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entrevistados.................... A experiência de Lupicínio Rodrigues na visão dos entrevistados
desta atividade, pois declaram estar prestando algo importante e incomum à esta sociedade. Neste sentido, misturam-se percepções de crescimento individual e de benefício coletivo trazidos pela atividade musical. A prática desta atividade pouco acrescentaria ao indivíduo se não tivesse, em contrapartida, uma outra decorrência, fora do grupo que a desenvolveu. Os entrevistados sentem-se, e são, pessoas especiais por perceberem-se desta forma.
Jerrold Seigel(1992:13 e 13) descreve a boêmia, associando-a especificamente a um momento cultural, localizando-a na França em contraposição aos valores burgueses, ou na sua própria construção, ao longo do século XIX e XX. Destaca-se a sua imprecisão: ora é um lugar, ora uma visão de construção da realidade. Quanto à construção de uma imagem do que veio a ser a prática da boêmia, elabora uma descrição que pode perfeitamente exemplificar a situação dos boêmios de que fala esta dissertação.
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"(...) Eles viviam na Boêmia porque não podiam - ou ainda não podiam estabelecer sua cidadania em nenhum outro lugar. Ambiciosos, dedicados, mas sem meios e não reconhecidos, tinham de transformar sua própria vida em uma arte. 'Sua existência cotidiana é uma obra de gênio'. (...) 'Por boêmios,' declarou um ator teatral da década de 1840, 'eu entendo aquela classe de indivíduos cuja existência é um problema, a condição social um mito, o destino um enigma, que não tem residência fixa, abrigo reconhecido, que estão localizados em parte nenhuma e que são encontrados em toda a parte! que não tem ocupação determinada e que exercem cinqüenta profissões; cuja maioria se levanta pela manhã sem saber o que vai jantar à noite; ricos hoje, famintos amanhã, prontos para viver honestamente se puderem e de qualquer forma se não puderem'.
Alguns dos entrevistados associam-se pouco a esta imagem, mas compartilham da mesma, enquanto grupo. Outros, a exemplo do próprio Lupicínio, são quase descritos por ela.
A experiência de Lupicínio Rodrigues na visão dos entrevistados
O grupo de entrevistados produziu ao longo das entrevistas várias imagens de Lupicínio Rodrigues. A convivência na música, ao aproximar cada um dos depoentes, trouxe lembranças variadas sobre esta atividade e sobre o compositor.
HALBWACHS(1990:185) adverte que a memória dos músicos, de certa forma, encontra-se ao mesmo tempo distante e próxima da sociedade, pelo tipo de percepção
que desenvolve. Neste sentido, os músicos tem de si e de seus companheiros de ofício uma idéia toda peculiar.
"Toda uma parte de suas lembranças se conserva somente dessa forma, quer dizer, fora deles, dentro da sociedade daqueles que, como eles, se interessam exclusivamente pela música. Porém, mesmo as lembranças que estão neles, lembranças das notas, dos sinais, das normas, encontram-se em seu cérebro e em seu espírito somente porque fazem parte dessa sociedade, que lhes permitiu adquiri-las; eles não tem nenhuma razão de ser senão em relação ao grupo dos músicos, e as lembranças então se conservam neles apenas porque fazem parte ou fizeram parte dele. É por isso que podemos dizer que as lembranças dos músicos se conservam numa memória coletiva que se estende, no espaço e no tempo, tão longe quanto sua sociedade."
Desta maneira, o grupo se une e se divide ao descrever Lupicínio como compositor, amigo, esposo, funcionário público, representante da SBACEM, namorador, parceiro... A cada depoimento Lupi aparece com uma face diferente.
A produção musical de Lupicínio Rodrigues, assim como o sucesso de suas composições, recebe várias interpretações da parte dos entrevistados.
Ao descrever a maneira como Lupi compunha o grupo se divide. Existe uma unanimidade ao afirmar o compositor como um grande letrista, um poeta. No entanto, as opiniões se dividem ao explicar a construção das melodias. Alguns entrevistados levantaram a possibilidade de que Lupicínio comprasse as músicas, a partir do excelente ouvido que tinha, optando sempre por canções que se tornariam famosas. Outros, referendando esta opinião, dizem que seria impossível a alguém que não conhecesse a música de maneira mais aprofundada, construir melodias de tal natureza, acrescentando que o compositor teria então se valido das parcerias que o acompanharam. Refutando estas hipóteses, aconteceram versões que descreviam a maneira de compor de Lupi, quase instantaneamente na mesa de bar. Nestas ocasiões, ele abstraía-se da conversa e colocando a mão sobre a cabeça, utilizando um guardanapo para escrever a letra, passava a cantar a música logo em seguida.
