Sagaracontos – Irineu Volpato
Hoje, São Pedro (que manda no céu barbudo de avô) achou de lavar a rua em que vive (que ele mora uma rua de nuvens dessas que parecem estopa derramadinhas no céu). E a água veio de chuva. De chuva lavando esta rua e outras, muitas tantas, e árvores, e postes, as quantas coisas que não estão cobertas de telhado e guarda-chuva pra se escaparem da chuva. A chuva só chove fininha, gorducha, malandra, moleca, bastante, pouquinha, bravura, raivinha lava ruas, telhados põe o chão verde-verdinho com todas plantas da vida. Faz-se água de torneira que a gente gosta beber. Mas às vezes, malandrona, acaba gostanto tanto de brincar de se chover que incha os regos, os rios que não na conseguem engulir. E pronto! O azar se faz. É água nadando ruas, água pelos quintais, sem perguntar entra em casa boiando mesas, sofás 2
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e geladeiras com tudo dessabendo de parar. E malha, estraga, leva as coisas de precisar...
E já que lá fora chove chuva na rua inteira e chuva lá no quintal, vamos brincar historinhas. Cada um se lembra qual? 260193
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CHAPEUZINHO Quem já viu chapéu andando? Quem já viu chapéu falar? Vamos vivar nossa história. A menina chapeuzinho vai ter de um nome ganhar pra gente poder brincar. Se tinha chapéu vermelho, vamos chamá-la de Rosa e seja lá como for. Pois é, então assim foi a Rosa de chapeuzinho que gostava de brincar, que fazia maroteiras e esticava-se cantar, tinha mãe e tinha avó. A mãe morava com ela, mais longe morava a avó. Essa avó que era velhinha não andava nem fazia. E por isso todo dia a Rosa de chapeuzinho andava o mesmo caminho que passava por um mato a levar para avozinha o pão, a laranja, o leite, juntados numa cestinha. Passava pelo quintal maldava pato, a galinha, e uma porca miudinha essa ia cariciar. 4
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Ganhava trilho do mato, de chapéu, blusa, sapato. Como amava cantar! Seria o medo do só? Assim era cada dia. Já na casa da avó falava, brincava, ria, ajudando se podia a velha deitada avó. E antes que tarde fosse esculachar com o dia, voltava a mesma estrada já sem cantar, de cansada. Naquele caminho mato morava lobo-guará, -um cachorrão sarará, que ficava de botuca toda vez a ver se via como, a Rosa-chapeuzinho, ao entrar o que dizia, para malandro imitar. (Essa história é do tempo que os bichos sabiam falar). Vai daí, era uma vez a Rosa de chapeuzinho que repetia o caminho levando lanche na cesta pra vovozinha na cama, chegou à porta, bateu: Um, dois, três: - Vó, sou eu. - "Pode entrar, minha netinha" E a Rosa de chapeuzinho que vinha tão distraída nem notou a voz ardida 5
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que já não era da avó. Viu na cama um troço feio, sem nariz e só focinho, orelhas tão cachorral, que a assustou inteirinha. Jogou a cesta no bicho e correu para o quintal. Berrou: - "Socorro, me ajudem, lá dentro um bicho feio enganando quer pegar-me!" Por sorte da nossa Rosa, que perdera o chapeuzinho, um caçador que passava, acudiu-a de corrida. - "Qual o medo da menina", perguntou-lhe socorrendo. - "Um bicho, um monstro, sei lá", apontava Rosa assustada a casa de sua avó. - "Vamos lá ver esse monstro, que arrepiou a menina". E estourando a porta inteira, topou inda o lobo vestido das roupas da boa avozinha, querendo fugir, passar. Foi a última vez do lobo, nunca mais pode assustar a Rosa de chapeuzinho e ninguém mais do lugar. Seu couro hoje é pandeiro num cordão de carnaval. 010293
