Cidade e literatura modernas: o "outro" evidenciado

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Cidade e literatura modernas: o outro evidenciado na Paris de Baudelaire e na São Petersburgo de Dostoiévski. Cidade, Cultura e Política.

Manuella Oliveira Haygertt Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Resumo Este artigo pretende trata dos indivíduos marginalizados abordados por Marshall Berman no livro “Tudo que é sólido se desmancha no ar” e os diálogos destes indivíduos com a rua do século XIX através do modo como são representados na literatura de Baudelaire e Dostoiévski. Assim, primeiramente faz-se necessário aprofundar os conhecimentos sobre a modernidade e suas dualidades, onde o espaço expõe os avanços tecnólogicos como também seus retrocessos. Por conseguinte, o artigo busca analizar as transformações de São Petersburgo e Paris, com o estudo sobre suas características e influências para o mundo moderno. Depois, foram estudados os autores Baudelaire com os livros Spleen de Paris e o poema Os Olhos dos Pobres, e o autor Dostoiévski, com o livro Memórias do Subsolo. Palavras Chave: Baudelaire; Dostoiévski; Espaço urbano; Modernidade.


Introdução A história da cidade muito se aproxima das representações dadas pela grande literatura. Como apresentado pela historiadora Sandra Pesavento em O desfazer da ordem fetichizada: Walter Benjamin e o imaginário social, o texto do historiador se aproxima da literatura na medida em que é recriação do imaginário social. Enquanto ao escritor literário é autorizada a criação ficcional, o trabalho do historiador é restrito pela recriação de algo já previamente dado através de símbolos que ainda não são explícitos. Por isso, para compreender o processo de modernização – nos níveis social, político e urbano –, muitos pesquisadores têm usado como apoio as observações e perspectivas que a literatura evidencia. Como apontado pelo historiador Antoine Picon em seus estudos sobre as cidades capitais do séc. XIX, “a Redefinição do estatuto urbano relaciona-se naturalmente com a evolução dos valores e das práticas urbanas, evolução que a literatura divulga ao descrever as tensões da cidade grande, tensões que nenhuma composição regular saberia desembaraçar-se.” (PICON, 2004, p. 76). Portanto, para melhor compreensão do desenvolvimento do pensamento moderno e o advento de seus efeitos é necessário o estudo sobre os principais porta-vozes de seu tempo. Como complemento, é preciso também tentar visualizar as características e nuanças que alguns personagens ficcionais apresentam. Aqui trataremos de dialogar a imagem de algumas figuras expostas na cidade no inicio da modernização através da literatura com o pensamento de historiadores e o desenvolvimento da cidade no inicio do século XIX. Charles Baudelaire, que foi o representante de movimentos artísticos modernos, e Fiodór Dostoievski, que como ninguém conseguiu descrever questões existenciais do individuo moderno assumem aqui papel de interlocutor entre o espaço urbano na qual vivenciaram e personagens evidenciados pelas transformações urbanas presentes em suas obras. Assim é possível notar tanto na Paris de Baudelaire, quanto na São Petersburgo de Dostoievski o papel fundamental da literatura em expor os símbolos que seu tempo assina no espaço urbano.

Spleen da rua Charles Baudelaire, nascido em 1821 em uma família de privilégios, teve em sua formação a curiosidade pela literatura manifesta já no início de sua juventude. Logo após concluir seus estudos no interior da França, Baudelaire mudou-se para Paris e se entregou à vida boêmia, onde conheceu tanto o mundo aristocrático – contra o qual demonstrou nítida revolta – quanto o submundo de Paris. A vocação para a literatura, o intercâmbio de mundos, o surgimento da burguesia, o cenário de revoltas em Paris no contexto da Restauração, o embate entre ideias e regimes republicanos e imperiais e as mudanças urbanísticas de Georges-Eugène Haussmann em Paris têm, em Baudelaire, a expressão dos efeitos na arte e no cotidiano da modernização. No estudo que escreve sobre a Paris no Segundo Império, Walter Benjamin analisa a participação de Baudelaire para representar seu contexto histórico e suas percepções dos espaços públicos. Segundo o filósofo, Baudelaire “não se despende de Paris sem evocar as barricadas”, pois recorda os “seus mágicos paralelepipedos que se erguem contra fortalezas para o alto”1. Ainda segundo Benjamin, Baudelaire “inseriu a experiência do choque no âmago de seu trabalho artístico”, experiência essa cujo lugar se dá “no encontro das massas, formadas pela multidão de transeuntes, cujos semblantes e trajetórias se embaralham numa aparição amórfica”2. A modernidade, ao mesmo tempo em que apresenta a Baudelaire um local rico de tensões, conflitos e dualidades, é por ele representada, em uma obra capaz de expressar a complexa grandiosidade do mundo moderno. Diferente, por exemplo, de seu contemporâneo Victor Hugo – que, nas palavras de Benjamin, “celebra a massa enquanto herói da epopeia moderna” – a obra de Baudelaire “busca um refúgio para o herói na massa da cidade grande”3, aceitando o indivíduo moderno sem se opor

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BENJAMIN, Walter, 1985p. 48. BENJAMIN, Walter. 1998, p. 111. 3 BENJAMIN, Walter. 1985p. 92 2


às contradições da vida moderna. Sua obra compreende que é necessário estar em sintonia com o caos da modernidade, de modo a permitir aos indivíduos que possam se conscientizar da sua condição de modernos4. Baudelaire é universalmente aclamado como um dos grandes escritores urbanos (BERMAN, 2014 Pág. 176), porém seu amadurecimento enquanto escritor dedicado ao tema da modernidade e do espaço público manifestou-se tardiamente, no livro Spleen de Paris, com poemas em formato de prosa. Trata-se de um conjunto de poemas que, escritos no final de sua vida para publicação em folhetins e tornados públicos apenas postumamente, transformaram Baudelaire no principal representante e observador da vida cotidiana na Paris de Bonaparte e Haussmann, na medida em que deram à cidade um papel central no desenvolvimento de sua narrativa. No prefácio da obra, Baudelaire escreve para o escritor e amigo Arsene Houssaye sobre sua vontade de traduzir em seus poemas as experiências da vida cotidiana e das cenas modernas parisienses. Escreve: Tenho uma pequena confissão a fazer. É que folheando pela vigésima vez ao menos o "Gaspar da Noite" (...) que me veio a ideia de tentar qualquer coisa análoga e aplicar à descrição da vida moderna, ou melhor, de uma vida moderna mais abstrata, o processo que ele aplicou à pintura da vida antiga, tão estranhamente pitoresca. Qual de nós que, em seus dias de ambição, não sonhou o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rimas, tão macia e maleável para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência? É, sobretudo, da frequentação das enormes cidade e do crescimento de suas inumeráveis relações que nasce esse ideal obsessivo. (BAUDELAIRE, 2014, pg3)