A maneira como os entrevistados se relacionam com a forma de compor de Lupicínio está diretamente vinculada aos seus próprios conhecimentos musicais. As pessoas que tinham uma maior cultura musical, do ponto de vista da sistematização e formalização da teoria, praticamente não aceitam uma composição feita nas condições em que surgiam as músicas de Lupi. Para estes entrevistados, é praticamente impossível compor sem os conhecimentos considerados "básicos" a esta atividade. Para vários outros entrevistados a maneira de compor de Lupicínio só pode ser explicada pela genialidade.
Quanto a letra das canções, não colocam em dúvida a autoria, reconhecendo o talento do compositor. Referem-se também aos inúmeros erros de concordância e de ortografia, que muito a contragosto Lupi alterava, a partir da sugestão de algum amigo. Mencionam que vários destes erros apareceram em gravações e só foram corrigidos anos mais tarde. A pouca escolaridade de Lupicínio aparentemente causava constrangimento, o que não impediu que ele convivesse com pessoas bastante cultas, que faziam bom uso da palavra escrita, como jornalistas e poetas. Muitas vezes o próprio erro acompanhava uma rima, uma construção de frase, que dava sentido à estória contada na música, o que justifica a resistência de Lupi em corrigi-la. Mais surpreendente ainda é o fato de apesar de toda dificuldade que isso representava, Lupicínio descreveu situações e construiu imagens e versos nas suas músicas, que seus amigos e acompanhantes não puderam realizar, apesar de toda formação intelectual que tiveram.
Relacionando a maneira de compor de Lupicínio Rodrigues, em relação aos demais entrevistados, vários valem-se dos mesmos recursos utilizados por ele. Por exemplo, quanto a memorizar a melodia, que Lupicínio não podia transpor para a linguagem musical. A alternativa é criar um tipo de música, cuja facilidade em repetila garante a sua memorização quase imediata. Neste caso, um pouco da "fórmula do sucesso" desenvolvida pelo compositor era também compreendida, na medida em que compunha músicas que pudessem facilmente ser apreendidas, pelo ritmo em que surgiam. Através do ritmo, muitas canções associadas ao trabalho foram criadas, mantendo exatamente um compasso que permitisse a execução de determinados ofícios. Outro recurso utilizado por Lupi, para manter viva a composição era entregá-la logo a quem a cantasse, ou interpretasse, como forma de difundí-la ou mantê-la na memória. Antes da chegada do disco, um dos únicos recursos, também utilizado por Lupicínio era procurar um colega, alfabetizado na leitura e escrita musical e solicitar que a música fosse transcrita para uma partitura.
"Os sons musicais não se fixaram na memória sob a forma de lembranças auditivas, mas aprendemos a reproduzir uma seqüência de movimentos vocais. (...) os sons ouvidos no presente vem ao encontro desses movimentos de reprodução esboçados, ainda que aquilo que, nesses sons, se ajuste aos movimentos, isto é, não o seu timbre, mas essencialmente a diferença de altura dos sons, os intervalos, o ritmo, ou, em outras palavras, aquilo que da música pode realmente transcrever e representar através dos símbolos visuais.(...) Distinguimos no que foi dito dois modos, para as pessoas que não sabem nem ler a música, nem tocar um instrumento, de lembrar-se de um tema musical. Uns se lembram porque podem reproduzí-lo cantando. Outros se lembram porque já o ouviram e nele reconhecem algumas passagens. (HALBWACHS, 1990:163 e 164)
Na experiência dos entrevistados foi muito comum a utilização das práticas descritas. Lançavam mão também de um instrumento para auxiliar na composição. Atualmente, vários fazem uso do gravador para memorizar música e letra. Ao que parece as numerosas composições de Lupicínio permaneceram pelo agrado que proporcionaram, já que foram gravadas e regravadas inúmeras vezes, assim como executadas outras tantas. Se a produção conhecida do compositor já assusta pelo grande número de canções, existem ainda uma infinidade delas que os depoimentos revelaram como de posse daqueles que receberam uma música, e guardaram o "presente" impresso no guardanapo. Sobre a maneira de memorizar as músicas, neste tipo de atividade, HALBWACHS (1990:164) declara:
"Consideremos agora duas maneiras ainda, porém desta vez para músicos ou para pessoas que sabem ler a música, de se lembrar igualmente de um tema musical. Uns se lembram porque podem executá-lo, e os outros, porque tendo lido antes ou lendo agora a partitura, o reconhecerão quando o executarem. Entre essas duas categorias de músicos, dos quais uns executam, e os outros escutam, ao mesmo tempo que se representam os símbolos musicais e sua seqüência, há a mesma relação entre aqueles que cantam uma ária, e os que a reconhecem, pela audição, ainda que nem uns e nem outros saibam ler a música. A memória musical, nos grupos de músicos, é naturalmente bem mais ampla e bem mais segura do que a dos outros."