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ARCO-ÍRIS - Quem já viu no céu pintado arco-iris, arco da velha? Contavam os índios, as gentes que quando o céu tinha sede, esticava o arco-íris pra buscar água no rio. E bebia, que bebia, até a barriga inchar. E tanta água bebia, que ele até esquecia, que a água que ele bebia, inchava as nuvens do céu. E as nuvens apagavam o sol e o arco-íris perdia-se, porque arco-íris só sabe aparecer se tem sol. 010293
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SACI Pretinho, peralta, de gorro vermelho, cachimbo na boca, perna tem uma só. Se esconde na mata, maltrata cavalo, embala no lombo quem deixa montar. Apaga candieiro, assanha galinhas, moínha de medo, nas noites de lua, soprando assobio. Tem medo de rio, põe medo nos bichos, que são do quintal. Danado, sapeca, manhoso e arteiro, pretinho pelado, moleque de lenda só quer banguelê.l Quem sabe, quem sabe? - É o Saci-Pererê. 080293
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CABURÉ Essa coruja engraçada, cara chata, olho parado, mora trepada nos tocos como desgosta do dia... Essa coruja agonia diverte-se quando é noite. Com esses olhos pasmados espreita como radar, caça ratos escondidos e voa nas noites sem lua, e põe-se nas pontas dos galhos, assombrando pelo escuro, gritando seu grito aflito dum triste triste de dor. Será que ela canta assim, por morar como ela mora, em casa dada de esmola, que tatu deixou-mudou? Ou naquele buraco oco, que sobrou em pé de tôco, já foi casa de cupim? Dizem que essa coruja é assim tão distraída, de pensar muito na vida. Será mesmo que assim é, ou seria que ela é lelé? Essa coruja espiona, que se chama Caburé? 060293
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ABOIO "Ei, boi, surubim, ei lá". Quem já viu gado no pasto, boi bastante de contar? A gente chama de boi, também a vaca seu par. O pasto esse campo verde e lugar de boi pastar. Manhãzinha, manhã-cedo, tardezinha sol-se-pôr um cavalo, um cavaleiro - ele diz que é um vaqueiro vem o gado trabalhar. E sozinho e seu cavalo - que não amansou falar passa o dia destinando boi pra cá e boi pra lá.
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Vem a fome, bate a sede sol e chuva ele está lá. Como cansa viver só, como é ingrato, sem falar! É uma saudade que lembra, ou um triste de apagar. Dês aí o vaqueiro canta, com resmungo de cantar, ao compasso do cavalo, a jeito do boi andar. E cantando apaga a fome, desesquece de beber, faz saudade encantamento do triste põe esquecer. E à tarde vindo em volta mais o cavalo e os bois, bem de longe se ouve o canto: -"Ei, surubim, ei, oi". 070392
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BOITATÁ A noite jogou sua capa de preto no dia preguiça, niquento do sol. Só o corgo estorvava esse quieto do silêncio. Um céu de nanquim cortava as distâncias dos olhos da gente. Nem bicho nem nada andava na noite. Então num tchim-bum um risco de fogo, com jeito de cobra cuspiu-se do rio.
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E folgando se brincando, quase indo quase vindo, pintou que bordou no preto da noite, a coisa esquisita, que veio do rio. Coruja amoitou, saci se escondeu, os bichos grudaram-se. Não foi quem não teve de medo nervoso, enquanto na noite o negro mostrava a luz que brilhava do fogo Santelmo, da cobra de fogo, da luz Boitatá. 080293
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BRASIL, ESSE FUNIL Como é grande esse Brasil ! Quem já viu nosso mapa desenhado? Não parece até um funil ? Em cima desapertado, em baixo furo entalado. No alto vive Amazonas, o Acre - filhote ao lado. Roraima... como é longe! Rondônia de rio alagado. Noutro canto é o Pará Seu chapéu é o Amapá. Aquela barriga pontuda a gente chama Nordeste, tem Maranhão, Ceará, com Piauí, Paraíba.
