Pedagogias da Vizinhança: Aprender NO e A PARTIR DO mundo

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Título: Pedagogias da Vizinhança: Aprender NO e A PARTIR DO mundo

Resumo: Este artigo discute, a partir de uma experiência empírica, as relações entre instrumentos documentais, memória, ficção, reminiscências e rastros deixados na vivência de um contexto edificado e no desenvolvimento de uma pesquisa pedagógica na qual o filme é usado como dispositivo para a criação de determinados regimes de sensibilidade reconstruídos numa volta (do pesquisador) a vizinhança.

Palavras-chave: Vizinhança. Cinema. Pedagogia. Arquitetura. Memória.

Abstract: This article discusses, from an empirical experience, relations between documentary instruments, memory, fiction, reminiscences and traces left in the living of a spatial context. It is also a discussion of a pedagogical research in which the film is used as a instrument to create certain regimens of sensitivity reconstructed in (researcher) return to the neighborhood.

Key words: Neighborhood. Cinema. Pedagogy. Architecture. Memory.


Pedagogias da Vizinhança: Aprender NO e A PARTIR DO mundo

NOTA INICIAL: Apesar de ser um processo que se deu num tempo e espaço que se desenvolvem linearmente, a escrita não foi um texto linear dividido por datas ou momentos ou espaços ou apresentando apenas conclusões e amarrando-as a partir de teorias. Aprender e ensinar não são dois pólos, mas centros atratores de um processo que é ininterrupto e que se caracteriza por um vai-e-volta. Decidimos escrever este texto tal como foi a experiência (e não vivência), não para emulá-la como repetição, mas para construir inclusive pela escrita um processo pedagógico da imagem: uma passagem por uma (des)(re)orientação que envolveu a descoberta por parte de um indivíduo de uma vizinhança não antes percebida; o reconhecimento de dispositivos visuais como ativadores de relações afetivas; e o afeto coberto por camadas do hábito e rotina citadina. Assim, como um diálogo, o texto vai desvelando. Cada Secção é um tema cuja discussão se deu num diálogo entre as partes envolvidas no trabalho. Cada um não é um, mas os autores. O que interessa é o processo de aprendizado e a construção de um projeto pedagógico de reativação de relações sócio-espaciais pelas imagens e espaço vivido. Se com Walter Benjamin (1985) e seu diagnóstico da Modernidade aprende-se que, apesar da quantidade enorme de vivências, poucas experiências são produzidas pelo homem. Isso se dá justamente porque ele compreende o espaço e tempo como linearidades cujo fim será sempre a repetição do mesmo e não como processos que vão e voltam na produção de uma história transformadora.


01. De Fora e de Dentro: derivas metodológicas e metodologia da deriva

Figura 01: Linha do Tempo. Fonte: Autora, 2016.

O presente trabalho conta várias histórias como a Figura 01 expõe. A história de um reencontro com um lugar onde um dos autores morou em sua infância e adolescência; a história de um desejo de compreender como um certo espaço socialmente vivido por décadas é produzido no que diz respeito a afetos e trocas sociais; a história de uma vontade de reapresentar os moradores a si mesmos a fim de repensar a vida comunitária que ali se desenrola; a história de um arquivo fragmentado e coletivo de imagens fotográficas de diversas vizinhanças - desde a cidade de Belo Horizonte até Dublin, do Brasil a Irlanda; a história de um filme como mecanismo nostálgico e produtor de afetos. Mais do que a explicitação de uma vivência, uma experiência que começa no corpo social do pesquisador e que perpassa conceitos-chave como memória, ficção, imaginário e vizinhança. Assim, ao mesmo tempo, é uma pesquisa que discute a partir de uma experiência empírica de filmagem e derivas espaciais as relações entre


instrumentos documentais e a memória, a ficção, as reminiscências, os rastros deixados no uso do edifício. Uma pesquisa pedagógica na qual a teoria não vem para apontar caminhos mas para ajudar a explicar determinados afetos e regimes de sensibilidade reconstruídos numa volta a vizinhança. De maio a novembro de 2016 o trabalho passou por diversas etapas, que se entrelaçam em tempos simultâneos e que se desdobraram em novas fases. Em cada tempo, objetivos foram sendo lançados, uma etnografia de si como desdobramento de um ajuntamento de pessoas foi sendo objeto de escrutínio por imagens sejam fotográficas ou cinemáticas, uma pedagogia dos modos como se construíram e podem ser construídos afetos foram se dando através de tentativas, acertos e erros. O encontro da pesquisadora com os moradores sendo ela mesma uma moradora abriu possibilidades de se pensar e atuar como dispositivo de uma memória coletiva um filme, usando assim as imagens como mecanismos que jogam a frente a partir de uma memória subterrânea mas que se eleva quando minimamente agitada. Aprender no mundo a que se pertence espacialmente e não o mundo como objeto foi o ponto de partida para um movimento pedagógico duplo: aprender numa vizinhança na qual o vizinho é aquele estrangeiro mais próximo e distante, paradoxo das cidades contemporâneas; aprender a partir da vizinhança processos históricos e geográficos de territorialização de práticas cotidianas. O trabalho foi articulado metodologicamente primeiramente em torno de uma etnografia do bairro Jaraguá, na cidade de Belo Horizonte, através de derivas em torno de uma tipologia habitacional muito comum naquela localidade: as casas e conjuntos habitacionais geminados. Sejam tais arquiteturas e vizinhanças de um grupo institucional, como é o caso das vilas militares, sejam elas compostas de casas geminadas, sejam elas compostas de casas cujos muros baixos e proximidade provocam e produzem uma idéia de comunidade forte, foi por estes espaços, como exposto na Figura 02, que o trabalho se iniciou. As derivas foram várias, desde as vividas ao participar de festas da vizinhança, como é o caso da festa junina, passando por conversas com moradores e passeios pelas casas e seus interiores, até as fotográficas e visuais, entrevendo nos álbuns de família histórias e vizinhanças várias perdidas e vividas até o momento.


