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3. Trambiques, biscates e arapucas
from Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC'
(“Mudam os locais e surgem novas gírias”), que apresenta uma evolução histórica da criminalidade urbana e de sua expansão a partir da variedade de expressões com a palavra-eixo “boca”, como em “Boca do Lixo”202 . A gíria, motivada por razões de confidência, de reconhecimento recíproco, de construção identitária e de fortalecimento de comunidades, é a manifestação de uma forma marginal de linguagem, estigmatizada, assim como os grupos que a originam203 , conforme notado nos discursos dos malandros e dos bandidos. Sua presença nas letras analisadas parece reveladora também das continuidades e das transformações que envolvem o campo da marginalidade na dinâmica social.204
3. Trambiques, biscates e arapucas
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Para pensar a malandragem a partir de aspectos socioeconômicos, é válido retomar a discussão de Lúcio Kowarick (1977) sobre a vadiagem e as parcelas de trabalhadores que não conseguem vender no mercado formal a sua força de trabalho. Segundo o autor, a marginalidade, mais do que um desvio, se trata de uma contradição necessária à dinâmica da sociedade capitalista, e o “marginal” não se constitui em oposição a um polo “integrado”, nem como resultado de uma assimilação insuficiente de valores, normas e conhecimentos inerentes ao desempenho de papeis urbano-industriais e modernos. Na medida em que o capitalismo se expande, e domina a economia, estabelece um conjunto de mecanismos que originam a marginalidade (desempregados, subempregados, trabalhadores intermitentes, modalidades produtivas arcaicas), sem que isso signifique uma dualidade entre formas produtivas, mas uma mesma lógica estrutural.
O que caracteriza esses últimos [trabalhadores marginais] é que sua inserção no sistema produtivo supõe tipos de exploração distintos daquela parcela “integrada” da classe trabalhadora, ou seja, os assalariados que na economia urbana estão presentes no setor fabril e no setor terciário organizado sob a forma de empresas. Constituem a força de trabalho que não é absorvida pelas formas típicas que o capitalismo no seu processo de expansão tende a generalizar, isto é, a venda da força de trabalho que passa a ser comprada e submetida pelo capital. O que está em jogo, por conseguinte, é uma diferenciação no seio da 202 Em “Eu Sou 157” é empregada a expressão “boca de favela”. 203 Conforme Ana Rosa Gomes Cabello, no artigo “Processo de formação da gíria brasileira”, publicado em Alfa Revista de Linguística, v. 35, 1991, p. 19-53. 204 A análise e a comparação da gíria marginal no samba-malandro e no rap do “mundo do crime” corresponde a um tema amplo, que ultrapassa os propósitos deste trabalho e merece ser explorado em um estudo específico.
classe trabalhadora decorrente do processo de acumulação capitalista que gera certas modalidades de trabalhos passíveis de serem conceitualizadas como marginais. (KOWARICK, 1977:85)
No rol dos vadios/malandros se incluem não só os desocupados e os indivíduos com comportamentos desviantes, personagens do submundo como aventureiros, golpistas, delinquentes, artistas e prostitutas. Compõem esse quadro também os trabalhadores com atuações não oficializadas, como vendedores ambulantes, empregadas domésticas, prestadores de pequenos serviços de reparo e manutenção, tarefeiros, como foi visto no primeiro capítulo. “A expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo”, explica Francisco de Oliveira (2003:60), para quem a especificidade de nosso modelo envolve a criação e reprodução de uma larga “periferia”, na qual os padrões não-capitalísticos de relações de produção são meio de sustentação do crescimento dos setores estratégicos claramente capitalistas. Assim, o crescimento de um setor de Serviços, realizados à base de pura força de trabalho e com remunerações baixíssimas, é uma forma de exploração que reforça a acumulação e a concentração de renda. A inserção precária no processo produtivo, transfigurada como uma recusa, e a sobrevivência às custas de expedientes, muitas vezes à margem da lei, são alguns dos núcleos temáticos da malandragem. O samba “Jerônimo”, de 1986, gravado por Germano Mathias205 e composto por Eduardo Gudin e Carlos Mello, permite desenvolver a discussão.
