Mestre Bimba

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Muniz Sodré

Mestre Bimba Corpo de mandinga

DIREÇÃO

Waly Salomão Maria Vitória de Seixas Caldas ILUSTRAÇÕES

Filipe Jardim


© do texto, 2002 by Muniz Sodré © das ilustrações, 2002 by Filipe Jardim © direção da coleção, 2002 by Waly Salomão & Maria Vitória de Seixas Caldas Direitos de edição adquiridos por MANATI PRODUÇÕES EDITORIAIS LTDA. Telefax: (21) 2274-2942, e-mail: manati@uninet.com.br É terminantemente proibida a reprodução do texto e/ou das ilustrações desta obra, em parte ou no todo, para qualquer fim, sem autorização expressa e por escrito da editora Pesquisa: Laura Maria Cabral de Medeiros Revisão de originais: Luzia Ferreira de Souza Revisão tipográfica: Tereza da Rocha Projeto gráfico: Silvia Negreiros

Patrocínio

Agradecimentos: Magnesita S. A. e Renato Travassos

CIP–BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S663m Sodré, Muniz, 1942Mestre Bimba : corpo de mandinga / Muniz Sodré ; organização Waly Salomão, Maria Vitória de Seixas Caldas ; ilustrações Filipe Jardim. – Rio de Janeiro : Manati, 2002 [112] p. : il. (Bahia com H ; 1) Inclui bibliografia ISBN 978-85-86218-13-2 1. Bimba, Mestre – Biografia. 2. Capoeira (Luta) – Brasil – História. I. Salomão, Waly. II. Caldas, Maria Vitória de Seixas. III. Título. IV. Série. 01-1308

CDD 927.9681 CDU 92:796.8


Ă€ Oxum que me sossega


FOTO: ARQUIVO MESTRE CAMISA



FOTO: ARQUIVO MESTRE CAMISA


(DA CAPOEIRA BAIANA)



O texto que se segue é um perfil do Mestre Bimba, a quem eu pude certa vez definir como uma das últimas grandes figuras do que se poderia chamar de ciclo heróico dos negros da Bahia. Um perfil, friso, porque se trata de minha visão particular, como seu exaluno e constante observador-participante da nação negro-brasileira. Para tanto, vali-me da memória, essa mesma a que também já me referi como uma usina movida a sonhos, fantasmas e mitos, acentuando: mythos, segunda metade da linguagem, um dos teatros da produção inconsciente social, é a primeira tentação para quem recorda Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba. A fim de não cair por demais na tentação, recorri ao apoio bibliográfico de gente como Waldeloir Rego, Jair Moura, Mestre Itapoan, Esdras Santos, Ângelo Decânio, Nestor Capoeira, K. K. Bonates, Fred Abreu, Édison Carneiro, Bira Acordeon, Bule-Bule. A estes, vários dos quais se fizeram autores com enorme esforço editorial próprio, minhas homenagens por seu talento como “jogadores”, seja na roda da capoeira, seja na roda da tradição oral e escrita da civilização negra. Como bom baiano, mantive conversas com Dermerval, Luisinho e Nenel, filhos de Manoel dos Reis Machado, cultores da memória do Mestre Bimba. Foram muito bem criados: gente baiana da melhor cepa, sempre pronta ao acolhimento do outro. A Fundação Mestre Bimba, hoje sediada no Pelourinho, facili-


tou o que pôde. Da parte de Mãe Alice, ialorixá e viúva do Mestre, foram grandes a gentileza e a ajuda. No Rio de Janeiro, privo da amizade e colaboro sempre que posso com o Mestre Camisa, discípulo do qual muito se orgulha o círculo tradicional em torno do Mestre Bimba. Além de capoeirista excepcional, é um promotor cultural, pesquisador e erudito no que se refere ao jogo. Por sua vez, o judoca Rudolf Hermanny, antigo capoeirista do grupo de Sinhozinho, mostrou-se o gentleman de sempre. E Laura Maria Medeiros, pesquisadora baiana, foi simplesmente “massa”. A todos devo, a todos dou crédito. Muniz Sodré