Figura 02: Mapa processual. Fonte: Autora, 2016.

A deriva fotográfica e visual ocorreram nas casas de moradores vários, onde a partir de conversas e lanches as fotografias dos álbuns de família funcionaram de forma a auxiliar como dispositivo da memória desses lugares, para que fossem relembradas as histórias, práticas e desencadeassem, talvez, algum tipo de processo nostálgico. Assim, num segundo momento, decupando tais imagens escritas, fotografadas, filmadas e vistas, produziu-se um filme tanto para dar ordem e criar uma narrativa ao que foi visto, assim como para transformá-lo numa experiência sensível e visual de quem eram aquelas com quem se conversou. Através da participação em eventos da vizinhança associado às derivas por álbuns de fotografias tanto da pesquisadora - moradora, como dos outros moradores destas vizinhanças, chegou-se a produção do filme em si. Tendo em vista que o filme é resultado de tais derivas, a vida dos moradores a partir de sua relação com o espaço socialmente vivido das vizinhanças escolhidas são eixo central da narrativa cinematográfica. Assim, por esse motivo, exibir o filme publicamente no espaço


comum de uma das vilas após terminado foi uma estratégia para que as pessoas pudessem se ver - e ver a si como outro - e reconhecer as possibilidades diversas de “resposta” imediata da comunidade, assim como rearranjos ou decorrências do processo de 2016 após seis meses dentro de alguma das vilas. A partilha do sensível, parafraseando aqui o filósofo francês Jacques Ranciere, se deu nesse terceiro momento metodológico, ao levar de volta as imagens ao público para que isto se transforme em evento.

02. A Experiência Nostálgica NA produção de Imagens Um: ​Impressiona o modo como a fotografia pode ser um instrumento de mobilização de uma memória afetiva. Ao iniciarmos este trabalho sempre partimos do pressuposto que a vizinhança já existia, quando na verdade os álbuns de família trouxeram a tona imagens comunitárias, construindo ali vizinhanças afetivas nunca conscientemente percebidas. Outro: ​Quando conversei com Joana e Carlinhos, falamos sobre como era o bairro na época em que a vila foi construída, como a paisagem e os costumes mudaram. E aí ela começou a contar sobre a relação entre os vizinhos, como isso foi desde o início uma construção de laços quase familiares e foi me mostrando algumas fotos. Ela lembrou dos encontros que faziam na calçada, às vezes para “jogar conversa fora”, olhar as crianças brincando ou até quando organizavam churrascos quase no improviso. A distância do cotidiano atual em relação às histórias passadas sempre vinha à tona, como algo que não existe mais, viraram parte de lembranças de um passado não muito distante. Assim, a nostalgia, como dispositivo da memória, foi um ponto fundamental para que as famílias compartilhassem seus álbuns de fotos, isto porque muitas práticas cotidianas vividas há alguns anos já não ocorrem mais ou muitos dos moradores já se mudaram das vilas. Então, a história contada e fotografada era muitas vezes sobre o que já não existe e pode ser falada abertamente, diferente do que muitos moradores contaram sobre o que vivem hoje. A forma de habitar e suas relações sociais, através das fotografias antigas, era relatada de uma maneira quase ficcional e imaginária, como algo distante. O conflito existe no ponto em que as histórias de moradores de diferentes tempos não se convergem (e inversamente, histórias de lugares-tempo distintos se aproximam).