Em Spleen de Paris, apesar de Baudelaire descrever as cenas cotidianas da vida em Paris, ele faz uso de uma linguagem externa para descrever este sentimento. O Spleen é a sensação que corresponde à catástrofe permante (BENJAMIN, 1985 p.126). Walter Benjamin traz, em seus estudos sobre a linguagem de Baudelaire sobre Paris, a figura do caleidoscópio: fazendo analogia ao spleen, a sensação de catástrofe seria como um espelho mediante o qual se formou uma imagem de uma “ordem”. No entanto, o caleidoscópio, enquanto espelhamento desta ordem, precisa ser quebrado em pedaços. O “olhar de caleidoscópio” e até “a catástrofe permanente” em que se desenvolveram as prosas da obra Spleen de Paris, pertencem ao período de remodelação da cidade sob o comando de Napoleão III e direção de Haussmann. O ideal urbanístico de Haussmann de “enobrecer necessidades técnicas fazendo delas objetivos artísticos” (BENJAMIN, p.41), em aliança com a burguesia francesa, gera em Paris um modelo de cidade que Leonardo Benevolo classifica como cidade pós-liberal, fazendo com que a “elevação dos aluguéis - desta Paris remodelada - empurre o proletariado para os arrabaldes” (BENJAMIN, 1985 p.41)5. Os limites entre espaço público e privado na Paris ainda com traços medievais, faz com que Baudelaire questione o lugar que seu mundo – o submundo – será inserido entre as longas séries de ruas e prédios alinhados. No poema Os olhos dos pobres, o escritor nos transporta à cena de um casal em meio à remodelação de Paris. Narrada através do olhar de um amante, a cena começa recordando a experiência que o casal há pouco compartilhava: “no fim da tarde você quis sentar-se em frente ao novo café, na esquina do novo bulevar, ainda atulhado de detritos, mas que já exibia orgulhosos seus infinitos esplendores”. Aqui, Baudelaire descreve as dualidades desta transformação de Paris, retratando a experiência dos bulevares que, com seus cafés elegantes e orgulhosos de seus infinitos esplendores, dão notoriedade ao espaço privado. Diante do olhar público, seu exibicionismo e espetáculo contrapõem-se às vias abertas atulhadas de detritos das obras. Em seguida, o casal é surpreendido por uma família de famintos que os encara. O narrador, que há pouco falava sobre sua fidelidade, declarando ser ela a extensão dos seus pensamentos, passa a questionar-se: o que estaria ela pensando diante daquela cena que os encarava? Ao olhar

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BERMAN, Marshall. 2014 p. 159.

“A administração gere um espaço público e a propriedade imobiliária encontram um acordo: é reconhecido o espaço de pertinência de uma e de outra, e é fixado com exatidão o limite entre estes dois espaço” (BENEVOLO,1999 PÁG. 573)


para a humilde família – um pai e duas crianças –, o narrador sente-se tocado e um pouco envergonhado de nossos copos e garrafas, grandes demais para nossa sede. Ainda imaginando quais seriam os pensamentos da “família de olhos”, o narrador volta a atenção para sua amada: “eu voltei a olhar para seus olhos, minha querida, para ler neles meus pensamentos”, são as palavras que Baudelaire põe em sua reflexão. E, então, ela diz: “Essas pessoas de olhos esbugalhados são insuportáveis! (...) Você não poderia pedir ao gerente que os afastasse daqui?” Surpreso, eis, então, que o narrador exclama: “como é difícil para as pessoas se compreenderem umas às outras, como o pensamento é incomunicável.” O ponto alto desta prosa está exatamente em descrever esta experiência econômica, estética e social da modernidade. O escritor introduz na narrativa não somente o cenário urbano, mas também as diferentes classes sociais que convivem em um mesmo local, onde coexistem lado a lado o luxo, o brilho do novo e os detritos das ruínas. Como nos esclarece a historiadora Sandra Pesavento, a rua é “não mais elemento de separação entre casas, ela se define agora como espaço público, por oposição ao espaço privado” 6. Ainda sobre as dualidades e confrontos do ambiente urbano moderno, Antoine Picon enfatiza o surgimento de uma nova figura do caminhante – o flâneur – que, a partir dessas tensões, aprende a ter prazer a partir da experiência do espaço urbano, tomado por ele como uma “paisagem na qual ele precisa encontrar a variedade e o pitoresco.7“ Enquanto Baudelaire expunha em seus poemas as dualidades de se viver em um mundo em constante mutação e de catástrofe permanente, no poema Os olhos dos pobres coloca os excluídos – a família dos olhos – no centro da cena. O (também seu) submundo, que até então vivia em locais invisíveis, escondidos pelas vielas do traçado urbano medieval, agora se vê exposto. Como analisado por Marshall Berman, sua existência agora rompe “a crosta do mundo até então hermeticamente selado da tradicional pobreza urbana”8: à medida que as vias são abertas e são expostos os bairros pobres dos subúrbios de Paris, os pobres que até então não ultrapassavam os muros sociais podem não apenas ver o resto da cidade como, também, serem vistos, aproximando os diferentes âmbitos sociais. Para lembrar as origens dos ideais por trás da remodelação de Paris, Antoine Picon analisa a gênese da haussmannização, expondo suas vertentes a partir dos questionamentos que influenciaram a remodelação de Paris. Em seu texto, Picon cita a intensão, existente já em 1832, de encontrar um novo local para a transferir a população mais pobre, visando uma possível regeneração na cidade de Paris9. O plano devia-se, principalmente, à tentativa de melhorar a higiene da capital – naquele ano, Paris assistia ao auge da epidemia de cólera – mas, mesmo assim, já se pode antever a segregação acentuada pelas transformações, resultando na divisão social vertical nos edifícios haussmannianos. Essas mudanças, então em curso em Paris, foram também abordadas por Baudelaire no poema Tableaux Parisiens, de sua obra Les Fleurs du mal. Assim como em Spleen de Paris, expressa os sentimentos que estes cenários de metamorfose lhe causam: “Paris muda! Mas nada em minha nostalgia; Mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos, Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria, E essas lembranças pesam mais que rochedos.” (BAUDELAIRE, 2002a, O Cisne).10 Em seu poema A Viúva, Baudelaire confere aos que são ameaçados de expulsão com a modernização da cidade o papel de protagonismo. Ao abordar a diferença entre a população subalterna e a burguesia, aponta aquilo que os torna fundamentalmente diferentes: a possibilidade de desfrutar do sentimento de felicidade, exclusivo do segundo grupo.