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Rio Grande do Norte em riba. de Pernambuco - uma tira, enfeixando as Alagoas. Aquele cantinho Sergipe, quase medo da Bahia. Bem pra lá é Centroeste tem Goiás, tem Mato Grosso, que são dois com o do Sul. Bem no meio lá está Minas querendo comprar o mar do Espírito Santo ou do Rio. E esse pato até mal feito é São Paulo desenhado. Mais ao sul são três Estados Paraná, nosso vizinho, espremendo os Catarinas. No bico desse funil escoa o Rio Grande do Sul... Como é grande esse Brasil! 090293
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NEGRINHO DO PASTOREIO E foi lá pelo Rio Grande, nesse Rio Grande do Sul, em tempo de escravidão, que um negrinho serelepe, -alugado dum patrão, levava pelas coxilhas, os pingos, potros, novilhas engordar pelas pastagens. Um dia. Quem viu? bando de redomão sumiu. Negrinho sem remissão se foi contar ao patrão o sumiço da manada. Patrão juntou negrinho de correia redobrada e bateu, tanto judiou, amarrou-o em formigueiro, formiga negrinho acabou.
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Agora história se enfeita. O negrinho se encantou. É visão pelas coxilhas, nas noites enluaradas, passeia tropa encantada, virou 'té devoção. Quem perde coisa esquecida, está purgando na vida, acende-lhe uma oração. Ornaram Negrinho em santo. Isso contam no Rio Grande, aquele que fica ao sul, bem no bico do funil do mapa nosso Brasil. 100293
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CURURU Cururu já foi um sapo hoje um canto louveiro, com violas, violeiros e pandeiro de alindar. Um pedestre joga a rima o violeiro faz carreira descantando noite inteira, brinca sério a brincadeira. Vez de voz sem companhia, vez então cantam de dois. Quando acerta uma batida, capricha na voz sentida, esmera na sua razão e canta até que resolve, a batida que devolve pra outro cantar também.
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Cantoria se demora louvando santo, senhora, lembrando quem foi embora, falando dos que inda estão. Mas se alguém varia a linha ou se perde dos respeitos, para a viola, cessa o peito, o canturino sem jeito desculpa-se ao centurião, ao santo, ao povo, ao louvado, sai da viola, cai de lado, deixa a frente, pisa atrás. Pra findar murmuração, do jeito que a coisa vai, atacam todos o baixão e lai-lai-lai e lai-lai-lai. O cururu vai-se embora, redobrará noutra hora, outro dia a outro santo, ajeitando-se num canto desimportando lugar onde repita cantar. 110293
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IARA Iara, Ipipiara, Paranamaia mãe-d'água, essa lorena sereia meio-peixe, meio-gente, que canta dolentemente nas horas quietas das águas, é danada de enganar. Quando vê gente sozinha, querendo brincar nos rios, seu canto é d'arrepio, de feitiço é seu feitio. E os que se encantam do canto dessa Iara Ipipiara, nunca voltam pra contar dos encantos da mãe-d'água, seja em rio ou seja em mar. Essa história que é de índio, ainda assusta caboclo que nunca sai a pescar, sozinho, se tem luar. 170293
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PEDRO MALASARTES Malasartes, nome Pedro. Contam nos cantos do mundo que esse Pedro vagamundo, espertalhão como quê, sem saber do a-b-c, vivia folgadamente bandalhando os distraídos, despudorando os honrados, tratando com os airados, velhaco com bem nascidos. É que assuntava a ocasião, que pudesse por a mão. Levar vantagem com Pedro era bobagem sentida. Com o dianho tinha partes esse tal de Malasartes, esse restolho da vida. As histórias desse Pedro que ficaram conhecidas é bem retrato da vida - enquanto o tonto reclama o esperto ganha fama. 170293
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ANHANGÁ Anhangá, esse diabo preto, que assusta nas noites sem lua já botou caburau pra correr, fez coruja piar dolorido. Curupira corta ao longe, se malina de enxofre lhe pega. A boiuna cavouca as águas ao sentir o regougo do dianho. Guará uiva, arrua o tapir, berra o boi, burrico orneja, late o cão, peru gruleja. Até vento que varre fininho, namorando as tabocas das grotas, se encafua silêncio quietinho, espreitando dianho Anhangá, que surte demônio na noite, campeando de susto inquietar. Anhangá olhos de fogo, Anhangá enxofre, inferno deixa Brasil sossegado pra alma seu povo dormir. 180293
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ACALANTO Mamãe, me canta acalanto pra eu dormir e sonhar, me traz barulho das águas que martela praia o mar, repete ôôu-ôôu esses ventos que nas serras vêm soprar, rediz os corgos-ribeiros que nas matas estão passar. Repõe de suas saudades que o tempo cobrou esquecer, dos sonhos lhe tinha a vida que o real logrou esconder. Faz-me vê-la menina trança misturadinha com meu. Recanta, mãezinha, canta esse acalanto pra mim que Acutipuru me empreste o sono seu curumim.