Um: Interessante que o conceito de nostalgia a que você se refere, quando conversamos pela primeira vez, lhe apresentei no contexto de um seriado norte-americano: ​Mad Men​. O seriado se passa nos anos 60 e mostra como numa década conturbada tanto pelo recrudescimento de uma ideia de "sonho americano" espetacular, usando aqui o conceito de espetáculo de Guy Debord (1995), foi capaz de criar imagens de saída ou fuga. Assim, o programa se passa numa agência de publicidade, onde o personagem principal, diretor de criação da firma, tem de construir tais imagens de felicidade sonhadas ao mesmo tempo em que a realidade nada mais é que sólida enquanto se desmancha no ar. Neste contexto, quando Don Draper, personagem principal, apresenta o projeto de publicidade sobre o carrossel de slides da empresa Kodak e apela ao conceito de nostalgia para justificar sua mensagem publicitária, algo interessante acontece: ele diz que a propaganda e publicidade podem tanto apelar a um sentimento antigo quanto a imagens não vividas mas que atuam diretamente na rede de afetos do espectador. A nostalgia é potente porque apela ao não vivido, mas desejado, aquilo que o cliente não sabe para Draper. O interessante quando começamos essa pesquisa pelos álbuns de fotografia dos moradores como forma de iniciar um diálogo sobre a vizinhança com os mesmos e sobre as mudanças que o espaço, famílias, relacionamentos e gestos individuais e coletivos tiveram ao longo dos anos, sempre esperamos que houvessem rememorações apoiadas em casos reais e documentados e comprovados pela fotografia. No entanto, esta nostalgia a que nos referimos atua como máquina de fabulação e indistinção entre vida e ficção, porque torna-se uma zona cinzenta a relação entre a fotografia como documento ou testemunho e como dispositivo de criação e invenção. Este não saber ou esta capacidade de fabular a partir de afetos e não dados reais foi interessante justamente porque nos jogou num campo de equivalência entre realidade e ficção, fazendo com que as narrativas se tornassem elas mesmas o único material de apoio para a pesquisa como um todo. Uma pedagogia da fabulação como verdade ou do presente como fabulação do passado tornou-se metodologia de abordagem e escuta dos moradores. Assim, esta pedagogia se articula como projeto histórico de recontagem das ruínas do passado ou do que restou delas. O escritor G. W. Sebald em seus livros, especialmente ​Austerlitz,​ aborda tal questão de forma similar ao que nos deparamos nas conversas: ouvimos o que os


moradores têm a dizer, temos fotografias que comprovam o que dizem, mas sempre fica um intervalo radical e intransponível entre um e outro. Sebald mostra fotos de lugares e pessoas, descreve com riqueza de detalhes espaços e eventos e ao longo da narrativa, mostra como tal linearidade do autor não existe como discurso lógico mas sim como falsete de uma fragmentação do tecido histórico. O narrador ou personagem principal redesenham a história a partir de fragmentos rememorados em encontros com o amigo interlocutor. Não é que Sebald queira nos enganar, mas sim mostrar e expor os mecanismos tortuosos através dos quais a memória passa não para apontar o que ocorreu, mas para tornar o passado interessante e compartilhável no presente. Outro: A nostalgia, como esse dispositivo entre a ficção e realidade, pode re-criar uma prática rememorada nas fotografias, as festas de vizinhança. Durante o processo de entrevistas e conversas iniciais, descoberta dos álbuns de família, houve uma festa junina em 2016, entre moradores de uma das vilas, alguns antigos e outros mais recentes. O interesse é perceber como o contexto pode ter sido alterado de alguma maneira com a presença do pesquisador e a partir de pequenos gatilhos dentro da comunidade para que isso fosse revivido de certo forma. A imagem, fotográfica e audiovisual, apresentou-se um ponto de partida para imaginários, práticas e outros desdobramentos a partir de narrativas poéticas, entre o real e o fictício, que se misturam de forma a tecer caminhos infinitos. Através de imagens, o observador pode se identificar diretamente ou indiretamente por referências de lugares ou tempos que a ela pode despertar, como uma ferramenta de reflexão do próprio espaço, do habitável, do não habitável, do que já foi, das relações atuais e do que pode ser em tempos futuros. A aproximação da arquitetura e das relações sociais foi apontada na imagem retratada pelos próprios moradores em seus álbuns de família por visões variadas externas e pelo meu olhar enquanto pesquisadora. Olhar para o próprio espaço e para as próprias relações gerou um momento suspenso, de voltar não só a passados e modos de habitar, mas pensar sobre o tempo e a liquidez das relações atuais, que são vivenciadas no espaço individual e compartilhado, da vizinhança até a cidade numa maior escala. A experiência da imagem ocorreu desde o momento inicial, quando os álbuns de fotografia foram “revividos” com as famílias, associados às derivas do bairro, o olhar da autora,


as vivências da pesquisa, até o momento de troca, onde criou-se um movimento entre lugares e tempos diversos. Representando, então, um processo de entender a arquitetura além do espaço construído, com desdobramentos sobre o que a imagem pode ser, criar e re-criar, sendo infinitas as possibilidades entre corpo e espaço, habitação e cidade, público e privado. Nesse trecho de “Olhares Sobre A Arquitetura, Arquiteturas Do Olhar”, Junia fala sobre o estranhamento familiar (MORTIMER, 2015, pp. 243-244): Essas práticas tendem a explorar, em diferentes níveis, a sensibilidade espacial do sujeito, buscando ativar as várias dimensões sensórias da experiência do corpo no espaço. Assim, por meio do caminho aberto por essas agitações, aquilo que deveria ter permanecido esquecido ou sepultado retorna ao real em novas formas, gerando estranhamentos em estruturas teóricas estáveis e familiares ao imaginário social.

Além dos álbuns de família colecionados representarem um registro para a pesquisa, ao revisitar esse passado muitos anos depois com um olhar diferente, a fotografia funciona como uma ferramenta de acesso ao inconsciente espacial, a partir de teorias de Walter Benjamin e depois por Anthony Vidler (MORTIMER, 2015, p. 228): Ao trazer à tona o inconsciente visual, isto é, ao representar o espaço informado pelo inconsciente humano, o processo fotográfico – como o psicanalítico, ao qual Benjamin se refere – promove a imersão na superfície da imagem de aspectos esquecidos ou refutados dentro de uma cultura visual informada pelo consciente humano (…) Ao “ver” o inconsciente espacial na fotografia, queremos indagar sobre o espaço, seus processos de formação, suas dinâmicas que lhe fazem ser como ele aparece na fotografia. Dando a ver, assim, também novas possibilidades de se relacionar com o espaço que nos cerca.

