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EPÍLOGO
EPÍLOGO
Lupicínio foi o quarto filho de uma família pobre, nascido no também desamparado bairro da Ilhota, em Porto Alegre. Sua entrada na colégio já demonstrava a pouca adaptação as muitas regras que preparavam as pessoas de bem para o mundo do trabalho e suas muitas obrigações. A indisciplina repetiu-se na precoce entrada no exército, que o pai ainda acreditava capaz de reconduzir o rapaz, desvirtuado pela música. Nem os vários empregos a que foi submetido após a baixa no quartel puderam reconduzí-lo. Muito menos o compromisso assumido com a noiva, a quem venerou pelo resto da existência, conseguiria tirá-lo do prazeiroso compasso da boêmia. As composições avolumavam-se, as músicas espalharam-se através de bocas, pessoas, espaços e classes sociais. A genialidade era reconhecida, a fama chegou com as sonoras ondas do rádio. Num rápido passeio pelos centros da cultura e da política, vozes consagradas disputaram suas letras, cujas melodias foram escritas por algum amigo de passagem. O retorno a Porto Alegre relembra-lhe a origem humilde. O casamento aponta-lhe a tranqüilidade da vida em família, junto aos filhos e cuidados com os pequenos animais, que eram sua predileção no quintal, quase uma chácara, da casa. A ronda pelas noites da cidade garantiram os muitos amigos e a continuação de sua obra. As mudanças na vida da cidade e no país calaram sua voz no disco, no rádio e na tv, que nascia. Continuou a receber os amigos em sua casa, em seus bares, em todos os bares. O mundo segue girando, as transformações continuam, o interesse pelo popular se renova. O velho Lupi, como passou a ser conhecido, é redescoberto pelos jovens compositores de vanguarda. As regravações se sucedem e continuam alternadamente, mesmo após sua morte. O menino da Ilhota renascia para as novas gerações.
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Assim poderia ser descrita a vida do compositor Lupicínio Rodrigues a partir dos relatos e biografias existentes. E, quanto a diversificação das informações sobre Lupi, esta dissertação pouco acrescenta. Mais especificamente este trabalho buscou desenvolver um outro olhar sobre as biografias e histórias de vida aproximadas pela música.
Esta pesquisa tinha entre as suas preocupações iniciais compreender a atuação do signo musical em uma dada cultura e realidade, enquanto aspecto representativo na biografia de Lupicínio Rodrigues. Este problema acompanhou todo o desenvolvimento deste trabalho, mas não foi desenvolvido na dissertação. Das composições de Lupi foram apresentadas, e relacionadas com o seu cotidiano, apenas as letras das músicas, e nunca as melodias que as constituíram. A questão permaneceu em aberto e está sujeita a ser desenvolvida num outro momento, como possível projeto de doutorado.
Realizo aqui esta avaliação do trabalho, pois diversas questões permaneceram como fonte de interesse nesta pesquisa, ainda que não tenham sido respondidas na sua totalidade, evidenciando seu caráter não conclusivo. Neste sentido, esta dissertação representa uma proposta de continuidade de um projeto mais amplo no desenvolvimento do gênero biográfico associado à história social da música.
Os textos, com relatos sobre a vida de Lupi ou dos entrevistados, evidenciaram fatos de suas vidas, ao mesmo tempo que nenhum outro tipo de interpretação se colocava frente a eles. A opção por esta forma de abordagem, no tratamento das fontes, teve como intuito possibilitar ao leitor suas próprias conclusões ou impressões sobre as biografias apresentadas. Neste sentido, a construção de um olhar sobre os diversos sujeitos envolvidos constituiu-se a partir das suas próprias falas, junto a aproximação de outros textos. Múltiplos sujeitos apareceram, junto a construção de estereótipos também. Permanece o mito, recriam-se sujeitos vários.
Sob tal ponto de vista não seria possível chegar a uma forma conclusiva sobre o sujeito Lupicínio, ou os sujeitos entrevistados. O mesmo pode se afirmar quanto a construção de um modelo da realidade, vivenciada diferentemente por todos.
Entre as assertivas que ficariam neste trabalho encontra-se a pluralidade de uma visão do cotidiano expressa pelos entrevistados e falas de Lupicínio Rodrigues. Desta mesma expressão do cotidiano ressalta-se a importância da música na constituição de cada um dos sujeitos percebidos.
Partindo do levantamento feito sobre a vida de Lupicínio, assim como quanto a vida de outros personagens biografados, é possível perceber a constante referência feita as conjunturas históricas, marcos de tempo referenciais, décadas destacadas. O mesmo pode ser dito quanto aos textos sobre a história da música e dos cantores, compositores e artistas à ela dedicados. Surpreendente é o fato de que tais escritos raramente foram construídos por um historiador de ofício. No caso das biografias, um grande número delas foi desenvolvida por jornalistas. Quanto as histórias sobre a música, dividem-se tais escritos entre os iniciados na atividade musical, jornalistas e pesquisadores sobre folclore e manifestações culturais. Não pretendo explicar os motivos que levaram os historiadores a ausentarem-se nestas áreas de conhecimento, mas partilho da preocupação daqueles que denunciam este espaço como não ocupado pela historiografia.
