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4. O malandro encarnado

(2000:100), o fenômeno incluiria outras personagens, fora das imagens consagradas pelos sambistas cariocas, pois diria respeito a um contexto social e histórico brasileiro, resultado de um sistema excludente, “que beneficia minorias privilegiadas em uma sociedade cuja ‘ordem’ e ‘coerência’ são abstrações retóricas. Uma sociedade que parece não funcionar, mas arrastar-se, exigindo uma ‘destreza artística’ dos sobreviventes”. Ainda segundo ela, o exercício da malandragem estaria relacionado com um modo de vida destoante, não só em relação ao trabalho, mas aos padrões de conduta. Se a princípio Germano Mathias parece não se ajustar ao imaginário popular relacionado à malandragem, esse estranhamento se transforma em potência. A vocação inata do paulistano para o trabalho e a exemplaridade da mão de obra imigrante, tão apregoadas, teriam sido subvertidas pelo gesto malandro do sambista, que se apresentaria inserido em uma realidade marginal, povoada por desocupados, subempregados, delinquentes de diversas origens, animada por batuques e danças de negros, mas situada rente aos trilhos da “locomotiva do progresso”.

4. O malandro encarnado

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A imagem do malandro se acoplaria a Germano Mathias a partir do discurso de suas canções, de sua forma de interpretá-las, pela indumentária utilizada e por sua performance ao se apresentar diante do público. No artista estudado, é perceptível a identificação do conteúdo das letras, dos motivos melódicos, do ritmo e do modo de cantar às habilidades da personagem representada. A voz de Germano ginga, ao dividir de maneiras diferentes os versos nos sambas sincopados: as palavras paralisam, engasgam, atropelam o ouvinte, deixando-o desnorteado e sem condições de cantarolar a letra enunciada – afinal, a posição do malandro não seria para qualquer um55. Tal hesitação, que também se nota por meio de uma ênfase na oscilação entre a fala e o canto, em alguns trechos, ajuda a formalizar a ambiguidade do discurso malandro. Em linha com o pensamento de Cláudia Matos (1982), o manejo especial da linguagem, especialmente com o emprego da gíria, e a capacidade de brincar com as

55 Durante uma apresentação ao vivo de Germano, presenciei um pedido de canja feito por uma cantora novata ao sambista. Ele prontamente recusou a participação, alegando que o samba sincopado não comportava duas pessoas dividindo o vocal. A música em questão era “Baile do Risca-Faca”, de Jorge Costa e Germano Mathias (sob o pseudônimo de Durum Dum Dum), gravado em 1962, no disco Ginga no Asfalto, da Odeon.

palavras, parecem definir o sambista malandro, mais do que a sua cidade de origem. Da mesma forma, os assuntos clássicos do samba-malandro, como a vadiagem, os conflitos com os representantes da lei e com as mulheres, o universo da boemia, do samba e do jogo, e as diversas nuances da violência. Na obra de Germano, um exemplo que concentra todos esses temas é “Nega Dina”, de Zé Keti, gravado em 1965, no LP Samba de Branco, da Polydor. A letra conta a história da mulher de um malandro que sai à sua procura pelos morros do Rio de Janeiro, e quando o encontra não só discute com ele, mas diz que levou seu nome para a macumba. Segundo o malandro, a mulher estaria irritada porque há uma semana ele não deixa “uma grana” para as despesas, mas o personagem se justifica ao revelar a precariedade de sua situação, diante das dificuldades de sobrevivência por meio do jogo e da necessidade de se esconder da polícia, que o colocaria “em cana, toda hora, sem apelação” – o que também permitiria discutir a arbitrariedade policial. A canção termina com o malandro se definindo como um “marginal brasileiro”, uma declaração que inter-relaciona em sua figura a marginalidade econômica e social. Outro samba de temática semelhante é “Papo Furado”, do próprio Germano e de José Guimarães, lançado pela Tratore, em Sambas de Morro - Inusitado Peculiar Sui Generis (2016). Na narrativa cantada, um malandro presta explicações a um delegado sobre sua conduta, depois de ter sua malandragem denunciada por uma mulher – quem sabe como vingança? Com sua lábia, ele diz ser mentira a história de que estaria com um baralho na mão, procurando confusão no morro, pois há mais de um ano não entraria na favela. Para justificar a mudança de conduta, ele revelaria que, de fato, já fez o que a mulher disse e foi um “cara ruim” – tanto que o próprio doutor teria “bronca” dele –, mas isso há muito tempo. Além da afirmação do caráter violento do malandro por meio da descrição de suas atitudes no passado, este samba apresenta o tema da “regeneração”, ou seja, da mudança de postura do malandro. Na verdade, este recurso seria uma estratégia de sobrevivência, um subterfúgio tanto para não ser preso quanto para “continuar no jogo”, conforme Cláudia Matos (1982:120). O malandro regenerado é um personagem recorrente nos sambas sobre a malandragem. Na obra de Germano Mathias é possível destacar as gravações “Senhor Delegado” (1957), de Ernani Silva e Antoninho Lopes – que será analisada adiante; “Malandro de Araque” (1959), de Rafael Gentil e F.M., “Regenerado”

