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7. Da leve e da pesada
from Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC'
respeito às disputas de poder no submundo, à transformação da violência na sociedade, bem como à mudança das características das figuras de marginalidade.
7. Da leve e da pesada
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No universo da malandragem, a violência é pensada a partir de categorias próprias, como o “malandro da leve” e o “malandro da pesada”. A separação costuma ser bastante porosa, mas os “malandros da leve” seriam considerados inofensivos, ao menos do ponto de vista da integridade física dos otários, alvos de suas ações. Entretanto, estariam associados a delitos como o punguismo, o rufianismo, a gatunagem, a aplicação de golpes e a jogatina. Eles também se confundiriam, na tradição malandra, com a própria figura do sambista. Os “malandros da pesada” seriam os que arranjariam dinheiro de formas mais cruéis. Entre eles, se destacariam indivíduos “perigosos”, assaltantes armados, homicidas e traficantes. No vocabulário que consta ao final do livro sobre a vida e a obra de Zé Keti, escrito por Nei Lopes (2000), é apresentada a seguinte definição para “pesada”: “substantivo feminino - Elemento usado na expressão “da pesada”, designando incialmente o assaltante à mão armada, em contraposição ao punguista”. O próprio Germano Mathias comenta essas diferenças, em entrevista ao programa O Som do Vinil¸ do Canal Brasil (sem data)79:
Naquele tempo, o malandro tinha uma mentalidade diferente, digamos que a malandragem era romântica, o malandro era um bon-vivant, vivia de jogo, de mulher, de 171, mas ele não tirava o sangue de ninguém. Quando ia em cana, saía logo, porque a bronca era pequena. Se o sujeito era um malandro que se tornava bandido (que nós chamávamos “da pesada”), ele era deixado à parte, porque os outros achavam que ele não tinha capacidade para ganhar dinheiro sem violência. O malandro só era violento quando o obrigavam, como no caso de disputas por mulheres ou para defender a sua moral, a sua integridade física. Hoje em dia não tem mais malandro, só bandido. Eu vivia na malandragem, mas não era malandro, porque eu nunca lesei meu semelhante, eu gostava é da farra. Antigamente você andava na cidade de madrugada e não era assaltado, porque os malandros tomavam conta da cidade, protegiam os coroas e habitués das boates e dos taxi-dancings, já que eles levavam dinheiro para as mulheres. Todos os malandros tinham as suas “minas” e elas tinham um malandro para defendê-las.
79 Disponível em: http://osomdovinil.org/germanomathias/. Acesso em 26 de janeiro de 2019.
A concepção é um tanto idealizada e revela a naturalização da violência – apenas “tirar o sangue”, uma atitude extrema, que deveria ser vista como o último grau de brutalidade, é considerada um problema. A exploração das mulheres, “minas de ouro” dos malandros, não é sequer cogitada como uma forma de abuso, nem a extorsão mediante o controle e a manutenção da ordem em determinadas áreas da cidade. Os atos descritos pelo sambista parecem fazer mais sentido quando percebidos como níveis de violência escalonados, acionados conforme a necessidade, como é possível depreender da afirmação que terceiriza as atitudes (“o malandro só era violento quando o obrigavam”). O espectro se mostra bastante amplo, de motivações passionais, passando pela defesa da imagem e da integridade física, até um modo de vida assumidamente criminoso. De acordo com a biografia escrita por Caio Silveira Ramos (2008), Germano frequentava a zona do meretrício no Bom Retiro, desde a adolescência, e depois a “Boca do Lixo” ou o “Quadrilátero do Pecado”, localizado entre as ruas e as avenidas Timbiras, São João, Barão de Limeira, Duque de Caxias, Largo General Osório e rua dos Protestantes. Até meados dos anos 1960, explica Alessandra Teixeira (2012), era em torno ou a partir da prostituição que se estabeleciam as condutas criminais, como o lenocínio, o punguismo, o estelionato, o tráfico de drogas, além da sociabilidade associada à malandragem, como o jogo, a vadiagem e a boemia. Existia pela cidade uma criminalidade avulsa, patrimonial, porém difusa, assim como atividades “organizadas”, como o contrabando, mas que não operavam diretamente no plano da cidade e de seus atores. Para a pesquisadora, a condição de pertencer a um espaço entendido como “à margem da lei” produziria uma indistinção entre o crime e os modos de vida dos ocupantes do “submundo”, da mesma maneira que entre o criminoso e o malandro, o que talvez justificasse a instabilidade das noções “da leve” e “da pesada”. Ao defender a existência de uma malandragem paulistana, Márcia Regina Ciscati (2000) definiria seu ápice no período que vai da década de 1950 até o começo dos anos 1960. Um dos protagonistas dessa criminalidade/malandragem, Hiroito de Moraes Joanides, destaca a existência de dois grandes grupos na região: os malandros e os vadios, e uma subespécie, os boêmios.
