharel em Direito e Teologia pela UCSal. Mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSal. Pós-graduada em Família e Contextos Sociais pela UCSal. Pós-Graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Baiana de Direito e Escola de Magistrados do Estado da Bahia. Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA REQUERENTES – MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA TERRA VERDE VIVA E ASSOCIAÇÃO CÉLULA MÃE REQUERIDO – PORTUGAL PRODUÇÕES ARTÍSTICAS LTDA - “CIRCO PORTUGAL” Fala-se na organização de uma sociedade protetora dos animais. Tenho pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que rudimentar, e que têm conscientemente revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar depois de brutalmente espancado por um carroceiro que atulhava a carroça com carga para uma quadriga, e que queria que o mísero animal a arrancasse do atoleiro. (José do Patrocínio) Vistos, etc. MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA TERRA VERDE VIVA E ASSOCIAÇÃO CÉLULA MÃE, o primeiro através de seu Ilustre Representante do Meio Ambiente que subscreve a inicial, e os demais por seus Ilustres advogados, legalmente constituídos, interpuseram Ação Civil Pública contra o PORTUGAL PRODUÇÕES ARTÍSTICAS LTDA - “CIRCO PORTUGAL”, em síntese asseverando, argumentando e denunciando práticas de crueldade contra os animais aprisionados no estabelecimento do demandado, esclarecendo que mantidos são animais não humanos, como elefantes, leões, cavalos, camelos e patos quais detém e são dotados de sentimentos e instintos e que essas espécies são treinadas nos circos através de métodos que expõem a dignidade destes, muitas vezes são acoitados, castigados, sofrem dor, medo, insatisfação e incômodos. Os demandantes alegam ainda que a domesticação dos animais silvestres é ato antinatural, e, portanto, em si mesmo, é ato de crueldade. Teceram, ademais, considerações sobre o termo animais domésticos, elaborando apurada explanação sobre o novo direito animal, aportando-se nos dispositivos constitucionais, no decreto 24.645/34, na lei de crimes ambientais, para requererem a concessão de liminar no sentido da suspensão imediata da
126
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
exibição dos animais pelo circo demando e a consequente busca e apreensão de todos os animais que se acham em poder do referido circo, devendo ser encaminhados ao Parque Zoobotânico Getúlio Vargas. Ao final, pedem a procedência da ação com julgamento sobre os pedidos de fls. 17 e seguintes. Vieram-me os autos. Passo a decidir. A ação civil pública se reveste como meio hábil para se reclamar providencias no tocante aos maus tratos, ou atos de toda a natureza que exponha a vida digna dos animais não humanos, como podemos sugerir para a exata compreensão do disposto no Art. 1º, da Lei nº 7.347, de 24 de Julho de 1985, trata da competência da ação civil pública da maneira que se segue: “Art. 1º Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I - ao meio ambiente; II - ao consumidor; III - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV - por infração da ordem econômica e da economia popular; V - à ordem urbanística. Antes de adentramos ao cerne da questão, convém efetuarmos algumas mínimas e preliminares considerações que nos servirão de sustentação para a elucidação e compreensão do quanto nos é denunciado nessa lide. Como podemos perceber há uma falsa compreensão dos animais não humanos como seres desprovidos de espiritualidade o que acarretou sobre os mesmos uma visão de inferioridade e submissão ao homem. Sem dúvida, essa ideia remonta aos primórdios da nossa existência, pois desde antes da era cristã, Aristóteles já proclamava o homem como o único ser que possuía alma intelectual e no seu universo escalonado e imutável um sistema de hierarquias foi estruturado. Tal imagem persiste até hoje, mesmo com toda a evolução copernicana, darwinista e freudiana, mas vagarosamente o mundo antropocentrista vem cedendo lugar ao biocentrismo e certamente, nos últimos tempos, se tem provado a dignidade que carrega o ser animal não humano, digno de respeito fruto do mais primoroso bem, a vida, verdadeiro dom. Compreendemos que vivemos em um novo tempo, onde é preciso dar razões para a nossa existência que se revela na reciprocidade, na solidariedade não somente entre homens e mulheres, mas de todas as espécies, onde cada um tem o seu valor e se complementam. Nesse aspecto já nos impressionava na juventude o poder destrutivo do ser humano como nos cantava Chico Buarque de Holanda: “o homem vem ai”, causa para que todos os belos pássaros se afastassem dele e dessa espécie tão racional tivessem medo e tomassem cuidado. É preciso de fato se dar conta que a vida implica, necessariamente, em reconhecer cada uma das suas expressões, de suas manifestações, reinventando-se relações mais benéficas e sinergéticas, onde a diversidade seja caminho de cooperação e inclusão. A CF e o código Civil apresentam duas visões jurídicas sobre os animais, não nos restando dúvida de que o Estatuto Maior veio por elevar os animais à condição de sujeitos de direitos fundamentais como a vida, a liberdade a integridade física e psicológica. Por força do dispositivo constitucional, independemente de qualquer outra norma os animais são sujeitos de direitos e como tal prevalece como princípio magno o repudio a qualquer ato que macule ou manche a dignidade de vida destes, por isso qualquer ofensa deve ser banida e a crueldade repelida.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
127
REVISTA ERGA OMNES
O mal deve ser extirpado, como nos afirma o filósofo Tom Regan e toda exploração animal é intrinsecamente imoral e viola um direito natural: o respeito. É com base nesse solo fértil que queremos investigar a causa de proteção aos animais contida nessa ação que prima por um pedido liminar em que nos são expressos os pressupostos do fumus boni iuris e o periculum in mora. Esses pressupostos são demonstrados nos autos de forma veemente. O primeiro, porque submetidos à vontade do homem sobre uma aparente e falsa proteção. Alimentos, por exemplo, são oferecidos aos animais dos circos quando obedecidas as ordens de seus adestradores, do contrário sofrem restrições e, às vezes, atos de impiedade. O periculum in mora reveste-se na contínua escravidão animal, sujeitando-os ao desejo do seu senhor, muitas vezes, são os animais explorados e desfigurados da sua identidade única qual lhes foi reservada pela natureza. Ofensivas são as práticas do demandado às disposições do Art. 224, VII da CF, sendo inconcebível a manutenção destes animais em cativeiro. Em face do exposto, hei por bem deferir a liminar para determinar a suspensão imediata da exibição dos animais pelo demandado, ordenando a busca e apreensão de todos os animais que se encontrem no estabelecimento e instalações, devendo ser imediatamente encaminhados para o PARQUE ZOOBOTÂNICO GETÚLIO VARGAS, a quem competirá o cuidado destes até a reintrodução destes no habitat, sob pena de multa diária que arbitro em R$ 50.000,00. Ainda, determino que proceda o Demandado o transporte destes animais não humanos, até o Zoológico de Salvador, encaminhando-os com zelo e cuidado necessários em suas carretas e veículos próprios, sob suas expensas, sob pena de multa no valor já arbitrado, devendo ainda, disponibilizar o tratador dos animais para efetuar atos que importem no aprendizado e preparo dos técnicos do zoológico local para lidarem com os animais, resguardando esses em tudo na sua dignidade, respeito e cuidado inviolável a vida de cada um. Por fim, Intimem-se as partes, citando-se o Réu, valendo essa decisão como MANDADO DE INTIMAÇÃO E CITAÇÃO, para contestar a ação no prazo de lei, cientificando que, não sendo contestada a ação, se presumirão aceitos como verdadeiros os fatos articulados na inicial, salvo se se tratar de direito indisponível. Nos termos do artigo 154 c/c com o artigo 244 ambos do CPC que não exige forma determinada para os atos e termos processuais e que considera válido todo ato desde que alcançado o seu objetivo, determino que a cópia dessa decisão sirva como Mandado Judicial para intimação e citação do réu, devendo o Cartório emitir duas vias deste, uma para servir como mandado e outra como contra-fé, carimbando e assinando para garantir sua autenticidade e entregando ao Sr. Oficial de Justiça ou expedindo pelo sistema postal. O impulso necessário ao cumprimento do presente despacho deverá ser dado pelos próprios servidores, na formado Art. 162 parágrafo 4º, do CPC. Ademais, defiro os benefícios da lei 1060/50. Intimações necessárias, expedindo-se ofício ao Comando da Polícia Militar a quem solicitamos acompanhar a ação, fornecendo o reforço necessário de modo a favorecer ao cumprimento pacífico destas determinações.
