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2.3. Todo o temperamento d’um povo lá dentro: a versão definitiva a partir de 1893

Novamente, aqui, ele atribui um suposto comportamento cultural ao povo português vinculado à formação da raça. Com uma personalidade “sentimental e triste”, “indolente”,364 o povo português colocaria-se passivo e indiferente aos vícios que o classificavam como uma nação atrasada. Era preciso corrigir, dessa forma, as deficiências da sociedade sintetizadas no fado.

Conforme já se destacou anteriormente, nessa versão d’O Cruel e Triste Fado, caracterizada por um texto curto que manifesta as animosidades geradas pelo Ultimatum inglês, o tom agressivo deve justificar o fato de Rocha Peixoto não ter assumido a autoria do artigo. A riqueza desse documento reside justamente no caráter sintético e explosivo de seu conteúdo, que o coloca perfeitamente inserido no “traumatismo patriótico” gerado pelo recebimento do memorando britânico em janeiro daquele ano de 1890.365 Dessa forma, o texto, de um lado, aborda o diagnóstico da decadência elaborado por Oliveira Martins na senda da Geração de 70; de outro, endossa a visão negativa do fado e de sua constituição histórica como objeto da tradição popular portuguesa nos termos definidos por Teófilo Braga.

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Se nas versões posteriores o argumento central do artigo não se modifica, percebe-se nelas uma opção pela erudição, procurando amenizar o tom agressivo da primeira. Na versão definitiva a partir de 1893, mantém-se a visão negativa do fado tomada de Teófilo Braga, agora num texto visivelmente elaborado de acordo com as “simbólicas” e o “modelo literário histórico-psicológico” de Oliveira Martins.

2.3. Todo o temperamento d’um povo lá dentro: a versão definitiva a partir de 1893

Viu-se que a versão definitiva d’O Cruel e Triste Fado foi publicada pela primeira vez no jornal O Primeiro de Janeiro, de 8 de dezembro de 1893, já então assinada por Rocha

364 PEIXOTO, Rocha. A anthropologia, o caracter e o futuro nacionaes. Revista de Portugal, Porto: Lugan & Genelioux, vol. III, n. 18, 1890, p. 689. 365 LOURENÇO, Eduardo. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999, 4456, grifo no original.

Peixoto. Posteriormente, o texto seria publicado na forma de um opúsculo na Figueira da Foz em 1896 e, em 1897, na coletânea de artigos A Terra Portugueza (Chronicas scientificas).366

Será analisado aqui o opúsculo de 1896, visto não estar disponível o artigo original publicado n’O Primeiro de Janeiro. A versão definitiva apresenta-se dividida em duas partes. Na primeira Rocha Peixoto ocupa-se de uma longa síntese da história de Portugal, que ocupa a maior parte do texto, a fim de demonstrar os eventos que conformaram a decadência da sociedade portuguesa no final do século XIX. Na segunda parte, ele passa a descrever as características sociais e poético-musicais do fado, sempre de forma depreciativa, demonstrando como as deficiências de caráter produzidas ao longo da história da nação portuguesa consubstanciam-se no gênero musical em questão.

A exemplo da primeira versão, o texto inicia reafirmando o papel decisivo do acaso na definição do fado enquanto característica do povo português, argumento que vai sendo reforçado ao longo do artigo:

o unico povo do mundo que canta o fado tem n’este a expressão flagrante e nitida das suas tendencias, da sua sentimentalidade e do seu entendimento; a sina, o acaso, a sorte que preside ao nosso destino, que determina as nossas acções e que explica os mais varios aspectos da nossa existencia, ou seja n’uma angustia collectiva, ou individualmente, atirando-nos com o pé direito á ventura ou com o esquerdo á desgraça, eis o que define o povo portuguez, eis o que n’um antropismo universal d’onde herdou ou recebeu a maioria dos seus mythos, se destaca como a caracteristica propria.367

O fado é, portanto, a expressão mais genuína da sentimentalidade portuguesa. Em seguida ele repete um trecho da primeira versão de 1890. Evocando o acaso como definidor da riqueza ou da pobreza, da “felicidade” ou da “desventura no amor”, da “saúde” ou da “molestia”, da “virtude” ou do “crime”, sentencia: “é sempre o fado dominando tudo, desde o senhor D. Miguel que o batia, até ao povo a gemê-lo!”.368 Trata-se, portanto, de idêntica passagem presente na primeira versão do texto, na qual já havia referido as origens remotas do gênero musical em questão.

