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3.2 Vencer na Pauliceia entre a malandragem e o crime
from Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC'
samba e no rap, de modo geral, observa-se a expressão de uma pesada experiência social, sob o ponto de vista de indivíduos integrados de forma perversa na cidade e na ordem capitalista.
3.2 Vencer na Pauliceia entre a malandragem e o crime
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A metáfora da sobrevivência como um jogo é utilizada tanto no samba “Jerônimo” (“Na hora H/ Do xeque mate/ Inventa um biscate”) quanto no rap “Crime Vai e Vem:
Perdedor não entra nesse jogo É como num tabuleiro de xadrez Xeque-mate, vida ou morte Um, dois, três. Vê direito Para e pensa, nada a perder
Além da referência específica relacionada ao xadrez, outras passagens do samba e do rap analisados apontam para situações competitivas que envolvem ganhos e perdas. Jerônimo nunca “perde o pique”, nem “dá xabu” (azar). E para quem deseja vencer na Pauliceia, o narrador do samba sugere: “Aposte numa ideia/ Com engenho e arte”. Já o narrador do rap revela como o protagonista “conta com o que ficou e não o que perdeu”, afirma que na estrada da vida “um ganha e outro perde”, que ser “vitorioso” é quem consegue “sobreviver e não deitar crivado de bala”, que o crime corresponde a “um jogo arriscado”. Por fim, apresenta o empresário da droga como um jogador de roleta em Las Vegas. Na malandragem, o jogo sempre foi um expediente corriqueiro, como no caso do malandro que “dá duro no baralho pra poder viver”222 ou daqueles que tiram seu sustento do jogo do bicho, da sinuca, do jogo de chapinha ou de dados. A condição de jogador, portanto, figura como uma entre as possíveis estratégias de sobrevivência, como comenta Waldenyr Caldas.
O malandro tanto pode ser trapaceiro, jogador, “profissional” de sinuca, baralho etc., como também, sob a óptica mais conservadora, um trabalhador não inserido no mercado formal de trabalho. É o caso de subempregados como dos camelôs das grandes cidades, do cambista que vende ingressos com ágio fora das bilheterias de teatros, estádios, casas de espetáculos em geral e outros lugares públicos. Por imposição do mercado de trabalho, o desempregado e o
222 “Nega Dina”, samba de Zé Kéti, gravado por Germano Mathias no LP Samba de Branco, da Polydor (1965).
mendigo também podem, ainda que indevidamente, ser interpretados como malandros. (CALDAS, 1995:34-5)
Essas formas malandras de “ganhar a vida”, que se relacionam à ideia de “viração” das classes populares, dialogam com o samba analisado, de Eduardo Gudin e Carlos Mello. Em “Jerônimo”, a malandragem ainda é uma façanha, possível apenas para quem possui a ginga necessária para surfar na maré do asfalto, conhece as artimanhas (o “rei da prosa” e o “pai do trambique”), dispõe de competências exclusivas (engenho e arte). Por dominar as condições de existência, saber trapacear no jogo da sobrevivência, Jerônimo não precisa se preocupar excessivamente (“incauto”, “não esquenta a cuca”). Mas as transformações na estrutura socioeconômica, na cidade e no mundo do trabalho mudariam as regras do mercado informal, ilegal ou ilícito, e determinariam novas performances aos jogadores, como se observa em “Crime Vai e Vem”. No contexto do rap, os perigos enfrentados pelo marginal mudam de escala. Ainda que o traficante também esteja sujeito às mesmas dificuldades do malandro, como ser preso ou passar necessidades, para evitá-las assume um risco maior, que explicitamente envolve a própria vida. A questão não é só a subsistência, mas a existência: o sujeito se vê diante da morte de maneira próxima e previsível (“O réu acusado já foi programado pra morrer”), a ponto de entrar para o arriscado jogo do tudo ou nada (“Ae truta, se for pra ser, eu quero é mais”). A narrativa de “Crime Vai e Vem” se passa em um morro, de modo que o rap dialoga com um conceito de marginalização histórica, apresentado por Kowarick (1994) em relação aos ex-escravizados e aos homens livres e pobres, relegados a uma situação social e econômica de exclusão e de inferioridade (“Pro pobre, pro preto, o gueto é sempre assim”). Nesse sentido, malandro e traficante poderiam ocupar um mesmo lugar social, em que restaria oscilar entre o desemprego, as ocupações esporádicas, os empregos mal remunerados, ilegais ou ilícitos. Assim como o malandro Jerônimo, na letra do rap, o traficante é uma figura associada às classes populares. Em uma perspectiva de longa duração, a condição de exploração revela um lastro histórico, em que um mesmo grupo da sociedade leva desvantagem na divisão das riquezas produzidas. Porém, nos últimos anos, as camadas populares protagonizam novas rotas, subjetividades e práticas que ultrapassam o arcabouço conceitual até então reservado a elas, principalmente pelas transformações nas