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PESAVENTO, Sandra. 1998, pg. 11. PICON, Antoine.2004 p. 76 8 BERMAN, Marshall. 2014 p. 183 9 “Os bairros próximos do rio só podem ser saneados com a destruição da quase totalidade de casas que compõem a Cité, os cais e todas as ruazinhas adjacentes” e “ se essa medida fosse enfim tomada, toda população de Paris, seria levada a buscar novas habitações, e boa parte dela até deixaria o centro da cidade para ir morar no subúrbio, onde encontraria, pelo mesmo preço que paga hoje, alojamentos mais salubres e melhor arejados” (PICON, 2004 p. 76) 10 É interessante a reflexão de Paola Jacques sobre o tema. Em sua análise, escreve: “Percebe-se mais uma vez aqui a ambiguidade entre certo fascínio pelo novo, um pertencimento claro à modernidade, e uma angústia pelo que está desaparecendo na cidade naquele momento, a Velha Paris.” (JACQUES, 2012, p. 67). 7


Vauvenargues disse que nos jardins públicos existem aléias freqüentadas, principalmente, pela ambição frustrada, pelos inventores infelizes, pelas glórias abortadas, pelos corações partidos, por rodas as almas tumultuadas e fechadas nas quais ressoam ainda os últimos suspiros de uma tempestade e que recuam para longe do olhar insolente dos felizes e ociosos. Esses recantos sombrios são o ponto de encontro dos estropiados da vida. É a esses lugares que o poeta e o filósofo gostam de dirigir suas ávidas conjecturas. Há lá um alimento garantido. Se há um lugar que eles desdenham visitar, como insinuei há pouco, é, sobretudo, a alegria dos ricos. Essa turbulência no vazio não tem nada que os atraia. Ao contrário, eles se sentem, irresistivelmente, impelidos para tudo que seja frágil, arruinado, entristecido, órfão”. (BAUDELAIRE, 2002a, A viúva, Spleen de Paris nº13)

É através da construção de um imaginário social – entendido como o conjunto de representações de comportamentos através das quais se atribui a identidade de uma determinada época – que Baudelaire desenvolve seu tema. Assim, sua obra constrói uma representação da população pobre, trazida à existência junto do surgimento do bulevar: a coexistência desses mundos tão próximos também gera mudanças internas ao ser humano. Para Berman, a manifestação das divisões de classe na cidade moderna implica divisões interiores no indivíduo moderno11, como o casal do enredo que sob nova luz, sua felicidade aparece como privilégio de classe12. O bulevar força o ser moderno a reagir politicamente sobre a imagem do “outro”, como a burguesia que, ao deparar-se com sua existência, ou a repele ou sente-se culpada pela sua própria felicidade. Nesse sentido, há na dialética entre repelir e reconhecer a consciência de símbolos de identidades. A coexistência de diferentes classes sociais no mesmo ambiente traz consigo o sentimento já abordado de “catástrofe permanente”, resultante da multiplicidade inesgotável da multidão. Para o escritor, assim como para Balzac, viver a modernidade demanda uma postura heroica, e é no proletariado que Baudelaire reconhece esse herói13. Benjamin declara que esta imagem do proletariado na obra de Baudelaire origina-se a partir da reflexão que o autor realiza sobre sua própria condição. Assim, diferentemente de Balzac, Baudelaire nos confronta e torna heroica a condição da população mais pobre cuja presença é indesejada na remodelação de Paris. Nesse espírito, no poema Le vin des chiffoniers, o escritor faz a representação do “povo anônimo” que, expulso da antiga Paris, passou a viver na periferia da cidade. Num antigo arrabalde, informe labirinto, Onde fervilha o povo anônimo e indisto, Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronta inquieta, Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta, E, alheio aos guardas e alcaguentes mais abjetos. Abrir seu coração em gloriosos projetos.(...) Trôpega e curva ao peso atroz, asco infinito, Vômito escuro de um Paris enorme e aflito. (BAUDELAIRE, 1985, O vinho dos trapeiros, nº 1005)

Além de uma descrição romântica e até estereotipada, Bauldelaire traz a figura do catador de trapos. Benjamin descreve essa representação como metafórica para os poetas modernos “Tropeiro ou poeta- o lixo importa aos dois; ambos executam solitariamente o seu trabalho nas horas em que os burgueses se entregam ao sono; mesmo o gesto é idêntico em ambos” 14. A partir da representação da população mais pobre, agora visível e em contraste com as largas avenidas modernas de Haussmann, Berman e Benjamin enfatizam o esforço de Baudelaire em transformar o indivíduo moderno em herói, além de mostrar como a vida moderna força novos movimentos – corporais, sensitivos e intuitivos – na medida em que os mais sólidos valores são ameaçados pelas preocupantes desorientações que suas mudanças acarretam. Exige-se do indivíduo moderno novas

