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INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO

“Laroyê, Mojubá, Axé Salve o povo de fé, me dê licença” Foi escutando samba e pontos de malandro que comecei a pensar sobre as figuras de marginalidade que povoam a cultura brasileira. De que maneira elas incorporam a nossa realidade? Para quais sabedorias dão passagem? O que articulam sob a forma de transgressão? Venho concentrando meus estudos na tradição do samba enquanto linguagem, rede de construção de identidades e de significados, espaço de resistência e de condução ao sagrado, por meio do qual também tenho descoberto a minha maneira de estar no mundo, entre os ensinamentos dos tambores e a multiplicação dos afetos. Deste lugar perambulei, seguindo os passos gingados dos malandros, até chegar a figuras de bandidos na obra do Racionais MC’s. Assim, minha abordagem do rap neste estudo se dá a partir do trabalho do grupo, considerado o mais importante do gênero no país. De imediato, o malandro, no samba, e o bandido, no rap do Racionais, são figuras caracterizadas pela inserção precária na estrutura produtiva, por formas de expressão particulares, bem como por noções de ética específicas, além do envolvimento em situações de conflito social marcadas por violência, delinquência e opressão policial. Nas narrativas cantadas, um e outro aparecem como personagens emblemáticas, relacionadas às camadas pobres da população. Desde o início do século XX, o samba foi um espaço de expressão e de representação das classes baixas, marginalizadas no âmbito econômico e social. Com a entrada da cultura Hip Hop no cenário brasileiro, no fim dos anos 1980, o ponto de vista da população negra e pobre estabelecida nas periferias, sujeita às desigualdades e ao preconceito passa a ser apresentado com relevância pelos rappers. Samba e rap são manifestações culturais negras, dentro de um amplo grupo de iniciativas de reconfiguração de sensibilidades e de invenção de possibilidades de (re)existência que surgem em consequência da diáspora africana. Em um país estruturalmente racista como o Brasil, aos corpos que não foram exterminados, foi incutida a marca do desvio. O lugar do marginal, do excluído, do periférico, do fora da lei, não seria, portanto, eventual. Mas no discurso do samba e no do rap, esse papel se apresenta a partir de estratégias diversas. Enquanto o samba-malandro investe no humor, na ironia e na “linguagem de fresta” (VASCONCELLOS, 1977) para

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realizar a crítica à nossa estrutura, o rap do Racionais parte para um confronto direto, por meio de uma “agressividade lúcida” (GARCIA, 2013b). Compreender melhor essas tomadas de ação e outras especificidades manifestadas pelas personagens do sambamalandro e do rap sobre o “mundo do crime” também motivaram esta pesquisa. Trata-se da retomada de uma trilha aberta por Antonio Candido (1970), com o ensaio “Dialética da malandragem”, por Cláudia Matos (1982) e sua análise sobre o discurso do samba-malandro, por Alba Zaluar (1985), ao comparar as representações dos trabalhadores e bandidos na comunidade de Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, por Maria Angela Borges Salvadori (1990), que discutiu as continuidades históricas entre capoeiras, malandros e bandidos, e por Michel Misse (1999), que apresentou a ideia de “acumulação social da violência” entre os tipos sociais do malandro, do marginal e do vagabundo. Também me guiei por Márcia Regina Ciscati (2000), ao defender a pertinência da malandragem em São Paulo, por Carlos Sandroni (2001), que circunscreve o malandro como uma personagem paradoxal, e pelo rigor com que o professor Walter Garcia (2003, 2007, 2011, 2013b, 2014, 2015, 2016, 2018) tem se dedicado a analisar a produção do Racionais. Inicialmente, tive alguns problemas com a estruturação do trabalho. O desejo de estudar a obra do Racionais, por sua relevância e seu caráter revolucionário, inclusive no modo de retratar figuras de marginalidade contemporâneas a partir das experiências do cotidiano violento de São Paulo, foi um obstáculo para o exercício comparativo, pois de modo predominante a malandragem é ambientada nos morros, nos subúrbios e nas ruas do Rio de Janeiro. Assim, cheguei a Germano Mathias, sambista paulistano ainda pouco estudado, autêntico e quase um representante exclusivo do samba-malandro na capital paulista. A questão espacial não se resolveu por completo, já que as narrativas cantadas por Germano não se restringem à cidade de São Paulo e incluem sambas de compositores cariocas. Porém, esta situação me levou a pensar na malandragem como um conceito amplo, com uma ressonância que ultrapassaria o contexto carioca. Também proporcionou a discussão de estereótipos, tanto no que diz respeito à capital paulista quanto à figura do malandro. Germano, além de paulistano, é branco, descendente de imigrantes portugueses e alcançou grande sucesso na indústria do rádio e do disco entre o final dos anos 1950 e a