RAYNOR(1986:14) reclama insistentemente a presença dos historiadores na história da música. Argumenta esta necessidade através da crítica a uma "história de estilos musicais". Na visão deste historiador este tipo de história se reduziria a uma compilação das muitas manifestações de estilos na música, ao longo do tempo, sem que para isso houvesse a preocupação em compreender como surgiam e em que condições reais passavam a existir junto a seus criadores.
"A música, a menos que não passe de rabiscos casuais em sons, tem o seu lugar na história geral das idéias, pois sendo, de algum modo, intelectual e expressiva, é influenciada pelo que se faz no mundo, pelas crenças políticas e religiosas, pelos hábitos e costumes ou pela decadência deles; tem sua influência, talvez velada e sutil, no desenvolvimento das idéias fora da música."
Partilhando da mesma preocupação acerca da ausência dos historiadores nos estudos sobre a música encontra-se CONTIER(1991:152), ao analisar a produção historiográfica brasileira sobre a temática musical.
"No Brasil, a ambigüidade do signo sonoro devido a razões conjunturais e históricas, tornou-se objeto de investigação de pesquisas realizadas pelos literatos, antropólogos, sociólogos, cientistas, políticos, jornalistas, semiólogos, biólogos e, raramente, pelos historiadores de ofício."
CONTIER não apenas adverte para a não intromissão dos historiadores neste tema, como aponta o uso tendencioso feito a partir dos chamados "fatos históricos", ao justificar determinadas interpretações sobre a música. Aponta a necessária contextualização ao estabelecer análises de manifestações musicais ou afirmações sobre a vida ou obra de qualquer compositor. O autor critica a condução das análises que pouco se ocupam da linguagem musical, assim como não estabelecem maiores relações entre a música e a história, praticamente reduzindo-se à analise dos discursos verbais relativos à música.167
Para os dois autores, as manifestações musicais perpassam os vários estados da vida social e desta maneira devem ser analisadas.
"A música não pode existir isoladamente do curso normal da história e da evolução da vida social, pois a arte em parte surge - de modos um tanto misteriosos que não podemos satisfatoriamente analisar - da vida que o seu criador leva e dos pensamentos que tem. Existe para ser executada e ouvida, e não como sons na cabeça do criador ou como símbolos escritos ou impressos no papel, mas como som concreto produzido por e para quem deseje obter satisfação daquilo que o compositor lhes oferece." (RAYNOR, 1986:23)
Este trabalho definiu-se então por esta tentativa. Ao falar sobre a vida de Lupicínio Rodrigues referia-se também à vida do compositor e suas condições de existência. Ao descrever as especificidades da biografia de Lupi buscava-se delinear sua relação com a música e seus motivos ao desenvolver esta atividade. Ao mesmo tempo em que para que fosse possível estabelecer um significado entre o que havia
167 CONTIER, 1985/88: 77 e 78.
realizado Lupicínio e o mundo que recebeu sua criação foi imprescindível buscar o entendimento com os entrevistados da pesquisa, na medida em que vivenciaram o mesmo momento histórico e tinham uma perspectiva semelhante à do compositor a experiência dentro da música.
Misturaram-se teorias e métodos de pesquisa. O trabalho transitou entre uma história biográfica, uma história da música e uma história de vida, sem definir-se por nenhuma entre elas e ser todas ao mesmo tempo. Acredito que esta inexistência de limites entre as diversas linhas da pesquisa tenha acrescentado mais ao trabalho do que a escolha e delimitação de apenas uma determinada abordagem teórica e metodológica. Inclusive a pesquisa ressente-se, em seu aprofundamento, quanto a uma maior abrangência ao explicar a construção musical de Lupicínio, onde os estudos sobre o signo musical teriam enriquecido em muito a interpretação dos dados desta pesquisa. Assumo a crítica elaborada por CONTIER, neste sentido.
Apesar de concordar com o ponto de vista de RAYNOR e CONTIER acerca da abrangência e das possibilidades que a conceituação da História Social da Música permite, não foi possível construir um modelo mais genérico acerca da época ou estrutura social em que esteve inserido Lupicínio. O uso deste modelo teórico restringiu-se aos dados relacionados a biografia de Lupicínio Rodrigues e do grupo de entrevistados. Tal enfoque se fez necessário na medida em que, ao apresentar a produção musical dos compositores, ou suas ações, estas não fossem apresentadas deslocadas da mesma realidade que as gerou. Pretendia-se com isso desmitificar a figura de Lupicínio ao explicar sua produção musical com base na sua ação cotidiana.
Ao mesmo tempo em que foi explicitado o reconhecimento pelo talento do compositor, procurou-se refutar a imagem do "gênio" musical, que explica por si só sua obra. O destaque dado a sua grande capacidade como compositor teve explicações possíveis a partir do vínculo com a realidade social.
"Nenhum tipo de história da música explica a visão do gênio; só pode mostrar as condições que deram ao gênio a sua direção e à qual ele reagiu." (RAYNOR, 1986:24)