Salvador, 12 de junho 2010 ANA CONCEIÇÃO BARBUDA SANCHES GUIMARÃES FERREIRA Juíza de Direito
128
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
AÇÃO PENAL PÚBLICA César Batista de Santana
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
129
REVISTA ERGA OMNES
AÇÃO PENAL PÚBLICA
JUÍZO DE DIREITO DA COMARCA DE ITAGIBÁ (BA). AÇÃO PENAL PÚBLICA Proc. nº 1.158/2005
ACUSADO: JUVENIL DE JESUS SENTENÇA n° 185/2006
VISTOS estes autos de reg. n° 1.158/2005, AÇÃO PENAL que o MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, por sua representante nesta comarca, move contra JUVENIL DE JESUS, brasileiro, solteiro, ajudante de pedreiro, nascido em 11.07.1970, filho de Helena Maria de Jesus, residente à Rua do Operário, nº 21, Bairro Santa Maria Goretti, nesta cidade, acusado de cometer os delitos tipificados nos Art. 12, da Lei nº 6.368/76, Art. 14, da Lei nº 10.826/2003 e Art. 180, § 1º, do Cód. Penal, cuja Denúncia foi recebida em 22.03.2005 (fls. 60/61). 2.- A Promotoria de Justiça desta comarca apresentou as Acusações de que no dia 03.02.2005, às 19:00 horas, a polícia prendeu o Acusado em flagrante, no interior da respectiva residência nesta cidade, ao executar mandado de busca e apreensão contra aquele, ocasião em que encontrou 35 gramas de maconha, 25 gramas de cocaína, uma balança de precisão, uma marica para consumo de crack e maconha, um revólver calibre 32 com o número de série inutilizado, 06 cartuchos para arma calibre 22 e um forno de microondas, marca Sharp, objeto de furto. 3.- A Denúncia funda-se em inquérito policial que foi instaurado com auto de prisão em flagrante, nota de culpa, laudo de constatação prévia efetuado pela autoridade policial na própria Delegacia relativo somente à maconha, inquirição de cinco testemunhas, juntada de depoimentos prestados no ano de 2003, auto de exibição e apreensão, duas faturas de serviços de telefonia pertinente à residência do Acusado, termo de entrega do forno micro-ondas, encerrando-se os autos com o relatório da autoridade investigante. 4.- A ação penal foi instaurada com citação do Acusado que apresentou defesa preliminar arguindo a intempestividade da Denúncia, a falta de rol de testemunhas e a inviabilidade da ação por envolver delitos que se tratam em ritos processuais específicos (fls. 49/50), postulando a inépcia da peça inicial. Depois do M. Público manifestar-se sobre a defesa, a Denúncia foi recebida. 5.- Realizou-se o primeiro interrogatório ao qual respondeu o Acusado
130
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
confirmando os fatos da Acusação, exceto quanto à existência a apreensão de cocaína em sua residência; no particular, informou que determinado policial, durante a execução de busca na residência, mencionou ter encontrado “goma de mandioca”. Sobre o revólver apreendido, assegurou tê-lo “achado” no acostamento da rodovia, quando parou o carro que conduzia devido uma pane. Disse que a munição foi-lhe entregue para vender por determinada pessoa, mas não teve coragem de fazê-lo. Aduziu, quanto à posse do forno de microondas, que o comprou por R$ 120,00 (cento e vinte reais) a outra pessoa que alegara necessidade de viajar para São Paulo (fls. 68/70). 6.- O Defensor constituído apresentou contestação ressaltando condições subjetivas e objetivas do Acusado visando à liberdade provisória. Assentiu com a confissão de ser o Acusado “usuário de drogas”, do tipo maconha, revoltandose, entretanto, com ação da autoridade policial que culminou com a prisão do mesmo, considerando-a uma “orquestração”, porque reteve um mandado judicial de busca e apreensão por quase sessenta dias consecutivos para executá-lo a seu bel prazer. Impugnou os testemunhos prestados por policiais e as demais “provas” colhidas durante o inquérito. No mérito, pediu isenção da pena, por ser usuário da substância entorpecente confessada. Juntou documentos pertinentes à identificação civil do Acusado e de cinco filhos, comprovante de estabelecimento comercial e declarações que abonam a conduta (fls. 90/116). 7.- A instrução oral concluiu-se com o segundo interrogatório e inquirição de cinco testemunhas do rol da Acusação e três testemunhas do rol da Defesa (fls. 97/145), depois de já terem sido juntados os laudo periciais (fls. 73 e 170/172). Ao fim dessa audiência foi concedida liberdade provisória ao Acusado, libertando-o em 03.05.2005 (fls. 146); porém, em 31.10.2005, aquele benefício foi revogado em face da notícia da prisão em flagrante do Acusado (fls. 153). Mas, em 09.03.2006, o Acusado voltou à liberdade por ter sido absolvido pelo fato daquela prisão (fls. 160). Enfim, provendo recurso que o M. Público interpôs contra a decisão deste juízo que concedera o benefício ao Acusado, a Eg. Primeira Câmara do Tribunal de Justiça da Bahia restaurou a prisão cautelar do indigitado, que voltou ao cárcere, onde se encontra desde 16.08.2006 (fls. 163/166 e 168). 8.- Nas alegações finais o M. Público reavivou os tópicos da Denúncia inicial acrescentando que as provas confirmam a autoria dos delitos atribuídos ao Acusado, salientando que as substâncias entorpecentes, o forno de microondas e o revólver foram encontrados no interior da residência daquele na ação policial, tendo a perícia assegurado que as substâncias eram maconha e cocaína, objetos de tráfico encetado pelo Acusado haja vista a apreensão, também, de uma balança de precisão. Ainda nas alegações o M. Público considerou o fato de que o Acusado comprou o forno de microondas por R$ 120,00, “bem abaixo do preço de mercado”, pagos com a entrega de maconha, invocando o depoimento de uma testemunha na fase policial que o mudou em juízo. Enfim, reclassificou a incriminação do fato da posse de arma de fogo pelo Acusado fixando-o como infração ao Art. 16, § único, inciso IV, da Lei nº 10.826/2003, EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
131
REVISTA ERGA OMNES
sustentando que o revólver apreendido na residência do mesmo estava com o número raspado e o laudo atestou a potencialidade de disparo em uso simples, além da posse de seis cartuchos para arma de calibre 22. Finalizou pedindo a condenação do Acusado nos termos dessas alegações (fls. 176/180). 9. – O trabalho final da Defesa iniciou por desistir “... da realização de qualquer EXAME TOXICOLÓGICO pleiteado na Contestação...”, para,
a seguir, sublinhar que o Acusado é um operário de condição miserável, primário e de bom comportamento social, desprovido de qualquer periculosidade, com família a prole para sustentar. Quanto às acusações, enfatizou a inexistência de prova que as sustentem e trouxe a lume a vulnerabilidade ética do inquérito policial, contrastando as Acusações com a veemente negativa de autoria apresentada pelo Acusado. Invocou o fato comprovado na perícia sobre o revólver de que o mesmo não apresenta funcionamento normal e estar desmuniciado quando da apreensão. Com mais vigor, sustentou que a posse do revólver no período do flagrante do Acusado não era crime em face do preceito do Art. 32, do Estatuto do Desarmamento e correspondente ampliação legal do prazo ali estabelecido. Refutou a imputação do crime de receptação, sustentando que não sabia da origem ilícita do forno de microondas, e visou à possibilidade de incorrer em receptação culposa, minimizada pelo valor “irrisório” da coisa. Ao enfrentar a acusação da autoria de tráfico de substância entorpecente, relatou que o Acusado é apenas usuário de maconha, apreendendo-lhe, na ocasião, o volume de 20g que se destinava ao próprio consumo, salientando a inexistência de prova de qualquer ato de tráfico, cuja increpação decorreu apenas “da vontade dos policiais diligentes”. Sob a premissa de ser apenas usuário da substância proscrita, acudiu-se com a lei nova que aboliu o crime confessado, apresentando o diploma normativo nº 11.343, de 23.08.2006, aplicável por força do Art. 2º do Código Penal em vigor. Rogou, a final, pela observância do princípio da verdade real que reclama a comprovação dos fatos da acusação para esquematizar o julgamento. Em opção subsidiária, invocou o princípio da equidade do julgamento, inclusive, referenciou os aspectos que favorecem o Acusado no tocante à aplicação da pena, na hipótese de alguma condenação. Mas pleiteou a absolvição com primazia (fls. 181/201). Para o imediato julgamento não há necessidade de outras diligências. Este é
RELATÓRIO do processo a que se seguem os fundamentos da DECISÃO.
10. – A justiça criminal desta comarca, pelo magistrado da época, concedeu um mandado de busca e apreensão à autoridade policial local contra o Acusado, cuja execução ocasionou a prisão em flagrante deste e seu indiciamento pelas infrações penais capituladas na Denúncia. Desde a primeira defesa, o Acusado aponta senões nas ações policiais que convocam, inelutavelmente, uma especial atenção do julgador. 10.1 – Verifica-se, com efeito, que a autoridade policial local obteve mandado de busca e apreensão contra o Acusado em 09.12.2004 e somente o executou em 132
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
03.02.2005. Trata-se de uma medida cautelar que se arrima na necessidade imediata de uma determinada providência, centrada, por assim dizer, no periculum in mora, sendo inexplicável tê-la sido concedida sine prazo, como o foi, permitindo-se à autoridade policial realizar o grave poder invasivo à liberdade domiciliar em qualquer tempo, vindo àquela autoridade a consumá-la, por fás ou por nefas, segundo o calendário de seu próprio sentimento, eis que jamais justificou porque retardou tanto o cumprimento do mandado. 10.2 – Segue-se que na execução daquela ordem de busca domiciliar a autoridade policial extrapolou a medida fazendo ilegal violação do sigilo telefônico da linha nº 32442446, instalada na residência do Acusado, apreendendo duas faturas (fls. 31/32) que listam a intimidade da comunicação de seus usuários, usando-as para instruir o inquérito (fls. 30). Saliente-se que esse desiderato da autoridade policial havia sido negado pela Justiça consoante evidencia a decisão de fls. 24/25, ao autorizar somente a busca domiciliar. 10.3 – Tais anomalias, intoleráveis no estado democrático de direito que assegura o devido processo legal, ilidem a presunção de legitimidade dos atos daquela autoridade, fazendo fracassar a Acusação que neles queira amparar-se. Segundo o questionado inquérito, houve apreensão de “... um pó branco que após periciado será informado se é cocaína” (fls. 36/37). Porém, durante a instrução judicial, somente o próprio delegado de polícia e os agentes policiais a seu cargo (fls. 137, 2ª testemunha e fls. 139, 5ª testemunha) confirmam a apreensão de cocaína, todas as demais testemunhas afirmam não terem visto ao vivo o referido pó, embora houvessem visto os demais objetos apreendidos, inclusive a maconha. Uma dessas que a tudo assistiu presenciou ocorrer unicamente a pesagem da maconha (fls. 142, 3ª testemunha); indaga-se: e o “pó branco”, porque não foi pesado ali? 10.3 – Fomentando as dúvidas quanto à real existência de cocaína naquela intervenção policial, observa-se que a autoridade investigante cuidou de confeccionar, imediatamente, um laudo de constatação prévia (fls. 14/15): mas só o fez em relação ao vegetal; porque não procedeu com a mesma constatação, naquela oportunidade (04.02.2006), no tocante ao pó branco? Somente depois de onze dias aquela autoridade entregou a guia para exame pericial (fls. 33) com os materiais apreendidos obtendo, no mesmo dia, novos laudos prévios de constatação, agora relacionando o pó branco como cocaína (fls. 52). Entretanto, esse laudo preliminar revela exame em substância “em pó, na cor branca”; mas, em franca contradição, o laudo definitivo elaborado pela policia técnica da Capital, dá conta de ter recebido para exame “substância sólida, sob a forma de “pedras”(aspas dos peritos), de coloração amarelada” (fls. 73). No particular, os procedimentos oficiais de comprovação conduzem a enorme perplexidade que inviabilizam o convencimento de que a autoridade policial haja, verdadeiramente, apreendido cocaína durante a busca domiciliar contra o Acusado. Destarte, neste ponto a Denúncia debilita-se porque invoca os indícios apresentados pelo inquérito, que se aniquilam como prova em face das graves contingências supra-apontadas, acolhendo-se EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
133
REVISTA ERGA OMNES
a negativa do Acusado que fica livre da imputação de ter tido posse de cocaína. 11. – A comunidade jurídica nacional, à unanimidade, estabeleceu com irrespondível proficiência, que a posse de arma de fogo e munição no período previsto no Art. 32, do Estatuto do Desarmamento, não configura crime. Notável expoente dessa comunidade apresenta a seguinte preleção: “Em termos práticos: ninguém pode ser preso ou processado por ter arma ilegal em casa ou na empresa (sendo o seu proprietário). Todos esses possuidores contam com o direito de entregar tais armas para a Polícia Federal até o dia 23 de outubro de 2005, porque a anistia do Art. 32 do Estatuto do Desarmamento foi prorrogada mais uma vez. Novamente estamos diante de um benefício penal concedido por Medida Provisória. isso é possível? Sem sombra de dúvida sim (STF, RE 254.818/PR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE). Medida Provisória não pode criar crime nem pena. Não pode prejudicar o réu em absolutamente nada no âmbito criminal (CF, Art. 62), mas favorecer pode. Aliás, para favorecer o réu, em Direito penal, admitem-se inclusive a analogia e os costumes.” (In, ARMA DE FOGO: MAIS UMA PRORROGAÇÃO DA “ANISTIA”, Luiz Flávio Gomes, Juris Síntese IOB, CD-ROM nº 60, JUL/ AGO 2006). A lição encarta jurisprudência da Alta Corte, de modo que é inexorável acolher a tese da defesa técnica, já que a arma e a munição foram apreendidas na residência do Acusado em 03.02.2005, período em que o fato não constituía crime. Cabe esclarecer que o Art. 70 do Decreto nº 5.123, de 01.07.2004, que regulamenta o Estatuto do Desarmamento, inclui a munição na possibilidade de entrega voluntária prevista no Art. 32, da lei regulamentada. 12. – Quando atribui ao Acusado a autoria do crime de receptação, reconhece a Denúncia que aquele adquiriu o objeto – forno de microondas – por R$ 120,00 (cento e vinte reais), sabendo da origem ilícita da coisa. Entretanto, ficou provado na instrução judicial que o Acusado comprou o forno a pessoa conhecida que se lhe apresentou como dono. Foi o próprio vendedor que veio a juízo esclarecer: “que ao vendê-lo ao acusado o depoente informou que o objeto lhe pertencia” (fls. 136). Num país em que a economia informal corresponde a quarenta por cento (40%) do PIB (produto interno bruto) não é justo exigir-se de um único indivíduo, isoladamente, um operário iletrado, a adoção de formalismo empresarial na negociação de um eletrodoméstico usado. Ademais, o Acusado pagou preço consentâneo como o valor da coisa, porque, afinal, um eletrodoméstico usado mal chega a valer o correspondente a quarenta por cento (40%) do preço do mesmo objeto novo na loja. Trata-se de verdade obtida pela experiência comum das coisas que o julgador não pode ignorar. Diante das sofríveis condições de legalidade do inquérito, já apontadas, não é possível validar o depoimento que o vendedor do forno ali prestou, quando este mesmo depoente vem a juízo, perante toda máquina processante, e acima aquele depoimento de ter sido feito sob pressão do aparelho policial e passa a contar, em juízo, o fato que se afigura verdadeiro. Portanto, à míngua de qualquer prova em contrário, caracteriza-se com verdadeiro o fato de que o Acusado desconhecia a origem ilícita do forno de microondas e que adquiriu por preço ao par do mercado. Inexiste crime por isso!