O processo, desde as conversas com as famílias em meio aos álbuns, foi crucial para re-ativar memórias e práticas para o desenvolvimento do filme até o retorno do mesmo para a comunidade. Um: ​E tão interessante quanto foi o fato de que ao viajar para a Irlanda, dentro do Programa Ciências Sem Fronteiras no ano de 2014, ao morar numa vizinhança e casa com desenho similar e porque não, nostálgico as vivências do morador - pesquisador, na medida em que se assemelhava do ponto de vista organizacional espacial as casas geminadas e contextos de vizinhança brasileiros, algo emergiu. Havia algo de comum, como vemos nas Figuras 03 e 04 do bairro Jaraguá no Brasil e de ​Beech Hill na Irlanda, entre suas diversas casas e isso só pode ser percebido ao tomar as fotos e compará-las de relance num primeiro momento.


Figura 03: Bairro ​Beech Hill​ em Dublin, Irlanda (à esquerda). Fonte: Autora, 2014. Figura 04: Vila no bairro Jaraguá, no Brasil (à direita). Fonte: Autora, 2016.

Outro: Essa conexão entre o vivido no Brasil e na Irlanda foi estabelecida ao ler “Movimentos Imagem”, da Priscila Musa, onde ela cruzou espaços e tempos distintos e percebeu a potência que a imagem atinge entre mundos sensíveis e imaginários diversos sobre a vida e a cidade (MUSA, 2015, p. 277): Não nos dizem de um lugar comum, mas de muitos lugares. E pode desconstruir os lugares e as visibilidades socialmente estabelecidas, inclusive essas de fotógrafa, fotografado e espectador (…) movimentam afetos, sensibilizam os olhares e as câmeras, produzem imagens que vão afetar outros imaginários. (...) E pensar como um mundo pode ressoar no outro sendo que muitas vezes pode não haver equivalência comum entre eles..

A imagem, enquanto potencializadora de imaginários, vai além da fotografia que representa e cria um movimento contínuo de histórias e imaginários acerca do tempo. A Não-foto” (“nãofoto” ou “não foto”), explicada por Henrique Cacique (LabSG, 2016), define o processo fotografia - memória como um modo alternativo para registrar imagens, um registro por meio da palavra escrita de um estímulo visual, real ou imaginário. Pode ser um pensamento, uma história ou interpretação de fatos manifestos em narrativas poéticas. A partir disso, o movimento criado pelas fotografias colecionadas durante a pesquisa, seja pelos álbuns de família ou por registros variados pessoais, puderam criar narrativas infinitas sobre tempos e lugares entrelaçados. Tais imagens passaram a ter uma potência maior do que individualmente, onde criam e re-criam paisagens, situações, estímulos e imaginários. Assim, até mesmo me perguntei se este poderia ser esse então um meio (ou o inverso) de criar não-fotos? Mais do que isso, uma estratégia pedagógica para provocar a imaginação na


criação visual de novos mundos, inclusive aqueles ainda por habitar. Na tese “Olhares Sobre a Arquitetura, Arquiteturas do Olhar” de Junia Mortimer, a autora fala sobre uma força de coesão e da sua potencialidade de movimentar estruturas teóricas que se conhecem sobre fotografia e arquitetura. “Essa agitação promove o aparecimento de outros modos de se relacionar com o real, que não são necessariamente novas abordagens fotográficas ou arquitetônicas, mas que compreendem práticas de construção” (2015, p.243). E nesse ponto há semelhanças com o poder transformador do movimento da imagem fotográfica ou audiovisual, assim como a memória de lugares, que está diretamente ligada ao modo como nos relacionamos com o espaço arquitetônico e com as pessoas que ocupam os mesmos.

03. Os filmes NO espaço socialmente vivido Outro: ​Na construção desta narrativa fílmica, quatro filmes apareceram como elementos de comparação devido a relação específica que cada um estabelece entre o espaço vivido, o entrevistado e o documentarista: ​Edifício Master,​ de Eduardo Coutinho, ​Um Lugar ao Sol de Gabriel Mascaro, ​Koolhaas Houselife​ e ​The Infinite Happiness,​ de Louise Lemoine e Ila Bêka. O primeiro, já bem conhecido e reconhecido pela sua obra documental que vem desde ​Cabra marcado pra Morrer e​ cujo ápice se encontrou em ​Edifício Master ​é autor incontornável, para esta nossa discussão, devido a sua metodologia de trabalho e de entrevista. Como deixa claro em entrevista contida no artigo ​O documentário como encontro: entrevista com o cineasta Eduardo Coutinho seu objetivo é sempre o encontro de perspectivas, donde o cineasta faz o possível utópico de retroceder ao lugar de onde seja possível ouvir sem calar, sendo apenas aquele que direciona a narração. Na escavação pelo acontecimento verbal - boca e corpo -, interessa o modo quasi-etnográfico do cineasta: sempre deixa claras suas intenções métodos de trabalho, especialmente ao público, mostrando um distanciamento irreparável entre aquele que fala e aquele que ouve. Em seus close-ups radicais de rostidades de seus personagens, raramente o espaço interessa senão como conducto que conecta uma célula a outra. Um: O cinema de Coutinho, em ​Edifício Master,​ tem um jeito específico na forma em que a entrevista é conduzida, além da edição posterior, onde há um foco direto na fala dos


