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CONSIDERAÇÕES FINAIS

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Boa noite, pra quem é de boa noite Bom dia, pra quem é de bom dia”

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A análise de sambas-malandros, na obra de Germano Mathias, e de raps sobre o “mundo do crime”, na obra do Racionais MC’s, corresponde a um exercício de pensamento sobre a vida nas margens da sociedade brasileira. A partir das personagens do malandro e do bandido é possível experimentar visões de mundo particulares, marcadas pela exclusão, pelo desvio e pela opressão, bem como sentir o olhar e a posição destinadas a essas figuras. O ponto de partida para a pesquisa foi a identificação de que tanto o sambamalandro quanto o rap do Racionais buscam articular a experiência marginal, cada um à sua maneira. Sendo samba e rap dois gêneros musicais resultantes dos fluxos da diáspora negra, se relacionam com dinâmicas de afirmação, de reconhecimento e de acabamento, inscritas dentro de um processo de reinvenção de identidades, de circulação de experiências, de formas de sociabilidade e de alternativas frente à complexidade dos modos de organização da vida. A colonização branco-europeia, projeto que ainda perdura, fez do corpo negro alvo de perseguição; quando não produziu o extermínio, imprimiu sobre ele uma estigmatização existencial. Mas esse mesmo corpo foi fonte geradora de significação e de restituição, por meio de práticas como a música e a dança (por exemplo, na cultura do samba e do Hip Hop), a luta (capoeira ou tiririca), a postura (gingado) ou o transe espiritual (incorporação). Assim, há toda uma sabedoria condensada em performances, mobilizada também nas representações dos grupos minorizados da população. Nas figuras de marginalidade estudadas parecem baixar potências, maneiras de conhecer e de estar no mundo, das quais podem ser destacadas a ginga, um jeito de corpo que demarca presença e revela habilidade para transitar preenchendo faltas, ocupando vazios; a ambiguidade, um campo de produção de dúvidas e criador de possibilidades; a gíria marginal, uma recodificação particular da linguagem em seu uso cotidiano e poético, que burla silenciamentos ao mesmo tempo em que fortalece comunidades; e as amarrações de ideias, pensamentos que norteiam ações e condutas, apresentados como máximas, aforismos, tanto no discurso dos malandros quanto no dos bandidos.

As letras de músicas analisadas tematizam a marginalidade, entendida aqui como um campo de problemas reais e dinâmicos. Ao longo da dissertação, foi possível discutir suas mudanças de sentido, a partir do cruzamento das perspectivas das personagens das canções e das abordagens adotadas nas narrativas, postas em diálogo com os processos históricos, econômicos e sociais demarcados nas obras. Por meio da revisão bibliográfica, a pesquisa retomou a tradição de estudos sobre a malandragem na música popular brasileira e na literatura, ao abordar as representações do malandro no universo do samba e nas camadas populares, a ideia da malandragem como a formalização estética de uma dinâmica social, sua relação com o fenômeno da vadiagem e com os embates na formação da classe trabalhadora brasileira. Também procurou expandir a abrangência da malandragem, ao colocar em foco a obra de Germano Mathias, um importante sambista paulistano, ainda pouco estudado. A reconstituição de um panorama de São Paulo que inclui vadios, sambistas, negros e malandros é uma tentativa de ultrapassar estereótipos, que em nada colaboram para pensar a nossa realidade. Em sua figura e no sucesso que alcançou na indústria cultural, Germano Mathias personifica contradições, contraria expectativas e amplia debates sobre o lugar do malandro. Visões solidificadas em torno de características e de condutas elevam a personagem do malandro a uma posição cultural estática e diminuem a força do tema da malandragem como instrumento de reflexão do país. Dentro do âmbito multidisciplinar deste projeto, ressalto a prazerosa pesquisa de notícias no acervo d’O Estado de S. Paulo, a respeito das personagens da malandragem na “terra do trabalho”. Através dela, os malandros surgem como protagonistas reais da violência urbana, durante um período determinado. A variedade de tipos e de ocorrências apresentadas também ajuda a romper com classificações e ideias superficiais sobre a malandragem. As demais matérias e reportagens citadas, assim como as páginas apresentadas ao final como anexos, permitiram acompanhar e discutir a história da marginalidade na cidade sob outro panorama. Por mais que não fosse o alvo desta dissertação, não poderia deixar de levantar críticas a respeito da cobertura jornalística sobre os temas da violência urbana e de seus personagens. E também pensar qual a compreensão real que a imprensa proporciona sobre os problemas reportados como “crime”. Mas cabe um olhar mais

