O Caos e a Harmonia na Praça Sete de Setembro

Page 1

O CAOS E A HARMONIA NA PRAÇA SETE DE SETEMBRO, sobre fronteiras e temporalidades: uma aproximação desde o audiovisual Resumo O enfoque desta pesquisa está na Praça Sete de Setembro, em Belo Horizonte, Brasil, e aborda questões da etnografia urbana e do audiovisual como ferramenta de registro e discussão sobre a cidade. A partir da pesquisa acerca de derivas em praças de Belo Horizonte do grupo CCNM (Centro de Convergência de Novas Mídias) da FAFICH, UFMG, foi escolhido o cenário da praça para entender o cotidiano e a vida comum dos cidadãos, registrá-lo utilizando o vídeo, o áudio e a fotografia, e explorando a própria vivencia do lugar, expandindo assim os métodos tradicionais de etnografia urbana. O desafio era compreender as estratégias e táticas urbanas dos grupos sociais como uma lógica que existe num aparente caos, visto como aglomerados de pessoas ou transeuntes num espaço complexo e diverso. A proposta de trabalho partiu da experiência da deriva, importante referente como método de pesquisa, que cria estratégias, a partir da observação, de como entender o espaço. Esta experiência buscou estabelecer metodologias especificas para as situações urbanas a traves da utilização do registro audiovisual em campo.. Nesse artigo apresento duas dessas metodologias que geraram vídeos e algumas discussões no grupo. Esse trabalho vai de encontro ao objetivo inicial de entender a lógica dentro do caos urbano que é a Praça Sete de Setembro, mostrando como o audiovisual pode contribuir para compreender a cidade, seus elementos e arranjos sociais, assim como o vinculo que existe entre a arquitetura, o espaço e os cidadãos. Esta pesquisa resultou na realização de vídeos que alimentaram discussões e reflexões no grupo de pesquisa. O vídeo conseguiu captar não somente o olhar do observador, mas elementos camuflados ou imperceptíveis nas derivas. O simples exercício de estar gravando força a se deter propiciando uma percepção mais apurada sobre determinadas situações ou sons. A produção dos vídeos nos levaram a discutir sobre os arranjos sociais, as fronteiras visíveis e invisíveis, os territórios e as porosidades. O espaço da praça é muito fluido, tudo acontece e desaparece rapidamente e ha arranjos sociais, como acordos, que permitem que tudo funcione logicamente e haja uma harmonia dos acontecimentos. A discussão realizada no artigo permeia conceitos desenvolvidos principalmente por HANNERZ e MAGNANI, aplicando-os no contexto da Praça Sete. Portanto, o seguinte trabalho esta tanto no campo teórico e discursivo quanto no campo pratico e experimental.


Introdução: Metrópoles e Centralidades Aos olhos de quem passa todos os dias na Praça Sete de Setembro, na capital mineira, e são muitos os que passam, tudo ali parece ser um verdadeiro caos, de gente, de fluxos, de sons, de vozes e de carros. E para quem não está acostumado pode parecer mesmo, as calçadas abarrotadas de gente, as faixas de pedestres com fluxo intenso, o trânsito quase sempre caótico na cidade, o semáforo quase nunca respeitado. Muita gente indo “pra lá e pra cá” o tempo inteiro. É como se o espaço fosse um grande cruzamento da cidade. Tudo aparece, flui e desaparece rapidamente. O ritmo e a dinâmica do lugar causam essa temporalidade peculiar, que dá um caráter efêmero à tudo que ocorre na praça. No entanto, com um olhar mais apurado vemos que no meio desse “caos” aparente, a praça tem uma vitalidade própria, uma harmonia única onde todos os sons e fluxos ocorrem de uma maneira e convivem entre si. Quando pensamos numa metrópole, pode ser que em nosso imaginário coletivo haja, de fato, um centro urbano ou alguma referência que para nós significa a centralidade. Nas cidades globais existem várias centralidades (FRÚGOLE, 2000 apud MAGNANI, 2002), a questão está em justamente identificar seus ordenamentos e como elas decorrem. Ainda assim, o centro da capital sempre será associado à “Praça Sete” e ao “pirulito”1, até mesmo porque a cidade, indiscutivelmente, começou nessa região e representava para Pedro Nava2 e para os mineiros a “cité” (SANTOS, 2008). A grande complexidade está no fato de que hoje a praça não é mesma, ainda que algumas memórias permaneçam. É um lugar complexo, de passagem, de comércio, serviços, de protestos, de expressão, de infinitas atividades e acontecimentos surpreendentes, que convive com outras várias centralidades da cidade, que há muito tempo extrapolou os limites da Avenida do Contorno, que um dia já foi um limite da zono urbana de Belo Horizonte. Por se tratar de um lugar extremamente diverso e caracterizado por praticas efêmeras, são vários os grupos de atores sociais (MAGNANI, 2002, p. 18) que nos deparamos: muitos são transeuntes e outros são grupos de tribos que têm espaços demarcados, que convivem entre si num espaço público aberto e muito próximos uns dos outros. Alguns deles podemos identificar com um olhar mais superficial, outros não estão muito expostos, por estarem em locais menos visíveis ou por terem horários e dias específicos de se encontrarem.