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BERMAN, M. 2014 p. 184 BERMAN, M. 2014 p. 184 13 Quanto a isso, Benjamin cita Baudelaire: “Seja qual for o partido a que se pertença” escrevia Baudelaire em 1851, “é impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa população doentia, que engole a poeira das fábricas, que inala partículas de algodão, que deixa penetrar seus tecidos pelo alvaiade, pelo mercúrio e por todos os venenos utilizados para produzir obras-primas (...) Essa população se mata esperando as maravilhas a que o mundo lhe parece dar direito; sente correr sangue purpúreo em suas veias e lança um longo olhar, carregado de tristeza, para a luz do sol e para as sombras dos grandes parques” (BENJAMIN, W. 1985, p. 98) 14 BENJAMIN, 1985, pag. 103 12


formas de se relacionar, as quais resultam das novas formas de liberdade. Segundo a reflexão de Berman, o moderno que saiba mover-se e “atravessar o caos” tem consigo o poder de deslocar-se livremente. E esse caráter de poder de mobilidade entre mundos, entre o tráfego moderno, se desdobra em enorme experiência e atividade para as massas urbanas. Para Berman, os bulevares parisienses causam uma revolução tanto em nível de percepção externa – crítica e elogio da nova remodelação de cidade, como espaço de conflito – como mudanças internas – a chamada perda do halo15 do ser moderno. Assim, as manifestações de ambição e competição que os indivíduos modernos enfrentam são acentuadas com o desenvolvimento da modernidade e, como em uma corrida faustica, o indivíduo moderno julgará poder usar qualquer recurso para manter-se vivo e a frente do seu tempo, onde os valores morais, que até então eram sólidos, se desmancham no ar. Assim, Berman conclui: O oceano que os separa corresponde ao passo que vai da calçada á sarjeta. Na calçada, pessoas de todas as classes se reconhecem comparando-se umas as outras segundo o modelo como se sentam ou caminham. Na sarjeta, pessoas são forçadas a esquecer do que são enquanto lutam pela sua sobrevivência. A nova força que os bulevares trazem à existência, a força que arranca o halo do herói, conduzindo-o a um novo estado mental, é o tráfego moderno. (BERMAN, 2014 p. 189)

O Homem do Subsolo e a Família de Olhos. Outro autor abordado por Marshall Berman e que também expõe os conflitos sociais de forma crítica às mudanças da reforma urbana desencadeada pelo desenvolvimento em prol da modernidade é o escritor russo Fiódor Dostoiévski. Analisaremos, então, o livro Memórias do Subsolo que, assim como Baudelaire, ainda que em contextos diferentes, traz a figura do anti-herói como protagonista de sua trama. A cidade de São Petersburgo, cenário em que se desenvolve o enredo, nasceu do desejo do imperador Pedro I16, em 1703, de transferir a capital russa para uma cidade que pudesse ser considerada a “janela para a Europa”, com característica portuária e combinação de base naval e centro de comércio. A construção de Petersburgo, segundo o Berman, culminou em taxas de mortalidade elevadíssimas, chegando em três anos a 150 mil trabalhadores mortos ou com alguma deficiência em decorrência da construção da cidade. Essa alta taxa se deu devido às ambições e mudanças impostas pelo Imperador, fazendo com que a cidade nascesse rapidamente em meio a um solo pantanoso. São Petersburgo chegou, em apenas duas décadas, a 100 mil habitantes, “se tornando do dia pra noite, uma das maiores metrópoles da Europa”17. Se o objetivo do reinado de Pedro I (1682-1725) era abrir uma janela para a Europa, como caminho de progresso e desenvolvimento da Rússia, o objetivo do reinado de Nicolau I18 (18251855) era de brutalmente fechar esta janela. Durante o seu reinado e o de seu sucessor, Alexandre II19, Dostoiévski presenciava a mudança que estes regimes causavam nas dinâmicas sociais e no espaço urbano. Nascido neste contexto de repressão, Fiodor Dostoiévski é um dos mais influentes escritores da literatura ocidental. Como destaca o escritor e tradutor Boris Scnaiderman, Dostoiévski é considerado romancista-filósofo por excelência, contribuindo com seu estilo literário

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O “halo” aqui descrito faz referência ao poema de Baudelaire a “Perda do halo”, também apontado por Marshall Berman em seu livro “tudo que é sólido se desmancha no ar”, como uma das possíveis interpretações, um estado de inocência. Em a perda do halo, o autor descreve essa perda de inocência como principal causa da modernidade, que a partir das dissonâncias e incongruências que permeia o indivíduo moderno ele precisará se readaptar e sempre estar um passo a frente deste cenário em constante mutação. 16

Pedro, o Grande (1672-1725): Czar da Russia de 1682 a 1721. BERMAN, M. 2014 p. 209. 18 Nikolai I, o Inolvidável (1796-1855): imperador russo de 1825 a 1855 na Rússia czarista é considerado um dos mais rígidos governos em toda a história da Rússia. 19 Alexandre II, o Libertador (1855-1881): 17


e a criação de personagens porta-voz de seu tempo. Shnaidermain (200, p. 11) reconhece o caráter especificamente moderno da obra de Dostoiévski, comparada com a obra de outros autores: Sua marca é muito forte em toda a literatura moderna (...) a subjetividade agressiva e torturada do narrador-personagem, o seu discurso alucinado e sua veemência desordenada, o fluxo contínuo de sua fala, que parece estar sempre transbordando, pode ser ouvido por detrás da obra de muitos escritores da modernidade.

É importante a compreensão dos antagonismos existentes entre a rua de Baudelaire e a de Dostoiévski. A rua de Dostoiévski não é fruto de uma burguesia dinâmica ou de manifestações de massas que se mobilizam para lutar pelos seus direitos no espaço público, mas se consolida na política autoritária de Nikolai I. Apesar da fantasia da modernidade proveniente da industrialização na São Petersburgo, suas dinâmicas sociais, econômicas e políticas estão a mundos de distância se comparadas a capital francesa. Na Rússia do séc. XIX, mesmo com a modernização, a sociedade ainda se dividia em convenções de castas, onde os mais pobres tinha que ceder lugar aos mais nobres20. Apesar disso, reconstruída no inicio do séc. XIX e projetada por arquitetos neoclássicos, a avenida Nevski – principal avenida de São Petersburg – tornou-se um espaço urbano caracteristicamente moderno: Em primeiro lugar, a retidão, a largura, o comprimento e a boa pavimentação fizeram dele -o projeto Nevski- o meio ideal para a locomoção de pessoas e coisas, uma artéria perfeita para os modos emergentes de tráfego rápido e pesado. Como os bulevares que Haussmann abriu por toda Paris na década de 1860, ele serviu como ponto de convergência de forças humanas e material recentemente acumulado: macadame e asfalto, luz a gás e elétrica, a ferrovia, bondes elétricos e automóveis, cinema e demonstração de massa. Mas, porque foi bem planejada e projetada, a Nevksi entrou em ação uma geração antes de suas correlatas parisienses e funcionou bem mais suavemente, sem devastar vidas ou vizinhanças antigas. (BERMAN, 2014, p.228)