entrevistados, sem julgamentos, como o diretor mesmo afirma em entrevistas: “Eu não estou lá para mudar as pessoas, eu estou lá para ver o estado do mundo através das pessoas” (em entrevista para ​A pública,​ 2014). E essa é uma das características que mais foram importantes no processo de entender o lugar do outro e as relações que as pessoas estabelecem entre si enquanto vizinhos. As histórias contadas pelos moradores vez ou outra tinham um caráter imaginário, associado às fotografias que conduziam as conversas, mas cada uma delas era revelada da maneira como tinha que ser pra determinado contexto, assim como o olhar que aquela pessoa tinha sobre sua vida ou sobre um modo oposto de morar. Coutinho deixou as histórias dos moradores do Edifício Master bastante abertas nesse sentido, onde cada um tinha sua própria história ou verdade, sem que houvesse uma interferência sobre aquele modo de ver o mundo (​A pública,​ 2014). Eu não estou interessado no conteúdo social da vida da pessoa, eu estou interessado no que a pessoa fala a partir de sua experiência sabendo que, como é memória, toda memória é mentirosa, portanto tem verdade e mentira juntas, isso é inevitável. Não há solução. Ninguém consegue desobstruir a memória, então eu aceito aquilo que é exagero.

Outro​: Entretanto, quando você diz da experiência da entrevista como experiência do narrador exagerado ou que excede a uma história para torná-la presente no agora, é o momento em que o narrador se revela como personagem, inclusive trazendo para o documentário uma ficcionalização de si. Entre a pesquisa feita pelo grupo de Eduardo Coutinho que pesquisou no edifício e a entrevista com Eduardo Coutinho, aquela que iria pro filme, era perceptível como os moradores se arrumavam mais, se preparavam melhor e tinham falas decoradas porque aquele momento era o momento em que a câmera iria captá-lo. No entanto, nesse excesso de preparação, de fabulação de si, mostravam momentos em que esse excesso excedia-se e algo ganhava visibilidade na câmera: morador chorando pela mãe morta, ou que cantava para Frank Sinatra ou que ria do que considerava obsceno. E esse excesso é que é ponto nevrálgico: momento de verdade. Quando comparamos com Gabriel Mascaró em seu primeiro filme, ​Um Lugar ao Sol​, este exemplar fílmico interessa não como contraponto a impossibilidade da vizinhança por moradores que vivem em altos castelos nas zonas abastadas das cidades, mas porque o documentarista como entrevistador não participante - diferente de Coutinho porque não aparece no enquadramento da câmera - permite e direciona seus personagens à fala, incitando-os a trazer e se mostrar tal como são, ou como querem ser vistos. Faz com que eles em seu


personagem inventado extrapolam-no e deixem expostos entranhas de uma desigualdade social cicatriz da fabulação - Brasil. Entremeado por imagens produzidas pelas e nas coberturas onde entrevista seus personagens, Gabriel amplia a dimensão espacial porque é nesse intervalo espacial não - comercial que a distância entre o chão e a casta aparece. Um: ​Um Lugar ao Sol já consegue ir direto ao ponto na crítica que o Gabriel Mascaro buscou, alternando com uma fotografia que dá um certo “respiro” para as falas dos moradores das coberturas. O tom de “arrogância” muito comentado sobre o documentário ocorre na medida em que o diretor constrói a narrativa com um objetivo muito específico de revelar uma determinada visão do mundo e de uma classe social, que ele mesmo já previa. Diferente de Edifício Master,​ que histórias diversas são reveladas, a partir do fio condutor que é o próprio edifício, o filme de Mascaro mostra diferentes locais que se conectam por classes sociais comuns e visões de mundo semelhantes, ainda que sejam “personagens” completamente distintos. Outro: Saindo dessa pauta socialmente implicada, aparecem dois filmes distantes culturalmente dos exemplares fílmicos de Eduardo Coutinho e Gabriel Mascaro mas que guardam similaridades ou abordagens próximas no que diz respeito ao tratamento dos espaços pela imagem cinematográfica. Em ​Koolhaas Houselife e ​The Infinite Happiness,​ ambos de Louise Lemoine e Ila Bêka, a dimensão espacial não é intervalo e nem prisão enquadrada. O espaço aparece não apenas como força narrativa, mas como centralidade e enquadramento para a vida de moradores, seja ele uma empregada doméstica como o caso do primeiro filme, sejam eles moradores, no segundo. Os espaços desvelados não o são por imagens estáticas, mas mostrando rotinas de limpeza, de entregas de cortinas, de movimentos repetitivos que constróem uma espacialidade única e ao mesmo tempo, indiferente. Um: ​Koolhaas Houselife ​e ​The Infinite Happiness se diferem muito dos outros dois documentários porque são narrativas bastante visuais do ponto de vista do espaço apresentado, no qual ele mesmo consegue traduzir a mensagem. A relação direta das pessoas com o espaço é o que se vê no filme e ela que, subjetivamente, abre diálogo para reflexões sobre a arquitetura e sobre outras questões sociais mais profundas, não há necessidade de monólogos já que ele fala por si mesmo. Nesse filme é mostrado o cotidiano das pessoas que vivem um determinado espaço, realizando suas tarefas simples e diárias, em contrapartida à visão de grandes arquitetos