década de 1970. Este ponto precisa ser lembrado, sem que tenha como base uma ideia de “raízes puras do samba”, mas por tudo que ele é capaz de revelar sobre a sociedade paulistana que, se por um lado produz, aceita e aplaude um malandro tal qual Germano Mathias, por outro não deixa de ser questionada por essa mesma figura. Ao mesmo tempo, não se trata de negar as origens negras do samba, mas de pensar as maneiras de relacionar e de valorizar essas origens nas redes culturais que se formaram e que dizem respeito inclusive ao meu lugar, enquanto pesquisadora e ritmista. Outro aspecto que não poderia ser ignorado são as diferenças temporais, de modo que a pesquisa se manteve dividida em dois tempos, apresentados em ordem cronológica: o dos malandros cantados nos sambas de Germano Mathias, abordado no primeiro capítulo, e o dos bandidos cantados nos raps do Racionais, tema do segundo capítulo. Ainda assim, outros tempos e espaços foram acionados no desenvolvimento da pesquisa. No terceiro capítulo, o método adotado buscou identificar termos de comparação entre o samba-malandro de Germano Mathias e o rap sobre o crime do Racionais. Foram definidos três eixos temáticos: violência institucional, violência urbana e marginalidade socioeconômica. Ao colocar as personagens do malandro e as do bandido em uma “perspectiva de encruzilhada”, o objetivo era identificar semelhanças e diferenças, e criar um campo de pensamento sobre a dinâmica da realidade brasileira subjacente às obras. A análise das letras das músicas se fundamentou na crítica cultural materialista e buscou relações entre as narrativas cantadas e a sociedade por meio da forma, “entendida como princípio mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e do real, sendo parte dos dois planos”, conforme Roberto Schwarz (1987:141). Certamente, a restrição ao campo discursivo trouxe impactos, já que elementos significativos das obras se condensam de maneira uniforme no plano musical. Mas me concentrar na análise das letras foi um procedimento necessário diante do meu limitado conhecimento musical, restrito à vivência como ritmista de escola de samba e de blocos carnavalescos. Como um estudo multidisciplinar, a dissertação articula conceitos da Sociologia, da Literatura, da Economia e da História, não com a pretensão de comprová-los nas narrativas cantadas, mas de iluminar as discussões fomentadas pelas letras das músicas. Com esse mesmo intuito, e também devido à minha formação profissional, realizei uma pesquisa jornalística para investigar as representações dos malandros, dos bandidos e da violência urbana no acervo d’O Estado de S. Paulo. A iniciativa trouxe resultados

surpreendentes, como a descoberta do malandro como uma figura real das “notas policiais” da cidade de São Paulo, no período que vai do início do século XX à década de 1970 – figura que nem sempre correspondia às imagens cristalizadas pela música popular brasileira. Os casos apresentados no Anexo I reúnem personagens tão diversas quanto um japonês que falsificava molho de pimenta com terra, um negro que sabia falar inglês e aplicava o “conto do envelope” ao vender colocações profissionais falsas, um grupo de batedores de carteira internacionais, um soldado de exército que cometia furtos, vendedores de maconha ou de cocaína, desordeiros, macumbeiros, rufiões, entre outros, que agiam amparados na esperteza ou no uso de armas brancas ou de fogo. Assim, o silêncio sobre as vivências relacionadas à malandragem em São Paulo mais parece um indício das tentativas recorrentes de apagar experiências sociais, étnicas e culturais, que incluem o samba e a tiririca, manifestações determinantes na formação de Germano Mathias como sambista malandro paulistano. Ao contrariar o projeto de modernidade da capital paulista, centrado na urbanização e na industrialização, a presença de vadios, malandros e desocupados nacionais e imigrantes seria combatida por meio de políticas de controle da população urbana (ZANIRATO, 1996), que traçariam uma relação causal entre pobreza e marginalidade, e se apoiariam em uma gestão diferencial dos ilegalismos (FOUCAULT, 1987), por meio de práticas como as detenções correcionais e as prisões para averiguações. Esses pontos são abordados no primeiro capítulo, que também recupera a associação entre sambistas e malandros estabelecida no começo do século XX, no Rio de Janeiro, e discute a malandragem como uma representação das camadas pobres da população (MATOS, 1982). Além disso, estabelece a relação da malandragem com o fenômeno da vadiagem e com as dificuldades de inserção nas estruturas produtivas, durante a formação da classe trabalhadora brasileira (KOWARICK, 1994, 1977). Germano Mathias, por exemplo, se consolidaria como sambista e malandro em meio aos engraxates e outros trabalhadores informais que praticavam o samba no cotidiano, e pela convivência com as diversas personagens da zona do meretrício e do submundo paulistano, sendo influenciado ainda pelas gravações de samba divulgadas pelo rádio (RAMOS, 2008). A análise de algumas letras de sambas do artista serve não só para delinear a personagem do malandro, mas para ressaltar o seu caráter violento, um aspecto pouco