134
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
13. – Subsiste da Denúncia, na consecução deste julgamento, a imputação ao Acusado de fornecimento da substância entorpecente cannabis sativa lineo, conhecida como maconha. Tornou-se incontroverso o achado dessa substância, no volume de 35g, na residência do Acusado, bem como uma balança dita “de precisão” e petrecho para suposto consumo de crack. O sumário de culpa demonstrou que na ocasião da apreensão o Acusado consumira tal substância em companhia de mais dois operários, no interior da residência, onde, inclusive, faziam serviço de pedreiro com a aplicação de revestimento em piso. Não é possível entrever nessa ocorrência qualquer conduta tipificada no Art. 12 da Lei nº 6.368/76, como almeja o M. Público. Inexiste no processo qualquer articulado que permita subsumir a conduta do Acusado na precitada norma jurídica. A balança, que se encontra guarnecida no Cartório, é um instrumento velho, de um ponteiro, com capacidade para pesar o volume de 3,5 Kg, que se veem em bodegas e barracas de feira; pode-se afirmar que seja uma “balança de precisão”? – O mínimo ético o renega. 12.1 – Aliás, a compreensão da conduta do agente naquela incriminação máxima está condicionada à exação de responsabilidade da autoridade investigante que deve motivar a classificação do fato, na forma como impõe o § único, do Art. 37, da Lei nº 6.368/76. A omissão, no caso, é relevante, a faz o órgão Acusador padecer sem os necessários e válidos subsídios para sustentar a imputação. Um encarecido olhar para conduta do Acusado e seus parceiros, acima retratada, conflui para a compreensão de que são usuários da substância proscrita, conforme confessado pelo Acusado em suas diversas manifestações, destruindo-se a si mesmos com o respectivo consumo. Neste caso, tem procedência a defesa técnica ao alegar a abolitio criminis para o fato, trazida pela novel Lei nº 11.343, de 23.08.2006, aplicável por injunção do Art. 2º do vigente Cód. Penal, eis que essa recente lei já não considera crime o fato da posse de substância entorpecente para o próprio consumo do possuidor. 13. – Diante de todo exposto, com base no Art. 386-I-II-III, do vigente Cód. de Proc. Penal, julgo totalmente IMPROCEDENTE a DENÚNCIA e ABSOLVO JUVENIL DE JESUS das acusações a que respondeu neste processo. O Acusado encontra-se preso desde 17.08.2006, razão porque DETERMINO que seja libertado, entregandolhe a balança que lhe foi apreendida. Expeça-se alvará de soltura para ser cumprido imediatamente, com as cautelas de praxe. Custas do processo a cargo do Estado. PUBLIQUE-SE. ARQUIVE-SE cópia autêntica desta sentença. INTIMEM-SE, o M. Público e o réu pessoalmente. Não havendo recurso, façam-se as pertinentes anotações no tombo e arquive-se o processo. Itagibá (BA), 13 de dezembro de 2012. CÉSAR BATISTA DE SANTANA JUIZ DE DIREITO
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
135
REVISTA ERGA OMNES
ADI
Ação dirEta DE INCONSTITUCIONALIDADE Gesivaldo Bitto
136
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
Foto: Nei Pinto
REVISTA ERGA OMNES
Gesivaldo Britto Desembargador
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE TRIBUNAL PLENO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA BAHIA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCESSO Nº 0012740-29.2010.805.0000-0 REQUERENTE: PROCURADOR GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA REQUERIDO: MUNICÍPIO DE CAIRU DO ESTADO DA BAHIA
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - TAXA DE TURISMO – MUNICÍPIO DE CAIRU - INCONSTITUCIONALIDADE – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS INESPECÍFICOS E INDIVISÍVEIS – VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 145, II, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E 77 E 79 CTN – AÇÃO PROVIDA. EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
137
REVISTA ERGA OMNES
1. A Constituição Federal, no seu Art. 145, inciso II, dispõe que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem instituir Taxas pelo exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou colocados à sua disposição, nos termos fixados pelos Arts. 77 a 79, do Código Tributário Nacional. 2. Cotejando os dispositivos das normas municipais natimortas, ou melhor, moribundas, porque viciadas com o vício da inconstitucionalidade por atentarem contra Constituição Estadual e, por via de consequência e em última análise, contra a Carta Magna da República, verifica-se, facilmente, que os turistas e/ou visitantes que frequentaram e frequentam o Município de Cairu, mais especificamente, o aprazível e mundialmente famoso Morro de São Paulo, pagaram e vem pagando uma Taxa de Turismo quando ali chegam por mar ou pelo ar, por serviços inexistentes ou, mais precisamente, por pretensos serviços que são e devem ser cobertos pelos impostos gerais, recebidos pela Comuna diretamente por receita própria ou por repasses quando da repartição dos tributos federais e estaduais. 3. Ação julgada PROCEDENTE, concedendo, em antecipação de tutela, a LIMINAR requerida.
ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos de Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 0012740-29.2010.8.05.0000, em que é Requerente o Ministério Público do Estado da Bahia e Requerida a Câmara Municipal de Cairu.
ACORDAM os Senhores Desembargadores integrantes do Tribunal Pleno do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, por maioria de votos, em julgar procedente a ação, e o fazem de acordo com o voto deste Relator.
I – RELATÓRIO:
Trata-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, movida pelo Ministério Público do Estado da Bahia, em face dos artigos 2º, 3º e 4º, da Lei 211, de 28 de novembro de 2006, do Município de Cairu, e, por arrastamento, de todos os demais dispositivos deste diploma legal, incluindo as alterações promovidas pela Lei
138
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
Municipal 219, de 30 de abril de 2007, por violação do artigo 149 da Constituição do Estado da Bahia. Argui, em síntese, que a mencionada Lei Municipal instituiu a Taxa de Turismo no Município de Cairu, tem como fato gerador a prestação regular ao contribuinte, de forma efetiva ou potencial, dos serviços de turismo, ou postos à sua disposição, que englobam a conservação e a manutenção da infraestrutura física e de serviços, a colocação e conservação de sinalização própria para indicação e orientação sobre pontos turísticos, a implantação/ampliação de serviços de orientação sobre pontos turísticos e coleta de reclamações e o atendimento médico pré-hospitalar. Menciona que a Lei não está em consonância com comandos constitucionais sobre o sistema tributário nacional e estadual, pois invade irregularmente o patrimônio dos particulares ao exigir, sob o rótulo de taxa, tributo que tem por finalidade custear gastos públicos providos por impostos. Que ao incidir apenas sobre visitantes, cobrada nos terminais marítimos e aeroviário da localidade, demonstra o interesse em exigir das pessoas não residentes valores em pecúnia para que possam transitar, o que afronta o princípio da liberdade de tráfego e da isonomia. Em despacho de fl. 25 foi intimada a Câmara Municipal de Cairu para prestar informações. Informações prestada às fls. 44/63. A d. Procuradoria de Justiça apresentou o Parecer de n° 0252/2011, no sentido de julgar procedente a ação. Revisados, foram os autos incluídos em pauta para julgamento. Em petição de fls. 107/108, a Câmara Municipal de Cairu noticia que, após deliberação legislativa, aprovou a Lei Complementar nº 341/2011, requerendo que fosse considerada prejudicada a presente ação. A Procuradoria de Justiça, em petição de fls. 119/122, arguiu a necessidade de prosseguimento da ação, diante da natureza objetiva da ADIn, que segue rito processual especial, editando, na oportunidade, a exordial, uma vez que a Lei Complementar nº 341/11 não está em consonância com os comandos constitucionais acerca do Sistema Tributário Nacional e Estadual. Mencionou que a revogação da norma impugna e sua imediata substituição por norma legal com os mesmos vícios da norma originalmente atacada ensaia uma tentativa mal construída de fugir a atuação deste Egrégio Tribunal, fraudando a vontade da Constituição Federal e Estadual.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
139
REVISTA ERGA OMNES
Manifestação da requerida, fls. 130/152. Pronunciamento Ministerial, fls. 159/163. Submetido a julgamento na Sessão do Pleno desta Corte em data de 1º de Agosto deste ano corrente, após a rejeição das preliminares arguidas por entendimento unânime dos Excelentíssimos Senhores Desembargadores presentes à assentada e, no mérito, pela conclusão de improcedência da ação pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator, Desembargador Carlos Alberto Dultra Cintra, acompanhado da Excelentíssima Senhora Desembargadora Revisora Sílvia Carneiro Santos Zarif e Desembargadora Vilma Veiga, fosse por mim pedido vista dos autos para uma melhor análise e oferta de Voto. Após apresentação de Voto-vista divergindo do posicionamento acima adotado, fls. 173/183, entendeu o Colegiado, por maioria, em julgar procedente o pedido acompanhando a divergência, cabendo-me a função de lavrar o voto vencedor.
II - VOTO DIVERGENTE VENCEDOR:
Trata-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, com pedido de medida liminar cautelar, por intermédio do Excelentíssimo Senhor Doutor PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, em face dos artigos 2º, 3º e 4º da Lei nº 211, de 28 de novembro de 2006, do MUNICÍPIO DE CAIRU, e, por arrastamento, de todos os demais dispositivos deste diploma legal, incluindo as alterações promovidas pela Lei Municipal nº 219, de 30 de abril de 2007, na medida em que violam diretamente o artigo 149 da Constituição do Estado da Bahia, como se verificam dos fundamentos alinhados na petição inicial. Disse o Ministério Público, em sua petição inicial, que as leis do Município de Cairu, ora sob enfoque, entraram em colisão com o Art. 149, da Constituição do Estado da Bahia que, em resumo, disciplinando o Sistema Tributário do Estado, determina que as leis locais obedeçam ao disposto na Constituição Federal, nas Leis Complementares nacionais, em Resoluções do Senado Federal e nas Leis Ordinárias nacionais, porquanto aplicáveis em todo o território brasileiro. Como se constata, se a Constituição do Estado da Bahia determina que o Sistema Tributário em todo o seu território, seja o conjunto normativo tanto das leis de âmbito do Estado como das leis de âmbito municipal, obedientes ao mesmo Sistema adotado pela Carta Constitucional Nacional, necessário que fossemos buscar as diretrizes no sistema tributário estatuído pormenorizadamente na Carta Maior da República para nortear a legislação ao derredor dos tributos e da repartição de receitas. Aliás, como é sabido e foi amplamente discutida nos meios dos estudiosos do Direito Tributário, a constitucionalização das normas tributárias foi a salutar proteção do Constituinte pátrio para todos os cidadãos brasileiros contra a voracidade fiscal, em todos os níveis governamentais, proteção em contraponto, para defendê-los, especialmente, dos governantes de plantão.