formas de circulação financeira, na economia informal e na maneira de se relacionar com o capital. Ao contrário do malandro, no rap “Crime Vai e Vem” o traficante integra-se às finalidades da produção, do mercado e do consumo, ainda que em uma posição fora da lei. Em linha com o pensamento de Vera da Silva Telles (2015), mais do que uma atitude associada à viração popular, as práticas atuais apontam para outros jogos de poder e campos de força, em que traços persistentes de nossa história se redefinem – a malandragem parece ser uma delas. Perderia a força explicativa a ideia de que tal cenário seria somente resultado das incompletudes da nossa modernidade e da estruturação precária de nosso Estado. Outras lógicas foram se desenhando alinhadas às lógicas dominantes, diante da falta de projetos que efetivamente colaborassem para superar os desníveis sociais, econômicos, políticos e culturais – o que nem parece ter sido de fato buscado, dado a funcionalidade das populações marginais no sistema vigente. Ao contrário do que se poderia esperar, o encaminhamento das carências e privações que afetam a sociedade brasileira não parece ter se dado dentro do âmbito da integração ou adaptação a um modelo superior almejado, mas por meio da criação de modos peculiares de pertencimento. A questão da sobrevivência deixa de se relacionar à arte da malandragem, para se tornar uma prática coletiva, relacionada à preservação da vida (“Vários maluco dando o sangue por dias melhores”), um imperativo nas mais diversas cidades, inclusive fora do âmbito nacional, diante da busca generalizada por alternativas, ainda que ilegais/ ilícitas. Também não seria exclusiva das camadas baixas da população, pelo contrário, se explicaria simultaneamente por uma articulação com os altos círculos do capital, conforme explica Angelina Peralva.
Os mercados de pobres mundializados não fazem viver somente os sacoleiros do contrabando; eles fazem viver também grandes importadores, Estados e o conjunto das indústrias que investem nesse nicho de mercado. Mais do que isso: a dinâmica do capitalismo está diretamente imbricada nos mercados ilícitos da droga, e os Estados – naturalmente, em sua versão degradada mais do que em sua versão típico-ideal – também participam desse processo. Na formação de todos esses mercados, há pedaços vindos de baixo mas também pedaços vindos de cima. (PERALVA, 2015:450)
As transformações provocadas pela consolidação do neoliberalismo, que incluem a disseminação de lógicas corporativas para vários âmbitos da sociedade, chega também
ao universo do ilícito. O malandro do “metiér”, do samba “Jerônimo”, já se apresentava a partir de uma categoria especializada dentro da malandragem. Entre as décadas de 1950 e 1970 , Hiroito de Moraes Joanides (2003) também destacou as exigências que faziam parte das “rotinas de trabalho” no submundo paulistano, cada qual segundo a especialidade da atividade, como no caso do traficante que atuava como passador da droga e que precisava buscar a mercadoria entre os traficantes maiores, realizar diversas negociações que envolviam preço e qualidade do produto, cultivar relações de diplomacia com a freguesia e com a polícia, cumprir rotinas de preparo das porções vendidas, como pesar e embalar o tóxico. Diante do quadro apresentado, parece não fazer sentido pensar ainda nos termos da “malandragem”, a começar pela recusa habitual do malandro em relação ao trabalho e aos valores da sociedade burguesa. Enquanto a ação de Jerônimo era solitária, o traficante que protagoniza “Crime Vai e Vem” não só tem patrão, como é um dos braços de uma cadeia que opera sob a lógica capitalista, ainda que em um mercado ilícito, sendo ele mesmo motivado por valores associados à acumulação. O desenvolvimento do mercado de drogas também demarca descontinuidades entre antigos comportamentos sociais criminalizados. Agora se configurariam outros tipos de delinquência, marcadas não pela astúcia, mas por performances mais agressivas, pelo uso dos meios de violência e por métodos que permitiriam conceituar as práticas como “crime organizado”. O traficante permanece sob tensão, com o risco de morte já previsto, e não pode se descuidar (“Eu tô aqui com uma nove na mão”; “ligeiro a todo instante”; “Muita cautela ainda é pouco”). O malandro solitário que precisa descolar o que comer e age com esperteza misturada a uma espécie de inocência não teria mais espaço. Nesse contexto, perderia o seu lugar, a menos que realmente se especializasse em seu “metiér”, transformando-se, talvez, no “bandido formado”223, como discute Alba Zaluar.