De qualquer maneira, como explicar a extrema sensibilidade de Lupicínio ao construir letras ou a desenvolver/"escolher" melodias? De certa forma, o compositor acende a chama da vaidade do grupo que criticamente reconheceu seu talento.
"A memória dos músicos está então repleta de dados humanos, mas de todos aqueles que estão em relação com os dados musicais. Não imaginemos que, para elevar-se ou aprofundar-se, o sentimento musical deva separar-se da técnica, e se isolar de tudo aquilo que se passa dentro da sociedade dos músicos. Se o observarmos e reconhecermos, se apreciamos e admiramos o temperamento ou o talento de um músico, é porque em sua sensibilidade e seu desempenho encontramos um dos modelos sempre presentes no pensamento daqueles que se interessam pelos sons, e que realiza melhor, encarna com maior sensibilidade as tendências do grupo. Ele é considerado como se estivesse acima dos demais por seu gênio musical, porém, é como se estivesse possuído por um demônio invisível, cujo espírito se apodera de todos os músicos, mas que se deixa prender e dominar somente por um pequeno número. Onde encontrá-lo, a não ser no coração do grupo?" (HALBWACHS, 1990:180 e 181)
A maneira como HALBWCHS se refere à "genialidade" do músico, ao torná-lo inseparável do grupo do qual faz parte, aproxima-se da concepção desenvolvida pela História Social da Música, no que se refere ao mesmo tema. Dentro desta perspectiva não são deixados de lado os dotes do artista ou as peculiaridades que compõe sua personalidade. Ao contrário, a partir do talento e sensibilidade diferenciada de alguns músicos é que acontece seu maior desenvolvimento se comparado com os demais. No entanto, o grupo é tão responsável por isto quanto o indivíduo, na medida em que seu aprendizado acontece no contato que tem com as diversas manifestações musicais. Neste caso, a construção do compositor ou do instrumentista representa uma caminhada do indivíduo a partir das potencialidades que aquela sociedade lhe apresenta. Os diversos estágios que atravessa o compositor ou intérprete, em sua construção, correspondem ao conhecimento e superação do mesmo, ao desenvolver esta atividade, que não pode ser vista de forma isolada, individual.
RAYNOR(1986:16 a 19) reclama insistentemente a inserção do músico não apenas dentro do grupo a que pertence estilisticamente, mas dentro da própria sociedade. Neste sentido, refuta uma história de "estilos musicais", para uma história que identifique o músico como participante e resultado de uma dada conjuntura histórica.
"(...) a música deve existir socialmente. Ela é escrita de modo que outras pessoas além do compositor possam executá-las. A maior parte dela pressupõe os esforços criativos e interpretativos de duas, três ou mesmo centenas de executantes; obras há que exigem os serviços de muito mais musicistas. A maioria das músicas pressupõe, também a atenção do público. É freqüentemente difícil saber quando e até que ponto um compositor está conscientemente comunicando, conscientemente transmudando experiência ou idéias em música para o prazer de outros, ou para partilhar com eles o que ocupe ou mesmo obceque o seu espírito.(...) Em última análise, a música surge, em parte, das atitudes de espírito que o compositor partilhe com os seus contemporâneos, ou de sua reação contrária a ele. Ele escreve para executantes ou cantores, não raro para indivíduos específicos de particulares talentos e realizações. Dirige o que escreve a um público, mesmo quando apenas a um público às vezes meio imaginário e ideal, com determinadas afinidades e reações. Ele atinge o seu público de modos particulares: pela execução da obra, se possível; do contrário, pela publicação. O modo como chega ao público pode e deve, quase necessariamente, ser influenciado por essas considerações sociais." (RAYNOR, 1986:16 a 19)
Lupicínio Rodrigues é um grande exemplo neste sentido. Da batucada em sala de aula ao cordão carnavalesco, dos violeiros da Ilhota ao encontro com músicos do porte de Marino dos Santos e Paulo Coelho. Todos estes contatos construíram o sujeito e o compositor Lupicínio Rodrigues. É praticamente impossível dissociar a ampla rede de afinidades e de relações desenvolvida por Lupi de sua atividade musical. Assim como não economizou caminhadas na noite da cidade, não deixou de ouvir, construir e aprender a música que se fez em Porto Alegre enquanto compôs.
