Glauber Rocha

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Alexei Bueno

GLAUBER ROCHA MAIS FORTES SÃO OS PODERES DO POVO! DIREÇÃO

Waly Salomão Maria Vitória de Seixas Caldas DESENHOS

Glauber Rocha


© do texto, 2003 by Alexei Bueno © dos desenhos, 2003 by Tempo Glauber © das fotos, 2003 by Tempo Glauber © direção da coleção, 2003 by Waly Salomão & Maria Vitória de Seixas Caldas Direitos de edição adquiridos por MANATI PRODUÇÕES EDITORIAIS LTDA. Telefax: (21) 2512-4810, 2274-2942 e-mail: manati@uninet.com.br É terminantemente proibida a reprodução do texto e/ou das ilustrações desta obra, em parte ou no todo, para qualquer fim, sem autorização expressa e por escrito da editora Pesquisa: Alexei Bueno Revisão tipográfica: Tereza da Rocha Projeto gráfico: Silvia Negreiros

Patrocínio

Chesf Agradecimentos Rodolfo Tourinho e Hélio Vitor Ramos Magnesita S. A. e Renato Travassos

Todos os esforços foram envidados no sentido de obter as autorizações para a utilização das fotografias e imagens desta obra. Se porventura ocorrer alguma omissão quanto a créditos, os direitos encontram-se reservados aos seus titulares e, com a devida comprovação, à disposicão nessa Editora.


A Sergei Mikhailovitch Eisenstein, a quem devo tantos dos melhores momentos da minha vida.


CIP–BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B94g Bueno, Alexei, 1963Glauber Rocha: mais fortes são os poderes do povo! / Alexei Bueno ; [ilustrações de Glauber Rocha]. – Rio de Janeiro : Manati, 2003 120p. : il. – (Bahia com h ; 2) Contém filmografia Inclui bibliografia ISBN 85-86218-25-1 1. Rocha, Glauber, 1939-1981. 2. Diretores e produtores de cinema – Brasil – Biografia. 3. Cinema – Brasil – História e crítica. I. Título. II. Série. 03-0749.

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CDD 927.91430233 CDU 929 ROCHA, GLAUBER


GLAUBER ROCHA MAIS FORTES SÃO OS PODERES DO POVO!

Sumário

APRESENTAÇÃO

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O SERTÃO E O MUNDO

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LITERATURA E CINEMA

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GENEALOGIA DE UMA OBRA A GRANDE TRILOGIA POESIA E POLÍTICA

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O SANTO GUERREIRO

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O DESTINO É MAIOR DO QUE A MORTE FILMOGRAFIA

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BIBLIOGRAFIA

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Glauber Rocha aos 8 anos de idade


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GLAUBER ROCHA MAIS FORTES SÃO OS PODERES DO POVO!

APRESENTAÇÃO

N

o dia 15 de janeiro de 1977 — tinha eu então treze anos — dirigi-me ao saudoso Cineclube Macunaíma, no edifício da Associação Brasileira de Imprensa do Rio de Janeiro, para assistir a um filme intitulado Deus e o Diabo na Terra do Sol. Três motivos me atraíram para tal: o título e a fama do filme, a força magnética de uma foto do duelo final que eu vira na Enciclopédia Delta Larousse, e a sua relação com a temática do cangaço, assunto que na época especialmente me entusiasmava. Quando, às onze horas da noite, as luzes se acenderam e eu me dirigi aos elevadores, estava fascinado e extático, quase fora da realidade, e pelo resto do ano falei sobre isso com uma freqüência provavelmente maçante para os meus interlocutores. O que acontecera era simples: eu tivera um choque estético, dos maiores da minha vida, ao mesmo tempo em que descobrira o grande cinema, a altura épica, titânica, a que podia chegar essa arte praticamente intrínseca ao meu século. Não que não houvesse antes assistido a filmes admiráveis. Muito criança ficara impressionadíssimo com Os dez mandamentos, de Cecil B. de Mille, que, com todo o kitsch e a cafonice que lhe são atribuídos, reencontrei depois como a brilhante obra de um atento discípulo de Griffith que de fato é. Impressionaram-me muito também Luzes da cidade e Tempos modernos, de Chaplin, assim como 2001, uma odisséia no espaço, de Kubrik. Mas nunca, em nenhuma ocasião anterior, a revelação do choque es-

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tético fora ao menos comparável. Posteriormente, já convertido à grande arte, tive alumbramentos semelhantes ao ver pela primeira vez O encouraçado Potiônkim, de Eisenstein, Mãe, de Pudovkin, e a segunda parte de Ivã, o Terrível, também de Eisenstein, que aliás vi antes de ter visto a primeira. A mesma coisa, depois, com Limite, de Mário Peixoto, e filmes diversos de Murnau, Gance, Dreyer, Griffith,Welles, entre outros, ou, para desviar para as artes plásticas, quando estive, muitos anos mais tarde, perante o frontão oeste do Templo de Zeus, em Olímpia, ou no Museu Van Gogh, em Amsterdam. O que nunca poderei esquecer, no entanto, foi o papel transformador que o encontro com Deus e o Diabo na Terra do Sol teve em minha vida e em minha sensibilidade, guiando-me para a descoberta dessa arte pela qual nutro uma paixão talvez única, o cinema. Todo esse intróito, inteiramente pessoal, possui um único sentido, o de explicar que o presente livro, este breve perfil da obra e da individualidade de Glauber Rocha, é um exercício de amor, amor pelo artista brasileiro vivo que mais admirei e acompanhei durante a juventude, admiração e atenção que só aumentaram com o tempo. Vasta é a bibliografia sobre Glauber, mas mais vasta é a sua inumerável personalidade sobre a qual se colaram os mais variados e díspares epítetos provavelmente já atribuídos a um só homem no Brasil. Biograficamente, no sentido factual, é de insubstituível importância o livro Glauber, esse vulcão, do seu e meu amigo João Carlos Teixeira Gomes. Em relação à sua epistolografia ativa e passiva, as Cartas ao mundo, organizadas por Ivana Bentes, são fundamentais. Na análise especificamente estética reúnem-se os mais variados nomes do Brasil e do exterior, de Ismail Xavier e José Carlos Avellar até o excelente René Gardies, Barthélémy Amengual e Sylvie Pierre, entre tantos outros. Na impossibilidade de abarcar com a mesma intensidade o cineasta, o político, o crítico, o teórico, o agitador cultural, o escritor, o jornalista, o profeta, o homem concreto, será em torno do cineasta que se movimentará este pequeno livro,


