narrativas de si: CORPO E DESENHO EXPANDIDO N O E S PAÇ O D O M É ST I C O E M I S O L A M E N T O
MAÍRA MANCINI
narrativas de si: CORPO E DESENHO EXPANDIDO N O E S PAÇ O D O M É ST I C O E M I S O L A M E N T O MAÍRA MANCINI
à casa que nos abriga e ao tiago,
à professora letícia grandinetti e às aulas do ateliê de desenho corpo e linha, que engatilharam essa pesquisa e me colocaram em movimento,
à lei aldir blanc que fez possível a finalização deste projeto.
agosto de 2020
é estranha a sensação de estar tanto tempo dentro de um apartamento, dentro do mesmo ar e paredes, vendo tão pouco do que tem lá fora, parece me fazer menor. um monte de prédios em volta, alguns espaços livres entre eles, vejo gente com seus cachorros, até tomando sol. às vezes observo as janelas, as pessoas andando dentro de suas casas, regando as plantas do parapeito, acendendo as luzes, abrindo basculantes. hoje acordei às sete e quinze, estabeleci
até a cozinha. acho que com o passar das semanas fomos obrigados a ocupar todo e qualquer espaço possível desta casa, um modo de enganar nossas mentes sobre uma rotina inventada. para o café, para o estudo, para as tentativas de trabalho, para o dormir, para o amar, para se desfazer num banho quente e para guardar os sapatos vindos da rua. uma mudança constante de móveis pra um lado e para o outro, tentando se adequar a alguma coisa que não sei o que é, a pilha
uma nova rotina dentre as quatrocentas que tentei desde março, inclusive a de não ter uma. esse é um espaço-tempo de muita angústia, já menti pra mim mesma que eram férias, como aquelas no início de 2010, dias de suspensão no mundo. se meus pés deixassem marcas pela casa, alguns dias seriam apenas do quarto para o banheiro, talvez um pouco
de louça que nunca tem fim e a vontade de ficar limpando e arrumando cada canto que parece uma bagunça. acho também que sair desta casa me consome muito. a cada minuto no mercado ou na farmácia fazem parecer que passei horas andando pelo centro da cidade. fui ao centro e andei por grandes avenidas, de certo modo tudo parecia normal mas
parecia que algo ia me engolir a qualquer momento. eu só pensava em voltar pra casa. ando observando o desenho desta casa, a altura e as larguras das paredes, a mesa que fica melhor no outro quarto, o incômodo gerado por tantos barulhos diferentes de vizinhos, o silêncio da manhã das oito e vinte e um, o sol que invade o quarto as quatorze horas e as muitas tentativas de ocupar essa casa. e talvez ocupar a mim, nesse vigésimo oitavo ano de Saturno que não deu
casinhas de diferentes tamanhos da vila estrela, texturas de telhados, tijolos, roupas secando. alguns postes e fios mais ao fundo encostam no pedaço de céu que é possível ver daqui. do outro lado vejo texturas de prédios bem altos, de diferentes tamanhos, janelas e materiais. alguns tem plantas no parapeito, alguns a cortina voa para fora. um homem trabalha pendurado, por uma longa corda, consertando coisas na fachada. lá em baixo tem aquelas pequenas áreas de
trégua, eu só decidi ocupar o espaço que me cabe. gosto da altura das janelas e de como a luz entra nos cômodos, tenho observado o desenho que ela faz, como uma moldura para o lado de fora. um dos lados vejo uma textura folhosa, de uma mangueira do vizinho, pequenas florzinhas escuras voam pra dentro de casa. a outra janela bem larga enquadra
lazer, engolidas por todas as alturas dos prédios. alguns parecem se divertir. nem sempre consigo vê-los, mas qualquer som ecoa entre as paredes gigantes e chega até aqui.
c d f L m p s s
orte esenho
ragmentar imite ovimento
eso
ombra ubmergir
“Embora não seja algo desejado, provém do isolamento um ganho inesperado. Ele elimina a fraqueza com os golpes. Ele erradica as lamentações, proporciona um insight penetrante, aguça a intuição, assegura o poder incisivo de observação e de visão de perspectiva jamais alcançados.” Clarissa Estés, Mulheres que Correm com os Lobos
corte
corte 1. ato, processo ou efeito de cortar(-se). 2. incisão. 3. parte ou cada uma das partes separadas de um todo.
desenho
desenho 1. configuração de um conjunto; 2. contorno, delineamento, recorte; 3. traçado; plano; 4. linha.
fragmentar
fragmentar 1. reduzir a ou fazer-se em fragmentos; 2. fracionar(-se), quebrar(-se); 3. dividir em pequenas partes.