(DA CAPOEIRA BAIANA)


m 12 de junho de 1996, a Universidade Federal da Bahia concedeu, por unanimidade, o título de Doutor Honoris Causa a Manoel dos Reis Machado, um negro, iletrado, morto 22 anos antes. Conheço bem os percalços acadêmicos dos títulos de mestrado e doutorado e estou certo de que esses nem sempre se justificam. Mas, para mim, a homenagem póstuma àquele homem dava valor especial ao título. Avisado do fato por um amigo de outros tempos, apressei-me, junto com ele, a enviar uma mensagem de congratulações à universidade baiana. Curioso (os esotéricos, os junguianos, falariam em sincronicidade) é que, naquela época, eu andava revendo umas publicações de cordel. Remexendo papéis, deparei-me com uma sextilha do cantador nordestino Sinfrônio Martins, cego e analfabeto, que eu utilizara tempos antes como epígrafe de um artigo sobre capoeira. Cantava Sinfrônio: Eu atrás do cantadô Sou como abêia por pau Como linha por agúia Como dedo por dedal Como chapéu por cabeça E nêgo por berimbau.

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Dessa vez, li a sextilha com os óculos da ética. Sinfrônio parecia-me celebrar a radicalidade do éthos, quer dizer, a paixão do estar no lugar próprio, seja cantando, morando, trabalhando, vestindo e lutando. É o que fazem, cada qual a seu jeito, o cantador, a abelha, a linha, o dedo, o chapéu e o capoeirista. A esta última categoria pertencia o hoje Doutor Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba. Na verdade, eu até mesmo achava que a honraria tinha chegado atrasada. Aquele negro, Bimba, merecia ter sido doutor honoris causa em vida, pois, embora longe do mundo das letras, era uma das figuras mais cultas que já conheci. Disso, dou bom testemunho: fui seu aluno, dele continuo discípulo vida afora.


Mestre Bimba: corpo de mandinga

Mas como, iletrado e culto? Uma contradição? Bem, à maneira do próprio Bimba, posso me explicar com uma historinha. Assim é que, no jardim do templo, um monge zen estava observando o outro arrancar da terra as ervas daninhas. Passando por ali, o mestre ouviu o primeiro perguntar por que motivo destruía ervas que pertenciam à natureza e o segundo responder que era preciso cuidar da terra para manter sadio o jardim. O mestre deu razão ao primeiro e, voltando-se para o segundo, disse que ele também estava certo. Aí, um quarto monge ouve a sentença do mestre e lhe pergunta: “Como podem os dois ter razão ao mesmo tempo?” E o mestre: “Você também tem razão.” Claro, o mestre zen atua aí como o técnico de um time de futebol que detenha o poder absoluto sobre os movimentos e as táticas dos jogadores, sobre o sentido de suas ações em campo. De nada adianta a racionalidade que alguém queira opor a seus pontos de vista, já que ele detém uma soberania sobre o sentido das coisas. Investido pela comunidade de um saber (e de um poder), resolve ironicamente as contradições formais. A ironia é uma espécie de malandragem do espírito, uma “treta” da linguagem contra a rigidez da letra. Pode ser subjetiva ou objetiva. No primeiro caso, o indivíduo expressa uma posição de distanciamento — sarcástico, maldoso, divertido — em face de um sentido ou uma verdade qualquer. O ironista dá a entender uma coisa, querendo de fato dizer outra. Assim fazendo, deixa de lado o sentido estabelecido, jogando em favor da pilhéria, do subentendido, como Garrincha driblando o adversário por improviso, no momento, em cima do lance. Quando a jogada deixa de ser excessivamente individual ou tem o respaldo do time, da comunidade, do que seja, então a ironia é objetiva. Isso significa que o ato individual de drible do sentido ou da bola não se fecha na auto-suficiência maliciosa de um espírito, já que partilha com um coletivo a desorientação,

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