Joanides (2003) explica que os malandros seriam os indivíduos com uma “conduta criminosa, tipificada e punida por lei”; os vadios seriam o “corpo assessorial da malandragem”, que não chegariam a ferir a letra de lei, ou a feriam “de leve”, que ganhariam a vida de modo imoral, mas não necessariamente criminoso e seriam “paupra-toda-obra”, atuando como agentes de campana, agenciadores de meretrizes ou de parceiros para jogo, intermediários ou apresentadores em transações de tóxicos ou de mercadorias roubadas, vendedores de informação, entre outros. Suas afirmações reforçariam a concepção da vadiagem como um tipo de ocupação dentro de um quadro de informalidade e ilegalidade:
O termo vadio, aqui, despe-se da conotação usual da palavra, empregada para designar pessoas que não exercem qualquer espécie de atividade, pois essa inatividade total, esse parasitismo, inexiste no submundo. Ali, todos trabalham, quero dizer, todos exercem uma qualquer ocupação, ainda que ilícita, donde tirar o pão de cada dia. E não raro, principalmente entre os malandros, que são os que maior atividade exercem, os seus trabalhos requerem dedicação por período integral e por vezes até mesmo, como no caso dos punguistas, rígido cumprimento de horários. (JOANIDES, 2003:40) Por fim, os boêmios seriam os indivíduos que frequentariam o submundo, especialmente em busca de mulheres. “Quase sempre rapazes jovens, sem vida formada, estudantes ou empregados de menor categoria” (JOANIDES, 2003:44), que até mantinham laços de camaradagem com malandros e vadios, mas não se envolviam em situações de ilícito penal. Nesse patamar, também se incluiriam os músicos. Germano Mathias afirma, em entrevista a Márcia Regina Ciscati (2000:140-1) que: “...malandro paulistano... era o Xodó, o Quinzinho, o Hiroito, o Nelsinho da 45, foi o que eu conheci, aliás eu convivi com eles, só que eu sempre fui muito cauteloso e nunca fui a fundo como eles foram, eu era sempre um malandro superficial”. Na biografia de Noel Rosa escrita por João Máximo e Carlos Didier (1990), ao tratar dos malandros que conviviam com o Poeta da Vila, os autores comentam a existência de outra categoria, com noções semelhantes a dos malandros “da leve” e “da pesada”. Seria o “malandreco”, definição utilizada para se referir ao sambista Wilson Baptista, que não se comparava a valentes como Baiaco, Zé Pretinho, Brancura, Germano Augusto ou Kid Pepe – nem em matéria de samba, nem em matéria de violência. Baptista teria “arrastado seus tamancos pelo submundo carioca” em diferentes atividades, entre as
quais acendedor de lampiões, ajudante de contrarregra, vendedor de sambas, até se tornar artista:
Enquanto batalha por isso, é um pouco de tudo, vendedor, esparro, descuidista, atravessador, garoto de recado em rendez-vous. Sua instabilidade profissional, somada à uma indissimulável vocação para a marginalidade, levou-o a ser, entre outras coisas, uma espécie de office-boy dos afamados irmãos Meira, expulsos de São Paulo depois de repetidas trapalhadas, hoje radicados no Rio, onde seus negócios se ampliam da exploração do lenocínio ao tráfico de drogas. Importantes nomes da música popular serão seus clientes, entre eles, o próprio Wilson, sempre com uma soruma no bolso. (...) Várias entradas na polícia – das quais fala como um piloto de suas horas de voo – é evitado pelo pessoal do Nice. Nem todos o tratam de igual para igual, há até os que temem se comprometer em sua companhia. (MÁXIMO E DIDIER, 1990:291)
Mesmo entre a “turma da pesada”, diferenças eram demarcadas, como se observa pelo exemplo de Zé Pretinho, citado pelos autores:
Duas vezes mais valente do que Germano Augusto e Kid Pepe juntos, com coragem para encarar um Brancura ou alguém do mesmo tope, é do tipo de malandro que fascina Noel. Não só pelo destemor, mas especialmente por certos códigos de ética muito próprios, de uma nobreza que é preciso conhecer de perto para compreender. Kid e Germano, por exemplo, são capazes de tudo, grandes e pequenas torpezas. Malandros menores, barganhadores de tostão, trapaceiros baratos que tiram dinheiro de quem não tem e gostam de se impor pela força, pela ameaça. Principalmente Kid Pepe, que não faz segredo disso. Zé Pretinho, não. Orgulha-se de ser um malandro maior. No jogo ou lá em que seja, só esvazia bolsos de quem os tem cheios, respeita mulheres, velhos, crianças, gente de família, não compra briga com os fracos. Prefere enfrentar policiais armados, malandros temidos como ele, valentes de verdade, a cometer uma covardia. Pelo menos é o que diz. E do que Zé Pretinho diz ninguém duvida. (MÁXIMO E DIDIER, 1990:288)
A relação entre esses diferentes tipos de malandros seria tematizada também nas letras de samba, como é o caso de “Zé da Pinga”, de Padeirinho da Mangueira, gravado por Germano Mathias para o LP que leva seu nome, de 1974, lançado pela Beverly BLP. O samba foi gravado também para o DVD Ginga no Asfalto (2007), produzido pela Lua Music.
– Ô Zé, ô Zé da Pinga! Vem cá, meu chapa. Ô Zé da Pinga Já sabe da novidade? Os malandros da cidade Ontem falaram em você Sobre aquele atrito Com Chico de Brito No jogo de ronda E por causa da Iolanda Houve aquele trelelê Foi assim que um da leve Começou a charlar Olha aí, da pesada Esse tal de Zé da Uca Fez o dele no Chicão Quase até que deu caixão Mas, ô, deixa disso, Não se mete nisso Porque é assim O malandro que apanha no morro Sem pedir socorro É bom tamborim Na canção, são perceptíveis quatro figuras que se constroem a partir de duas categorizações: malandros do morro e da cidade, e malandros da leve e da pesada. Essas figuras fariam parte do imaginário popular do submundo, composto pelas histórias de cada área, seus personagens e feitos, assim como pelas narrativas da imprensa, que interligariam personagens da polícia e do crime, do jogo do bicho e das escolas de samba, da malandragem e da música popular, conforme observado por Michel Misse (1999:19). O sociólogo explica que as representações seriam disputadas e marcadas por uma “dupla ordem”, na qual sempre haveria “bandidos ‘bons’ e ‘maus’, malandros ‘legais’ e ‘marginais’, ‘caguetes’ e ‘sangues-bons’, ‘vagabundos’ e ‘responsas’, toda uma estratificação moral da ‘rapaziada’”. A narrativa cantada dramatiza dois momentos: o presente, marcado pelo encontro de Zé da Pinga com um “chapa”, um amigo, que é também o narrador da letra, e um diálogo que teria se passado no dia anterior, entre um malandro “da leve” e um “da pesada”, sobre as atitudes do protagonista. O fato de o próprio Zé não ter a palavra ao
longo do samba é interessante, à medida em que neste contexto importaria mais o que estaria circulando a seu respeito, entre a malandragem, do que qualquer coisa que ele tivesse a dizer sobre os acontecimentos. A partir do local onde transcorreram as ações, é possível definir Zé da Pinga como um malandro do morro ou, quem sabe, um malandro boêmio, devido à referência à bebida já no apelido (pinga/ uca). A ênfase dada pelo narrador ao comentário escutado entre os “malandros da cidade” também serve como diferenciação em relação a esse grupo, assim como outros índices associados aos malandros do morro, entre os quais o jogo (ronda), as mulheres (Iolanda), as disputas entre rivais, a prática do samba (tamborim).