140
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
Esse escudo protetor constitucional, garantido e mantido pela consciência e o bom senso dos nossos juízes, é que nos dá a certeza de que sempre poderemos lutar para que os governos sofram reprimendas nas suas tentativas de avançar no fruto do nosso trabalho, que se traduz na renda conseguida para o viver com o mínimo de dignidade e assim mesmo as receitas tributárias no Brasil avançam sobre (04) quatro meses de salário dos brasileiros produtivos. Na realidade, em suma, é a eterna e secular peleja entre o Contribuinte e o Fisco, este sempre ávido em encher as burras ante o desenfreado crescimento das despesas públicas, quase sempre com gastos injustificados, recursos desviados, “mensalões”, usando a frase em moda nestes tristes dias vividos pela Nação Brasileira. Com efeito. Dispõe a Constituição Federal, no seu Art. 145, inciso II, que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem instituir Taxas pelo exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou colocados à sua disposição, nos termos fixados pelos Arts. 77 a 79, do Código Tributário Nacional. Percebe-se, portanto, que o Constituinte Nacional originário de 1988 admitiu que o legislador ordinário federal, estadual, distrital ou municipal institua taxas na hipótese do exercício do poder de polícia ou, ainda, pela utilização efetiva de um serviço público ou posto à disposição do contribuinte, desde que divisível também, nos termos do Art. 78, do Código Tributário Nacional, este ampla e, sem dúvida alguma, irrestritamente recepcionado pela atual Carta Magna. O Art. 2º, Parágrafo único, da lei municipal de Cairu, sob o nº 211/2006, estabelece que a taxa instituída, a ser cobrada dos turistas e visitantes que para lá aportam, teria como fato gerador a prestação de serviços “relacionados às atividades de conservação e manutenção da infraestrutura física e de serviços para indicação e orientação sobre pontos turísticos, implantação/ampliação de serviços de orientação sobre pontos turísticos, coleta de reclamações, colocação e conservação de sinalização própria e atendimento médico pré-hospitalar”. Ora, nenhuma das situações elencadas nas referidas posturas municipais, é passível de exercício do poder de polícia ou de prestação de serviço específico divisível, até porque, em realidade, os serviços descritos estão sob as despesas a serem supridas pelos impostos gerais, sejam os oriundos dos impostos municipais, sejam os angariados pela participação nas receitas da União e do Estado, constitucionalmente fixadas no capítulo da repartição das receitas públicas dos impostos de competência dos entes federativos indicados. Os demais dispositivos da lei municipal ora guerreada e os da lei que posteriormente lhe alterou, são consequências da incidência fixada no Art. 2º e seu Parágrafo único, acima analisado, daí porque o vício de constitucionalidade apontado contaminou ambas as normas indicadas e todos os seus dispositivos, arrastados pela flagrante inconstitucionalidade. Outra não é a conclusão porque, além da flagrante inconstitucionalidade da chamada “taxa de turismo” do Município de Cairu, esta se revela, como bem coloca o “Parquet” estadual, como
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
141
REVISTA ERGA OMNES
uma violação, pura e simples, do direito constitucional de ir e vir, do direito à liberdade de locomoção no território nacional, este fixado no Art. 5º, inciso XV, e no Art. 150, inciso V, ambos da Carta Magna Nacional, previstos também na Carta Magna Baiana nos Arts. 4º e 149. Se um artigo da norma atacada pelo vício da inconstitucionalidade é a diretriz dos demais artigos constantes do referido diploma legal, é evidente que os referidos artigos estão também contaminados pelo vício, por via de consequência, ou como assentou o Ministro Carlos Velloso no seu Voto na ADIN nº 2895-2/AL, publicado na p. 446, do DJ de 20.05.2005, pelo “fenômeno da inconstitucionalidade por “arrastamento” ou “atração”.” E o que é Taxa? Taxa é um tributo bilateral, contraprestacional e sinalagmático, vinculado a uma atividade estatal específica e quem age é o Estado, “latu sensu”, daí porque só é possível sua cobrança em razão de atividade estatal específica, resumindo-se, no dizer de Eduardo de Moraes Sabag, in Direito Tributário, Prima Cursos Preparatórios, São Paulo, Câmara Brasileira do Livro, Brasil, ao seguinte: “O ESTADO AGE, EU PAGO” – ou seja, é uma atividade estatal, específica e divisível, como dispõe o Art. 78, do CTN, e só existem dois tipos de taxas: - Taxa de Serviço ou de utilização de serviço público, efetivos ou potenciais, estes quando obrigatórios; - Taxa de Polícia ou de Fiscalização – pelo efetivo exercício do poder de polícia, que deve ser palpável, concreto, real e efetivo, como definido no Art. 77, e parágrafo único, do CTN, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. Como exemplo temos as custas judiciais, o fornecimento de alvarás, os emolumentos notariais e registrais, licenças de funcionamento, taxas de publicidade, como taxas remuneratórias de serviços públicos prestados, etc., todos fruídos. Ainda como exemplo de serviços públicos postos à disposição dos contribuintes, temos as “taxa de esgotamento sanitário” que, cobrados juntamente com as tarifas de água fornecidas pelas empresas concessionárias, é obrigatória, e a dita “taxa de esgotamento sanitário” é justificada porque se trata de saúde pública podendo o contribuinte utilizar tal serviço, ou não, daí serem serviços públicos fruíveis. O uso da água é remunerado pelo pagamento de uma tarifa, que é “preço público” e não taxa, portanto não é tributo e é regida, ou regido, pelas regras de direito civil. Pois bem. Cotejando os dispositivos das normas municipais natimortas, ou melhor, moribundas, porque viciadas com o vício da inconstitucionalidade por atentarem contra Constituição Estadual e, por via de consequência e em última análise, contra a Carta Magna da República, verifica-se, facilmente, que os turistas e/ou visitantes que frequentaram e frequentam o 142
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
Município de Cairu, mais especificamente, o aprazível e mundialmente famoso Morro de São Paulo, pagaram e vem pagando uma Taxa de Turismo quando ali chegam por mar ou pelo ar, por serviços inexistentes ou, mais precisamente, por pretensos serviços que são e devem ser cobertos pelos impostos gerais, recebidos pela Comuna diretamente por receita própria ou por repasses quando da repartição dos tributos federais e estaduais. A “conservação e a manutenção da infraestrutura física e de serviços, a colocação e conservação de sinalização própria para indicação e orientação sobre pontos turísticos e coleta de reclamações e o atendimento médico pré-hospitalar”, são serviços, entre aspas, inexistentes e, como dito alhures, que devem ser cobertos pelos impostos gerais. Aliás, a fluxo turístico traz riqueza e benefícios para as localidades frequentadas, daí porque é inadmissível a cobrança de uma “Taxa de Turismo”, seja cobrada diretamente dos turistas e visitantes, seja através das agências de turismo, seja através dos hotéis, pousadas e congêneres. Ademais disso tudo, da flagrante inconstitucionalidade pela cobrança em si da injustificável “Taxa de Turismo” pela ótica do Sistema Tributário pátrio, as indigitadas normas municipais ferem outro princípio constitucional de índole dos direitos individuais dos brasileiros e de todo o estrangeiro, que é o sagrado direito de transitar e trafegar livremente por todo o território nacional, porquanto a única limitação a nível cobrança de pedágio é o das rodovias, como pacificamente estatuído nos Art. 5º, inciso XV, e Art. 150, inciso V, da Carta Magna. O Art. 5º, inciso XV, da CF-1988: “Art. 5º -[ ...] [...] XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, dentro da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; [...]” Por seu turno, o Art. 150, inciso V, da mesmíssima Carta Constitucional fixa: “Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados e aos Municípios: ... V – estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias públicas conservadas pelo Poder Público; [...]” Com se vê, o legislador constitucional vedou a criação de exações fiscais que possuam como hipótese de incidência o fato exclusivo de alguém ir e vir dentro do território nacional, pois a liberdade de locomoção é um direito constitucional que não pode sofrer limitação de natureza infraconstitucional.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
143
REVISTA ERGA OMNES
Com relação à exceção constitucional sobre o pedágio, entendeu o Supremo Tribunal Federal, por ocasião julgamento de ADIN sobre o tributo “selo-pedágio”, que este era uma “taxa” pela efetiva prestação de serviços pelo Estado ante a utilização das rodovias, que eram administradas pelos poderes públicos. Todavia, hodiernamente, em razão da privatização das rodovias, federais e estaduais ou, melhor dizendo, ante a concessão de exploração das rodovias, a mim me parece que essa “taxa” se transmudou para uma “tarifa ou preço público”, exatamente porque os serviços são prestados por particulares, no caso, por concessionárias, que são empresas privadas, aliás, entendimento este que se coaduna com o quanto ficou assentado pela Súmula 545, da Suprema Corte: “Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu.” Faço esta breve distinção para fixar que a “Taxa de Turismo” não se enquadra, como prevista na moldura das leis municipais de Cairu ora guerreadas, sequer como preço público, exatamente porque não há uma efetiva contraprestação ao contribuinte e este não se utiliza de qualquer dos “serviços”, entre aspas, repita-se mais uma vez, descritos pela Comuna de Cairu. Os “serviços médicos de emergência pré-hospitalar” devem ser obrigatoriamente prestados pelos entes estatais, União, Estado e pelo próprio Município, e cobertas as suas despesas pelas receitas gerais, especialmente as de repasse da União e do Estado, todos obrigados ao SUS – Sistema Único de Saúde, fixado na Carta Constitucional, Art. 196. Assim, como bem se posiciona a ilustrada Procuradoria de Justiça o pagamento da malsinada “taxa” é apenas um reforço da receita municipal de todos os turistas e visitantes que ingressam no território de Cairu através dos terminais marítimo e/ou aeroviário. Tão só e somente. De forma que, manter esta ilegalidade é concorrer para que o ente municipal venha a criar novas anomalias normativas, podendo vir a “taxar” até o ar que ali se respira, motivado unicamente pelo desmedido anseio arrecadador. A propósito, no Estado de Goiás, o Egrégio Tribunal de Justiça em atenção a uma Ação patrocinada pelo Ministério Público decretou a inconstitucionalidade da Taxa de Turismo do Município de Rio Quente, cujo voto condutor assim foi ementado: ACÃO DIRETA. TAXA DE TURISMO. LEI Nº 405/05 DO MUNICÍPIO DE RIO QUENTE. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA. OS RECURSOS E SERVIÇOS DE TURISMO, EXPRESSAMENTE REFERIDOS NO § 3º E ALÍNEAS DO ARTIGO 1º DA LEI INQUINADA (URBANIZAÇÃO, MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO DE PONTOS TURÍSTICOS, SINALIZAÇÃO VIÁRIA, JARDINS PÚBLICOS, PONTOS DE ÔNIBUS, CENTRO CULTURAL COM BIBLIOTECA, DENTRE OUTROS), NÃO PODEM SER REMUNERADOS