discutido nos estudos sobre a malandragem. Esse debate avança a partir da discussão das categorias de “malandro da leve” e “malandro da pesada”, apresentadas pelo próprio sambista. As narrativas cantadas também tematizam as transformações da violência urbana, que podem ser colocadas em diálogo com as mudanças nas economias criminais na cidade (TEIXEIRA, 2012) à época das gravações. Como uma das vertentes da cultura Hip Hop, o rap diz respeito a uma estéticapolítica que é parte de um processo de afirmação e de negociação da existência no mundo e diante do outro, conforme Guilherme Botelho (2018). O desenvolvimento dessa cultura musical no Brasil também se daria como uma resposta aos processos sociais e às transformações urbanas em curso durante os anos 1980, que se tornariam críticas na virada do milênio com o espraiamento da violência, percebida não apenas na criminalidade urbana, mas na deterioração das condições de vida e de trabalho da população, no aumento das desigualdades, nas relações com o Estado, com o mercado e com a mídia. Conforme Walter Garcia (2003), o valor maior da obra do Racionais MC’s decorre da adequação entre a técnica de feitura e o tema cantado, que permite ao ouvinte experimentar a violência que estrutura a sociedade brasileira. O ponto de partida do segundo capítulo, que analisa as personagens dos bandidos em algumas produções do Racionais MC’s, é a ideia de que o rap produzido na periferia da Grande São Paulo esteve fundamentado em atitudes transgressoras, conforme Amailton Magno Azevedo e Salomão Jovino da Silva (2014). A temática da transgressão, em seu sentido de violação da lei, seria incorporada também no conteúdo das narrativas cantadas, em versos sobre crimes e contravenções, protagonizados por figuras de marginalidade. Mais do que retratar um tipo humano ou um papel relacionado a um contexto histórico-social, a temática do crime na obra do Racionais parece condensar, de maneira crítica, classificações acerca dos indivíduos excluídos na sociedade brasileira. As diversas personagens marginais que encarnam nos raps do grupo, como o ladrão, o detento, o bandido bom, o traficante, o ex-presidiário, os moleques primários, o rapaz comum, rompem classificações genéricas, questionam estigmas, dão voz a parcelas silenciadas da população, promovem uma sensibilização, sem que isso represente uma exaltação da “vida no crime”. A imagem do bandido é oportuna para realizar a crítica à estrutura social vigente, por meio da postura de enfrentamento. Ela também parece concentrar uma das discussões principais da obra do Racionais: o valor da vida humana,

em especial daquelas existências que em nossa sociedade são enxergadas com menos importância, como a dos pobres, a dos negros, a dos marginais, vide a justificação e a reprodução das práticas de tortura e de extermínio de delinquentes, de presos ou de meros suspeitos. No terceiro capítulo, é realizado o cruzamento das figuras do malandro e do bandido, por meio da análise de letras de sambas e de raps com temáticas semelhantes. Esse procedimento permite estabelecer discussões a respeito de assuntos como a criminalização da pobreza, o incremento da violência de Estado e entre os indivíduos, as mudanças nas práticas e nas economias criminais, os tipos marginais urbanos e sua memória social, as representações da delinquência na imprensa e as diferentes maneiras de formalizar críticas à realidade brasileira. Assim, foi possível pensar sobre os processos históricos, econômicos e sociais que dizem respeito à experiência de marginalização em nossa sociedade. Em linha com o pensamento de Michel Misse (1999), esta dissertação buscou observar continuidades e descontinuidades em duas personagens da violência urbana. Não se trata de atestar a transformação do malandro em bandido pois, como será visto, existem diferenças marcantes entre as personagens cantadas. Da mesma maneira, semelhanças se estabelecem, por vezes de um modo desolador, devido aos impasses sociais que se acumulam e, em outros momentos, devido à graça de performances que acionam sabedorias corporais e discursivas sobre a existência marginal, em construções sustentadas por gírias e por amarrações de ideias.

A todas as figuras desse estudo, eu peço licença. Agô!

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