mostram suas obras. Em ​Vizinhanças Geminadas, ​o caráter visual é dado pela história contada na fala dos entrevistados e algumas fotografias dos seus álbuns de família que fizeram parte da pesquisa. Porém, há uma diferença entre a exposição de um espaço real, concreto (que dá margem a interpretações do que se vê e é muito rico visualmente), e entre alguém contando uma história sobre um determinado espaço socialmente vivido, que é uma abstração de certa forma, e representa um olhar muito pessoal, que é recebido de diferentes formas, dependendo da experiência prévia do espectador e de imaginários possíveis. Outro: ​Nesta aproximação mais visual e mais implicada com o espaço socialmente vivido no cotidiano é que parece que a etnografia de si aparece não como a câmera voltada para o documentarista mas como teatralidade e movimento pelos espaço. A câmera que se desenvolve pelos edifícios - seja a casa ou o grande condomínio - colocam o espectador como voyeur da arquitetura. Ele desenvolve uma percepção arquitetural dos edifícios perscrutando o espaço pelo movimento do corpo do cinegrafista. A câmera está colada ao corpo seja da empregada doméstica em ​Koolhaas Houselife ​ou nos corredores em ​The Infinite Happiness. ​Interessante como ​Vizinhanças Geminadas ​se distancia de tal performatividade da câmera ao mesmo tempo que a elabora de outra forma. No intervalo das entrevistas, grandes planos se abrem a partir de brechas noturnas ou durante tardes em que nada acontece: o espaço vivido é chato.

04. O filme e a narrativa etnográfica autobiográfica

Um​: A ideia de fazer o filme como uma narrativa etnográfica surgiu no meio do processo, um meio de dar voz ativa as histórias que eu comecei a colecionar juntamente a uma série de fotografias. Como a pesquisa partiu de lugares que vivenciei enquanto moradora, dei o nome de etnografia autobiográfica porque estou falando de lugares que fiz e faço parte e me identifico com as histórias. O objetivo final nunca esteve muito claro, o que importava era o processo e, depois, como seria levar o filme para aquelas pessoas. Nas primeiras conversas com os moradores eu apenas gravava áudios enquanto olhávamos os álbuns, eram encontros tranquilos, com café, bolo e troca de relatos. A partir do momento em que a ideia de câmera apareceu houve certa resistência, mas acabou acontecendo de forma simples. Os moradores


escolhidos foram poucos pela intensidade de histórias que cada um contava, cerca de 40 minutos de conversa ou mais, mas busquei de certa forma olhares diferentes sobre o mesmo ponto, alguns que moravam há muito tempo, outros que se mudaram, alguns que mudaram completamente a maneira de morar e outros que moram a pouco tempo e têm diferentes percepções.

Figura 05: Visitas. Fonte: Autora, 2016. Figura 06: Álbuns de família. Fonte: Autora, 2016.

Outro: O jeito mais informal que as entrevistas foram conduzidas, como uma conversa, onde a pessoa contava tudo que vinha à mente dela (algumas tendem a falar mais que outras e é necessário que se conduza com algumas perguntas), parece que facilitaram no início. Apesar de ter sempre essas perguntas à mão e o objetivo de investigar as relações de vizinhança daquele morador, nas vilas e casas geminadas e outros lugares que ele já havia morado, não se sabia o que seria extraído desses relatos. Você comentou que alguns já tinham morado em prédios, outros moraram a vida toda em casas ou vilas, outros se mudaram para apartamentos pequenos, então havia sempre a comparação entre os espaços e os vizinhos, ainda que não se conduzisse a esse ponto num primeiro momento. Talvez as fotografias ajudaram a conduzir muitas conversas, principalmente no início, reativando as memórias, comparações sobre a paisagem modificada, relações com moradores que já não viam há muito tempo. Entretanto, acho interessante quando anteriormente se coloca que essa autobiografia que aparece pela etnografia é algo com a qual "você se identifica". A etnografia não é nem dar total proeminência ao pesquisador e nem ao objeto/sujeito de sua pesquisa, logo não é que você se


identifica com o que é próximo, mas é justamente pelo que é estranho e familiar ao mesmo tempo, aquele lugar que é entre o pesquisador e o outro. Claro que o interesse é sempre pelo outro enquanto alteridade diversa, mas este encontro de horizontes é de ambos. O acesso ao inconsciente pelas fotografias e filme não significa acessar algo limpo e puro que está lá ao fundo, mas algo que vem como imagem potencialmente perturbadora. Um​: A escolha dos entrevistados para o filme passou pela minha própria experiência como moradora de vilas e casas geminadas, que ocorreram em dois momentos e no mesmo bairro onde a pesquisa acontece, então quase todos eram conhecidos ou amigos de conhecidos. A terceira experiência, que entrou complementar ao trabalho, ocorreu em Dublin, Irlanda, onde morei durante um ano num bairro apenas com casas geminadas. Apesar de contextos e culturas completamente diferentes identifiquei em ​Beech Hill várias histórias comuns à pesquisa e à minha própria experiência anterior, como relações muito próximas com vizinhos, cooperação, ajuda mútua, privacidade, etc. A contribuição dessa experiência se deu também pela coleção de fotografias que eu mesma tirei do bairro e de fotografias antigas de bairros semelhantes que estudei numa pesquisa sobre a origem das “vilas operárias” e casas geminadas na Irlanda. Além disso, como uma comparação interessante para o documentário, pude utilizar vídeos de amigos que falavam sobre a experiência de morar naquele bairro e enviavam para parentes no Brasil.