144
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
MEDIANTE TAXA, VEZ QUE NÃO CONFIGURAM SERVIÇOS PÚBLICOS ESPECÍFICOS E DIVISÍVEIS PRESTADOS AO CONTRIBUINTE OU POSTOS A SUA DISPOSIÇÃO. AO CONTRÁRIO, CADA QUAL CONFIGURA TÍPICO OBJETO DA ATUAÇÃO EDILÍCIA, DEVENDO SER CUSTEADO COM O PRODUTO DA ARRECADAÇÃO EM GERAL. ARGUIÇÃO PROCEDENTE, COM EFEITOS EX NUNC. (Tribunal de Justiça de Goiás, Corte Superior, ADI n. 200800714363, Rel. Des. Beatriz Figueiredo Franco, D.J.: 24/02/2010) No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais também, do mesmo modo, decretou a inconstitucionalidade de idêntica lei do Município de Uberaba, conforme ementa: INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - TAXA DE TURISMO – INCONSTITUCIONALIDADE - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS INESPECÍFICOS E INDIVISÍVEIS – VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 145, II, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E 77 E 79 CTN -INCIDENTE PROVIDO. ‘A ‘Taxa de Turismo’ instituída pelo Município de Uberaba é de natureza genérica, prestadas ‘uti universi’, não preenchendo os requisitos da divisibilidade e da especificidade previstas nos artigos 77 e 79 do CTN, não comportando a cobrança de taxa para sua prestação (Art. 145, II, da Constituição Federal)’. (Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Corte Superior, Incidente de Inconstitucionalidade n. 1.0701.06.170748-8/004, Rel. Des. Alvim Soares, D.J.: 21/08/2009) Em julgamento idêntico realizado em 06/05/2011, a Corte Especial de Justiça do Estado do Paraná declarou a inconstitucionalidade da cobrança da Taxa de Turismo, cuja ementa ora transcrevo: INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEIS MUNICIPAIS Nº 1.377/87, 1.540/90, 1.727/92, 1.837/93 E 1.913/94 – INSTITUIÇÃO DE TAXA DE TURISMO – INEXISTÊNCIA DE SERVIÇO ESPECÍFICO, DIVISÍVEL E DE CARÁTER COMPULSÓRIO - – RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE TRÁFEGO - OFENSA AOS ARTIGOS 145, INCISO II, E 150, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – INOBSERVÂNCIA, ADEMAIS, DOS ARTIGOS 77 E 79, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. INCIDENTE PROCEDENTE. É ilegítima a cobrança da Taxa de Turismo, porquanto está vinculada à prestação de serviços públicos de caráter universal, indivisível, e de fruição facultativa, além de restringir a liberdade de tráfego, estando, pois, em desacordo com o disposto nos artigos 145, inciso II, e 150, inciso V, da Constituição Federal. (INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 102.109-8/05 - 1ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE FOZ DO IGUAÇU -
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
145
REVISTA ERGA OMNES
SUSCITANTE: 10ª CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ - INTERESSADOS: FOZ TUR – FOZ DO IGUAÇU TURISMO E MUNICÍPIO DE FOZ DO IGUAÇU - RELATOR: DES. LUIZ LOPES – DATA DO JULGAMENTO: 06 de maio de 2.011)” Independentemente da vasta e portentosa jurisprudência sobre o tema, Taxa de Turismo, convém explicitar que, até no âmbito desta Corte, o Eminente Desembargador José Cícero Landim já teve oportunidade de fulminar a Taxa de Turismo do Município de Mata de São João, relativa aos Hotéis e Pousadas de Imbassaí, como se verifica em ação proposta pelo Ministério Público e pelo CBTur – Conselho Baiano de Turismo, taxas cobradas dos turistas e visitantes. Pesquisando no Google, sitio de buscas da internet e de seriedade reconhecida mundialmente, achamos uma página sobre a Taxa de Turismo de Morro de São Paulo, onde a mesma é anunciada em três línguas distintas, quais sejam na língua brasileira, na língua inglesa e na língua espanhola, ali fixada em R$ 12,00 (doze reais) por pessoa, cobrada na pista do aeroporto local ou se o visitante/turista for de Catamarã na própria embarcação e, ainda, no terminal marítimo local. Tal página é constituída de cinco (5) laudas que agora faço juntada com este voto vista aos autos da ação, a fim de que não restem dúvidas sobre a existência desde os idos de 2006 desse abuso tributário pelo que, nesta oportunidade, data venia, atendendo a cautelar pedida pelo Ministério Público, concedo a antecipação de tutela para suspensão imediata dessa absurda exigência, até final julgamento desta ADIN. Pelas razões supra expendidas, além de integrar a tutela pretendida, voto no sentido de julgar procedente a ação direta de inconstitucionalidade, a fim de que sejam suprimidos imediatamente todos os artigos indicados e, por atração ou arrebatamento, os demais artigos vinculados ao objetivo das leis municipais do município de Cairu, ora guerreadas, tanto os da lei nº 211, de 28 de novembro de 2006, como os da lei nº 219, de 30 de abril de 2007, esta última que promoveu alterações naquela outra. Sala das Sessões,
PRESIDENTE DES. GESIVALDO BRITTO RELATOR designado para lavrar o acórdão
PROCURADOR(A) DE JUSTIÇA 146
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
Sentença José Góes Silva Filho
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
147
REVISTA ERGA OMNES
SENTENÇA JUÍZO DE DIREITO DA 1ª JURISDIÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA COMARCA DE JUAZEIRO - BAHIA
PROCESSO nº. 1241252-4/2006 Ação: ORDINÁRIA COM PEDIDO LIMINAR REQUERENTE: PAULO JOSÉ DE MENEZES REQUERIDO: ESTADO DA BAHIA e POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DA BAHIA SENTENÇA nº /09.
José Góes Silva Filho Graduada Juiz de Direito
148
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
VISTOS, ETC. PAULO JOSÉ DE MENEZES, devidamente qualificado na inicial e através de advogado legalmente constituído, ajuizou a presente AÇÃO ORDINÁRIA COM PEDIDO LIMINAR contra O ESTADO DA BAHIA e A POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DA BAHIA, requerendo preliminarmente que lhe sejam deferidos os benefícios da Justiça Gratuita, e no mérito postulando o seguinte: Que é Policial militar reformado na graduação de SDPM 1ª CL, matricula nº.30.115.801-1; que, o seu processo de reforma policial destacou com transparência todos os aspectos jurídicos legais quanto ao seu enquadramento, não obstante faltou o parágrafo2º do Art. 108, da Lei Estadual 3.933 de 06 de novembro de 1981, Estatuto dos Policiais Militares (antigo), o qual define o grau hierárquico imediato, para efeito do cálculo de vencimentos; que em razão disso os proventos foram calculados sobre o soldo de CABO, quando na verdade seria de 1º SARGENTO, já que o de 3º SGT foi integrado a graduação de 1º SGT, conforme Art. 3º, II, da Lei 7.145, de 19/08/1987; que muito embora a Lei 7.145, no seu Art. 22, tenha revogado as disposições em contrário, não revogou em momento algum o Parágrafo 2º do Art. 108, do Estatuto dos Policiais Militares, visto que o presente artigo e seu parágrafo 1º foram à base de sustentação da presente reforma, conforme si vê na Portaria n° SAP 4/0895/09/2001, e publicada no BG/O de 11/01/2002; que a Lei Estadual 3.933 de 06 de novembro de 1981, Estatuto dos Policiais Militares só foi revogada com o advento da Lei 7.990 de 27/12/2001(Novo Estatuto dos Policiais Militares da Bahia), conforme preceitua o seu Art.222; que o novo Estatuto dos Policiais Militares prevê que o posto imediatamente superior à graduação de soldado 1ª CL PM é 1º Sargento PM pelo que requereu a concessão de liminar antecipativa dos efeitos da tutela jurisdicional, determinando a correção dos proventos do impetrante para que seja calculado sobre o soldo de 1º Sargento PM a contar de 08 de novembro de 1999, data em que se deu sua aposentadoria, com fundamento nas leis supracitadas, pertinentes a Corporação, o que é de Direito e de Justiça; concedida a LIMINAR seja citado o Requerido para responder aos termos da presente; a designação de audiência de conciliação, instrução e julgamento; e a procedência dos pleitos aqui insertos, com a condenação do requerido ao pagamento do soldo e vantagens relativas à graduação de 1º sargento, tornando ainda definitiva a liminar possivelmente deferida. Requer ainda que seja o requerido condenado ao pagamento de custas processuais e honorárias advocatícios (nos términos do Art. 94, Inciso I, da Lei 4215/63) e demais cominações legais. Deu à causa o valor de R$ 300,00 (trezentos) reais. Citado o requerido através de carta precatória, apresentou contestação às fls. 27/49, na qual arguiu preliminarmente inépcia da inicial sob o fundamento de que o autor não juntou provas que demonstrassem o valor dos proventos do autor, como contracheques; a ausência de interesse processual já que o autor não juntou nenhuma comprovação de que o Estado, administrativamente, recusou a integralização desses valores aos seus proventos e alegou ainda a impossibilidade da concessão da medida que implique em alteração dos vencimentos. Meritoriamente, arguiu, em síntese, a impossibilidade de promoção ao cargo de 1ºSGT PM; que consoante demonstra o seu processo de reforma, fls. 52/69, o Autor ingressou nos quadros da PM/BA em 10.08.78,
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
149
REVISTA ERGA OMNES
na graduação de soldado. Durante o período em que permaneceu na ativa, o demandante não realizou qualquer curso ou estágio. Por conseguinte, não se habilitou a qualquer promoção funcional; que, por ter sido descoberto que era portador de uma cardiopatia grave (inclusive tendo sido cirurgiado por esse motivo anteriormente), o mesmo foi submetido a exame de saúde pela Junta Militar de Saúde o qual recomendou a sua reforma por invalidez para o serviço em 30 de agosto de 1999; que como não conseguiu se recuperar do seu problema de saúde, a Junta Médica Superior de Saúde - JMSS -da PM/ BA, em 08.11.99, deu parecer definitivo pela sua incapacidade para o serviço público, conforme demonstra a Ata de Inspeção de Saúde constante do processo de reforma. Este problema de saúde o debilitou para o serviço policial, tendo sido agregado a contar de 11 de novembro de 1999; que a agregação é o ato administrativo que dispensa o militar de realizar expediente para a corporação, sem prejuízo dos vencimentos, ou seja, equivale a uma licença remunerada concedida ao militar enquanto tramita o seu processo de transferência para a inatividade. A partir do momento em que a JMS emite parecer definitivo reconhecendo a invalidez do militar, automaticamente é instaurado o procedimento administrativo de transferência para a reserva remunerada por motivo de reforma; que o Demandante comete equívoco ao confundir promoção por reforma com percebimento de proventos de cargo superior em razão de reforma. De fato, em algumas situações taxativas, é previsto o pagamento de proventos imediatamente superiores ao cargo ocupado pelo policial militar quando da sua reforma. Entretanto, consoante será demonstrado no tópico seguinte, o Autor não preencheu os requisitos legais para ser beneficiado com a promoção para o cargo imediatamente superior à que ocupava no momento da reforma. Portanto, falta amparo