1 2

Nome popular dado ao obelisco situado na Praça Sete de Setembro

Pedro Nava foi um escritor e poeta mineiro que viveu durante vários anos em Belo Horizonte na década de 20 e escreveu diversos poemas e publicações


Proposta de Trabalho Definitivamente a “Praça Sete” é um local escolhido por diversas pesquisas. O interesse deste trabalho decorreu a partir de acontecimentos específicos em Belo Horizonte em Junho de 2013, momento em que houveram diversos protestos e ocupações em espaços públicos, sendo um deles a praça. Como parte do trabalho do grupo Centro de Convergência de Novas Mídias (CCNM)3 , e da pesquisa acerca de praças da cidade, o enfoque tomado foi explorar mais profundamente a Praça Sete a partir de derivas utilizando ferramentas audiovisuais. A questão está justamente em como captar e compreender o espaço através da deriva e do audiovisual, para finalmente entender a ordem-desordem do espaço. Desde o início na pesquisa desse espaço urbano nos deparamos com um obstáculo: como observar esse ambiente complexo, constituído de diferentes práticas e de territorialidades flexíveis? A “Praça Sete” é tudo isso, é o caos, num olhar distante, e harmônico, num olhar de perto. O que aparenta ser um ambiente problemático, na verdade possui arranjos sociais e negociações muito simples e decorrem, dando vida e identidade ao lugar. De junho a dezembro de 2013 o grupo CCNM fez derivas pela cidade em diversos dias da semana e horários. Ao mesmo tempo em que observamos grandes acontecimentos nesse espaço podíamos ver que havia também um cotidiano: pessoas que frequentam a praça, trabalham na região ou utilizam serviços diversos. A estratégia era captar acontecimentos inesperados em meio ao cotidiano da praça, por isso buscávamos dia e hora sempre diferentes para captar situações diversas, em dias de chuva, em dias de protestos, em dias aparentemente comuns, etc. O encontro podia ser de segunda a sexta-feira ou em finais de semana, de manhã, a tarde ou a noite, mas acontecia de uma à três vezes na semana. Algumas vezes já íamos ao campo de trabalho com expectativas de algum evento específico. O procedimento da deriva era inicialmente observar o ambiente e escolher pontos estratégicos para o registro, que incluía anotações, desenhos, fotografia, vídeo e gravação de áudio. A dinâmica dependia de quantos eram os pesquisadores em campo. Alguns procedimentos que são o foco deste texto foram o que denominamos “Cartão Postal” e “10x1” utilizando fotografia e áudio. O primeiro, “Cartão Postal” , funcionava a partir do olhar das varandas do edifício Joaquim de Paula4. Enquanto um pesquisador

3

CCNM, FAFICH, UFMG

4

Edifício Joaquim de Paula, localizado Rua Carijós, 424 – Centro, Belo Horizonte


fotografava uma sequência de fotos que gerariam um panorama o outro fazia a gravação do áudio, cada um durava cerca de dois minutos (Figura 1).

Figura 1. Panorama utilizado no vídeo “Cartão Postal”.

