JOSÉ SARAMAGO O AMOR POSSÍVEL
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Juan Ar ias
JOSÉ SARAMAGO O AMOR POSSÍVEL
Tradução
Rubia Prates Goldoni
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© Juan Arias, 2003 Direitos de edição adquiridos por Manati Produções Editoriais Ltda. Telefax: (21) 2512-4810, 2274-2942 e-mail: manati@uninet.com.br É terminantemente proibida a reprodução do texto e/ou das ilustrações desta obra, em parte ou no todo, para qualquer fim, sem autorização expressa e por escrito da editora. Revisão: Lilian Jenkino e Tereza da Rocha Projeto gráfico: Silvia Negreiros
CIP–Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S274j Saramago, José, José Saramago : o amor possível / [entrevista a] Juan Arias ; tradução Rubia Prates Goldoni. – Rio de Janeiro : Manati, 2003 Tradução de: José Saramago : el amor posible ISBN 85-86218-22-7 154p. ; 16 × 23cm 1. Saramago, José, 1922- - Entrevistas. 2. Escritores portugueses - Século XX - Biografia. I. Arias, Juan, 1932-. II. Título. 02-1822.
CDD 928.69 CDU 92 (Saramago, J.)
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SUMÁRIO Nota da edição brasileira, 7 Introdução, 11 A conversa em Lanzarote, 17 CAPÍTULO I
“Vivemos para dizer quem somos”, 23 CAPÍTULO II
“Nos meus romances, o amor sempre é possível”, 47 CAPÍTULO III
“Meus textos têm de ser decifrados”, 71 CAPÍTULO IV
“Surpreende-me que se fale tão pouco de Deus”, 95 CAPÍTULO V
Encontro com Pilar del Río, 123 CAPÍTULO VI
“Deixem Lula trabalhar!”, 147
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NOTA DA EDIÇÃO BRASILEIRA MEU LIVRO DE CONVERSAS com José Saramago foi originalmente publicado na Espanha, pela editora Planeta. Foi em 1998, pouco antes de o escritor português receber o Prêmio Nobel de Literatura. Durante aquelas longas conversas em sua casa em Lanzarote, nas ilhas Canárias, chegamos a comentar a possibilidade de que naquele mesmo ano ele fosse agraciado com o Nobel. O livro agora sai no Brasil em sua versão original, sem retoques, pois constitui um documento de sua vida e de seu pensamento. Já terminado, Saramago confessou-me que o considerava sua autobiografia, já que ele não mais pensava em escrever sobre sua vida. Desde sua publicação original até hoje, aconteceram muitas coisas no mundo. Os Estados Unidos já invadiram o Iraque, não existem mais as torres gêmeas de NovaYork; o Afeganistão não está mais sob o domínio dos talibãs, mas sua gente foi outra vez sacrificada inutilmente; a Europa já tem uma moeda única, mas o fantasma do nazismo e do racismo continua a atormentá-la. O que não mudou desde então foi o compromisso de Saramago com a literatura, tendo publicado os romances A caverna e O homem duplicado. Acima de tudo, não mudou seu engajamento na causa da justiça. Durante todo esse período, ele esteve pessoalmente em todas as zonas de conflito do mundo, dando seu 7
testemunho de homem e de escritor livre, sem que nada nem ninguém, nem sequer as críticas dos seus adversários, tenha podido calar sua voz de denúncia. Lidas aquelas conversas à luz de hoje, elas se mostram ainda mais proféticas. Na época houve até quem considerasse excessivamente radicais certas posturas dele contrárias aos efeitos perversos da globalização, sobre a política conformista e direitista da Europa, sobre sua visão do futuro do mundo. Os acontecimentos de uma sociedade com um futuro cada vez mais incerto e violento, sem grandes guias espirituais que possam acertar seu rumo enlouquecido, vêm, infelizmente, confirmar o pessimismo crônico de Saramago. Mas, ao mesmo tempo, a conduta pessoal