legal ao pedido de promoção para o cargo de Sargento da Polícia Militar da Bahia, pois o simples ato de reforma não lhe gera qualquer direito ou mesmo expectativa de direito à promoção para cargo superior; que inexistem incorreções no pagamento dos proventos de aposentadoria do Autor; que o policial militar que for julgado incapaz definitivamente para qualquer trabalho faz jus aos proventos calculados com base no soldo correspondente ao grau hierárquico imediatamente superior ao que possuía na ativa. Por isso é que o Autor foi reformado com os proventos do cargo de CABO PM, haja vista que era o cargo imediatamente superior ao cargo de SOLDADO PM; que o Autor recebe os proventos integrais do referido cargo. Portanto, não pode pleitear a promoção para o cargo de 1º SARGENTO PM ou o percebimento de proventos desse cargo porquanto não se enquadra numa das taxativas situações previstas em lei. Ao final, requereu o Estado a declaração de inépcia da inicial em razão da falta de prova essencial ou da ausência de interesse processual com a resolução do processo sem análise do mérito; ou, se ultrapassada essas preliminares, sejam julgados improcedentes os pedidos formulados, em razão da inexistência de violação a direito do demandante, extinguindo-se o processo com resolução do mérito, e condenando-se o Autor nas cominações legais. Protestou pela produção de todos os meios de prova em direito admitidos. Em manifestação sobre a contestação às fls.163/167, o autor contra argumentou as preliminares suscitadas, sustentou quanto ao mérito o direito inicialmente pleiteado e ratificou os pedidos da exordial. Juntou contracheques fls. 176/179. Nada mais havendo, vieram-me os autos conclusos. 150
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
É O RELATÓRIO. DECIDO: Inicialmente, cumpre fazer o seguinte destaque quanto às preliminares suscitadas, a primeira, que diz respeito à inépcia da inicial sob o fundamento de que o Autor não juntou provas que demonstrem o valor dos proventos que recebe atualmente, como contracheques, não pode ser acatada, visto não ser esta a meteria discutida na ação e sim a reclassificação da graduação do autor e do soldo por ele percebido que atualmente é de CABO PM, graduação esta já extinta, e quanto a isto, foi a inicial devidamente instruída e juntos posteriormente pelo Autor os contracheques. Também não se pode arguir a necessidade de prévia denegação de direito na esfera administrativa como requisito para ingressar em Juízo, visto que é consolidado o entendimento de que são esferas independentes, não podendo ainda o Judiciário deixar de apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito. Desnecessário tecer comentários sobre a antecipação de tutela visto que a mesma não foi deferida. No mérito, pretende o Autor através da presente ação ter seus proventos de inatividade corrigidos em virtude do benefício concedido aos militares da atividade, que com a extinção da função de CABO PM passaram a perceber soldo correspondente ao de hierarquia imediatamente superior àquela extinta e que tal benefício deve ser estendido aos inativos, com base na Constituição Federal e em Leis Estaduais. É cediço que a Lei nº 7.990/01, no seu artigo 9º enumera os postos e graduações da PM como sendo: coronel; tenente-coronel; major; 1º tenente; sargento e soldado. Seria de todo atentatório ao Princípio da Isonomia o entendimento de que com a extinção de dada graduação imediatamente superior à suprimida, os policiais militares inativos, que ocupavam a função extinta ao se aposentarem, permaneçam com os proventos calculados sobre uma categoria funcional inexistente. A própria Lei em comento (Estatuto dos Policiais Militares do Estado da Bahia) traz em seu artigo 121 o seguinte: Os proventos da inatividade serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos policiais militares em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos policiais militares em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da Lei?. Por sua vez, a Constituição do Estado da Bahia, no seu Art. 42 § 2º prevê: Observado o que dispõe o Art. 37, XI da Constituição Federal, os proventos da aposentadoria e as pensões serão revistos na mesma proporção e data em que se modificar a remuneração dos servidores ativos, sendo também estendidos aos inativos e aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens concedidos posteriormente
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
151
REVISTA ERGA OMNES
aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se tiver dado a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão, na forma da lei? A nossa lei maior, a Constituição Federal, determina no parágrafo 8º do artigo 40 o seguinte: É assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios estabelecidos em lei? Deve-se destacar que, como se percebe na parte final da norma acima transcrita, trata-se de uma norma constitucional de eficácia contida que se aplica por meio de complemento determinado em norma infraconstitucional, que nesse caso é o Estatuto dos Policiais Militares que versa sobre a matéria no seu já citado Art. 121. O entendimento do Supremo Tribunal Federal acompanha as disposições constitucionais ao adotar o principio do caráter de generalidade da vantagem concedida, e é aplicada aos inativos por força do parágrafo 8º do artigo 40 da Constituição Federal. Vejamos as diversas decisões dos Tribunais: “Aposentados? Extensão de benefício? Artigo 40, § 8º, da Constituição Federal. A pedra de toque da incidência do preceito é saber se em atividade os aposentados lograriam o benefício? (AI486.042-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 25-1108, 1ª Turma, DJE de 20-3-09) “Proventos da aposentadoria? Vantagem outorgada aos servidores em atividade. Uma vez constatado o caráter geral de certa vantagem outorgada aos servidores em atividade, a extensão aos inativos decorre, sem necessidade de lei específica, do disposto no § 8º do artigo 40 da Carta Política da República.” (RE466.531AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 12-8-08, DJE de 3-10-08). No mesmo sentido: RE546.981-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 5-5-09, 1ª Turma, DJE de 12-6-09; AI694.838-AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 17-032009, 1ªTurma, DJE de 17-04-2009. Com relação especificamente ao caso dos servidores militares, entende o Supremo Tribunal Federal que: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. POLICIAL MILITAR. ESTADO DE GOIÁS. VANTAGENS. EXTENSÃO A INATIVOS EPENSIONISTAS. 1.São extensíveis aos servidores inativos e aos pensionistas as vantagens concedidas aos policiais militares ativos de forma geral, independentemente do atendimento de qualquer requisito que não seja o mero exercício da função policial. 2.O fato de a denominação de algumas parcelas remuneratórias sugerirem a ideia deque constituem benefícios propterlaborem
152
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
não ilide o seu caráter geral, eis que concedidas indistintamente aos policiais militares da ativa. Incide, assim, o mandamento contido no artigo 40, § 8º, da Constituição do Brasil, na redação dada pela Emenda Constitucional n. 20/98. Agravo regimental a que se nega provimento. RE 581112 AgR/GO - GOIÁS AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator(a): Min. EROS GRAU. Julgamento: 09/09/2008. Órgão Julgador : Segunda Turma. O Tribunal de Justiça da Bahia ao julgar a Apelação Cível n° 71154-3/2008, da Comarca de Salvador, tendo como Apelantes ESTADO DA BAHIA e Apelados ADELMAR GOMES DE SA e OUTROS, em que foi relator o DES. ANTONIO ROBERTO GONÇALVES, adotou o posicionamento contido na seguinte ementa: EMENTA PROCESSO CIVIL. APELAÇÕES SIMULTÂNEAS. ADMINISTRATIVO AÇÃO ORDINÁRIA. REEXAME NECESSÁRIO. GRATIFICAÇÃO DE ATIVIDADE POLICIAL MILITARPRETENSÃO AUTORAL DE INCORPORAÇÃO AOS PROVENTOS DE APOSENTADORIA E PENSÕES DA GAPIII? EXISTÊNCIA DE PROVA NOS AUTOS DOS REQUISITOS RECLAMADOS PELO § 2° DO ART. 7° DA LEI N° 7.145/97. INTELIGÊNCIA DO ART. 40, § 8° DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MANUTENÇÃO AOS PROVENTOS E PENSÕES DA GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO POLICIALMILITAR E DE HABILITAÇÃO POLICIAL MILITAR, POSTO QUE JÁ INCORPORADOS AO PATRIMÔNIO JURÍDICO DOS REQUERENTES. CONDENAÇÃO AO RESSARCIMENTO DAS DIFERENÇAS APURADAS CORRIGIDAS MONETARIAMENTE OBSERVADA A PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. PROVIMENTO DO APELO DOS AUTORES. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA EM REEXAME NECESSÁRIO. APELO DO ESTADO DA BAHIA IMPROVIDO. (Julgamento procedido em 05 DE MAIO de 2009.) Ainda o Superior Tribunal de Justiça? STJ , ao julgar o RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 20.272 - GO (2005/0105906-7), em que foi Relator o Ministro Jorge Mussi, posicionou-se da seguinte forma : EMENTA ADMINISTRATIVO. MILITAR ESTADUAL. APOSENTADORIA. REAJUSTE GRATIFICAÇÃO DE COMANDO REGIONAL MILITAR. LEI DELEGADAN. 8/2003. PRETERIÇÃO DOS INATIVOS. OFENSA AO ART. 40, § 8.º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. EXTENSÃO AOS INATIVOS. CABIMENTO. 1. Esta Corte já firmou a compreensão de que os servidores públicos aposentados antes do advento da Emenda Constitucional nº 41, têm direito à equiparação dos seus proventos com a remuneração estabelecida para os servidores em atividade. 2. Constatado que o recorrente foi transferido para a reserva remunerada antes
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
153
REVISTA ERGA OMNES
das alterações introduzidas pelas ECs ns. 20/1998 e 41/2003, e que a gratificação transformada nos termos do Art. 2º, III, da Lei Delegada n. 8/2003, somente alcançou os militares da ativa, o provimento do recurso ordinário é medida que se impõe, a fim de garantir a observância do § 8º do artigo 40 da Constituição Federal. 3. Recurso ordinário provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Laurita Vaz e Arnaldo Esteves Lima votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Felix Fischer e Napoleão Nunes Maia Filho. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Jorge Mussi. Brasília (DF), 23 de junho de 2009. (Data do Julgamento)? Ante ao exposto, JULGO PROCEDENTE A PRESENTE AÇÃO, para reconhecer ao Autor o direito de ter os seus proventos de inatividade calculados com base na remuneração integral relativa à graduação de 1º SARGENTO PM, determinando o pagamento das diferenças verificadas a partir de 08/11/1999, tudo com juros e correção, observada a prescrição quinquenal até a data do efetivo pagamento. Determino, ainda, seja emitida nova identidade profissional para o Autor constando a graduação de 1º SARGENTO PM. Condeno o Estado da Bahia ao pagamento de honorários advocatícios que arbitro em 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação. Deixo de condenar em custas devido à isenção. Recorro de oficio ex-vi do Art.475, inciso I do CPC, e, decorrido o prazo, com ou sem recurso voluntário, remetam-se os presentes autos à Colenda Câmara Especializada do Egrégio Tribunal de Justiça da Bahia.P.R.I. Juazeiro, 23 de outubro de 2009.