Rocha Peixoto vai buscar, então, na constituição histórica do povo português, a explicação para essa personalidade cultural do país. Bebendo da teoria teofiliana, segundo ele, um elemento teria sido responsável por conformar essa característica: “o nomadismo arabe que

366 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, 12 p.; A Terra Portugueza (Chronicas scientificas), Porto, Livraria Chardron de Lello & Irmão, Editores, 1897, p. 293-302. 367 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 3. 368 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 3.

nos ficou no sangue”, afirma, “encontrou, em condições geographicas especiaes e em circumstancias historicas fortuitas, meios faceis de se expandir, de ser assimilado pela casta isenta d’essa herança e de se transmittir, ao diante com crescente intensidade”.369 Essa ancestralidade árabe ocupa importante papel na análise que d’O Cruel e Triste Fado se faz aqui.

A herança árabe, além de ter sido um dos elementos responsáveis por conformar a “feição” do “único povo do mundo que canta o fado”, 370 estaria no cerne de um “problema ethnico” existente no país, conformado por uma composição heterogênea de raças.371 Conforme defendia Teófilo Braga, a raça moçárabe, conformada pela junçãodos elementos gótico e árabe, seria o traço mais original do povo português. ParaMarçal de Menezes Paredes, a tese teofiliana “buscava sustentar a existência de uma originalidade racial como determinante da existência de Portugal como nação”. Contudo oque encontrou foi uma “lusitanidade híbrida”, umaidentidade racial “mestiça”, resultado de séculos de invasões por diferentes povos. 372

É justamente na heterogeneidade racial que reside o “problema ethnico” apontado por Rocha Peixoto. Essa característica seria uma das condicionantes da decadência da sociedade.

Ligando a questão étnica à geográfica, ele afirma:

effectivamente, concede-se á especial situação geographica do paiz, a origem remota da medíocre representação do portuguez em todas as manifestações reveladoras d’um povo que quer viver [...]. Tal situação, n’esse pressuposto, deplorável, impeliu a invadil-a, em épocas variadas, povos ethnogenicamente diversos, os quaes, fundindose com os elementos indigenas ou expulsando parte d’elles, demorando-se levemente ou fixando-se de vez, prescreveram leis, alteraram línguas e costumes, introduziram novos hábitos, impozeram porventura outras religiões, e por ultimo, em lucta continua, nefasta ou vantajosa, restringiram ou alargaram territorios. D’estas invasões innumeras, levadas a fim com desiguaes intercadências, derivou a cruel heterogeneidade d’um povo, sem traço algum decisivo que o marque fundo e forte, que o revele por assignaladas tendencias sob qualquer aspecto de atividade inteligente ou astuciosa, que o denuncie enfim por um caracter dominante, original, todo seu, iniludível e irrefragável. 373

Dessa forma, sem um traço genuinamente seu, herdeiro de uma raça híbrida e nômade, com um território voltado ao mar, o país esteve, historicamente, entregue aos desígnios do acaso. Como única alternativa, restara-lhe a empresa marítima: “a mescla ethnica que mandava,

369 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 3-4. 370 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 3-4. 371 PEIXOTO, Rocha. A anthropologia, o caracter e o futuro nacionaes. Revista de Portugal, Porto: Lugan & Genelioux, vol. III, n. 18, 1890, p. 689. 372 PAREDES, Marçal de Menezes. “O moçárabe na cultura portuguesa” , In: FAY, Claudia Musa; VENDRAME, Maíra Inês; CONEDERA, Leonardo de Oliveira. História e narrativas transculturais entre a Europa mediterrânea e a América Latina. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017, v. 2, p. 129-149. 373 PEIXOTO, Rocha. A anthropologia, o caracter e o futuro nacionaes. Revista de Portugal, Porto: Lugan & Genelioux, vol. III, n. 18, 1890, p. 689.

dirigiu a actividade governante para as conquistas em Africa”, afirma Rocha Peixoto n’O Cruel e Triste Fado.374 Ele atribui, portanto, à heterogeneidade da raça, as consequências negativas das navegações, sob a justificativa de que essa iniciativa acabara por negligenciar o país econômica e culturalmente.