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CURUPIRA Curupira, mato-a-dentro não me engane com seus pés, nem faça desparecer nem me esquecer o que quero. Eu preciso dos caminhos de pra lá querer chegar. Se me espantar no meu medo, ganho o tarde, perco o cedo e Iara não vai gostar. Boiuna que está enroscada nos tocos tortos do rio, pode zangar do assobio que você inquieta a mata. Curupira, Curupira, anãozinho beluíno, não me assusta eu menino que preciso de crescer e casar com dona Sancha, cumprindo barganha haver com meu pai e Dandulinda. 150393
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MULA SEM CABEÇA No quieto das noites no oco das ruas o guarda sumiu, lampião se apagou. Tropel de cavalo que louco passou. É grito, é relincho que longe ecoou? É não, eu já vi. É mula-burrinha mulher encantada, que amou certo padre e em noites de sexta, e encanta-se besta e cai pelo mundo relincho pagando. Eu vi. Você viu? 220393
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NATAL É Natal. É Natal, É Natal! Gozado esse mundo da gente. Todo ano, trás ano a cadência das datas, das luas, dos dias não destoa sequer de variar. É Natal, tal outro que foi, só a gente é rendido mudar. Nós perdemos o riso sorrir, nossos olhos caíram no chão, nossa sombra alongou contra o sol. E a graça dos gestos criança proibiram da gente sonhar. É Natal, esse um eco que doi e a gente não tem como estar - porque foi de ir de passar.
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Encova o real de se ser calça o mago sorriso nos olhos, revogando capricho do tempo, veste todo alvoroço da vida, derreter a ilusão de ficar. Mas nas dobras que atamos o eu quando a festa deixar-se acabar, mais por dor será o silêncio, mais de oco será nossa vida, que o seguinte espreita levar. 190393
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BOTO O boto esse peixe golfinho, que mudou pro riamazonas, esquecido das águas do mar e que gosta brincar sozinho nas águas das ondas saltar, e que vem proar ribanceiro nas beiradas das canoas... dizem, contam gente boa que esse piraia-guará quando o dia se cansa e deita nas águas do Jamundá o boto-guará maroto se veste casca de gente e vem encantar as moças que sonham nas ribas dos rios.