do escritor, que, apesar do seu pessimismo, continua lutando por um mundo menos cruel e injusto, não medindo esforços, tempo nem saúde aos seus quase oitenta anos, vem provar, melhor que muitas palavras e declarações, que ele traz na alma mais esperança que muitos de nós, que nos conformamos observando um mundo em ruínas acomodados na nossa vida tranqüila. Sua vida continua a demonstrar — coisa que lhe agradecem sobretudo os jovens, cada vez mais desesperançosos e contando com menos sábios para guiar seus passos — que o seu é um pessimismo fecundo, não niilista, que para Saramago, apesar dos pesares, continua a valer o lema que ele mesmo escolheu como título deste livro, “o amor possível”. Se Saramago continua lutando, se os jovens de todo o mundo escutam sua voz rebelde com atenção, é porque, a despeito de suas críticas radicais à nossa sociedade, ele continua convencido de que ainda podemos fazer alguma coisa para que este nosso planeta seja mais digno de abrigar a vida. Quando este livro saiu na Espanha, aconteceu um fato curioso, um ato falho. Os jornais, em suas resenhas, trocaram seu título, El amor posible, por El amor imposible. Saramago achou muita graça nisso e comentou com ironia: “Depois o pessimista sou eu, que acredito que o amor ainda é possível!”. 8
Tenho certeza que o público brasileiro em geral, e o jovem em particular, poderá encontrar nestas conversas com Saramago a voz de um dos poucos sábios do momento, a voz de um escritor e pensador que nunca virou casaca. Poderemos não compartilhar de todas as idéias a que o escritor foi sempre fiel durante o quase século de sua existência, mas temos de reconhecer que ele nunca se deixou corromper nem cedeu ao conformismo e à moda vigente. A ele, que é ateu, mas que tem uma alma profundamente religiosa, como se pode ver neste livro, poderiam se aplicar as célebres palavras do cardeal Newman, quando afirmou: “Prefiro enganar-me sendo fiel à minha consciência que acertar contra ela”. Exatamente o contrário do que hoje se ensina aos jovens, inclusive em muitas Igrejas. Justo aos jovens, que são os mais atentos à voz secreta do coração, a que lhes diz, contra a opinião de muitos dos mais velhos a seu redor, que o amor não pode ser impossível, pois, do contrário, a vida não teria sentido.
Juan Arias Saquarema, abril de 2003
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INTRODUÇÃO JOSÉ SARAMAGO, o escritor de língua portuguesa mais famoso do mundo, que há vários anos vem sendo cogitado para o Nobel de Literatura,1 nasceu em 16 de novembro de 1922, sob o signo de escorpião, em Azinhaga, uma pequena aldeia da província de Ribatejo, de uma família de camponeses sem-terra tão pobres que o futuro gênio das letras se viu obrigado a abandonar o curso secundário para estudar na Escola Industrial Afonso Domingues, em Lisboa, onde se formou serralheiro mecânico em 1939. Nunca freqüentou a universidade. A vida o forjou. Embora no jogo de perguntas e respostas tenha revelado que desde menino seu sonho era escrever, as circunstâncias o levaram a trabalhar primeiro como mecânico em hospitais públicos de Lisboa, para onde seus pais se mudaram em busca de trabalho, e, mais tarde, como funcionário público. Dotado de grande inteligência, apaixonado pela leitura e assíduo freqüentador das bibliotecas públicas por carecer de meios para comprar seus próprios livros, logo sentiu a comichão do engajamento político. Desde muito jovem, esteve ligado ao Partido Comunista, no qual militaria sempre. 1
José Saramago recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1998.