Se toma de Teófilo Braga a explicação da “fatalidade da raça” portuguesa, que, heterogênea por formação, carecia de originalidade, ele busca na obra de Oliveira Martins a explicação para as condições e circunstâncias históricas responsáveis por conformar a decadência da sociedade. Na síntese da história de Portugal que apresenta, utiliza-se das “simbólicas” e do modelo literário de “paradigma histórico-psicológico” atribuídas à obra martiniana.

Na versão de O Cruel e Triste Fado ora analisada, as navegações figuram como a grande vilã, historicamente responsável pela decadência da nação. Para justificar seu argumento, Rocha Peixoto apresenta uma síntese da história de Portugal, desde a expansão marítima iniciada no século XV até o reinado de D. Joao VI. A exemplo de Oliveira Martins, ele centra sua análise nas figuras régias, ressaltando os fatos “dramáticos” da história nacional, que teriam sido responsáveis por conformar o estado decadente da sociedade portuguesa no século XIX.

Mais do que orientar-se pelas prerrogativas de Oliveira Martins, ele parece tratar com deboche as figuras régias. Referindo-se ao fracasso das primeiras tentativas de povoar “as manchas incultas”, de “arrotear o país”, de “fixar gente à terra”, ele se refere a Fernando I, o último monarca da dinastia dos Borgonha entre 1367 e 1383, como “um lindo príncipe” que “impedia a marcha d’esse trabalho” devido “a inconstância do seu coração, as suas inverossímeis correrias guerreiras e os caprichos e intrigas em que o envolvia a esposa, a cujo fadário unira o seu” e que “irritaram por vezes o povo n’um clamor de prudencia e juizo” . 375

Como se vê, nem mesmo a figura das rainhas escapa ao deboche de Rocha Peixoto. No trecho acima, ele se refere à esposa de Fernando I, Leonor Teles. Muito impopular, afirma António José Saraiva, ela, que assumiu o trono após a morte do marido por falta de um herdeiro

374 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 4. 375 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 4. Fernando I, popularmente conhecido como “O Formoso”, “O Belo”, “O Inconstante”, “O Inconsciente”, foi o último rei da dinastia dos Borgonha, entre 1367 e 1383. Segundo Oliveira Marques, “tirando partido da conturbada situação interna castelhana e aliando-se aos ingleses, [...] interveio, envolvendo-se em três guerras sucessivas, de resultados pouco favoráveis [...]. Os problemas sociais [...] elevaram-se a um estado geral de descontentamento” (MARQUES, A. H. de Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991, p. 24).

masculino, era “pouco casta, de cujos filhos a paternidade não poderia deixar de se presumir duvidosa”.376

Nesses termos, Rocha Peixoto vai seguindo Oliveira Martins, explorando eventos da história nacional que considera desastrosos para justificar, de forma trágica, a decadência da sociedade portuguesa encetada desde que “a mescla ethnica que mandava, dirigiu a atividade governativa para as conquistas em Africa”.377 A empresa marítima surge sempre, portanto, vinculada à formação étnica do país:

o bom successo das primeiras aventuras fez explodir na alma portugueza o que n’ella havia de índole errante e moura, pois o cativeiro do Infante Santo, nunca liberto por falta de dinheiro, esquecera ou explicava-se: cumpria o seu fado. A pouco e pouco vai crescendo a ancia de viagem; terras novas, paisagem exótica, riqueza e domínio, tocam a ambição geral.378

A exemplo da relação que já havia estabelecido entre o comportamento nômade do povo português e a herança árabe, Rocha Peixoto, inspirado em Teófilo Braga,menciona nesse trecho outros dois elementos da formação étnica do país: o celta e o mouro. O primeiro, pelas características pontuadas na teoria teofiliana sobre as raças que constituíram o povo português, teria conformado a “índole errante” do país que empreendeu talvez a maior empresa marítima da história ocidental. O segundo, o mouro, oferece uma relação mais direta com o fado.