Com a aposentadoria desse malandro criativo, que foi trabalhar na indústria cultural sem se tornar por isso um alienado, pois continuou crítico de nossas
223 Ainda que o indivíduo assim categorizado possua uma representação positiva, como alguém que defende o território e seus moradores, conforme Zaluar (2000), para poder “se formar” o bandido precisa ter matado alguém, prática que não faz parte dos roteiros dos “malandros da leve”. No rap, o traficante afirma que está com “uma nove na mão/ Cercado de droga e muita disposição [para matar]”. Ainda segundo Zaluar (2000:138), o “bandido formado” conhece bem as regras do jogo, ou seja, não guia as suas ações apenas pela astúcia. Como também consta no rap: “Jogo arriscado, mas quem tá preocupado?”.
instituições e de nossa sociedade, da suposta resistência surgiu outro personagem muito mais sinistro: o bandido. Este apareceu quando a contravenção e o crime tornaram-se eles mesmos grandes empreendimentos mercantis montados com base num exército de empregados que são simultaneamente soldados de uma guerra sem fim pelo controle dos mercados. Nestes, o acúmulo de riquezas e de instrumentos de violência é fundamental para capacitar as pessoas para a resolução de conflitos. Pois, se a Justiça não pode ser acionada por causa da ilegalidade do empreendimento, as armas de fogo são extremamente eficazes para destruir desafetos e rivais, para dominar as vítimas, para amedrontar possíveis testemunhas e criar respeito entre comparsas e policiais, garantindo a impunidade. (ZALUAR, 1996:97) O malandro era percebido como um ser da fronteira por Antonio Candido (1993), a partir da análise do romance Memórias de um Sargento de Milícias (1854). Mesmo quando transita pelas encruzilhadas do legal e do ilegal, do lícito e do ilícito, do formal e do informal, o marginal cantado pelo Racionais escolhe pertencer a um lado, o “mundo do crime”. É essa diferença que talvez demarque o discurso das figuras bandidas na obra do grupo, como no rap “Crime Vai e Vem”. Outro traço que se faz presente de agora em diante é o da violência. Por mais que existisse na malandragem, a violência era vista com reserva, na medida em que poderia desagregar a comunidade, segundo Cláudia Matos (1982:71). A autora enfatiza que a atuação do malandro não corresponde à do bandido ou criminoso comum ou do sujeito que lança mão da violência por qualquer motivo. Ao analisar os sambas-malandros gravados entre 1930 e 1945, Matos (1982) observa que o malandro possuía uma marca positiva em sua comunidade, por conseguir burlar a ordem e não se sujeitar aos valores dominantes. Também representava uma figura singular, cujas práticas e atitudes não eram acessíveis aos demais indivíduos. Vale lembrar que no início do samba “Jerônimo” o valor do malandro era demarcado de maneira favorável (“Jerônimo é um herói anônimo”). A personagem é vista como alguém que consegue vencer as adversidades (“A vida é sempre uma rebordosa”) e que se notabiliza por seus feitos, ainda que fossem trambiques e arapucas. Na realidade contemporânea do bandido e da favela, cantada no rap “Crime Vai e Vem”, as definições tornaram-se incertas e outro tipo de heroísmo parece ser valorizado (“Vitorioso é aquele que, se pá, consegue/ Sobreviver e não deitar crivado na bala”) diante da dificuldade de escapar das dinâmicas que passaram a reger a sociedade. Na voz de Ice Blue, o traficante deixa explícita a sua condição ao falar que está armado e disposto a matar (“Eu tô aqui com uma 9 na mão/ Cercado de droga e muita disposição”). Ele não é
mais respeitado pela comunidade, mas temido – o que é bastante diferente – e fora do seu grupo é enxergado como “mais um bandido”. Na “zona cinzenta” que caracteriza a sobrevivência atual, pelos caminhos possíveis de serem percorridos por esses indivíduos (“Um irmão morreu, ou outro se casou/ Saiu dessa porra, firmeza, se jogou/ Só eu fiquei fazendo tempo por aqui/ Tentei evitar mas não consegui”), também se embaralhariam as distinções entre um homem de caráter, que honra o que faz perante a sociedade, e um covarde, que prejudica os outros (“Sujeito ou cuzão, herói ou vilão?”); entre alguém que é celebrado pelos seus feitos ou é considerado desprezível por eles. Conforme explica Vera da Silva Telles (2009:157), a aceitabilidade moral das alternativas de sobrevivência agora é negociada em cada situação, não só pelos criminosos e contraventores, mas pelos seus familiares, pela população em geral, que da mesma forma transita por esses campos, joga “com as diversas identidades que remetem a esses universos superpostos e embaralhados nas coisas da vida”. Tais mudanças de sentido e descontinuidades impedem que o bandido/traficante seja entendido como uma versão atualizada do malandro. Além de operar a partir da dinâmica do capitalismo, a forte presença da violência, das disputas de poder e da tensão nas rotinas do crime não dialogam com o quadro risonho, inocente e pacífico associado à malandragem, ao menos, à malandragem “da leve” como a de Jerônimo no samba cantado por Germano Mathias. Agora, o que temos é “Só vagabundo, bandidagem e a morte”. A sobrevivência não se resolve de maneira fácil, torna-se um desafio. O crime é um mundo de imponderáveis e são tais incertezas que fazem Edi Rock desejar boa sorte a todos os envolvidos nesta realidade, inclusive a nós.