JOSÉ GÓES SILVA FILHO Juiz de Direito
154
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
acórdão Edmilson Jatahy Fonseca Júnior
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
155
REVISTA ERGA OMNES
ACÓRDÃO Classe : Apelação n.º 0100399-49.2005.8.05.0001 Foro de Origem : Salvador Órgão : Segunda Câmara Cível Relator : Juiz Convocado Edmilson Jatahy Fonseca Júnior Apelante : Hildevaldo Melo do Desterro Advogado : Maria da Saúde Brito Bomfim Rios (OAB: 19337/BA) Advogado : Epifanio Araujo Nunes (OAB: 28293/BA) Apelado : Banco Ibi S/A Banco Multiplo Advogado : Liana Monteiro de Brito (OAB: 31107/BA) Advogado : Soraya Jones El-Chami (OAB: 19574/BA) Advogado : Luis Carlos Monteiro Laurenço (OAB: 16780/BA) Advogado : Leonardo Pereira Ribeiro (OAB: 22342/BA) Advogado : Morgana de Oliveira Ferreira (OAB: 14602/BA) Advogado : Luiz Marcelo Amorim Bustamante Sá (OAB: 16934/BA) Assunto : Interpretação / Revisão de Contrato APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO. CARTÃO DE CRÉDITO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DO CONSUMIDOR. CLÁUSULAS ABUSIVAS. JUROS EXTORSIVOS. NULIDADE CONFIGURADA. DESAPARECIMENTO DA REGRA POR ABUSIVIDADE. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO DISPOSTO NO ARTIGO 406 DO CÓDIGO CIVIL c/c ARTIGO 161, §1º DO CTN. FIXAÇÃO DA TAXA DE JUROS REMUNERATÓRIOS. CAPITALIZAÇÃO ANUAL DE JUROS. AUSÊNCIA DE CLÁUSULA EXPRESSA NO CASO CONCRETO. PRECEDENTE DO STJ. IMPOSSIBILIDADE. DEVOLUÇÃO SIMPLES DOS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE. REFORMA INTEGRAL DA SENTENÇA. RECURSO PROVIDO. A relação jurídica em destaque configura-se como de natureza consumerista, sujeitando-se ao regime protetivo do CDC. Aplicabilidade da Súmula 297 do STJ. Não se afigura como inconstitucional a fixação dos juros remuneratórios pelo simples fato de serem superiores ao patamar de 12% ao ano (Súmula 382 do STJ). Todavia, não podemos deixar de admitir que a fixação dos juros remuneratórios em patamar em torno de 10% ao mês, conforme se vê dos documentos anexados, é flagrantemente
156
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
abusiva porque coloca o consumidor em desvantagem excessiva não havendo outro caminho senão declarar a sua nulidade. Reconhecida a abusividade da cláusula que faz previsão de juros extorsivos, com a sua consequente nulidade, vale-se analogicamente da previsão de juros em outros Diplomas do ordenamento jurídico pátrio. (Art. 406 do CC c/c o artigo 161 parágrafo 1º do CTN), a fim de fixar a taxa de juros que passará a valer no contrato que teve a regra desaparecida por abusividade. Vedada a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano, uma vez que não consta no contrato em questão cláusula autorizativa expressa de cobrança mensal de capitalizar tais juros. Precedentes do STJ. Vistos, examinados, relatados e discutidos os presentes autos de Apelação Cível nº 0100399-49.2005.8.05.0001, tendo como apelante Hildevaldo Melo do Desterro e como apelado Banco Ibi S/A Banco Multiplo. ACORDAM os Senhores Desembargadores componentes da Segunda Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, à unanimidade de sua Turma Julgadora em DAR PROVIMENTO AO RECURSO, para reformar a sentença de piso e julgar procedente a ação, para fixar os juros remuneratórios no patamar de 12% (doze por cento) ao ano; e para excluir a cobrança de juros capitalizados; condenando ainda o Apelado nas custas processuais e honorários advocatícios, à razão de 10% sobre o valor da causa. Sala de Sessões da Segunda Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, aos dias do mês de do ano de 2012. Presidente Juiz Convocado Edmilson Jatahy Fonseca Júnior Relator Procurador(a) de Justiça
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
157
REVISTA ERGA OMNES
RELATÓRIO Classe : Apelação n.º 0100399-49.2005.8.05.0001 Foro de Origem : Salvador Órgão : Segunda Câmara Cível Relator : Juiz Convocado Edmilson Jatahy Fonseca Junior Apelante : Hildevaldo Melo do Desterro Advogado : Maria da Saúde Brito Bomfim Rios (OAB: 19337/BA) Advogado : Epifanio Araujo Nunes (OAB: 28293/BA) Apelado : Banco Ibi S/A Banco Multiplo Advogado : Liana Monteiro de Brito (OAB: 31107/BA) Advogado : Soraya Jones El-Chami (OAB: 19574/BA) Advogado : Luis Carlos Monteiro Laurenço (OAB: 16780/BA) Advogado : Leonardo Pereira Ribeiro (OAB: 22342/BA) Advogado : Morgana de Oliveira Ferreira (OAB: 14602/BA) Advogado : Luiz Marcelo Amorim Bustamante Sá (OAB: 16934/BA) Assunto : Interpretação / Revisão de Contrato Adoto o relatório constante da sentença prolatada às fls. 192/198, nos autos da Ação Revisional proposta por Hildevaldo Melo na qual contende com o Banco Ibi S/A Banco Múltiplo, que julgou improcedente os pedidos autorais, determinando que “a parte autora arque com o quanto avençado”, bem como revogou a liminar concedida. O apelante aduz em seu recurso, às fls. 206/213, existir equívoco no decisum, pois afirma ilegítima a cobrança dos encargos, existindo cláusulas abusivas no contrato firmado entre as partes, sendo, por isso, necessário o total provimento dos pedidos formulados na Exordial. Devidamente intimado, o apelado apresenta as suas contrarrazões, às fls. 218/233, sustentado, em síntese, o improvimento do recurso, tendo como consequência a manutenção da sentença. Examinei os autos e elaborei o presente relatório, passando-os ao crivo da eminente Desembargadora Revisora. Salvador, 21 de setembro de 2012. Juiz convocado Edmilson Jatahy Fonseca Júnior Relator
158
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
VOTO Classe : Apelação n.º 0100399-49.2005.8.05.0001 Foro de Origem : Salvador Órgão : Segunda Câmara Cível Relator : Juiz Convocado Edmilson Jatahy Fonseca Junior Apelante : Hildevaldo Melo do Desterro Advogado : Maria da Saúde Brito Bomfim Rios (OAB: 19337/BA) Advogado : Epifanio Araujo Nunes (OAB: 28293/BA) Apelado : Banco Ibi S/A Banco Multiplo Advogado : Liana Monteiro de Brito (OAB: 31107/BA) Advogado : Soraya Jones El-Chami (OAB: 19574/BA) Advogado : Luis Carlos Monteiro Laurenço (OAB: 16780/BA) Advogado : Leonardo Pereira Ribeiro (OAB: 22342/BA) Advogado : Morgana de Oliveira Ferreira (OAB: 14602/BA) Advogado : Luiz Marcelo Amorim Bustamante Sá (OAB: 16934/BA) Assunto : Interpretação / Revisão de Contrato Trata-se de apelação interposta pelo Hildevaldo Melo do Desterro objetivando reforma integral da sentença que julgou improcedente a ação revisional, determinando que “a parte autora arque com o quanto avençado”, bem como revogou a liminar concedida. Analisando os autos, verifico que relação jurídica em destaque configura-se como de natureza consumerista, na qual a parte apelada é destinatária final, o consumidor, dos serviços ofertados pela parte apelante, o fornecedor, sujeitando-se ao regime protetivo do Código de Defesa do Consumidor, pois é inequívoco que as atividades desempenhadas pelas instituições financeiras se enquadram no referido conceito de relação de consumo. Desta maneira, questões controvertidas que emerjam de contratos bancários devem ser dirimida à luz do CDC, para assegurar o equilíbrio financeiro e contratual equivalente entre as partes, que deve reger estas relações jurídicas de consumo. A sujeição de instituição financeira ao regime legal do CDC encontra-se previsto, a propósito, na Súmula nº 297 do STJ e no Art. 3º, §2º do próprio Diploma Consumerista, in verbis: Art. 3º: Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. [...] §2º: Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
159
REVISTA ERGA OMNES
de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. Súmula de nº 297, do STJ: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras. Portanto, o Código de Defesa do Consumidor regula o contrato bancário em destaque. Sob o pálio do seu Art. 51, o CDC estabelece regime protetivo que permite a revisão de cláusulas contratuais, a requerimento do interessado, quando elas contiverem obrigações iníquas e abusivas, ou forem nulas de pleno direito, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada a ponto de provocar o desequilíbrio entre direitos e obrigações assumidas pelas partes. Logo, resta plausível o ingresso de Ação Ordinária com a finalidade de revisar as cláusulas que estejam onerando de forma excessiva a parte hipossuficiente, para se afastar eventuais ilegalidades contratuais, revendo o quanto fora avençado pelas partes, para que desta forma se preserve a equação e o justo equilíbrio contratual a manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, com a correção dos desequilíbrios supervenientes. Assim, mitiga-se o princípio do pacta sunt servanda diante de interesses sociais. Nessa trilha, o CDC, em seu Art. 6º, incido V, prevê como direito básico do consumidor a “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. Art. 6º – São direitos básicos do consumidor: [...] V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Cláudia Lima Marques, em sua obra, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Ed. Revistas dos Tribunais, 3ª edição, nos ensina que o Art. 6º do CDC promove “uma novidade na proteção contratual do consumidor. Em seu inciso V, referido artigo permite que o Poder Judiciário modifique as cláusulas referentes ao preço, ou qualquer outra prestação a cargo do consumidor, se desproporcionais, se acarretarem o desequilíbrio do contrato, o desequilíbrio de direitos e obrigações entre as partes contratantes, a lesão. O Poder Judiciário, o Estado, em última análise, intervém na relação contratual de consumo, para sobrepor-se à vontade das partes, para modificar uma manifestação livre de vontade, para impor um equilíbrio contratual” (p. 781). Contudo, o direito do consumidor de reajustar a relação jurídica deve ser analisado e sopesado à luz de certos valores jurídicos, como a função social do contrato, a equidade e a boa-fé objetiva dos contratantes, pois são valores que devem nortear a conclusão, a execução e mesmo o reajuste contratuais.