Em O Cruel e Triste Fado, a expressão “Moirama”, uma variação de “mourama” , termo que designa “a terra, o país, a região dos mouros” ou “o povo mouro”, população muçulmana conforme descreveu Teófilo Braga, é também utilizada de forma negativa. Referindo-se à derrota de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir no Marrocos, Rocha Peixoto descreve um país devastado com as consequências do conflito. Aos efeitos da peste, somava-se um cenário de promiscuidade. As mulheres, afirma, aborrecidas “nos seus leitos, esqueciam demasiado que os maridos ainda estavam vivos n’outras plagas” e entregavam-se a outros homens”. Entre esses, acrescenta, viu-se assumir “a pederastia um caracter epidemico” em Lisboa. É em meio a esse estado da sociedade que Rocha Peixoto afirma: “Ora os reis, como as mulheres, também correm o seu fado; estas vão dar, de queda em queda, na má vida; o monarca epilogou a sua chimera, com a morte, na Moirama!”.379 Percebe-se, assim, o sentido pejorativo atribuído ao

376 SARAIVA, António José. O crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1996, p. 179. 377 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 4. A tomada de Ceuta, localizada na península de Almina no norte do continente africano, em 1415, inaugura a expansão marítima portuguesa. 378 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 5. 379 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 7.

termo na medida em que é utilizado para designar o destino final do monarca em comparação ao destino promíscuo das mulheres que acabavam “na má vida”.

A síntese da história de Portugal é conduzida sempre pelos efeitos negativos da empresa marítima, que, devido aos fartos recursos que oferecia, lançava os portugueses ao mar, despovoando a pátria. “As riquezas da India”, afirma,

produzem um verdadeiro deslumbramento. O espirito de aventura alastra de tal sorte, que parece pairar na terra portugueza um delírio das grandezas collectivo. Tudo quer ser marinheiro, mercador, traficante, pirata; o solo fica quasi abandono; nem pão há que chegue para os que ficam; nem sequer existe quem teça vestuário; um rei mesmo, o Venturoso, manda vir estrangeiros para constituírem-se as galés.380

Morto D. Sebastião, um vácuo na linha sucessória levou à incorporação da coroa portuguesa pela espanhola sob o reinado dos Felipes a partir de 1580. “Ao annexar o nosso territorio”, afirma Rocha Peixoto, “a Hespanha encontrou um povo gafo, terra inculta e, para o tempo, uma assombrosa divida publica; nem lavoura nem industria; a fidalguia, n’uma penúria de indigentes, prostituia-se e entregava-se; só a religião esplende, fervorosa e erótica”.381

Sua interpretação desse momento histórico orienta-se, uma vez mais, pela obra de Oliveira Martins, o qual afirmara, lembremos, que os reinados de D. Manuel e D. João III foram responsáveis pela “desorganisação moral e económica da sociedade portugueza [...], com a transformação do imperialismo politico n'um quasi lamismo thibetano, quando toda a Hespanha foi presa do catholicismo delirante”. Era devido ao “estado de morbidez psychologica e o caracter mais geral da ultima geração” do século XVI, 382 que surge o solo fértil para o florescimento do mito do sebastianismo no contexto trágico da perda da independência em 1580.

A partir da restauração da coroa portuguesa em 1640, com a recuperação da independência, o texto de Rocha Peixoto continua nos passos de Oliveira Martins, sobretudo baseado no artigo publicado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e reproduzido

380 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 5. Rocha Peixoto refere-se a D. Manuel I, rei da dinastia de Avis entre 1495 e 1521. Segundo Oliveira Marques, ele “restaurou os Bragança e as outras famílias banidas ao pleno gozo das suas antigas dignidades, privilégios e patrimônio. Sendo governador da Ordem de Cristo e beneficiando dos primeiros frutos da Índia, podia permitir-se o luxo de ser generoso e misericordioso” (MARQUES, A. H. de Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991, p. 43). 381 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 7. 382 MARTINS, J. P. Oliveira. A vida de Nun’Alvares: historia do estabelecimento da dynastia de Aviz. Lisboa: Livraria de António Maria Pereira - Editor, 1893, p. 7.

integralmente na nota Ao leitor (na terceira edição) do Portugal contemporâneo de 1894. “Recuperada a independência”, afirma Rocha Peixoto,

a ruina mais cresceu com a prolongada guerra a manter por tantos anos. O povo vai, sem affeições e sem estimulos; não abandona elle Affonso VI aceitando, em substituição do malfadado, o monarca que assassina de vez a indústria nacional em Methwen? Mas chega a noticia do oiro e das pedrarias do Brazil [...]. E ahi surgem as correrias [...]. O êxodo realisa-se com demencia, com volupia; que a alma aventureira portugueza não é feita para o medo [...]. O dinheiro abunda, dissipa-se. Lança-se fora. O rei Magnanimo malbarata-o em piedade e em luxuria. É um fado bregeiro por esses conventos fora.383