aprofundado sobre esses assuntos, que ficará como semente para a continuidade dos estudos. As variedades de malandros surgem nas narrativas cantadas, nas citações bibliográficas e nas memórias de algumas testemunhas da malandragem paulistana, entre as quais, Germano Mathias, que atesta a existência das categorias “malandro da leve” e “malandro da pesada”. Este é um ponto importante, pois as divisões de conduta a partir de aspectos polarizados, como da leve versus da pesada, do morro versus da cidade, bandido sangue bom versus bandido mau, foram percebidos de maneira recorrente, como algo que parece acompanhar as transformações das práticas criminalizadas. A despeito da simpatia que o malandro desperta no imaginário contemporâneo, tanto as “notas policiais” quanto as narrativas cantadas permitiram ressaltar o caráter violento desta figura de marginalidade. A constatação refaz uma trilha entre a malandragem e a bandidagem, ainda que a violência se apresente em cada uma delas em nuances diversas. No samba-malandro, conteúdos de brutalidade, de injustiça e de sofrimento são o pano de fundo das narrativas e, como uma rasteira inesperada, avultam por meio do sarcasmo, do humor, da ironia. Outro ponto que religa malandros e bandidos é a condição de excluído, apresentada como objeto de reflexão e denúncia, e a violência que a sociedade dirige aos grupos negros e pobres da população. Neste sentido, a ideia de malandragem no samba e a noção de “periferia”, mobilizada no rap, parecem categorias abrangentes para discutir sobre uma experiência comum de marginalização social e econômica. No segundo capítulo, que analisa as imagens dos bandidos nos raps do Racionais MC’s, a quebra de estereótipos também acontece e é utilizada de forma estratégica nas narrativas cantadas, contra o preconceito, a proscrição e o extermínio da população marginalizada, em sentido amplo. Tanto a visão bestializada do delinquente como o mito do bandido social são colocados em debate, assim como é apresentada uma diversidade de tipos de marginais. Propõe-se a humanização das figuras de marginalidade, sem transformá-las em inocentes ou inofensivas, nem apoiar a opção pelo crime. Por meio de uma abordagem revolucionária, a ideia de transgressão é colocada a serviço da crítica da realidade histórico-social. As letras de rap promovem a elaboração de um cotidiano em que a violência se faz presente pelo crime, mas também pela brutal desigualdade, pelas condições precárias das periferias, pelo racismo, pelo sistema

capitalista, pela imprensa e pelo Estado. A partir da figura do criminoso/detento, os raps articulam uma questão que parece central na obra do Racionais, o valor da vida humana, em especial daquelas existências que em nossa sociedade parecem ter menos importância, como a dos pobres, a dos negros, a dos marginais. Portanto, a questão da sobrevivência une malandros e bandidos, seja no que diz respeito à limitada inserção nas estruturas de produção, seja na manutenção da vida, diante dos riscos representados pelas carreiras marginais, pelos inimigos e pela ação do Estado. Aliás, se a comparação das narrativas cantadas evidencia o incremento do crime na sociedade, com a expansão do uso de armas de fogo, das ocorrências e das mortes violentas, também realça uma evolução perversa dos projetos estatais na gestão dos “ilegalismos” e na construção da delinquência, que vão da repressão e perseguição aos vadios, passando pelos métodos ilegais de eliminação de suspeitos até a execução de criminosos. Em ambas as figuras estudadas, o reconhecimento de relações e práticas cotidianas reguladas pelo uso instrumental de violência permite pensar este fenômeno como uma constante da realidade brasileira. Seu “acúmulo” ultrapassa os atores sociais que o encarnam nas narrativas cantadas. As obras respondem e formalizam processos sociais complexos e as transformações da marginalidade não se resumem à ideia de passagem do malandro ao bandido, como se uma figura se convertesse na outra. Há diferenças temporais, espaciais, comportamentais e estéticas marcantes nas personagens e nas letras de músicas comparadas. A escalada da brutalidade no cotidiano é a mais óbvia, refletida na atuação das figuras de marginalidade e sentida de imediato quando se entra em contato com a “agressividade lúcida” do trabalho Racionais, que se contrapõe à estrutura cordial do samba-malandro e aos conflitos implícitos às atitudes do malandro. Esta oposição é uma escolha formal significativa e fundamenta novos direcionamentos artísticos e interpretativos na realidade brasileira. A questão da integração ou da marginalização do indivíduo por meio do trabalho, apresentada no samba-malandro, perde consistência com o desenvolvimento de uma economia globalizada, que segue os rumos da liberalização financeira, da flexibilização das relações de trabalho e do encolhimento do Estado. O embaralhamento das figuras do vadio e do malandro já apontava para tópicos mais complexos do que a recusa ao trabalho. Como foi visto, o contexto da virada para o século XXI promove outros trânsitos entre as

atividades informais, ilegais e ilícitas. Nas narrativas dos bandidos estudadas, o que se sublinha é uma atitude de ruptura e, quando a integração é buscada, surge associada ao consumo mas logo apontada como uma escolha ilusória. Por mais que no panorama real, colocado em debate por meio dos conteúdos da imprensa intercalados ao texto, a amplitude do submundo ou do “mundo do crime” inclua “malandros bandidos” e “bandidos malandros”, nas figuras clássicas exploradas nas narrativas cantadas, as duas personagens se diferenciam. Porém existem continuidades na linguagem, na afirmação pela força, na carência material e psicossocial, no machismo e no racismo, nos roteiros típicos dos agentes da lei, por exemplo. Trata-se de uma carga que vai se concentrando conforme a pesquisa avança e chega a se tornar insuportável até, pois parece revelar um Brasil sem saída, estagnado em seus dilemas. Com a perspectiva de cruzamento adotada, foi possível riscar fluxos, diálogos e embates no que diz respeito à experiência de marginalização em nossa sociedade. O objetivo não era traçar um percurso linear e objetivo que saísse do malandro e chegasse ao bandido, mesmo porque, as trilhas do samba-malandro de Germano Mathias e do rap sobre o crime do Racionais MC’s possuem suas próprias sinuosidades. Ao colocar em circulação essas produções artísticas e as experiências históricas e sociais correlatas, a expectativa é ter gerado encontros que alarguem possibilidades, de modo que nossos impasses possam tomar novos rumos, e as vozes que se escutem no futuro consigam ultrapassar o lugar do marginal, na força desta encruzilhada.

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