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Se a cunhã faz-se encantada e bebe do boto a história, antes da noite ir-se embora será mais uma moça rouçada a parir filho na vida. E o boto que cai-se embora na manhãzinha já aurora de águas adormecidas, conta outra noite seguida a reiterar sua sina, variando de boto gente amando mulher-menina. 210393
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LUA A lua mulher do sol só trabalha quando é noite pra deixar sol descansar. Não gosta de brilhar tanto pra seu marido invejar. Mas a graça que é da lua o sol não sabe imitar. O luar tem mais macio, o luar é de gostar. Lua cheia enfeita o rio e pinta águas de mar. A lua fala de afeto, a lua inspira cantar. Ah, lua, lua de ouro, lua de prata, luar devolva à alma criança gostar, ser esperança e sentir a dor de amar, enquanto o sol não se acorda de sonho não se acabar. 040593
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SOL Essa luz esganada que é o sol, que levanta cedinho, manhã, desenhando contornos de morros, de prédios, matas, campinas, e empurra a lua no céu, pra deixar sua luz fazer dia, e que enxuga o orvalho das folhas, e que ajuda semente nascer, e que seca o frio da gente, e que bebe as águas do rio, pra ensinar nuvem se inchar, e chover, e regar chão dos campos, onde os rios não têm alcançar... Esse sol que é luz e que arde, também põe versos na tarde, como faz cantar as manhãs. 040593
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RIO Acho que o rio foi criado, quando duas terras briguentas, não queriam se suportar. Deu-se então que rio partiu cada terra em seu lugar, e sucedeu-se o esquisito. As terras criaram a ponte pra de novo se encontrar. E o rio que veio e fazia macio pra todos os lados, enfeitando o sol da manhã, repetindo céu estrelado, ao descobrir-se enganado pela ponte e as duas irmãs, um dia encheu-se de chuva e inundou ambos os lados, depois chamou água-pés, escondendo seu macio, do sol, de todos os dias, do céu sempre estrelado, vingado não ser mais rio. 050593
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SAUDADE Ela vem sobre nós toda macia, ganhando nosso quieto, nosso só. Aí nossa alma que vinha banzeira, confiando ganhar a companheira, ouve a saudade entrar, morar, levar a gente garupada num corcel pelos dias idos, insolvidos. Acertamos té que leve nossas rédeas, desleixados onde diz que vai chegar. Vai daí de distraidos lá nós vemos repetidos coisas quantas que juramos esquecidas, descaminhos que nos foram doloridos remendando pouco alegres mais trisezas sofrendo desse estar, mas curiosos de ficar... Que será que alma da gente se cotuca saudosar ? Seria porque a saudade é um jeito que a gente arruma da gente não mudar idade? 080593
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VENTO Tem vento, ventinho e ventão e todos os três são irmãos. Cada qual com seu jeitão. Ventinho é o que abana como as folhas de banana, de leve, só de passagem e leva o nome de aura, de brisa, ou de aragem. O vento já é mais fogoso, ruge rijo mais lufoso. No gelo, dizem nortada, no deserto faz simum. Se é do sul é minuano, borrisco se é vento arisco, se é seco dizem cansim. E tem pampeiro, abanada, siroco, monção, lestada.
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Mas ventão é o que agita, lufa, varre, açoita, grita, uiva, ulula, desgrenha, sacode as copas das brenhas, e passa todo alarido doido doidão varrido assustando terra e céu com seu ventoso escarcéu. Esse vento é tufão, pé-de-vento, ventania, trabusana, furacão. Tem vento de todo jeito, feito irmãos, mesma família, cada um sua ziquezia, cada qual com seu defeito. 100593
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MONTANHAS Tenho comigo que nossas montanhas são do tempo em que o mundo era um vasto parque infantil. Espiem só as figuras, os contornos de seus lombos, o jeito que cadaqual pedrou-se em fotografia, que o tempo gostou guardar. Não parecem que flagradas ao pincharem debandadas quando abriu portão do parque? Uma é curva, outra eriçada, e aquela que tropeçou? Esta arqueou a pegar algo, alguém sobrou na corrida e perdeu-se longe, atrás. É desse jeito que vejo aqui longe donde moro, nesse vale, no meu brejo as montanhas que namoro. 130593
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ÁRVORE Eu nasci em pico de morro vizindário tantos vales, amando ver sol nascer sonhando quando na tarde o sol despedia do dia entre galhos de aroeira. De aroeira que morava na outra linha do morro, aroeira que guardava em sua sombra nossa rês, gordalhona, sempre verde. Acho, pouco lhe importava o vento que me assustava, uivando nas noites quietas. Fosse chuva ou soalheira, a verde, verde aroeira, passava, como passou, por meu pai, meu avô. Céus queira lá permaneça mais tempo sem fim, à beça. 130593
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BOI Como foi, como não foi? Nasceu o boi! Boi que pasta, boi que berra, ajuda homem arar a terra, diverte a vida em touradas, namora as vacas manadas. E quando está só no pasto fazendo nada no nada se veste assim pensadores varrendo olhar vadio os arredores, desfilando terras onde passou: - comitiva -andou Mato Grosso, - boiadas de caminhos veredou, - sertão conheceu de arribação, ou estaria lembrando os irmãos que perderam-se carneados emcharqueadas ou nos que medraram peças em matadouros? O boi com pose, vira touro, se é boiada, carne, chama gado. Como foi, como não foi, só sei que existe o boi. 130593.