Como se vê, a exemplo do referido artigo de Oliveira Martins, Rocha Peixoto arrola, como elementos constituidores da decadência da sociedade, a histórica falta de autonomia de Portugal, sempre dependente dos recursos das colônias, no caso o Brasil, e sob o jugo inglês. É importante destacar ainda que, ao estilo de Oliveira Martins, ele personifica, no trecho acima, o estado de decadência da sociedade nas figuras régias da dinastia dos Bragança. Afonso VI, rei entre 1656 e 1683, é o “malfadado” responsabilizado pela crise após o domínio espanhol. Pedro II, seu sucessor até 1706, é acusado de “assassinar” a indústria nacional, ao assinar o tratado de Methwen com os ingleses. D. João V, por sua vez, o rei “magnânimo” entre 1706 e 1750, ilustra o deslumbramento do país ante às riquezas resultantes da exploração do Brasil iniciado por seu antecessor.

O que se passa em Portugal, segundo Rocha Peixoto, é, então, um “fado brejeiro”. Aqui ele parece utilizar-se da dupla acepção do termo – como destino e como canção –, para, uma vez mais, o depreciar. É que a expressão “bregeiro” tem, em Portugal, o significado pejorativo de “que ou quem é desonesto, falto de honradez; canalha, trapaceiro, velhaco”, “que ou quem vive na vadiagem; malandro, vagabundo”, “que ou quem é inclinado à obscenidade, à lubricidade; indecente, malicioso, lascivo”, “de ou o que é ordinário, reles”.384

Segundo Rocha Peixoto, coberto com os metais brasileiros, o país aplica mal seus recursos. “A obra de Pombal falha, como falhou [entre outros] a [...] de Castelo Melhor. Desgraçadamente já é tarde para utilizar o manancial americano, creando com elle o trabalho nacional, e, derivativamente, o amor da terra, um ideal politico, uma solidariedade de povo, um orgulho de raça”.385 Ele lamenta, assim, que a riqueza do Brasil não tenha sido utilizada para

383 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 7-8. 384 BREJEIRO, In: Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0.5ª [recurso eletrônico]. Instituto Antonio Houaiss. São Paulo: Objetiva, 2002. 385 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 8.

tirar Portugal da crise social e moral. Vale lembrar aqui, uma vez mais, que ele se utiliza da mesma argumentação de Oliveira Martins, que se referiu ao país no tempo de D. João V e do Marques de Pombal como “uma sociedade vivendo de recursos estranhos ou anormais e não do fruto do seu trabalho e economia”.386

É referindo-se, ainda, ao Brasil, que Rocha Peixoto conclui sua síntese da história de Portugal. O argumento final reforça o “problema étnico” na constituição do povo português e suas consequências na configuração do estado decadente da sociedade:

o caminho do Brazil está aberto para jamais se fechar; até D. João VI, o jagodes, a demanda, essa terra que o portuguez desejou e desejará sempre lhe deixem franca contando que exercerá lá uma atividade que aqui não lhe acode ao infortúnio, inconscientemente, no seu sangue, o fatalismo árabe como um jugo, a índole aventureira repuxando.387

A história de Portugal surge, assim, em Rocha Peixoto, condenada pela constituição heterogênea de sua raça. O fatalismo árabe e a índole céltica teriam devotado o país a viver da aventura da empresa marítima, entregue ao acaso de novas descobertas que sustentassem a nação. Se, no trecho acima, fica evidente a influência da teoria teofiliana acerca das raças que constituíram historicamente o povo português, nele identifica-se, ainda, a visão depreciativa que Oliveria Martins fazia de D. João VI. Enquanto Rocha Peixoto considera o príncipe regente um “jagode”, um “joão-ninguém”, para o eminente historiador português tratava-se de um indivíduo de “esperteza saloia, única espécie de sabedoria aninhada no seu gordo cérebro”.388

Como procurou se demonstrar até aqui, o principal argumento de Rocha Peixoto para a decadência da sociedade portuguesa situa-se na constituição histórica de sua formaçãoenquanto povo. Teria sido essa configuração a responsável por conformar uma nação condenada pela empresa marítima à dependência do acaso de novas descobertas. Todas essas características, defendia, conforme já se destacou, sintetizavam-se no “fado dominando tudo, desde o senhor D. Miguel que o batia, até ao povo a gemê-lo!”.389