(1968), de Zé Keti, “Vou Ficar Devagar” (1968), de Nelson Pechincha e Padeirinho da Mangueira. A violência institucional e o arbítrio policial são assuntos associados às letras que tratam da regeneração e aparecem com vigor em “Chavecada na Pavuna” (1959), de Gariba e Basilio Alves, por exemplo. O samba descreve uma batida policial em uma gafieira, um espaço de sociabilidade e diversão popular localizado em um bairro da zona norte carioca. Por meio de um linguajar repleto de gírias, ouve-se o relato da invasão do salão de dança pela polícia, sem justificativa aparente. Todos são levados presos, inclusive os músicos da orquestra, com exceção do baterista dedo-duro. Quem testemunha o acontecimento é o próprio Germano, nomeado na canção, e integrado àquele grupo social marginalizado (no momento da diversão e também da prisão). Conforme Cláudia Matos (1982:185), o gênero malandro não incluiria “simplesmente os sambas que falam sobre a malandragem, mas essencialmente os que falam ‘malandramente’”. Um exemplo é “Baile do Risca-Faca”, de Jorge Costa e Germano Mathias (sob o pseudônimo de Durum Dum Dum), gravado em 1962, no disco Ginga no Asfalto, da Odeon, que não apresenta diretamente um quadro tradicional de malandragem, mas uma percepção crítica a respeito das contradições que envolvem o local, as personagens e o contexto da narrativa cantada. A letra se passa em uma gafieira e o ritmo do samba recria o salão de baile popular, associado à boemia, ao divertimento das classes baixas e de marginais e prostitutas. Ao falar sobre os pontos de diversão dentro da zona de prostituição em São Paulo, por exemplo, Hiroito de Moraes Joanides conhecido como o “Rei da Boca do Lixo” em São Paulo, entre 1950 e 1970, cita os bailes nos quais “meretrizes e empregadas domésticas ou de baixa categoria profissional se congraçavam com rufiões, bandidos, boêmios, escriturários, bailando alegremente”. No baile do Astória, na General Osório, e no 28, na rua dos Andradas, a frequência era “toda de delinquentes (notadamente os mais pés-dechinelo), vadios e mulheres da vida. Somente um trouxa muito abusado atrever-se-ia a frequentar tais bailes, por serem os mesmos do tipo ‘sem navalha não entra’...” (JOANIDES, 2003:102). Em matéria publicada na revista E, do Serviço Social do Comércio de São Paulo, Germano cita um “baile do risca-faca” em Osasco, ao falar sobre a sua vivência nas gafieiras:

“Eu frequentava as gafieiras. Tinha o Amarelinho, na Praça João Mendes, na parte de cima da Padaria Santa Teresinha. Um dia lá teve uma briga e me deram uma cadeirada... porque eu era metido a valente, sabe? E acordei no hospital...” – e ele alude, brincando e ritmando, ao real motivo da briga: “pra olhar não se paga nada/ com os olhos se ganha remela/ e com as costas borrachada”’. Risadas à parte, a gafieira era coisa séria nas décadas de 1940 e 50: “tinha também o Caçamba, na (rua) Quintino Bocaiúva, e uma outra em Osasco, chamada Baile do Risca-Faca. Era um ambiente de samba...” (MATHIAS, 201456) Na festa descrita no samba, o traje “a rigor” é composto por tamanco, cartola e casaca; outro despropósito aparece na orquestra, comandada por um maestro chamado “Sarrafo”, que toca samba-canção, enquanto o público dança baião. Naquele ambiente “perigoso”, um sujeito negro, com três metros de altura, “na base do desespero” anuncia que é possível comprar uma faca por 50 cruzeiros, para quando o baile acabar. A canção se encerra com uma mensagem irônica que parece conter em si os códigos que perpassariam o ambiente, no qual a violência faz parte do modo de vida, inclusive devido à relação conflituosa com o poder público: “Podem brigar à vontade/ porque aqui a polícia não vem/ todo mundo é gente bem!”. A partir da discussão sobre a violência em suas múltiplas manifestações e a marginalidade econômica e social, serão analisadas a seguir algumas canções de Germano Mathias consideradas representativas dentro do campo da malandragem. Com 17 discos em 78 RPM, dez LPs (fora os relançados com títulos diferentes e em CDs), vários compactos, cinco CDs (sem contar participações e parcerias) e um DVD, seria difícil57 dar conta de todas as canções do intérprete que remetem à temática.

56 “A ginga de Germano Mathias”, publicada em 15/05/2014. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/online/artigo/7541_A+GINGA+DE+GERMANO+MATHIAS. Acesso em 10 de março de 2019. Em outra reportagem, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 31/07/2016, um frequentador das antigas gafieiras de São Paulo afirma que “Baile do Risca-Faca” faria referência a um espaço localizado na favela da Vergueiro: “‘Na favela a gente ia dançar no Risca Faca’, lembra Gijo, pé de valsa que não perdia uma boa gafieira. O Risca Faca era um salão de bailes que até rendeu música e enriqueceu o folclore da cidade. O sambista Germano Mathias foi um dos que transformaram o salão da favela em poema. ‘No domingo eu fui, no baile do Risca Faca, onde o traje a rigor, era tamanco, cartola e casaca’, diz o artista no samba. ‘Naquela época, a gente dançava samba e baião no salão da Maria Lotação’, conta Gijo, que atualmente mora na Chácara Klabin. Lotação, explica ele, é porque a dona do baile, cantado por Germano Mathias, pesava 182 quilos e lotava todo o espaço quando chegava. ‘No fundo, o bar era cuidado pelo Pato Donald’, prossegue Gijo, divertindo-se com as memórias. “Pato Donald porque ele tinha uma boca enorme”, explica. ‘Lá a gente tomava o beijo-de-negra, um drinque feito de pinga, groselha e vinho, servido com gelo.’” Disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,o-paulistano-quefez-a-vida-enchendo-linguica,10000065981. Acesso em 10 de março de 2019. 57 Há de se considerar ainda a dificuldade de encontrar algumas gravações e álbuns, enfrentada pelo próprio biógrafo do sambista.

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