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GLOSSÁRIO À beça = bastante, muito, sem fim. Abanar = ventilar, mexer com o leque. Abarrada = ventania. Aboio = canto de vaqueiro tocando a boiada. Acalanto = canto triste, de ninar. Acutipuru = cotia enfeitada (parente maior do preá = coelho do brejo). Aflito = medroso, inquieto, desesperado. Aguapé = planta que flutua no rio. Airado = cabeça fresca, irresponsável. Alarido = barulho, escarcéu, vozerio. Alindar = deixar ou fazer bonito. Alvoroço = alegria, entusiasmo, movimento. Aroeira = árvore frondosa brasileira. Arquear = curvar, arredondar. Arredor = vizinhança, por perto. Arrepiar = assustar, deixar arrepiado, afugentar. Arribação = mudança (de aves). Arruar = voz da anta (tapir). Assuntar = escolher, pensar. Atar = ligar, amarrar. Aura = vento brando, fraco, mesmo que a aragem. Baixão = final da cantoria (lai, lai, lai) do cururu. Bandalhar = provocar, atrapalhar, enchouriçar. Bangalê = confusão, desordem. Banzeira = triste, mole, acabado. Barganha = promessa, troca. Batida = verso desafiando o adversário. Beluíno = feroz, bravo, rude. Besta = animal selvagem.
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Borrisco = vento que vem molhado. Brejo = terra aguada, morada de sapo. Brenha = mata, capoeira. Caburau = caburé, curiango, ave noturna. Cachimbo = pito, ferramenta de fumar. Cachorral = aparência de cachorro. Campear = procurar, buscar gado no pasto. Candieiro = lamparina, luz alimentada por petróleo. Cansim = vento de região seca. Canturino = cantor aprendiz, auxiliar. Cariciar = acarinhar, fazer carícias. Carneado = parte de boi morto. Carreira = rima do cururu. Cavoucar = fazer buraco. Centurião = dono da casa ou da festa. Charqueada = lugar onde se faz o charque (carne salgada) do boi. Comitiva = boiada em trânsito. Corcel = cavalo novo, fogoso, rápido. Cordão = bloco, turma, cunjunto de pessoal. Córgo = rio pequeno, córrego, riozinho. Coxilhas = morros baixos arredondados do Rio Grande do Sul. Cunhã = menina, mulher moça. Cupim = bichinho que come madeira e faz sua casa em monte de terra. Curumim = índio pequeno, criança. Cururu = (sapo) canto, dança, desafio de violeiros em festas religiosas, com violas de cinco cordas. Dandulinda = Dandalunda, Iemanjá. De botuca = à espreita, espiando. Debandar = esparramar, perder, distribuir. Desleixar = esquecer, abandonar. Despudorar = envergonhar.
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Dessaber = não saber, ignorar. Destinar = levar, dar destino. Destoar = trocar, mudar, perder o tom. Dianho = diabo, satanaz, coisa ruim. Dolente = mole, triste, arrastado. Embalar = balançar, tornar bala. Encafuar = esconder-se nos cafundós (longe). Encantamento = imaginação, ilusão. Encovar = encurtar, encolher, diminuir. Entalar = apertar, espremer, estar entre. Eriçada = levantada, arrepiada. Esganado = faminto, sem medida. Esmerar = caprichar, fazer bem feito. Esmola = dádiva, caridade, doação. Esparecer = desaparecer. Espiar = olhar, ver, bisbilhotar. Espreitar = espiar, observar, ficar de botuca. Esquisito = estranho, anormal. Esticar = espichar, estender, fazer como borracha. Estopa = retalho de panos usados para limpeza, dar brilho. Estorvar = atrapalhar, empulhar. Focinho = a cara do animal. Fogoso = rápido, esperto. Funil = peça cônica para encher vasilhame. Garupa = costas do animal. Golfinho = peixe inteligente do mar. Inchar = estufar, crescer, engordar. Insolvido = não resolvido, não concluído. Jacundá = afluente do rio Amazonas. Lelé = que não bate bem, tonto, não é certo. Lenda = história imaginada. Lestada = vento que vem do leste.