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pois é no cineasta que se encontram, indubitavelmente, a causa, a conseqüência e a justificativa de todos os outros. Curiosamente, de entre os diretores do Cinema Novo, foi Glauber o único que não conheci pessoalmente, com a inútil ressalva de tê-lo longamente visto em seu velório, após a sua inimaginável desaparição, a mais traumática morte de um artista que creio haver ocorrido entre nós. Do também genial Mário Peixoto, que tinha idade para ser seu pai ou meu avô, tive a honra de ser amigo por uma década, fruindo da sua admirável inteligência, memória e cortesia. Mas são dessas vicissitudes que se compõem os destinos, e por isso é que me aproveito das palavras que se seguem considerando-as como um humilde tributo ao artista que, como muito poucos no Brasil, tantas horas me tem propiciado de entusiasmo, plenitude estética e elevação. Alexei Bueno

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O SERTテグ E O MUNDO

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lauber de Andrade Rocha nasceu na madrugada de 14 de março de 1939, filho de Adamastor Bráulio Silva Rocha e Lúcia Mendes de Andrade Rocha, na cidade de Vitória da Conquista, situada no trecho do planalto central brasileiro localizado ao sul do estado da Bahia. Seu nome, dos menos comuns no Brasil antes da fama do próprio, proveio do sobrenome do cientista alemão do século XVII Johann Rudolf Glauber, descobridor do “sal de Glauber”, o vulgar sulfato de sódio. Tal nome, derivado do verbo alemão glauben, “crer”, poderia ser traduzido como “o que crê”, ou o “crente”. Sua família materna, coisa não tão comum no sertão baiano da época, era presbiteriana, ou seja, protestante, participando de um estereótipo que sempre encontraremos nos folhetos de cordel em discussões heréticas com o Padre Cícero ou com Frei Damião, sendo também pejorativamente rotulado como “bíblia” ou “nova-seita”. Apesar de a família paterna ser católica, Glauber foi batizado na Igreja presbiteriana, que freqüentou normalmente até a adolescência.Tal formação protestante, fortemente ligada à letra e aos símbolos das Escrituras, teve inegável influência na gênese da sua sensibilidade. Se, como sempre fizeram os antigos, fôssemos tirar augúrios dos sinais ou características que cercaram o seu nascimento, poderíamos a posteriori, o que é muito fácil, encontrar algumas marcas visíveis do seu destino futuro. De início, o dia do nascimento, 14 de março, dia do nascimento do gênio baiano por antonomásia, Castro Alves, que nesse dia do ano da graça de 1847 veio ao mundo na antiga Curralinho. Em relação a ele, e em parte por esta coincidência, Glauber sempre cultivou um certo bovarismo, aliás muito justo, e pelo mesmo motivo predisse certa vez que morreria aos 42 anos, os números invertidos dos 24 que viveu Castro Alves, previsão que lamentavelmente se confirmou, aumentando a fama de profeta, de “vate”, diríamos, que ele adquiriu por essa e não poucas outras semelhantes.


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Em seguida, o nome do pai, Adamastor Rocha, nome de espantosas ressonâncias épicas. É impossível para qualquer indivíduo lusófono medianamente culto ouvir esse prenome sem imediatamente relembrar o episódio do canto quinto de Os Lusíadas, quando Vasco da Gama descreve o seu encontro com a figura titânica do gigante transformado em pedra, na verdade o Cabo Tormentório, e a partir de então Cabo da Boa Esperança: Não acabava, quando uma figura Se nos mostra no ar, robusta e válida, De disforme e grandíssima estatura, (...)

com a confirmação quase excessiva do sobrenome, rocha, matéria na qual se metamorfoseou o infeliz titã, como narra o momento talvez mais grandioso da epopéia camoniana. Finalmente o seu próprio nome de batismo, Glauber, “o que crê”, pois poucos terão na história do Brasil acreditado tanto e com tal força em tantas coisas, na arte, no cinema, na possibilidade redentora dos mesmos, na revolução, na utopia, no povo, e sobretudo em que a culpa ao povo não pertencia. Se a terra de origem foi Vitória da Conquista, onde o seu avô paterno, AntônioVicente Andrade, possuía uma fazenda de plantio e pecuária, e em cuja região o seu pai trabalhava como empreiteiro, o ano foi o de 1939, o sinistro ano do deflagrar da II Guerra Mundial. Mas, se toda a primeira infância do futuro cineasta foi marcada pela presença, sobretudo radiofônica, do maior conflito humano já acontecido, é importante não esquecer o que ocorria em um outro tempo, o tempo feudal, anacrônico, quase lendário, quase medievo, do sertão nordestino, pois desse tempo arcaico, contemporâneo e incrivelmente distante em relação ao tempo do resto do mundo, Glauber extrairá uma das matérias-primas fundamentais de sua obra.

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