Na segunda parte do texto, ele passa a descrever as condicionantes sociais e as características poético-musicais do fado, sempre de forma depreciativa. Retomando o caráter etnográfico de sua análise ao colocar o gênero musical ao lado de outras tradições populares, a

386 MARTINS, J. P. Oliveira. “Ao leitor (na terceira edição)”, In: Portugal contemporaneo. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1906, p. XI. 387 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 8. 388 MARTINS, J. P. Oliveira. Historia de Portugal. Lisboa: Livraria Bertrand, 1882, v. 2, p. 233. 389 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 3.

exemplo do que fez na primeira versão do texto, ele explora, uma vez mais, a dupla acepção do termo, - como destino e como canção: “Tudo entre nós corre o fado, os navegadores e os lobishomens, as bruxas, e as rainhas; e cada um de nós, chegada a tyranna morte, tem acabado o seu fadário”.390

O fado surge, assim, como mais uma crendice da tradição popular portuguesa, abarrotada de misticismo e fantasia. O povo português estaria, por sua constituição histórica enquanto raça, condenado a conformar uma sociedade decadente moral e socialmente:

n’esta fé cega, que o gênio e a vida portugueza explicam, a lassitude na iniciativa, a carência de um ideal collectivo, o alheamento do povo na obra politico-economica dirigente, compreende-se na nação entontecida de grandezas ou resignada nos desastres que só atribue ao destino. Nunca o povo portuguez se ocupou das revoluções na sciencia e nas artes, nunca o uniu o sentimento consciente e altruista de nacionalidade.391

Aqui, a exemplo do que vem se demonstrando, ele insere novamente sua análise no diagnóstico da decadência consolidado pelos intelectuais da Geração de 1870. O temperamento passional, lascivo até, do povo português, teria afastado o país dos ideais racionalistas e cientificistas da civilização moderna. Assim, numa nação composta por homens de sentimento, afirma Rocha Peixoto,

o fado e o que n’elle se diz de sonho, de sombra, de amor, de ciume, de ausencia, de saudade e principalmente de conformação com o crú e negro imperio do destino, eis o que exprime dramaticamente a feição da alma nacional. O fado é portuguez, é toda uma mentalidade, é toda uma Historia.392

Essa intrínseca relação do fado com uma suposta personalidade cultural portuguesa encontra amparo na recolha dos temas matriciais do gênero musical realizada por Alberto Pimentel. Em A Triste Canção do Sul, obra publicada em 1904, ele traz uma listagem que, embora longa, considera-se importante citá-la na íntegra, visto que justifica o argumento de Rocha Peixoto. “Além da vida do fadista e da morte das mal-fadadas que viveram entre o povo”, afirma Pimentel, “o Fado canta ainda outros assumptos, a saber:

a) O amor, como fadista é capaz de o sentir; sem delicadeza e sem recato :(sic) o amor sensual, que principia por onde nas outras classes acaba. (...) b) Os trabalhos e sofrimentos das classes sociaes que estão em contacto com o fadista ou próximas a elle. c) Os aspectos da vida popular e a chronica das ruas, como as hortas, os pregões, a noite de Santo Antonio.

390 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 8-9. 391 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 8-9. 392 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 9.

d) Os grandes crimes e os grandes desastres terrestres ou marítimos, que impressionam a opinião publica. e) A morte de personagens celebres. f) Os conflictos políticos ou religiosos que provocam discussões na imprensa e no parlamento. g) A nomenclatura popular de utensílios de trabalho nas artes e officios ou de animaes, arvores, plantas, flores, etc. h) As cidades, seus bairros e ruas, as villas e aldeias do paiz, n'um jogo de metaphora ou de antithese; n'um sentido de orgulho local e patriótico ou de funda nostalgia. i) Passagens da Bíblia, assumptos religiosos, especialmente relativos á vida eterna, e episódios da historia de Portugal. j) Descripção das esperas de touros, peripécias das touradas, triumphos e desastres dos toureiros mais evidentes. k) Expressão de malicias e gaiatices, que ou é formulada brutalmente n'uma linguagem obscena ou recorre ao equivoco e ao trocadilho. l) Floreios de palavras exdruxulas e arrevezadas que muitas vezes não fazem sentido.393

Os temas matriciais do fado narram, portanto, o cotidiano, os sentimentos e as fatalidades do povo português. E é justamente essa a característica atacada por Rocha Peixoto ao afirmar que “Portugal tem pois e apenas, de genuinamente seu, o fado; o fado para a folia, para o amor, para a amargura e até para a morte, em choradinho z‘i á beira do sepulcro!”.394