Jerônimo é um herói Anônimo Cheio de homônimos Mas não perde o pique A vida é sempre uma rebordosa Mas ele é o rei da prosa Ele é o pai do trambique Na hora H Do xeque-mate Inventa um biscate Escapa por um triz Jerônimo
205 “Cambalacho” Nacional (1986), trilha sonora da novela, gravadora Som Livre.
Na maré do asfalto Sempre sai incauto Por isso é feliz Quem quer vencer Na Pauliceia Aposte numa ideia Com engenho e arte Malandro de segunda linha Ladrão de galinha Sempre fica à parte Pois só descola o de comer Quem é do métier E nunca dá xabu Jerônimo Nem esquenta a cuca Pois em arapuca Ele é hors-concours L'argent toujours A música foi composta sob encomenda para a trilha sonora da novela Cambalacho, de Silvio de Abreu, transmitida na Rede Globo às 19 horas, em 1986. Como título, recebeu o nome da personagem interpretada por Gianfrancesco Guarnieri, um tipo que gostava de jogar e apostar em corridas de cavalos, era assíduo do bar e se virava como podia para sobreviver, dividindo peripécias – os tais cambalachos – com a comadre Naná, interpretada por Fernanda Montenegro206 . A canção parece mesmo ter sida feita “sob encomenda para a bossa de Germano Mathias”, conforme sugere o biógrafo Caio Silveira Ramos (2008:256). Além de seu formato de samba sincopado, no qual o intérprete sempre se destacou, possui uma narrativa que descreve o perfil de um típico malandro e sua habilidade em inventar
206 Ao pensar em Memórias de um Sargento de Milícias (1854), de Manuel Antonio de Almeida, não parece eventual que Silvio de Abreu tenha escolhido para a protagonista trapaceira o nome de “Leonarda Furtado” e que ela tenha como parceiro em suas tramoias um “compadre”. Cambalacho é protagonizada por diferentes tipos de golpistas e a ideia de que é possível levar vantagem em tudo perpassa os núcleos da trama: a personagem principal vive de trambiques, mas possui um orfanato em casa, para “aliviar a culpa” pelos atos que comete; a vilã se casa com um milionário cobiçando a herança, mas no testamento o legado é deixado a uma filha desparecida; uma impostora e seus dois comparsas tentam ficar com a fortuna; um advogado comete atos ilícitos buscando favorecer a amante... A universalização desses comportamentos parece se relacionar a uma ideia de desvio geral da lei. Vale lembrar que o folhetim foi exibido no final da ditatura militar, quando começam a vir à tona as histórias de corrupção durante o período. Informações sobre os personagens e o enredo disponíveis no portal “Memória Globo”: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/cambalacho/galeria-depersonagens.htm. Acesso em 8 de dezembro de 2017.
trambiques para sobreviver na “maré do asfalto”, especificamente em São Paulo (Pauliceia). Em “Jerônimo”, Germano Mathias não encarna o malandro, como de costume, mas assume o lugar de um narrador que apresenta essa personagem. O intérprete demonstra possuir um conhecimento íntimo do protagonista da narrativa ao descrever sentimentos (“é feliz”), pensamentos (“nem esquenta a cuca”) e reproduzir expressões que parecem pertencer ao seu vocabulário (“pique”, “xabu”, “arapuca”). Mas ele não se confunde com a figura narrada, o que também pode ser observado a partir de certo distanciamento na voz e uma interpretação mais “lisa” do que o habitual para um samba sincopado. Com traços épicos (ROSENFELD, 2004) 207, a canção narra a sagacidade de um “herói anônimo”, que vence as adversidades econômicas do cotidiano em São Paulo. A figura do malandro é fixada com base na recorrência de seus atributos, como o entusiasmo (“não perde o pique”), a capacidade de se livrar de situações-limite (“na hora H do xequemate”) e a esperteza (“em arapuca ele é hors-concours”). A linha melódica executada dá os contornos das artimanhas do malandro, como no trecho em que ele “escapa por um triz”. O canto recria o seu dinamismo, por meio do prolongamento de algumas vogais, como em “não perde o pi-i-i-que” ou “só-ó-ó descola o que come-er”, ao passo que outras sílabas são cantadas com uma curta duração, como em suspensão, por exemplo, em “Aposte numa ideia/ Com engenho e arte”, na primeira repetição da parte B do samba. Na época da gravação, marcada por recessão e desemprego em massa, conforme Paul Singer (2001:113), não só o malandro da canção precisava se virar para garantir o sustento básico. Na história econômica brasileira, o ano de 1986 é lembrado pela adoção do Plano Cruzado, que congelou preços e salários e introduziu uma nova moeda208, como
207 De acordo com o autor (2004:25), os traços épicos se revelam a partir de um narrador que possui uma atitude objetiva e fala com serenidade sobre personagens das quais parece já conhecer o futuro, assim como a intimidade, “como um pequeno deus onisciente”, mas que não finge estar identificado ou fundido com elas. 208A mudança aconteceu pouco antes da estreia de Cambalacho. Como as cenas da novela já haviam sido gravadas, a solução foi mostrar na tela a correspondência dos novos valores. Cf. informações do portal “Memória Globo”, disponíveis em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/cambalacho/galeria-depersonagens.htm. Acesso em 11 de dezembro de 2017.