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Poderia ter-se chamado apenas José de Sousa. Saramago não é, no entanto, um pseudônimo, mas a alcunha pela qual se conhecia no povoado o ramo paterno da família do futuro escritor. Por isso o funcionário do registro civil, sem permissão para tanto, acrescentou Saramago ao seu nome e sobrenome. Não podia imaginar que naquele momento estava rebatizando um fenômeno literário cujas obras seriam traduzidas, um dia, para mais de trinta línguas e que aquele “Saramago” teria milhões de leitores que, mal o escritor publica um novo livro, já sonham com a publicação do seguinte. Acontece que uma das características do escritor português é que, ao contrário do que ocorre com outros que costumam escrever sempre sobre a mesma coisa, nenhum de seus oito grandes romances publicados se parece com o outro. Cada nova criação sua é uma surpresa literária. O semanário suíço L’Hebdo chamou-o de o “Voltaire português”. De fato, quando ele escreve, não tem papas na língua e sua crítica ao poder da Igreja é implacável, sobretudo em O Evangelho segundo Jesus Cristo, obra que mais aborrecimentos lhe causou em sua própria terra e que, em um primeiro momento, teve sua indicação ao Prêmio Literário Europeu vetada pelo governo português, sob a alegação de que não representava os portugueses. Mas Saramago é, ao mesmo tempo, o escritor agnóstico contemporâneo que mais fala de Deus, ou o que mais é chamado a falar de Deus em suas entrevistas, seja a língua que for. Alto, fotogênico, com jeito de ator, de uma elegância que já foi comparada à de Cary Grant, olhar penetrante, afável, afetuoso e ao mesmo tempo possuidor de uma personalidade marcante, Saramago é um melancólico na melhor tradição portuguesa. Ele, que sempre teve uma relação muito forte com seu país, como se vê em seu livro Viagem a Portugal, abandonou a agitada Lisboa de hoje para refugiar-se com sua atual mulher, a andaluza Pilar del Río, na singular ilha de Lanzarote, uma das jóias do aprazível arquipélago espanhol das Canárias, embora nunca tenha deixado de recordar sua terra natal nem de se sentir português. 12
Perguntado sobre o que leva alguém a dedicar parte de seu tempo a ler Saramago, numa alusão à grande massa de leitores apaixonados com que conta nos cinco continentes, o escritor responde que isso talvez se deva ao fato de os leitores procurarem em seus romances, mais do que uma história, o autor delas, aquele que sempre deixa sua marca. Segundo ele, o leitor não lê o romance, mas o romancista. E posso garantir, por experiência pessoal, que isso de fato acontece no caso de Saramago, pois em diversas partes do mundo, quando digo que o conheço pessoalmente, seus leitores sempre se mostram ávidos por saber tudo sobre ele. Saramago não é um escritor conformista; não aceita o lugar-comum de que o escritor é impelido por uma força divina que o obriga a escrever porque não saberia fazer outra coisa; de que não poderia viver sem narrar e que preencher laudas ou telas de computador é o máximo da felicidade. Não, Saramago não concebe o trabalho literário como um prazer individual, mas como um trabalho, às vezes duro, quase dramático, como quando escreveu seu Ensaio sobre a cegueira. Não entende que um escritor possa se comprometer apenas com seu texto e não com a sociedade em que vive. Com essa postura e uma imaginação viva e flexível, criou um universo novelístico original, essencial para mergulharmos nas frustrações do nosso tempo, um tempo louco que, segundo o escritor português, não sabe para que vive nem por que morre. Saramago pertence à linhagem dos escritores que cativam não apenas com a palavra escrita, mas também com a falada, pois é um grande conversador, um encantador de serpentes. Costuma brincar com isso em suas conferências, pedindo que o interrompam porque, segundo ele, quando começa a falar, não pára mais. Mas o público não quer que ele pare, porque nunca diz banalidades e suas palavras sempre oferecem matéria de reflexão existencial e literária. Antes de publicar seu primeiro livro, Saramago freqüentou o ambiente literário do Café do Chiado em Lisboa, onde começou a se 13