Figuras 07 e 08: Entrevistas com moradores. Fonte: Autora, 2016.


Figura 09: Entrevista com ex-moradores. Fonte: Autora, 2016. Outro: ​Pois bem, esse é o ponto! Veja como a vizinhança idealizada onde você morou, a vizinhança pesquisada e a vizinhança estrangeira, todas, se encontram em algum lugar. E veja como a experiência fílmica ensina justamente como esse deslocamento de referências produz uma identificação que não é mais do mesmo, como repetição e/ou linearidade, mas invenção. A pesquisa “Vizinhanças Geminadas” é um conjunto de desdobramentos que não são iguais mesmo que a partir da experiência de uma “etnografia autobiográfica”, sendo o filme-documentário um desses ramos. Para chegar até ele houveram diversas etapas e reinvenções de memória, até o momento em que o filme é devolvido à comunidade. O modo como a narrativa é organizada, não de maneira linear em relação ao tempo ou aos moradores, mas sim de maneira temática, expõe os lugares e pessoas a pontos comuns identificados nas entrevistas ainda que as vivências de cada um sejam díspares. Um​: Ainda que exista uma organização do material bruto, as histórias aparecem de maneira randômica e fluidas, dando margem a imaginários sobre onde cada uma delas ocorreu e em tempos diversos. Algumas fotografias também aparecem durante a narrativa, que se apresenta mais como um monólogo (entre diversas vozes), que reforça o tom da nostalgia potente que colocamos anteriormente no texto e que criou-se nas próprias entrevistas.


Figura 10: Entrada de ​Beech Hill​ em Dublin, Irlanda (à esquerda). Fonte: Autora, 2014. Figura 11: Casas geminadas na década de 70, em Dublin, Irlanda (à direita). Fonte: DIHNR, 2012.

Figura 12: Vizinhança bairro Jaraguá. Fonte: JARAGUA em Foco, 2014.


05. Devolvendo o filme

Um​: Devolver o filme para a comunidade foi uma ideia desde o início do trabalho, quando se percebeu que a experiência não estava em apenas documentar as relações de vizinhanças e suas arquiteturas, mas sim entender de processos de produção de memória que a própria etnografia poderia gerar. As primeiras conversas, seguidas das fotografias nos álbuns das famílias, das entrevistas e da produção do filme direcionaram para um encontro no final de 2016, onde moradores e ex-moradores de uma das vilas, além de curiosos, se reuniram para assistir ao filme. O próprio evento já era uma forma de nostalgia, já que de certo modo este relembrou alguns encontros que ocorriam naquele mesmo local há alguns anos. Mas uma nostalgia que pode reanimar, não tornando-se melancolia. Outro: ​A palavra nostalgia tem a sua origem no grego ​“nostos”,​ que significa ‘volta para casa’, acrescido ao vocábulo ​“algos”,​ que por sua vez significa “dor”. Na Grécia Antiga, a palavra designava a dor que atingia aqueles que realizavam longas viagens. Essa “experiência” pode acontecer de variadas formas, através do contato com uma fotografia antiga, onde lugares que se modificaram ou de pessoas que não estão próximas, e permite uma viagem, assim como na origem grega; uma volta em lugares que queremos ir e voltar, como um lar aconchegante. A imagem tem, então, essa potência de nos levar a lugares e tempos que não existem mais, como também pode ter estranhamento (um certo incômodo por um sentimento oposto ao da nostalgia, de não-reconhecimento, assim como algo novo). Este não é um lugar que queremos estar, mas nos obriga a ver, pensar e reagir. A reação vai para dois lados: um onde há o descarte ou a recusa do que está colocado, o outro parte para uma reflexão sobre o que não é confortável naquele momento, o que pode se tornar algo mobilizador ou potencializador. Um: ​O ponto que chamei de troca, na linha do tempo (Figura 01), foi onde compartilhei um jornalzinho com moradores de um dos lugares da pesquisa e onde seria exibido o filme, a partir de uma pequena história real-fictícia, algumas dicas para novas vizinhanças e um convite para assistirmos juntos ao documentário num encontro no pátio da vila. A experiência de assistir ao filme no local foi interessante por diversos aspectos: pela presença de todas as pessoas que participaram das entrevistas (e suas reações ao “se verem”), outras que se sentiram identificadas