uma resposta à alta inflação209 que se acumulava desde a metade da década de 1970, com a desaceleração do crescimento econômico do país. A crise gerou um desarranjo social que reverteu a tendência de melhora da pobreza, verificada desde os anos 1950. De acordo com Rodrigo Alvaro Brandão Lopes (1991), conforme citado por Sônia Miriam Draibe (1993), diante do desempenho econômico desfavorável, a proporção de pobres no Brasil aumentou no início dos anos 80, atingindo, em 1983, 41,9% da população – mesmo nível de 1960. Em 1985 e 1986, são criadas iniciativas emergenciais, como os Planos de Prioridades Sociais, para o combate à fome, ao desemprego e à miséria. Segundo Draibe (1993), entre 1981 e 1989, o país apresentou piora da distribuição da renda – o índice de Gini, que mede a desigualdade, salta de 0,572 para 0,652. Além disso, no final da década de 80, 48,6% da força de trabalho ganhava até dois salários mínimos e 27,2% da população ocupada recebia somente um salário mínimo; estima-se que 57,9% dos trabalhadores integravam o mercado informal, em 1988. O resultado seria um cenário comentado por Vera da Silva Telles.
Sem direitos que garantem a identidade e o estatuto de trabalhador, o rompimento do vínculo do trabalho pode significar uma situação que joga o trabalhador na condição genérica e indiferenciada do não-trabalho, na qual se confundem as figuras do pobre, do desocupado, da delinquência ou simplesmente da ociosidade e da vadiagem. (TELLES, 2001:101)
Diante da ausência das garantias que os direitos deveriam prover ao trabalhador, Vera da Silva Telles (2001) aponta como o mercado parece operar com a aleatoriedade própria dos fenômenos da natureza, e as adversidades do emprego e do desemprego tendem a se confundir com os azares de cada um. Na letra do samba, essa realidade pode estar contida na ideia de que “A vida é sempre uma rebordosa” ou na comparação da realidade urbana com uma “maré do asfalto”, sujeita a altos e baixos. Ao descrever as peripécias de um malandro que vive de trabalhos eventuais e de ideias ardilosas que possam lhe garantir um prato de comida (destaque para a rima comermetiér), a canção parece condizente à realidade de boa parte da população do período. Já
209 De acordo com o índice geral de preços da Fundação Getúlio Vargas, a inflação atingiu uma taxa anual de 517% nos meses de janeiro e fevereiro de 1986. Verbete “Plano Cruzado”. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/plano-cruzado. Acesso em 10 de janeiro de 2018.