Diferentemente dos detritos e das ruínas que enchiam a cidade nas obras de Baudelaire, a avenida Nevski com seus bulevares é descrita pelo escritor Marshall Berman como um cenário absterso, que seduz a população com suas fachadas brilhantes e seu ar cosmopolita, ao mesmo tempo que os empurra para seu lugar: o lugar daqueles que não conseguirão usufruir de tais benefícios. Assim, apesar de a construção da avenida Nevski ter sido menos violenta que os bulevares de Haussmann, os encontros entre as diferentes classes não foi tão harmonioso. Aqui, a principal diferença não está implicitamente na reconstrução ou na morfologia da cidade, mas em seu contexto político e histórico. A modernidade, portanto, com seus avanços tecnológicos e culturais, tem reflexos diferentes em cada situação. Por isso, a partir da obra de Dostoiévski podese compreender como os estímulos modernos de modos de produção e ação são revelados no contexto específico da Rússia do final do séc XIX. A contradição que caracteriza o contexto russo – a Avenida Nevski demonstra ares de democracia em um regime caracterizado pela obediência absoluta à autoridade – é um dos temas principais do homem do subterrâneo. É na avenida que o homem do subterrâneo sai de seu local e vive o confronto com outras pessoas e consigo mesmo. Apresentado, logo de início, como um sujeito maldoso, doente e repulsivo, possui como qualidade maior a inteligibilidade e a consciência de seus atos desprezíveis e da situação em que ele e seus semelhantes vivem. Oleg Almeida (2013, p. 8) descreve que: Cheio de fúria tardia e de tristeza inútil, seu relato confessional tem por objetivo extravasar as mágoas e decepções acumuladas ao longo de muitos anos e, pouco a pouco, resulta numa exibição masoquista daqueles segredos

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Quanto a isso, Berman comenta: “Na década de 1860, mesmo após a emancipação dos servos, o Estado está mais preocupado em conter o povo que em fazê-lo avançar. Já a baixa nobreza está ansiosa para usufruir da cornucópia de mercadorias ocidentais, porém não trabalha para desenvolver as forças produtivas que possibilitam a moderna economia de consumo“. (BERMAN, 2014, p.269).


que nenhum homem de sã consciência divulgaria por mera vergonha. (...) Não há gênero mais apropriado para tal exibição do que o diário escrito num canto escuro e abafado, algures no úmido subsolo petersburguense.

As dualidades deste personagem – que hora se apresenta como uma espécie de reles mosca que todos andam humilhando e ofedendo” (DOSTOIEVSKI, 2013 Pág.34), hora como representante de um saber filosófico superior aos seus contemporâneos – são analisadas por Shnaidermain como uma das mais importantes obras da modernidade, por mostrar como um enredo “paradoxialista” 21 em que critica as ideologias propagadas no séc XIX. É ainda no inicio de sua história que Dostoiévski descreve as barbaridades com as quais o homem moderno convive, aceita e reafirma. O personagem toma como exemplo a Paris de Napoleão I, com seu ideal da razão acompanhado das sensações que a humanidade descobre a partir de seu desenvolvimento (este, por sua vez, inserido no paradoxo da destruição). Assim, o autor, com tom irônico e sarcástico, questiona se o desenvolvimento seria o objetivo final da razão ocidental ou se o desenvolvimento seria, na verdade, consequência de um objetivo maior: a destruição. O homem gosta de criar e abrir caminhos, isso não se discute. Mas porque ele adora também a destruição e o caos? (...) Como os senhores sabem: talvez esteja gostando daquele prédio só de longe e não de perto, talvez esteja gostando apenas de construilo e não de morar nele, cedendo depois aos animais domésticos, como as formigas, carneiros etc., etc.,? As formigas é que tem lá gostos bem diferentes. Elas possuem um admirável prédio desse mesmo gênero, indestrutível para todo o sempre- o formigueiro. (DOSTOIÉVSKI, 2013, p.47)

Na representação dos “senhores” – arquétipo dos homens que não estão à margem ou no subterrâneo da sociedade, por vezes declarados como “normais”, e que, apesar de tanto combater, são alvo de sua preocupação por esperar que tenham dele uma boa imagem –, o protagonista vai desenvolvendo a consciência sobre si mesmo. E é a partir da construção de sua própria imagem que o homem do subsolo vê, e no que é imaginado ser visto, que é despertado o desejo de vingar-se de todos os “senhores” opressores reais e imaginários que vivem em sua corrida moderna cotidiana não reparando no ser humano que vive no subsolo. É no inicio do livro, em sua nota autoral, que Dostoiévski aponta que o diário em que se desenvolve a figura do homem do subsolo não se refere especificamente a um individuo existente, mas sim a toda uma categoria de pessoas ligadas ao contexto geral de sua época. Portanto, refere-se às classes sociais formadas em decorrência dos períodos sombrios da história russa 22. O livro divide-se em duas partes: Parte I – O subsolo e Parte II – A respeito da neve molhada. Na primeira parte do livro, composta por onze capítulos, o homem do subsolo se descreve como um “quarentão, que antes trabalhava” e que agora não trabalha. Continua com seu tom autodepreciativo ao explicar e tentar legitimar os feitos que, datados de um passado remoto, continuam a incomodá-lo. Descreve seu íntimo – seus sonhos, pesadelos, pensamentos e sentimentos –, colocando em segundo plano a

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Termo usado por Boris Shnaidermain no prefácio do livro Notas do subsolo para descrever a visão crítica e as argumentações filosóficas do homem do subsolo contra o racionalismo ocidental e à mentalidade positivista. Shnaidermain descreve então (2000, p.7) sobre o personagem que: “Construído pelo autor com um acúmulo de traços negativos, ele é também, o seu porta-voz no ataque ao racionalismo e à mentalidade positivista. E é ainda seu porta-voz na briga com os defensores do “princípio econômico”, que propugnavam um desenvolvimento burguês para a Rússia, enquanto Dostoiévski apontava para o que havia de antihumanista nesta posição. O “anti-herói” Dostoiévskiano, que alias se define assim, representa o clímax do “desligamento do solo” em que vivia boa parte da sociedade russa, mas é também critico feroz desta”. 22