com tema por algum motivo, seja por fazerem parte daquele contexto em certa época, ou por sentirem curiosidade pelo tema, já que vivenciaram realidades diferentes. Das 33 famílias as quais fui pessoalmente entregar o jornal e o convite, apenas cinco casas compareceram, dentre elas estavam duas famílias mais antigas diretamente envolvidas com o trabalho. A ausência de tantas pessoas talvez reflita o cenário que existe no lugar atualmente, onde não há vontade de aproximação, relações mais íntimas com quem mora ao lado. Algo curioso foi o fato de duas ou três pessoas que chegaram apenas na janela de suas casas, ouviram, observaram (e até bateram palmas) mas não quiserem ir até o local do filme em si, onde se encontravam cerca de 35 pessoas. Alguns moradores falaram sobre as diferenças que existem hoje, das pessoas que moram há pouco tempo na vila e como muitos deles se sentem distantes desse passado sobre o qual muitos falam. Como alguns disseram, “é um ato falho dizer que ‘era muito bom..’, ‘éramos muito bons vizinhos’”. Outro: ​Talvez a história do jornal ou mesmo as práticas que foram ali colocadas, como o encontro para ver o filme, causaram a reação de distanciamento para muitos moradores dali, que acabaram não indo até lá ou optaram por observar de longe. Esses resultados não só evidenciam características do lugar mas também fazem parte deste processo de inspiração etnográfica. Alguns efeitos acontecem a longo prazo e são muito pequenos para serem observados sem uma aproximação frequente e de dentro. A imagem cumpriu seu papel de cruzar histórias e lugares, de levar pessoas com diferentes trajetórias a um mesmo encontro, de criar nostalgia e estranhamento, até onde o espaço e as relações permitiram.


Figura 13: Frente e verso do jornalzinho entregue aos moradores da vila onde passamos o filme. Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Figura 14: Convite para assistir o documentรกrio Vizinhanรงas Geminadas que entregamos aos moradores. Fonte: Elaborado pela autora, 2016.


Figura 15: Exposição de fotos dos álbuns de família na vila. Fonte: Autora, 2016. Figuras 16 e 17: Moradores assistindo ao filme. Fonte: Autora, 2016.

06. Seis meses depois Um: ​Após uma perspectiva mais distante da pesquisa, de tempo e de contato com os registros, percebi algumas questões que não estavam claras enquanto pesquisador e morador. Durante o processo da pesquisa em 2016, as próprias pessoas entrevistadas já reconheciam as questões abordadas como algo que não é mais recorrente, até mesmo pelo tom de nostalgia que passavam, tanto os moradores que continuam morando nas vilas quanto os que já se mudaram. Pode-se dizer que houve durante esse tempo uma espécie de tentativa de “reviver” algumas dessas práticas que se consideram extintas, como a festa junina mencionada, mas seis meses


depois, muitos já reconheceram - e me relataram - que não há de fato mais uma relação familiar (no contexto de uma das vilas onde me aproximei mais). Ao devolver o filme, as pessoas tentaram se reconhecer e procurar os conhecidos nas fotografias expostas e se sentiam bem e até mesmo “realizadas pelo seu passado bom”, mas enxergavam pouco sobre a perspectiva atual que vivem e que podem modificar. Outro​: Você acredita que “funcionou”? Um​: Ao conversar com alguns moradores depois desses seis meses, ouvi relatos que de a comunidade está mais amigável, que existe algo diferente ali, inclusive estavam organizando a festa junina deste ano. Vizinhança é algo que não se resume em apenas no morar próximo, esse conceito passa por relações próximas, construídas diariamente, a partir de ajuda mútua, cooperação ou até amizades mais fortes. Muitas vezes durante o trabalho achei que esse conceito de vizinhança poderia não existir mais em alguns locais, mas percebi que ele ainda está presente, em variadas formas, como aulas de violão entre vizinhos, confiança entre um e outro de deixar a chave de sua casa, organização de encontros, etc. Outro​: Então isso é "funcionar"? Um​: Percebo a importância de reconhecer, de fato, uma vizinhança ausente - de aproximações, laços, relações afetivas, cooperação, etc - e talvez seja nesse ponto, de reconhecer a ausência, que essa antropologia visual, do filme e das fotografias, possa ser um elemento transformador na comunidade. A imagem, enquanto potência nostálgica, que causa a “viagem” de tempos e espaços, ao mesmo tempo que gera estranhamentos, talvez precise de criar diferentes perspectivas, além do que ela mesma já representa. Nesse caso, a identificação da ausência de si próprio poderia ser um elemento provocativo ainda mais forte do que a imagem tal como ela é originalmente. É como um “reconhecer-se na ausência”, onde a comunidade projeta suas possibilidades, enquanto lugar sociável, e passa a ver esse espaço imaginário como algo possível no seu cotidiano. Assim, funcionar não é a palavra correta. Para avaliar tal experiência que se deu entre imagens e imaginários, a questão não é se deu certo ou errado, mas quais imagens foram movidas e como elas reverberam no contexto em que elas foram apresentadas. A imagem como horizonte serve não para afirmar vida, mas potencialmente sempre apontar e pontuar processos


de construção de uma memória - seja social ou pessoal - e esse é o caso. Através de uma experiência cinematográfica fazer com que contextos diversos como imagens de casas geminadas irlandesas, fotografias pessoais e outras genéricas possam construir junto ao público que assiste um “socialismo das distâncias”, subvertendo aqui Roland Barthes (2003) que pensou tal termo num contexto mais geográfico e não tanto temporal, a fim de fazer pensar sobre si e o mundo já é suficiente.

Figuras 18, 19 e 20: Fotos de álbuns de família, modificados. Fonte: Autora, 2016.


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Lab

SG

apresenta:

NÃO

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