nos versos iniciais há uma referência aos “homônimos” do malandro, o que talvez possa dizer respeito ao seu sobrenome (como “só mais um Silva”) ou à expansão do uso de expedientes pelos demais habitantes da metrópole, diante das similaridades sociais e econômicas com o protagonista do samba. Aparentemente, os feitos de Jerônimo não são dignos de louvor (trambiques, biscates, arapucas), porém, eles têm valor para uma comunidade que precisa vencer os mesmos obstáculos de subsistência no dia a dia e são apresentados com naturalidade pelo narrador. O fato de sua salvação (“escapa por um triz”) estar relacionada a um trabalho ocasional (biscate) revela que a sua desgraça é decorrente de uma situação de privação, também reafirmada na parte B da canção, diante da necessidade de “descolar o de comer”. Talvez por isso, a moralidade das ações de Jerônimo não é cogitada. Por salvar a si mesmo e por representar uma coletividade, Jerônimo é reconhecido como herói. O uso da antonomásia em “rei da prosa” e “pai do trambique” o situam como uma autoridade nas trilhas da malandragem. De fato, tanto o emprego da metáfora (“maré do asfalto”) quanto da antonomásia (“Pauliceia”) remetem aos rodeios e evasivas do comportamento e do discurso malandro. A contraposição de palavras ou expressões coloquiais com estrangeirismos ou termos cerimoniosos, como em maré do asfalto/incauto; comer/metiér/xabu; cuca/arapuca/hors-concours, reflete a “farsa paródica” do malandro, que manipula a linguagem como seu próprio traje, na tentativa de sustentar sua posição pela aparência. O recurso também serve como indício das desigualdades sociais que justapõem a todo momento o alto e o baixo, o rico e o pobre, na realidade urbana. Assim, mais do que uma vagabundagem, a condição do protagonista estaria estruturada a partir de um contexto de má distribuição de renda e de funcionalidade da pobreza no sistema capitalista em sua periferia. Para sobreviver, o malandro lança mão de estratégias diversas, como a “prosa”, o “trambique”, o “biscate”, a “arapuca”, e não desconsidera possibilidades que façam dele mais do que um “malandro de segunda linha”. O que leva ao questionamento de quem seriam, já à época, os malandros “de primeira linha” em São Paulo. Ainda que o conceito de marginalidade discutido por Lúcio Kowarick (1977) se restrinja aos trabalhadores precariamente inseridos no sistema produtivo, também pode ser associado à prática de delitos. Não porque eles decorram necessariamente da
marginalização do indivíduo na estrutura produtiva, como se as atividades criminosas fossem determinadas pela pobreza e pelo desemprego, mas porque faz sentido listar a delinquência como uma dentre outras alternativas de sobrevivência num contexto de populações incorporadas de maneira limitada no mercado de trabalho e na estrutura geral da sociedade. No samba, a aliteração malandro/ladrão estabelece textualmente essa oscilação entre atitudes mais ou menos criminalizadas e violentas. Jerônimo parece se encaixar no papel de “malandro da leve”, segundo a noção referida por Germano Mathias, ou no de “vadio”, conforme o sentido atribuído por Hiroito de Moraes Joanides (2003), ambos apresentados no primeiro capítulo. Se trata de alguém que, ao contrário dos “da pesada”, arranja um biscate com criatividade ou arma arapucas para sobreviver. Como afirma o samba, é preciso ter “engenho e arte” para vencer na Pauliceia, em que “engenho” também pode ser sinônimo para “estratagema ardiloso”, segundo consta no dicionário Houaiss, que exemplifica a acepção com a seguinte frase: “O engenho dos espertos ludibria os tolos”. No dicionário Michaelis, a palavra também é definida como “ação com o objetivo de enganar alguém ou prejudicar alguém ou algo; ardil, tramoia”.
O malandro (...) sempre agiu nas brechas, nos pontos fracos do sistema e das pessoas, procurando tirar o melhor para si, mas sem aparecer como perturbador da ordem ou agente do mal (DAMATTA, 1979). Sobrevive, dá-se bem, enriquece, escapole quando está em perigo. Morre velho, enquanto os outros perecem, seja porque continuam ocupando posição subalterna, seja porque não conhecem suficientemente a arte da malandragem, o que só se sabe a posteriori, pelos resultados obtidos em sua trajetória. (ZALUAR, 1985:102)
Assim, a letra faz uma diferenciação entre este tipo de malandro, habilidoso, o de “segunda linha” e o ladrão de galinha. Jerônimo parece alguém que desempenha suas atividades com superioridade e excelência, sem se equiparar nem a um reles e inexperiente gatuno, nem ao “malandro da pesada”. A conotação positiva do malandro parece se encaixar no contexto apresentado por Misse (1999), no qual a valorização da malandragem, idealizada e limpa de traços de violência, colidia com seu passado marginalizado e não se adequava à crescente precarização de seu tipo social nas áreas urbanas pobres. Além disso, diria respeito a uma ideia de generalização da malandragem nas classes médias e elites.