“Tanto o autor deste diário quanto o “diário” em si são, bem entendido, fictícios. No entanto, as pessoas que escrevem tais diários não apenas podem como devem existir em nossa sociedade, considerando aquelas circunstâncias em que a nossa sociedade se formou de modo geral. Eu queria destacar, tornando-as mais visível para o público, umas das personalidades do nosso passado recente. Seria um dos representantes da geração que ainda está viva. (...) expondo suas opiniões e como buscando esclarecer os motivos pelas quais ela surgiu e não podia deixar de surgir em nosso ambiente”. (DOSTOIÉVSKI, 2013, p.17)


vida real. Dadas as intenções do autor, não é possível construir quem de fato é o personagem, sendo até seu nome omitido. Apesar de caracterizar-se como um sujeito mau, de caráter solitário e amargo, em primeiro momento pode-se apenar concluir que, de certa forma, sente prazer em viver no subsolo da sociedade. O homem do subsolo exclama: “Todo homem decente de nossa época é e tem de ser covarde e servil. Essa é a condição normal dele. A melhor coisa é a inércia consciente! Então viva o subsolo!”. (DOSTOIEVSKI, 2013 Pág.58) Nota-se que o homem do subsolo repele qualquer ideia de se apresentar como alguém que aceita sua condição ou que faz parte da sociedade na qual está inserido. Segundo o escritor e tradutor Oleg Almeida, o homem do subsolo se vê incapaz de viver como todo mundo. Dadas as condições do regime de Nikolai I – que, com a repressão severa aos levantes dezembristas, passou a coibir de modo sistemático e cruel as menores manifestações de revolta ou crítica ao regime, tanto em manifestações de imprensa, como nas instituições e meios culturais –, o dilema enfrentado pelo homem do subsolo seria o de querer sonhar com algo “belo e sublime” e não conseguir. Assim, ele não consegue confirmar suas ideias e pensamentos extraordinários e passa a ter que confinar-se permanentemente em um silêncio covarde23. Na segunda parte, o homem do subsolo se vê em conflito entre persistir em seu subterrâneo (seu recolhimento da sociedade com seu desejo introspectivo de afastar-se dos demais, sendo o subsolo não só um limite físico mas também como isolamento do personagem) ou a vontade de frequentar a rua, local que assume papel singular na modernidade. Angustiado, o homem do subsolo descreve o encontro com um oficial, ocorrido na sua juventude: trata-se de um acontecimento que o perseguirá e atormentará por muito tempo. Nessa ocasião, sente enfim o desejo de sair de seu subterrâneo. Em contato com a rua, presencia uma briga entre um de seus iguais e um oficial (posição superior à sua) em uma bodega, despertando nele o desejo de também ser reconhecido, mesmo que isso signifique entrar em conflito com o oficial. Na tentativa de chamar a atenção, o homem do subsolo se vê humilhado pois, ao entrar na taverna e se colocar diante do oficial, sequer é notado24. Desejando que sua superioridade seja reconhecida pelos outros, passa a ser atormentado pela ideia da indiferença, desencadeando uma aversão a si. A ideia de enfrentar o oficial não é descartada e, pelo contrário, transforma-se numa obsessão. Pensando em inúmeras maneiras de dele vingar-se – publicar uma sátira sobre o acontecido, transformando o oficial em um personagem inferior; escrever uma carta chamando-o para um duelo –, o homem do subsolo passa a segui-lo nas ruas. Com a segregação social e de castas existente na Rússia do início do século XIX, via-se obrigado a ceder a passagem toda vez que passava pelo oficial, aumentando ainda mais sua obsessão e evidenciando sua incapacidade de vingança. Surge-lhe, então, a ideia de não mais desviar-se em um próximo encontro: seria sua vingança enfrentar-lhe de igual para igual. Compra boas roupas, planeja seus atos e, entre sonhos e pesadelos sobre o que poderá lhe ocorrer, cogita, muitas vezes, desistir do plano. De repente, a três passos do meu inimigo, mudei inesperadamente de ideia, cerrei os olhos e... nós nos empurramos, ombro contra ombro! Não lhe cedi um verchoque e fiquei com ele em pé de igualdade total! Ele sequer se virou, fingindo que não tivesse visto- apenas fingindo, tenho a certeza disso. Até agora tenho certeza! É claro que minha contusão foi maior, sendo ele mais forte, mas isso não tem importância. O que importa é que alcancei meu

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Escreve Dostoiévski sobre a dificuldade do homem do subsolo em se transformar no que jamais conseguiria: “o deleite vinha justamente da percepção demasiada da minha humilhação, de tu mesmo sentires que chegaste ao úmido paredão, que isso é ruim, mas não pode ser de outra maneira, que já não tens saída, que nunca te tornarás outra pessoa, que mesmo que sobrassem ainda tempo e fé para te transformares em algo diferente, tu não irias, por certo, querer essa transformação e se quisesses, tampouco farias nada por não teres, talvez, na realidade, em que te transformar.” (DOSTOIÉVSKI, 2013, Pág.23) 24 “Eu estava em pé junto da mesa de bilhar, obstruindo por ignorância a passagem, e ele precisava passar; pegou-me pelos ombros e calado, sem explicação nem aviso prévio, deslocou-me de um lugar para o outro e prosseguiu sem caminho, como se não houvesse reparado em mim. Perdoá-lo-ia, inclusive, se me tivesse espancado, mas de maneira alguma poderia perdoar o fato de ele me deslocar desse jeito, sem a mínima atenção”. (DOSTOIÉVSKI, 2013, Pág.63)


objetivo, defendi a minha dignidade, não cedi um só passo e publicamente me coloquei no nível social dele. (DOSTOIÉVSKI, 2013, Pág.69)