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Lobo-guará = cachorro do mato, lobo brasileiro. Lograr = conseguir, obter. Lombo = costas, parte de trás. Lorena = loirona (v. morena = moira). Louveiro = que louva, louvador, puxa-saco. Lufoso = soprado forte. Mago = mágico. Malhar = bater duro, com vara, relhar. Malina = cheiro, odor ruim. Manada = conjundo, grupo de animais. Maroteira = molecagem, reinação de criança. Medrar = ficar, permanecer. Minuano-pampeiro = vento que vem dos pampas (RGS). Miúdo = pequeno, curto, trocado. Moinhar = amedrontar, amassar. Monção = vento quente de verão. Nanquim = tinta de cor firme (em geral, preta). Niquento = impertinente, chato. Nortada = vento que vem do norte. Novilha = vaca nova. Ornar = enfeitar, inventar, criar. Ornejar = voz do burro ou burrico. Pandeiro = peça de couro armado em arco de madeira com tampinhas que chacoalham. Pasmado = assustado, admirado, arregalado. Pedestre = pessoa que assiste cururu. Pedrar = virar figura, pedra, estátua. Peralta = sapeca, arteiro, malandro, esperto. Pico = cume, ponta, alto, cimo. Pingo = cavalo típico do gaúcho. Piraia-guará = nome indígena do boto. Potro = cavalo novo, cavalinho.
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Proar = fazer o barco vir à margem, na beirada. Purgar = padecer, sofrer, limpar. Razão = argumento, motivo da cantoria. Rédea = corda que leva e dirige o animal. Redobrar = repetir, renovar. Redomão = cavalo novo solto no pasto. Regougo = voz gutural, de fantasma. Reiterar = continuar o caminho. Relincho = voz do cavalo. Remissão = perdão, remessa. Rendido = obrigado, forçado. Rês = animal (vaca, boi, etc.) novo Resmungo = falar entre dentes, resmungar. Restolho = resto sem valor, coisa vil. Revogar = deixar para lá, tornar sem efeito. Riba = beirada, margem de rio, em cima, norte. Rouçada = mulher desvirginada. Sarará = cor amarelo avermelhada. Saudosar = criar, inventar saudade. Serelepe = esperto, relâmpago, ativo. Simum-siroco = vento quente de deserto. Sina = sorte, destino. Soalheira = sol quente, forte, ardido. Sumiço = perda. Suportar = aguentar, tolerar. Surtir = aparecer, despontar. Surubim = espécie de boi. Taboca = lugar longe, perdido, confins. Tatu = bicho do mato que faz sua casa debaixo do chão. Toco = pedaço, resto (de madeira cortada). Trabuzana = vento forte, destruidor. Trás = através, depois.
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Trepar = subir, ficar sobre. Trilho = caminho estreito, picada, trilha. Tropel = barulho de tropa. Uivar = voz do cão, do guará. Vaqueiro = que cuida das vacas, boiadeiro. Variar a linha = perder a rima. Vasto = grande, largo, amplo. Velhaco = malandro, vivo, safado, velho contumaz. Vivar = tornar vivo, dar vivas, avivar. Vizindário = próximo, vizinho. Zangar = ficar bravo, fulo. Ziquezia = azar, má sorte.
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Direitos reservados
VOLPATO, Irineu, 1933... V896P SAGARACONTOS, Poesia 1.
Poesias brasileiras - Período modernista I. Título 2. Capa do autor CDD: 869.915
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