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© do texto, 2006 by Bartolomeu Campos de Queirós Direitos de edição adquiridos por MANATI PRODUÇÕES EDITORIAIS LTDA Telefax: (21) 2512-4810, 2274-2942 manati@uninet.com.br www.manati.com.br É terminantemente proibida a reprodução do texto e/ou das ilustrações desta obra, em parte ou no todo, para qualquer fim, sem autorização expressa e por escrito da editora. Preparação de originais: Hebe Coimbra Revisão tipográfica: Tereza da Rocha Projeto gráfico: Silvia Negreiros Diagramação: Andreia Dias Manes Imagem da capa: Gravura de Dr. Robert John Thorton [Temple of Flora, Cupid inspiring the plants with love] Londres, 1805 Imagem do miolo: Fragmento de ilustração (gravura a buril) de anúncio em L’Illustration, Journal Universel, n. 3146, 13 de junho de 1903
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Q41a Queirós, Bartolomeu Campos de, 1944Antes do depois / Bartolomeu Campos de Queirós. – Rio de Janeiro : Manati, 2006 48p. ISBN 978-85-86218-36-1 1. Queirós, Bartolomeu Campos de, 1944– Infância e adolescência – Literatura infanto-juvenil. I. Título. 06-2437
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Pa ra Jo s é A b í l i o
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N 達 o m e l e m b r o m a s n 達 o q u e r o e s q u e c e r.
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asci com 57 anos. Hoje, tenho 118. Foi em agosto, diziam, mês de vento e desgosto. Dia do Soldado. Eu desfilava no Sete de Setembro vestido de farda, carregando a bandeira. A Pátria era um precioso patrimônio, aprendi com a diretora da escola. Minha mãe aplaudia e me olhava mansa como a lua. A lua tem um jeito branco de mãe e de tempo em tempo também fica grávida. O Tenente Josué morava em um sobrado, na esquina da rua. Pesava uns 200 quilos só de banha. Ele olhava o desfile dos meninos da escola de cabeça erguida e peito de pombo coberto de medalhas. Ficava ao lado do prefeito, do vigário, do juiz, da professora, do delegado. Via os pequenos soldados em fila e nos olhava com um desprezo que só os olhos sabem dizer. Parecia não confiar que fôssemos também os filhos da Pátria e seu futuro. Josué demorava quilômetros para subir as escadas de madeira da casa, parando em cada degrau para tomar fôlego.Tudo na vida precisa de fôlego. Nascer é ganhar fôlego e morrer é perder o fôlego... Meu pai trocava a marcha do carro para dar fôlego ao caminhão. Quando eu choro, preciso de uns pedacinhos de silêncio para dar fôlego às dores. 9
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Os pés pequenininhos do Tenente se esforçavam para equilibrar um corpo assim tão redondo. Parecia uma lua esperando um filho gigante. Não mais podia marchar no Dia da Pátria nem correr se estourasse uma batalha. Naquele tempo o mundo estava em guerra, mas a notícia só nos chegava pelo rádio. Ele vivia em cima da cristaleira coberto com um pano bordado. Era uma nobre presença. Guardava em sua garganta muitos assuntos. Bastava girar o botão para ele mudar de conversa. Taninha espiava o rádio pela parte de trás. Tentava descobrir quem estava lá dentro. O rádio foi o seu primeiro mistério. Buscava ver os homenzinhos que sabiam tanto de tudo e que falavam mais alto que a “Voz do Brasil”. Nunca fiz continência para o Tenente. Ele devia ser mais novo do que eu. Em muitos momentos peso 500 toneladas a mais que o Josué. Quando estou pesado demais não subo escadas para não perder o fôlego. Nem quero morar em sobrado. As escadas não suportariam minha carga. Tem dia em que não passo em portas e meu tamanho não cabe na cama. Parece que o dentro vai derramando e eu vou me afogando no que sobra de mim. Mas tudo depende da minha memória. Há dias em que estou mais para esquecer e outros para mais lembrar. Tem instantes em que nem existo, sou algodão-doce. Em outros, eu existo demais, sou chumbo! Não conheço borracha para apagar memória. É uma boa coisa para a gente inventar e ficar rico. Memória não tem filtro e armazena tudo. Memória a gente não rasga, não joga no lixo, não lava com sabão. Memória é sentinela, e nos vigia sempre. A memória não vê mas não tira o olho. Vai somando vida afora. Tudo que a gente olha, ouve, toca, come e cheira, a memória não esquece. E, de repente, transborda mais rápido que en-
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chente. Coisas que a gente só imaginou, a memória guarda. E fatos que a gente nem sabia que sabia rompem sem mais nem menos no pensamento. Memória é biblioteca sem livros. Memória nos engorda sem ninguém perceber. E chegar ao mundo com 57 anos é ter, desde cedo, um grande peso de memória. Não se pesa memória em balança. Memória é traiçoeira e nos ataca em todos os momentos. Memória se equilibra entre tristezas, alegrias e arrependimentos. Se a gente acha que esqueceu, num instante a memória acorda. E uma memória puxa outra. O Chico, meu primo, nasceu no dia de São Francisco. Todos diziam que ele tinha perdido a memória. Vagava de rua em rua, de porta em porta, de esquina em esquina, juntando tampinhas de garrafa. Eu suspeitava que ele andava sem paradeiro, procurando a memória perdida. Chico nunca falava. Assim também, mudo como uma flor, eu buscava adivinhar o que o menino queria tampar com tanta tampa. Nunca descobri. Guardei a sua falta de memória em minha memória. Dona Narcisa, parteira antiga, contribuiu para minha vinda ao mundo. Baixa, com as pernas curvas, vencia as distâncias como se os passos estivessem entre parênteses. Carregava um guarda-chuva. Bastava botar o pé fora de casa para abri-lo e proteger-se da chuva ou do sol. Seu guardachuva servia a dois senhores. Ele era um dois-em-um ou irmão do arroz.
Marcaram a data do meu batizado. Esperaram mi-
nha mãe levantar-se da cama. Não sei quantos dias ela ficou de resguardo. Mãe deve sentir culpa ao expulsar o filho do seu paraíso e gasta dias para tomar fôlego. A minha futura madrinha me dava banhos em água morna na bacia de alumí-
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