A rua – ou, mais especificamente, a Avenida Nevski – torna-se, então, protagonista para a vida do homem no subsolo. É nela que se sente humilhado e desvalorizado, é nela também que recebe sua afirmação enquanto individuo. Apesar de o local se revelar contraditório para o personagem de Dostoiévski, é na Avenida Nevski que o experimenta as sensações de se encontrar com a multidão25. Mesmo se considerando um ser abjeto para os demais, quer entrar em contato com a rua. É na Avenida Nevski que ele encara as contradições da modernidade e as suas. Marshall Berman sustenta que o desejo do autor não está somente em mostrar que as nuances da degradação emergem das anormalidades do herói, mas da estrutura e operação da vida de Petersburgo, em que a Avenida Nevski oferece os fascínios de liberdade. Mas, como aponta Berman, para o funcionário pobre as configurações de castas da Rússia feudal são extremamente rígidas e humilhantes. Assim, a rua representa para o homem do subsolo o acesso a uma maior liberdade que, mesmo o humilhando, mostra-se melhor do que a vida no cativeiro do seu subterrâneo. Ao formular os devaneios e as confissões de um funcionário pobre, morador de um quarto decadente e sem qualquer tipo de privilégio, Dostoiévski representa o indivíduo à margem da sociedade, até então sem protagonismo. Além de destacar as contradições enfrentadas pelo em um contexto repressor, Dostoiévski relembra o papel da rua como palco principal desses paradoxos. O triunfo do homem do subsolo em chocar-se contra o oficial em pleno espaço público é visto por Berman como um ato revolucionário. Apesar de sua vida não ter qualquer mudança efetiva e de ainda desejar vingança contra seus outros inimigos e sustentar uma visão autodepreciativa de si, Berman enfatiza a importância desta figura e a põe em relação com os conflitos políticos e sociais que, futuramente, culminariam em mudanças drásticas na Rússia: O que importa é que as classes baixas estão aprendendo a pensar e a andar de um modo novo, a afirmar uma nova presença e poder na rua. Não importa que a alta e a baixa nobreza não tenha ainda percebido; serão obrigadas a perceber logo. Não importa, também, que o funcionário pobre se sinta culpado e se odeie na manhã seguinte, como admite para si, o Homem do Subterrâneo; (..). Ele agiu decisivamente para mudar a sua vida, e nenhuma autonegação ou falha subsequente poderá faze-lo voltar ao que era. Ele se tornou um Homem Novo, quer queira, quer não. (BERMAN, 2014, pag. 267)

Conclusão Tanto Dostoiévski como Baudelaire trazem à tona a vida no meio urbano: mesmo em contextos diferentes, os encontros ocorridos na rua são evidenciados em suas obras. Esses encontros expressam as possibilidades de conflitos e encantamentos que a vida moderna propicia, como o senso de urgência política. É a partir desses encontros conflituosos e suas tensões que a modernidade transforma a vida pessoal e a vida política em um mesmo elemento ativo, sendo a cidade sua parte fundamental: o espaço público da rua é o meio de cidadania. É neste perambular e neste ver e ser visto onde aparecem as diferenças sociais que o indivíduo moderno emerge e deixa sua marca para a contemporaneidade. Na obra “Walkscapes – o caminhar como prática estética“, a escritora e arquiteta Paola Berensteis Jacques descreve o caminhar pela cidade à deriva, neste jogo de flanar pelos locais da cidade contemporânea, como um encontro com o “outro urbano” que emerge desta experiência.

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Às vezes, nos feriados, eu ia, lá pelas quatro horas, à Avenida Nevski e passeava pelo seu lado ensolarado. Quer dizer, não passeava ali, mas aturava inúmeros tormentos, humilhações e derramamentos de fel, dos quais sem duvida, tinha carência. (...) Igual a uma enguia eu rodopiava, da maneira mais feia, por entre os transeuntes, cedendo continuamente à passagem (...). Uma mosca que não para de ceder passagem a todos e que todos andam humilhando e ofendendo. Porque me expunha àquela tortura, para que ia a Nevski, não sei, contudo não perdia nenhuma oportunidade de passear lá. (DOSTOIÉVSKI, 2013, pag. 66)


Descobre, a partir do encontro com os outros, (...) que o medo de atravessar (...) na verdade seria o medo desse encontro com a alteridade radical, e que o caminhar é um caminho para esse encontro, quase sempre dissensual e conflituoso. Mas sabemos, os dissensos e conflitos urbanos não só são legítimos e necessários para a constituição da esfera pública e também dos espaços públicos, mas seria exatamente da permanência dessa tensão entre as diferenças não idealizadas nem pacificadas que dependeria a construção de uma cidade menos espetacular e mais lúdica e experimental. (JACQUES, 2013, p. 14)

Tanto no livro Spleen de Paris, como em Memórias do Subsolo, os autores reafirmam os contrastes existentes na rua. Contrastes estes que podem ser evidenciados através de uma população pobre que emerge no cotidiano do espaço público a partir das transformações urbanas. Como aponta a historiadora Sandra Pesavento, as classes proletárias iriam reivindicar menos ao direito ao alojamento que ao direito à cidade e espaço para viver, fazendo com que as famílias burguesas se retirem para o conforto da vida privada. Segundo ela, a rua “antes de ser um lugar histórico, um lugar político, é um habitat, uma interioridade, é o espaço do povo que se opõe à casa, lugar da intimidade burguesa26. A separação do público e do privado poderia até resguardar o burguês no reduto do lar e entregar a rua ao domínio público27, porém o fato que nossos autores trazem é a vontade do indivíduo moderno em assistir e participar ativamente desses conflitos. No caso do homem do subsolo, participar da vida na cidade significa humilhar-se; mas, mesmo assim, mantém o desejo de estar à vista. Na Paris de Baudelaire, tanto a “família de olhos” quanto o casal que a observa em no conforto do bulevar resistem em participar ambos de seu contexto na rua28. Assim, tanto a literatura de Dostoiévski quanto as obras de Baudelaire, permitem demonstrar a consciência politica que emerge nesse contexto juntamente com as transformações urbanas, desencadeadas pelos contrastes entre o burguês e o proletário que compartilham o mesmo espaço. Pesavento concebe a criação da imagem do “outro” no convívio urbano como reafirmação de relações de identidade-alteridade, cidadania e exclusão, in e out, ordem e transgressão. Para a concepção do “outro” no espaço urbano é preciso afirmar que este pertença a uma identidade, seja ela dada por uma hierarquia social, por diferenças culturais ou até gênero. Do “outro” que está à margem da sociedade é tirada a história e o seu caráter humano, na medida em que são portadores de símbolos diferentes daqueles previstos pelas normas dadas pelos integrantes da ordem estabelecida. Eles não são “atores reconhecidos nem sujeitos detentores de um passado constituído pela oficialidade dos centros urbanos que resgatam sua memória 29. Sobre a criação dos símbolos que se contrapõem, Pesavento evidencia que, para se pensar sobre o indivíduo que não está na ordem, é preciso entender o que é a ordem, quais são suas regras e formas de convenções