“A perda do controlo leva a fragmentação. Estás inteiro? Encontra-te a ti mesmo. Permanece atento.” Louise Bourgeois, Destruição do pai, reconstrução do pai.
limite
limite 1. linha que, real ou imaginária, delimita e separa um território de outro; 2. fronteira; 3. área que marca o fim de um território.
movimento
movimento 1. mudança sucessiva de um corpo que ocupa vários pontos num espaço; 2. maneira própria de se mover: movimento dos seus pés; 3. ação ou efeito de movimentar, de mover, de mudar, de se dirigir de um lugar para outro.
peso
peso 1. resultado da ação do peso sobre um corpo; 2. tudo aquilo que fatiga, oprime, atormenta; 3. o que tem força, importância, consideração; 4. resultado da acção da gravidade sobre cada uma das moléculas de um corpo.
“O olhar e a contemplação da própria natureza de algo ou alguém é a percepção da experiência da natureza como ela se manifesta em mim, fora de mim. O ato de desenhar é ao mesmo tempo o salto do isolamento do Eu para a comunidade de seres e coisas, no presente absoluto, na Presença Absoluta” Frederick Franck, Zen Seeing, Zen Drawing
sombra
sombra 1. interceptação da luz por um corpo opaco; 2. vestígio, leve aparência; 3. silhueta que um corpo desenha numa superfície quando ele se interpõe entre ela e o sol ou uma fonte de luz.
submergir
submergir 1. cobrir de água; inundar, mergulhar, afundar; 2. afundar ou desaparecer em água; 3. fazer desaparecer; ocultar, encobrir.
abril 2021 este livro é um relato. é um diário. é uma invenção. um modo de sobreviver. um modo de olhar pro mundo que tem sido possível. ainda é nessa casa que continuo a maior parte do tempo, onde tento estabelecer novas rotinas, onde tento viver um dia de cada vez. diante de um futuro sem perspectivas, talvez seja olhando para esses pequenos detalhes que me faça ter forças para continuar, pesquisar e criar. essa pesquisa foi uma forma de sobreviver, de compreender o meu espaço de isolamento e de realidade. pelo corpo, pelo desenho de linhas desenhadas por mim, ou pela casa, fiz essa espécie de mapa de palavras, cômodos, sensações. segundo Monika Weiss: “as marcas do desenho são como a fala: elas tentam e falham, mas nessa tentativa há uma marca de um traço deixado, que testemunha a intensidade de um momento no tempo no qual algo aconteceu.” (MARCONDES; 2013) essas sensações, que fizeram (e fazem) parte do meu cotidiano e universo, mas sei que também dos meus amigos e dos amigos deles. não tem sido fácil, mas agora temos certeza que a arte e a expressão são necessárias pra nossa
venho investigando sobre o desenho expandido, formas de fazer, formas de olhar, formas de criar com o que tem a mão, a disposição, dentro do meu espaço de vivência que é esta casa. “para Edgar Degas, artista francês da segunda metade do século XIX, ‘o desenho não é a forma, é a maneira de ver a forma’. (...) um espaço para pensar refletir e registrar esse pensamento por meio de recursos gráficos” (DERDYK, 2007). esta pesquisa representa um doar de si por alguns instantes diários, pois trata das mudanças de sentimentos, da relação com o próprio corpo, da materialidade e do tempo. o isolamento que vivemos nos aproxima de nós mesmos, como se ouvíssemos nossa respiração em voz alta, nosso inspirar e expirar; nossas próprias oscilações mais presentes; nossa inconstância mental e corporal; nossas frustrações, nossos medos e um não saber sobre o amanhã. este é um pequeno mapeamento cartográfico sobre si (e sobre nós) nesses últimos tempos.
sobrevivência, para o nosso respiro em meio a tanto caos e tragédia.
famílias que perderam entes queridos no Brasil durante a pandemia de Covid-19.
* minha solidariedade às mais de 400 mil
banho de sol. aquarela sobre papel. maíra mancini, 2020
“Alguns podem viajar através do mundo e nada dele ver. Para chegar à sua compreensão, é necessário não ver demasiado do mundo, mas olhar bem aquilo que vemos”. Giorgio Morandi
para ver mais: mairamancini.tumblr.com
PROJETO REALIZADO COM APOIO DA LEI ALDIR BLANC 2020