O segundo procedimento, “10x1”, ocorria com dois ou três pesquisadores, sendo que um deles se concentrava no registro com um gravador de áudio e os outros fotografavam. Criamos uma estratégia que ocorria da seguinte forma: o registro ocorria durante dez minutos, nos quais o áudio era gravado completamente num ponto especifico e a cada minuto outro pesquisador fotografava sempre no mesmo enquadramento, gerando um total de dez fotos sequenciais e um áudio de dez minutos. A ideia era de gerar posteriormente um material com as várias fotos e o áudio simultaneamente para analisar situações e propor reflexões. Como consequência, dois vídeos (Piloto 10x1 5 e Cartão Postal6) foram gerados e funcionaram não somente como um resultado, mas principalmente como um material para reflexões que resultaram em outras discussões acerca da observação da cidade. Discussão A “Praça Sete”, sendo um centro urbano desde a sua concepção, carrega com si o encontro das culturas e da diversidade, que se modifica ao longo dos anos, dos dias e também das horas. Os fluxos são rápidos e acompanham as mudanças físicas do espaço, os grupos se rearranjam, aparecem e desaparecem, mas alguns permanecem. Ao mesmo tempo em que é mutável, é também híbrido e se conflui para diferentes cenários. O espaço tem vitalidade própria e aos poucos sofre essas modificações. Não somente com o crescimento da cidade e com as modificações urbanas mudanças de trânsito, faixas de pedestre e fluxos de carros e pessoas - mas também em relação a própria mudança da sociedade, dos grupos e tribos que existiam e frequentavam um local e desaparecem com o tempo. Ao mesmo tempo em que outros grupos sociais passam a existir, moradores de rua ocupam ora um lugar, ora outro, um comércio fecha, outro abre e assim a ambiência se modifica constantemente. Esta variação é similar ao que

5

Acesso em http://vimeo.com/76092900

6

Acesso em http://vimeo.com/76094751


Hannerz7 define como fluxos da cultura em que há uma reorganização cultural no espaço. Vemos que esses processos são constantes num ambiente urbano como a “Praça Sete”, e que ao longo de todo o século XX até hoje houveram mudanças físicas e sociais. Porém, a observação do que é híbrido e mutável é complicada. Magnani (2002) propõe um olhar da etnografia urbana que da importância aos que os atores da cidade e que estes não sejam perdidos no caos da metrópole. A prática de derivas, o andar, o sentar, o observar, a conversa e os registros, a fotografia, o áudio e o vídeo nos fazem perceber detalhes, pedaços de um todo que se encaixam perfeitamente um com o outro. A observação não é apenas de um pesquisador que está passagem, mas sim de perto e de dentro, de alguém que permanece no lugar. Dessa perspectiva, andamos na praça agora com um outro olhar, de quem sabe que os milhares de sons se confluem, de que o fluxo de pessoas pode se sentir como o balé das calçadas de Jane Jacobs. “O balé da boa calçada urbana nunca se repete em outro l u g a r, e e m q u a l q u e r l u g a r e s t á s e m p r e r e p l e t o d e n o v a s improvisações.” (JACOBS, 2011, p. 52). Os Limites, fronteiras e Porosidades O espaço físico da praça apresenta quatro quarteirões fechados, com seus respectivos nomes indígenas, que de certa forma delimitam o lugar de cada parte da praça. Duas grandes avenidas cortam a praça, Av. Amazonas e Av. Afonso Pena, e formam no centro um espaço destinado ao pirulito da “Praça Sete”, um obelisco que existe desde a concepção da praça, já mudou de lugar e voltou para seu local de origem. A ideia de limites e fronteiras, o que é de fato entendido como o espaço da praça, não existe claramente para as pessoas. A praça está de fato inserida na cidade e em todo a sua complexidade, não existe um limite exato entre as duas coisas, por isso tudo flui e conflui tão facilmente. Por tanto, mais que limites, podemos observar uma porosidade entre os diferentes espaços e os lugares ocupados. As pessoas e os grupos sociais ocupam o espaço de forma negociada, como se houvesse um acordo entre eles para que cada um respeitasse o limite do outro. De um lado podemos ver os trabalhadores do “Foto na hora”8, espalhados pelas calçadas. Vemos também artesãos colombianos ou artistas peruanos vendendo suas pinturas. As mesinhas que ficam nos cantos dos edifícios abrigam os jogadores de xadrez e damas e os bancos servem de mesa de cartas para alguns homens.

7 8

HANNERZ, 1997

Grupo de pessoas na Praça Sete que utilizam o bordão “Foto na hora”para atrair transeuntes que precisam tirar fotos 3x4.