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(GEORGEL,1986, pág.1) “Esta era, todavia, uma realidade inevitável: à medida que a cidade crescia, que a vida comercial e fabril da urbe se estendia, um povo sem rosto parecia habitar as ruas. Eram, em principio, pobres, mal vestidos, muitas vezes mal-encarados e frequentemente atemorizavam a vida das famílias burguesas. (...) Sennet [Richard Sennet] coloca que, num século XIX europeu convencionado pela consolidação do capitalismo, fortaleceu-se a ideia de que o espaço da rua era perigoso”. (PESAVENTO, 1998, Pág. 84) 28 Boris Schnaiderman, em seus escritos sobre Dostoiévski, mostra a consciência do autor acerca das mazelas que o meio urbano evidencia, além de sua sensibilidade ao comparar o espaço burguês de Paris que se desenvolve com a expulsão dos pobres de seu centro, e a Inglaterra: “Assim, em suas notas de viagem pela Europa ocidental, Notas de inverno sobre impressões de verão, impressiona o contraste que ele aponta, entre o burguês triunfante da Inglaterra, cônscio de sua posição superior, e que deixa em plena luz a miséria dos seus bairros operários, onde surgem visões mais assustadoras, inclusive um flagrante de uma menininha prostituída, agarrada à moeda que recebera, um flagrante que tem algo de clamor desesperado, e a burguesia francesa que esconde os seus pobres e apresenta ao forasteiro a sua capital como uma cidade muito limpa e bem cuidada. E o autor compara esse francês da burguesia ao avestruz, que esconde a cabeça para não ver “os caçadores que o estão alcançando”. Dostoiévski parece dizer: “Aqui é que vão acontecer coisas”. E isto em 1863, oito anos antes da Comuna de Paris!” 27

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PESAVENTO, Sandra. 2001, p.23.


simbólicas. Assim, pode-se dizer que as construções das identidades andam juntas na construção da diferença: Em suma, a construção de nós identitário pressupõe a existência do outro. O outro é a concretização da diferença, contraposto como alteridade à identidade que se anuncia. (...) Diante do núcleo identitário, os outros são muitos, mas nem todos, necessariamente, são rejeitados. Há alteridades que exercem seu poder de sedução sobre nós, que nos seduzem e envolvem, fazendo-nos sonhar. (...) O que nos interessa, neste caso, é a alteridade rejeitada, negada, estigmatizada. (...) E neste caminho, nossa questão de enfoque é a produção desta diferença ou da alteridade na cidade, através da tentativa de resgate daquelas duas noções báscias- a da cidadania e a da exclusão-, entendendo que tais questões não são dados naturais, mas resultado objetivado de um discurso construído socialmente. ( PESAVENTO, 2001. Pág. 11)

Temos, então, dois processos que surgem juntos com a modernidade: em um primeiro momento, os contrastes e choques que a rua destaca; em um segundo momento, posterior à apropriação social dos territórios da cidade, as implicações simbólicas da diferença. A cidade que se estrutura e constrói não o faz somente pela sua materialidade de suas construções e pela execução dos serviços públicos, intervindo no espaço. Há um processo concomitante de construção de personagens, com estereotipia fixada por imagens e palavras que lhe dá sentido preciso. Os chamados indesejáveis, perigosos, turbulentos, marginais podem ser rechaçados e combatidos como o inimigo interno, ou, pelo contrário, podem se tornar invisíveis socialmente, uma vez que sobre ele se silencia e nega a presença. (PESAVENTO, 2001, Pág 13)

Neste processo de afirmar identidades e criar separações sobre o “outro” no espaço urbano, Dostoiévski e Baudelaire têm papel fundamental para dar visibilidade aos cidadãos excluídos das decisões da vida da cidade do século XIX. Trazem suas questões íntimas, seu pensamento crítico e, principalmente, revelam as múltiplas faces existentes na cidade, em movimentos de constante tensão, indiferença e surpresa. Como visto por Berman, ambos os escritores trazem apontamentos sobre os possíveis embates futuros desencadeados pela modernidade. A colisão entre o homem do subsolo e o oficial pode ser visto como a manifestação do indivíduo marginalizado que também quer pertencer ao sonho moderno, assim como para Baudelaire é importante a coexistência da burguesia e do proletariado em um mesmo espaço, mesmo que (e também porque) em permanente confronto. Não seriam esses personagens, com suas angústias, em busca pelo direito à cidade, os futuros protagonistas da Comuna de Paris, da Revolução Russa e das grandes revoluções populares que, no século XX, tiveram o espaço urbano como palco? A Avenida Nevski, em Memórias do Subsolo, e as ruas da Paris de Haussmann, nas obras de Baudelaire, apresentam a importância crescente que a rua tem para a cidadania na sociedade moderna. É na rua que os diferentes têm a possibilidade de confronto e, sobretudo, é somente nela que identidade e diferença podem se relacionar.


REFERÊNCIAS BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução e notas de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BAUDELAIRE, Charles. Spleen de Paris. Tradução Alessandro Zir, Porto Alegre: L&PM,2016. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria Ioratti. São Paulo: Companhia de Bolso, 2014. BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. BENJAMIN, Walter. “Sociologia” IN Kothe, Flávio (Org) Fernandes Florestan (Cord) São Paulo: Editora Ática, 1985. DOSTOIEVSKI, Fiodor. Diário do Subsolo. Tradução de Oleg Almeida. São Paulo: Editora Martin Claret, 2013. JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012. JACQUES, Paola Berenstein. Prefácio. In: Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G.Gili, 2013. PESAVENTO, Sandra Jatahy. “O Desfazer da ordem fetichizada: Walter Benjamin e o imaginário social”. Cultura Vozes, Petropolis: Editora Vozes, Nº5, Setembro- outubro 1995. PESAVENTO, Sandra Jatahy. O espetáculo da rua, Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1996. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade: vida e trabalho -1880-192, Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: O mundo dos Excluídos no Final do Século XIX,São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001. PICON, Antoine. “Racionalidade Técnica e utopia : a gênese da haussmannização” IN Salgueiro, Heliana Angotti. (Org) Cidades capitais do séc XIX, São Paulo. EdUSP, 2004 SCHNAIDERMAN, Boris. “Dostoievski- a ficcção como pensamento” IN Novaes, Adauto (Org) Artepensamento, São Paulo : Companhia das Letras, 1994. SCHNAIDERMAN, Boris. Prefácio. In: DOSTOIEVSKI, Fiodor. Memórias do Subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000. SECKLER, Katia Luisa. “ A Avenida Nevski em memórias do subsolso, de dostoievski: a rua como palco das contradições da modernidade”. Cadernos do Instituto de letras, Porto Alegre, nº37, dezembro de 2008.


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