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Tabela 7 – Malandro x Bandido
from Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC'
Conforme Zaluar, o crime violento vai se tornando cada vez mais parte de processos globais econômicos e socioculturais, ao passo que a generalização do medo quebra o equilíbrio de tensões da sociedade brasileira. Diante disso, a imagem do ladrão simboliza essa ruptura e o seu confronto com o malandro, a colisão de dois modos de compreensão do país. Tanto nas pesquisas quanto na representação social é comum considerar ambas as figuras a partir de critérios mais ou menos consensuais, ainda que os matizes sejam bem maiores fora do universo normalizador e no “mundo do crime”. Eis uma breve sistematização das visões atuais do senso comum, a partir de pontos destacados no próprio trabalho de Alba Zaluar (1985), assim como nas pesquisas de Maria Angela Borges Salvadori (1990) e de Michel Misse (1999).
Tabela 7 – Malandro x Bandido
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Malandro Bandido
Inteligente, astuto, simpático, “não perde o controle” Ignorante, agressivo, antipático, descontrolado Prezado pela comunidade Impõe respeito pelo terror Individualista Quadrilheiro Evita o enfrentamento, defesa pessoal com a luta corporal Busca o enfrentamento direto com armas de fogo Atitude emotiva Atitude calculista
Ganha dinheiro sem trabalhar para sobreviver Ganha dinheiro sem trabalhar para consumir
Principais ocorrências: estelionato, sedução, lenocínio, furto qualificado, contrabando e contravenção (jogos de azar, jogo do bicho, porte de arma, vadiagem) Principais ocorrências: roubo, assalto a mão armada, estupro, latrocínio, tráfico de drogas
Representação da violência urbana até a década de 1950 Representação da violência urbana da década de 1960 em diante
Expressão cultural: Samba Expressão cultural: Hip Hop Vestuário: terno branco, chapéu, sapato bicolor Vestuário: roupas esportivas e de marca, boné e tênis
A conotação positiva do malandro e seu reconhecimento como um “barão da ralé”200, um poderoso entre os miseráveis, passa ao bandido, como o narrador de “Eu Sou 157” faz questão de ostentar a seu respeito, a cada repetição do refrão. Porém, o rap também revela como esta condição é controversa dentro da comunidade e instável, além de não situar o ladrão em uma perspectiva de “glorificação do oprimido” (“A vida é sofrida, mas não vou chorar”). Nas relações e nas atitudes, em vez de uma resposta emocional, o bandido demonstra pragmatismo (“Lamentável, vamo aí, vai chover de polícia”). As diferenças são marcantes e permitem retomar a discussão proposta por Walter Garcia (2014) a respeito de duas sociabilidades: a da malandragem, associada ao samba, e a da marginalidade, representada no rap. Na tentativa de compreender o “processo por que a malandragem no samba veio perdendo consistência à medida em que declinava a matéria histórica que lhe servia de referência”, Garcia (2014:4) cogita a hipótese de “ruína da cordialidade”201, articulada também em seu estudo sobre obra do Racionais MC’s:
Aquele Brasil da cordialidade, no qual os antagonismos eram sufocados pelo aparente convívio afetivo, tornou-se, no final do século XX, o Brasil da fratura social. A canção do Racionais, com uma lucidez sem par nesse momento, nos dá a chance de experimentar a violência dessa fratura (que ameaça transformar qualquer contato humano em confronto) e nos adverte de que as coisas não devem ficar assim. (GARCIA, 2003:179)
Portanto, é possível pensar a força simbólica da figura do bandido na obra do Racionais para realizar uma abordagem crítica inovadora à experiência do excluído na realidade brasileira. Esses “novos personagens” que entram em cena manobram com a própria imagem de marginalidade, a partir da qual adquirem visibilidade e representatividade. A representação dos marginais no samba e no rap analisados pode ser cotejada com a noção de “acumulação social da sujeição criminal”, que é examinada por Michel Misse (1999), entre outros aspectos, por meio do “linguajar dos marginais”. Não só em “O Assalto” e em “Eu Sou 157”, o uso de gírias e de um linguajar característico são observados, assim como nas matérias jornalísticas destacadas. Por exemplo, no Anexo VI
200 “A Volta do Malandro”, de Chico Buarque, canção do disco Malandro, da gravadora Barclay (1985). 201 A ideia de “ruína da cordialidade” é formulada por Walter Garcia (2013: 213-230) no terceiro capítulo de Melancolias, Mercadorias: Dorival Caymmi, Chico Buarque, o Pregão de Rua e a Canção PopularComercial no Brasil.