Os entrevistados referem-se ao "companheiro" Lupi de diversas maneiras. Para os que conviveram com ele na noite, vale sempre citar a sua perambulação noturna, mencionando o fato de que nunca se recusava a participar de qualquer festa. Neste sentido, constrói-se a imagem do boêmio e do namorador. Então, sucedem-se as inúmeras estórias relatando casos, explicando as músicas que se originaram deles, apontando a grande voracidade sexual do compositor. Aliado a isso a descrição do sofrimento que gerava cada desilusão amorosa, que Lupicínio chorou em quase todas as suas músicas.
Chamam a atenção os vários relacionamentos descritos, que perdidos sempre eram acompanhados do sofrimento. Detendo-se melhor nesta questão, percebe-se que a ambigüidade não encontra-se nos relatos, e sim na personalidade do compositor. Alguns entrevistados acreditam que ele provocasse este tipo de situação afim de ter argumentos para compor. Outros vão mais longe, atribuindo as constantes "perdas amorosas" de Lupicínio com todo tipo de perda que sofreu ao longo da vida. Então, ao declarar-se infeliz pelo fato de perder um amor, de certa forma permitia extravazar o sentimento de ter perdido ou nunca ter tido tantas outras coisas e oportunidades.
No entanto, Lupicínio não pode ser compreendido apenas sob esta ótica. Assim como vários entrevistados sustentam sua imagem de namorador, outros afirmam que ele não teve tantos casos assim. Justificam isso argumentando que o grande número de composições que realizou relatavam situações que ele acompanhava de outros casais na noite. Dizem os entrevistados que era muito comum alguém sentar à sua mesa para chorar uma desilusão, o que logo virava música, ainda que não mencionando os envolvidos no acontecido. Ao não citar nomes, logo as pessoas atribuíam a ele um novo relacionamento.
De qualquer maneira, Lupicínio teve grandes paixões. Os biógrafos citam o que os entrevistados referendam. Entre tantas mulheres que conheceu, quatro foram muito importantes em sua vida: Iná, Mercedes, Cerenita e Relinda.
Iná foi cantada muitas vezes em suas músicas, e vários dos entrevistados afirmam que ele nunca a esqueceu. Mercedes inspirou também grandes sucessos do compositor e é uma figura notória na descrição dos amores que teve Lupicínio. Cerenita, com quem se casou, acompanhou Lupicínio até sua morte. Com ela, e apesar do mau gênio que os entrevistados ressaltam, Lupi pode se dedicar a uma casa e construiu-se na
esfera doméstica completamente diferente do homem da boêmia. Por fim, Relinda, que Lupicínio lamentou, em música, não poder estar permanentemente a seu lado.
Fica, então, uma outra idéia do compositor. Comprometido em ouvir os amigos, em assistir os irmãos e a família quando o dinheiro surgia de seu sucesso. Várias são as declarações que mostram um Lupicínio apegado aos filhos e netos, as plantas e animais que tinha em casa, ao churrasco no domingo, ao próprio fim de semana dedicado à esposa e ao filho. Compreende-se porque ao final da vida o compositor era chamado carinhosamente de "o velho Lupi". Aparentemente Lupicínio adotara os amigos e as noites da cidade como uma extensão da própria vida doméstica. Apadrinhou músicos, tinha com eles uma relação de amizade e paternidade ao mesmo tempo. As inúmeras brigas que teve com a esposa em função das saídas noturnas acabaram transformando-se em algo rotineiro, conhecido pelos companheiros de boêmia. O depoimento do neto Júlio César dá uma amostra de um avô que podia também ser bastante enérgico e que cobrava responsabilidade por qualquer estrago feito às frutas do quintal.
Contrariando a generalização da idéia de que um boêmio é alguém absolutamente desligado da esfera doméstica, Lupicínio deu mostras de conciliar os dois mundos e ser lembrado por isso. Estendeu esta "familiaridade" aos conhecidos dos bares, que lembram sempre da frase e da fala baixa e arrastada com que dizia "meu camaradinha...". Impressionante e invariável é a maneira como as pessoas que conviveram com ele descrevem a sua maneira de falar e de se dirigir a elas. Todos os entrevistados, sem exceção, ao mencionarem um relato sobre Lupi imitam seu gesto e sua voz. É quase como se conseguissem com isso trazer de volta o homem, o sujeito Lupicínio.