160
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
Vale dizer, afasta-se o império do princípio da força obrigatória dos contratos e garante ao lesado o direito a modificar, em juízo, cláusulas desproporcionais que o onerem de forma excessiva, mas sem perder de vista, contudo, o dever de lealdade e cooperação a ser impresso no cumprimento do contrato pelas partes, para abster que um dos contratantes exerça condutas que importem na frustração das legítimas expectativas do outro, além de assegurar os limites da função social dos contratos. Considerando os dados constantes no processo, passa-se a análise do mérito. O exame dos autos revela ter comprovado que os encargos contratuais, incidentes pela fixação de juros pré-fixados e na situação de inadimplência, são consubstanciados em cláusulas abusivas, posto não adequadamente elucidativas quando da celebração da avença, atingindo patamares exorbitantes na oportunidade da aplicação. Por isso, o entendimento de serem abusivas as cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (Art. 51, IV, CDC). A respeito do princípio da boa-fé, trago a colação os ensinamentos da consagrada jurista Claudia Lima Marques: “O caput do Art. 4º do CDC menciona além da transparência a necessária harmonia das relações de consumo. Esta harmonia será buscada através da exigência de boa-fé nas relações entre consumidor e fornecedor. Segundo dispõe o artigo 4º do CDC, inciso terceiro, todo o esforço do estado ao regular os contratos de consumo deve ser no sentido de harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo e proteção do consumidor, com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (Art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. Poderíamos afirmar genericamente que a boa-fé é o princípio máximo orientador do CDC.” (in Contratos no Código de Defesa do Consumidor – p.. 342 – Vol. 1 – 3. ed. – Editora Revista dos Tribunais). Neste sentido, segue a orientação jurisprudencial dos nossos Tribunais Pátrios e também das nossas Turmas Recursais: Cartão de Crédito – Limitação de Juros – Cláusula Mandato – Capitalização. A Cobrança de juros em percentual superior a 12% ao ano configura vantagem excessivamente onerosa ao consumidor, vedada pelo CDC, bem como as demais legislações vigentes, inclusive a Carta Magna. Cláusula Mandato – Capitalização de Juros – Cláusulas abusivas
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
161
REVISTA ERGA OMNES
vedadas pelas súmulas 60, 121 do STF. Pagamento a maior que ultrapassa o valor do débito – Restituição devida. Recurso provido em parte. ( Ac. Unân. Da 2ª Turma Recursal da Salvador, no proc. 28129-8/99 de janeiro de 2002. Relatora – Juíza Maria da Purificação da Silva). É certo que não há limitação constitucional de 12% ao ano. Entretanto, não podemos deixar de admitir que a fixação dos juros em patamar em torno de 10% ao mês, conforme se vê dos documentos anexados, é flagrantemente abusiva porque coloca o consumidor em desvantagem excessiva não havendo outro caminho senão declarar a sua nulidade. Há uma questão a ser enfrentada: se não há dúvidas quanto à inexistência de limite constitucional para a fixação de juros em percentual acima de 12% ao ano, qual a taxa de juros é admissível e pode ser considerada não abusiva para o consumidor? O Poder Judiciário haverá de dar um basta em tal situação, revendo contratos que estejam impondo taxas abusivas e distantes da realidade momentânea do país, distanciando-se e muito do custo de captação do dinheiro. Numa inflação baixa, jamais vista, não se justifica a nenhum entendimento legal, ético e jurídico, a cobrança de juros que representam diversas vezes a própria inflação do país. O único modo de deter tamanha selvageria é fazer valer a lei e aplicar a teoria da lesão enorme, já consagrada pela doutrina e referendada pela jurisprudência. O princípio pacta sunt servanda deve ser flexibilizado, principalmente diante das regras do CDC, com a prevalência do princípio de equilíbrio entre as partes que deve prevalecer nos contratos, principalmente os de adesão. Infere-se, portanto, que ao formalizar o contrato de mútuo, a recorrida cometeu lesão na “base contratual”, posto que não pode auferir lucro com vantagem manifestamente desproporcional (CF Art. 173,§ 4º), se comparada com a prestação oposta, ou exageradamente exorbitante. Desaparecida a cláusula contratual que fazia a previsão da taxa de juros, haja vista que abusiva com previsão de juros extorsivos, necessário é a busca de algum parâmetro legal para disciplinar a relação contratual no tocante aos juros entre as partes litigantes. Assim, buscando a devida compatibilidade da dita relação contratual entre as partes com o sistema de proteção ao consumidor e, inexistindo um limite constitucional para limitação de juros, deve ser aplicado analogicamente o disposto no Código Civil, que estabelece em seu artigo 591 que, quaisquer contratos de mútuo destinado a fins econômicos presumem-se onerosos, ficando a taxa de juros compensatórios limitada ao disposto no artigo 406, com capitalização anual. O artigo 406 do Código Civil diz que os juros serão fixados de acordo com a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Assim, tem-se no ordenamento jurídico vigente, a previsão do artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional, que comanda a aplicação da taxa de juros de 1% ao mês, dispositivo esse a que se socorre neste processo para a fixação da taxa de juros, uma vez que a cláusula pactuada perdeu sua validade por abusividade. Diante das irregularidades contratuais apontadas, não pode o recorrente
162
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
ser prejudicado no sentido de continuar a ter que pagar os juros exorbitantes como os praticados pelo recorrente, principalmente em razão da aplicação de cláusulas contratuais nulas de pleno direito. É cabível no contrato que ora se discute, a aplicação das duas normas legais (Art. 406 do CC c/c o artigo 161 parágrafo 1º do CTN), o que resulta na aplicação de juros de 1% ao mês. Assim, reformo a sentença apelada e fixo em 12% (doze por cento) ao ano a taxa de juros remuneratórios do contrato em tela. Porém, a pretensão do apelante vai além da modificação da taxa de juros a 12% (doze por cento) ao ano. O Superior Tribunal de Justiça entende e orienta o julgamento acerca da permissão da capitalização de juros, consolidando o posicionamento, segundo o qual se admite a capitalização de juros desde que expressamente pactuado no contrato, com a periodicidade inferior a um ano: Ementa: PROCESSO CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO NEGATIVA DE SEGUIMENTO A RECURSO ESPECIAL - JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE - INCURSÃO NO MÉRITO - POSSIBILIDADE -INEXISTÊNCIA DE NOVAÇÃO. APLICAÇÃO DA LIMITAÇÃO DOS JUROS REMUNERATÓRIOS DE 12% AO ANO ÀS CÉDULAS DE CRÉDITO COMERCIAL. CAPITALIZAÇÃO DOS JUROS PERMITIDA, DESDE QUE EXPRESSAMENTE PACTUADO PELAS PARTES. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA QUE SE REVELA ABUSIVA. CONHECIMENTO DO AGRAVO E PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. (STJ, AgRg no Ag 768413/MS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Quarta Turma, DJe 28/03/2011) [Grifou-se] Ementa: PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. MULTA CONTRATUAL REDUZIDA PARA 2%. PRETENSÃO DE MAJORAÇÃO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE QUE O CONTRATO FOI CELEBRADO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI 9.298/96, MOMENTO EM QUE SE PERMITIA A FIXAÇÃO EM PATAMAR SUPERIOR. CAPITALIZAÇÃO ANUAL DE JUROS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR. 1. Constatando-se que não há nos autos comprovação de que o contrato tenha sido firmado em data anterior à vigência da Lei 9.298/96, momento em que havia a possibilidade de pactuação livre de sanção pecuniária, não deve ser reduzida a multa contratual. 2. A Segunda Seção desta Corte pacificou entendimento no sentido de ser admitida a capitalização de juros, na periodicidade anual. 3. Agravo Regimental provido em parte, tão-somente para permitir a capitalização dos juros na periodicidade anual.
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
163
REVISTA ERGA OMNES
4. Ônus sucumbenciais redistribuídos. (STJ, AgRg no REsp 620298/ RJ, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Terceira Turma, DJe 28/02/2011) [Grifou-se] Desta forma, para que a capitalização seja legítima e permitida, necessário que haja expressa previsão contratual, sem a qual não terá lugar sua cobrança. No caso sob exame, não demonstrada cláusula expressa que autorize a capitalização de juros em periodicidade anual, motivo pelo qual a sua cobrança, no presente caso, resta impossibilitada. Por fim, correto o posicionamento que permite a compensação e a restituição na forma simples de valores cobrados indevidamente, pois ao declarar abusivas as cláusulas que cumulam e exigem prestações excessivas, mostra-se necessário apurar, em liquidação de sentença, o valor real do débito oriundo do contrato revisado. Nosso egrégio Tribunal de Justiça consolidou o entendimento nesse, ao dizer que “a cobrança de taxas de forma cumulada e em patamar superior àquele previsto em lei, deve o valor da dívida ser recalculado, e uma vez apurada a existência de crédito em favor da autora apelante, é devido pelo réu-apelado a devolução na forma simples, da quantia indevidamente cobrada e paga pelo autor”. (TJBA, Apelação Cível nº 008652844.2008.805.0001-0, Primeira Câmara Cível, Rela. Desa. Maria da Purificação da Silva, julgado em 25/10/2010) Diante do exposto, dá-se total provimento ao recurso, para reformar a sentença de piso e julgar procedente a ação, para fixar os juros remuneratórios no patamar de 12% (doze por cento) ao ano; e para excluir a cobrança de juros capitalizados. Além disso, fixo o prazo de no prazo de 30 dias, para que o Banco, Apelado, recalcule a dívida do Apelante/Autor, utilizando o índice de correção do contrato com base nos indicativos aqui estipulados, admitindo-se a compensação e apurando-se o quantum debeatur, restituindo de forma simples ao Autor, os valores cobrados indevidamente, acaso existentes, devidamente corrigidos, a partir da data dessa decisão. Condeno ainda o Apelado nas custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 10% sobre o valor da causa. Salvador,
de
de 2012.
Juiz Convocado Edmilson Jatahy Fonseca Junior Relator
164
EMAB - Escola de Magistrados da Bahia
REVISTA ERGA OMNES
Poesia A paz Dê uma chance à paz E você vai ver Não haverá guerra Entre irmãos
Não espere o amanhã A noite é um horror Nas trincheiras Não pense mais
Temos um único pai Então por que lutar? Se dividirmos o pão Não haverá fome
Desative a bomba Que está em suas mãos Tudo é passageiro O prestígio se esvai
Dê uma chance à paz Destruindo as armas Estendendo a mão A quem quiser resistir
São momentos que fogem Por entre os nossos dedos Bem diante de nós Então, por que vencido?
Se agirmos assim O mundo será melhor Melhor para todos nós Tudo é passageiro A glória se esvai Escapa velozmente Pelas nossas mãos E se perde no ar Bem diante de nós Então por que vencido Por que vencedor? Faça alguma coisa
SSA-14/12/2005 Osvaldo Bomfim
REVISTA ERGA OMNES
Poesia Anseios tardios Por o violão debaixo do braço Quero voltar para o campo Fazer serenata nas noites de luar Andar nas trilhas de chão Cantar canções antigas Pisar o verde da grama Dialogar com as estrelas Sentir o cheiro da chuva Escrever um poema à lua Molhando a terra seca Andar pela rua deserta Ver as cercas e as pastagens Sentindo o cheiro da noite Apreciar o gado pastando Acolher o sereno da madrugada Abrir e fechar cancelas Sentado no banco da praça Andar por entre velames E ver o dia amanhecer E marias-pretas Eu quero... Correr atrás das borboletas Sentar à sombra do ingazeiro Beber água do regato Prosar com os campesinos Admirar a flor do mandacaru SSA-30/12/2005 Ouvir o canto dos pássaros Osvaldo Bomfim Colher o caju maduro Sentir o perfume do alecrim Ao cair da tarde Ver a terra esconder o sol Escutando o barulho do riacho Com as águas descendo a baixo Regando as terras que o margeiam Quero voltar, em resumo Às minhas origens Ah! Eu quero mais Andar com os pés descalços Ir de encontro à chuva Bronzear-me ao sol matinal
REVISTA ERGA OMNES
Poesia Ana 21 Bendita seja a areia onde o seu corpo repousa Santa, a brisa do mar que lhe refresca a tez Ardente, o raio de sol que lhe bronzeia o corpo Mulher, és o melhor que a sábia natureza fez Queria eu ser a água mansa do azul oceano Para percorrer, em êxtase, seu corpo por inteiro Permanecer, nele, apegado, em gotas refrescantes E, saboreando-lhe, sorver seu agradável cheiro
Osvaldo Bomfim
REVISTA ERGA OMNES
Poesia Preciso Preciso sorrir, ser alegre Ficar com gente divertida Ouvir atentamente e rir Aproveitar a vida que resta Tratando de amenidades Sem nenhum tempo a perder
Encontrar pessoas queridas Abraçá-las com mais realce Escutá-las mais cuidadoso Ficar com elas mais tempo Falar-lhes carinhosamente Valorizá-las muito mais
Apreciar as ondas do mar Com muito mais atenção Enquanto os raios solares Fazem azuis as águas Que se contorcem, giram Até derramarem na areia
Não posso olhar o universo E tudo de belo que nele existe Como algo sem significado Preciso dar valor a um grão De areia, a uma gota d’água Frações desse astro encantado
Ir à praia caminhar na tarde Com o sol quedando rubro Até sumir por trás da serra E vê a noite chegando com A lua cheia e suas estrelas Aclarando o negro firmamento
Osvaldo Bomfim