O corpo e o espaço trabalham juntos, um dinamiza o outro, nas ruas, nas calçadas, nas escadarias, nos bancos, nas esquinas. Os corpos criam arranjos coletivos e comportamentos não-regulares da cidade. Existe um acordo inconsciente entre os moradores de rua, os lojistas, trabalhadores e transeuntes. Como uma espécie de fronteira invisível entre os arranjos. Ninguém delimitou o espaço de cada um ou como eles devem ser comportar, mas ainda assim, existia uma harmonia entre eles. Isso pode ser visto em uma nota de campo: Logo de manhã podíamos ver alguns dos moradores de rua acordando num quarteirão fechado da praça e, por algum motivo, faziam sons com objetos e cantavam, no mesmo momento em que algumas lojas e lanchonetes estavam abrindo. Era comum a música estar mais alta, certamente uma maneira de chamar os clientes, nesse dia tocava um bolero. Mas ao perceberem que havia uma “competição” entre os dois sons, a loja trocou o ritmo e colocou algo semelhante ao “batuque” dos moradores de rua. Não havia uma disputa entre eles, existia um limite físico e uma aproximação imaginária que se estreitava através dos sons. Em nenhum momento houve uma troca de ideias, o acordo de cumplicidade já existia. (Relato de campo de Maíra Oliveira, dia 3 de dezembro de 2013)

Observamos que os bordões do “foto na hora” seguem um ritmo de alternância de sons e localidades, os corpos se espalham nas esquinas da praça e buscam os clientes na rua, levando-os até as varandas e voltando para a praça. (GARCIA; MARRA, 2012). Forma-se um fluxo de pessoas, de sons e acontecimentos, nos dias e horas exatas, como se essas ações estivessem pré-estabelecidas pelos ocupantes do espaço Na mesma varanda, aonde funcionam as lojas de fotografia, os bares se abrem para a panorâmica da cidade, ora estão vazios, ora estão cheios. Alguns funcionários permanecem ali, observando o pouco movimento, os transeuntes da praçavaranda, os carros, os ônibus e algum acontecimento importante, uma notícia pra contar. Na maior parte do dia os clientes são poucos, sobra tempo de fumar um cigarro e beber uma cervejinha, sempre ouvindo a maquina de música. O som se estende até o último bar, onde o cenário é o mesmo, mas a música é outra. Trabalhos Futuros A dificuldade do trabalho em campo está em identificar alguns dos atores sociais, principalmente transeuntes ou grupos que tentam se “camuflar” ou passarem despercebidos. Os transeuntes são pessoas que caminham e utilizam o espaço como passagem, algumas vezes permanecem por pouco tempo. Não pertencem a tribus urbanas ou grupos de cidadãos com interesses particulares e portanto são atores desconhecidos pela etnografia tradicional. Os grupos camuflados, ao mesmo tempo que estão expostos,


escondem atividades que exercem ou fazem com que elas pareçam ser outras. O trabalho com o audiovisual demonstrou ser um meio de mostrar que essas pessoas existem, mesmo que elas não sejam tão evidentes no espaço. Não somente pelo fato de criarem uma paisagem urbana, um aparente caos formado por milhares de pessoas todos os dias, mas pelos sons que produzem e as relações que estabelecem. A pesquisa poderia se aprofundar através das derivas para maior conhecimento e entendimento da lógica desses grupos sociais. Além de outras experimentações utilizando o audiovisual, a partir de registros de campo, e também com eventos ou ações na própria praça para que as reflexões sejam transmitidas de alguma forma para quem vive e passa pela praça. Seja de forma performativa ou de instalação, por meio da arte urbana e da linguagem comum que existe na cidade, para que seja um canal de conversa e discussão. Agradecimentos À bolsa de pesquisa da FAPEMIG, à Carmen Aroztegui, pela orientação e apoio, Pedro Marra, pela colaboração nas derivas, e às discussões e ao aprendizado no Grupo CCNM. Referências: FRÚGOLE, Heitor. (2000), Centralidade em São Paulo. São Paulo, Edusp. GARCIA, Luiz Henrique. MARRA, Pedro Silva. Ouvir Música na cidade: experiência auditiva na paisagem Sonora urbana do hipercentro de Belo horizonte. Contemporânea, Ed 20, Vol. 10, N.2, p43-57, 2012 HANNERZ, Ulf. “Fluxos, Fronteiras, Híbridos: Palavras-Chave da Antropologia Transnacional”. Revista Mana 3 (1): 7-39, 1997. JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, SANTOS MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Fevereiro, V. 15 N. 49. Ampocs ,Brasil, p11-29, 2002 SANTOS, Angelo Oswaldo de Araujo. Praça 7: O coração da cidade. Belo Horizonte: Conceito, 2008 SILVA, Regina Helena et al. Dispositivos de memória e narrativas do espaço urbano: cartografias flutuantes no tempo e espaço. Revista da Assoc. Nacional de Prog. De pós-graduação em comunicação, e-compós, Brasília, v. 11, n.1, jan./abr. 2008.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.