Quando une a essa crítica o ataque às características poético-melódicas do fado, tem-se o retrato completo do gênero musical composto por Rocha Peixoto:

N’um mesmo schema métrico, de norte a sul, d’antes, hoje e sempre, o povo enquadra todas as suas ideias e sentimentos, todos os factos, n’essa melopeia derrancada que só pode gestar-se n’um paiz que nunca foi mais que uma ruina, raso com lampejos de uma opulência fruste”. Inez de Castro e a Severa, o bem e o mal, o rosto da lua e as vozes do echo, além-tumulo e a redemção, a paixão, a desdita, o ciúme, a vingança, até o Pobre Portugal, tudo se canta n’um mesmo rythmo, n’uma musica de pequenas variantes, alanceada, gemebunda, irreparável. Os que não cantam, sentem, ouvem com um prazer morbido, interpretam os sentimentos do quadro ineluctavel d’esta logica.395

Essa imagem do fado consubstancia, portanto, o estado decadente da nação naquele momento. É como se o gênero musical em questão fosse capaz de traduzir em versos a personalidade cultural do povo português, que o canta de forma espontânea e despercebida porque já o introjetara como naturalmente seu. Contudo, para Rocha Peixoto, se o fado “exprime dramaticamente a feição da alma nacional”,396 explica-o tão somente a ausência de

393 PIMENTEL, Alberto. A Triste canção do Sul (subsídios para a história do fado). Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1904, p. 101-103, grifo no original. Rui Vieira Nery considera esta recolha de temas realizada por Alberto Pimentel como sua principal contribuição à história do fado (NERY, Rui Vieira. Para uma história do fado. Lisboa: Público: Corda Seca, 2004). 394 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 10. 395 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 10-11. 396 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 9.

um ideal coletivo na nação e seu alheamento dos ideais racionais da moderna civilização europeia.

A ausência de um “sentimento consciente e altruista de nacionalidade” se manifestaria, assim, na falta de originalidade das criações populares portuguesas. “Os themas fundamentaes da lyrica popular”, afirma, mesmo que “decalcados da mythologia” ou ainda quando “se ocupam de sentimentos triviais”, embora denunciem

recursos de expressão e harmonia e beleza de rythmo, [...] ou se encontram paralelos na terra extranha de raça afim, ou se devenda a via transmissora. No caso do Romanceiro nada há cujo thema não seja céltico, romano ou universal. Se a gênese do romance peninsular está por conhecer, teem já averiguado folk-loristas e filólogos, que os que nós cantamos nos chegaram pelos cruzados, romeiros ou jograes.397

Reforçando a influência céltica, entre outras, os temas populares dignos de serem considerados folclóricos são, para Rocha Peixoto,sempre importados em Portugal. Constituemse sempre como “remodelações, apenas, adaptações; nem um, primitivo e pátrio!”.398 Por outro lado, o país teria de genuinamente seu o fado, essa “melopeia derrancada” que canta apenas sua sentimentalidade e sua fatalidade.

Esse quadro estaria sintetizado nos versos de “conhecido mote d’um fado typico”:

Se vires a mulher perdida Não a trates com desdem, Porque Deus também castiga Não diz quando nem a quem399

Abordando temas como prostituição, superstição e crendice, os versos, afirma Rocha Peixoto, “com todo o temperamento d’um povo lá dentro, imundo, vadio, hypocrita, malandro”, denunciam toda a “miseria social, miseria orgânica” do país. Nessa “melopeia sem encanto”, continua, “sem elevação, sem frescura, sem ingenuidade, modismo de desespero, de conformação, de penitencia e de perdão, atitude e marcha, emprego da vida e ideal, tudo dá, ao contemplar d’estes grupos, uma noção: - É a patria que passa!” . 400

É possível concluir da análise do texto de Rocha Peixoto, que o fado traduz, naquele momento, social, melódica e poeticamente, toda a sentimentalidade do povo português, aventureiro e sonhador, constituído historicamente por uma composição heterogênea de raças que o fez carente de originalidade e entregue aos desígnios do acaso de novas descobertas

397 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 9-10. 398 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 10. 399 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 12. 400 PEIXOTO, Rocha. O Cruel e Triste Fado. Figueira: Imprensa Lusitana, 1896, p. 12.

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