O “malandro-de-morro” é representado como um personagem talentoso, cuja vida se desenrola principalmente na sua favela, e que pouco desce ao asfalto. Tem com o tipo-matriz do malandro a semelhança de estilo de vida, mas aparece fundido com outro tipo social, o “boêmio”, um rótulo antes aplicado aos egressos da classe média e do asfalto, frequentadores dos cabarés musicais e da vida noturna da Lapa. O “malandro de morro” é definido, assim, como “da orgia”: ócio, dinheiro fácil, sedução, mulheres, brigas, “ganhos”, bebida, o que é considerado “natural”. A ele é assimilado, algumas vezes, um certo tipo de banditismo urbano, o do “descuidista”, do “punguista”, do pequeno dono de uma “boca-de-fumo” e do “contraventor”, do “bicheiro”, mas na favela ainda haveria resistência em confundi-lo simplesmente com o “ladrão” ou com o “bandido” (...) (MISSE, 1999:258)
Outro fator que situa o protagonista ao morro é a sua convivência com Chico de Brito, personagem que parece fazer referência a um malandro de um samba homônimo, de autoria de Wilson Baptista e Afonso Teixeira, gravado por Dyrcinha Baptista, em 1949, e lançado em 1950, pela Odeon.
Lá vem o Chico Brito Descendo o morro Nas mãos do meganha É mais um processo É mais uma façanha O Chico Brito fez do baralho Seu melhor esporte É valente no morro E dizem que fuma uma erva do Norte Ele, menino, ia ao colégio Era aplicado, tinha religião Muito estimado, se jogava bola Era indicado para capitão
Mas a vida tem os seus reveses Dizia Chico defendendo teses Se o homem nasceu bom E bom não se conservou A culpa é da sociedade Que o transformou A análise de “Zé da Pinga” revela, portanto, como a malandragem na obra de Germano Mathias se ancora também em referências intertextuais de sambas-malandros, capazes de promover diálogos dentro de uma mesma tradição. O sambista paulistano também grava, por exemplo, “A Situação do Escurinho” (1957), de Aldacir Louro e Padeirinho da Mangueira, que retoma a história do “Escurinho”, protagonista de um samba Geraldo Pereira, sucesso na voz de Ciro Monteiro, em 1954. Como será visto adiante, em “Senhor Delegado”, samba de Ernani Silva e Antoninho Lopes, gravado por Germano em 1957, há uma referência à “Rapaz Folgado”, samba de Noel Rosa. Em “História de um Valente”, de Nelson Cavaquinho, lançado por Germano em um compacto da RGE de 1965, a letra retoma a imagem do Brancura, “malandro histórico” do Rio de Janeiro80 . Sendo Chico Brito um valente renomado e “atleta” do baralho, como se refere com ironia a letra de Baptista, entende-se o motivo da briga com Zé da Pinga chamar tanta atenção. Ele teria se indisposto com uma figura reconhecida por seu domínio no jogo e também notabilizada pelos seus feitos (“mais um processo”, “mais uma façanha”), que o transformaram em um homem malvado. Desentendimentos no jogo de ronda81 não raramente terminavam em facadas e tiros, quando não em tiroteios entre malandros e rádio patrulhas, conforme os exemplos
80 Essas relações permitem pensar no samba-malandro como um sistema simbólico, tomando por base a ideia de “sistema literário” apresentada por Antonio Candido (2007:25): “(...) um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formandos os diferentes tipos de público, sem os quais uma obra não vive; um mecanismo transmissor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns aos outros.” 81 Trecho de uma etnografia de um jogo de ronda na Mangueira, na década de 1970, realizada por Bento Ribeiro (1997:18) e citado por Misse (1999:285): “O baralho tem 36 cartas, não entram os naipes de dois, sete, nove e dez. O dono da jogatina sempre é um marginal de respeito, não perde nunca. Desconhecido quase não ganha, só se tiver com muita sorte. Aí tá arriscado a ser assaltado, desmoralizado lá no alto... Malandro só joga com baralho marcado, aposta sempre na boa, não conhece azar nem sorte. A maior trapaça na ronda é o chamado 18-por-18. O marginal separa 12 cartas. Exemplo: quatro ases, quatro oitos e quatro 86
apresentados por Michel Misse (1999), em seu levantamento de notícias de crime e violência do periódico “O Dia”, do Rio de Janeiro, entre 1958 e 1981, e também nos depoimentos coletados com malandros e marginais cariocas. O pesquisador também identifica o “valente” como uma figura paralela ao malandro, menos ambígua, e que ora o sobreporia, ora dele se diferenciaria.
O que distingue o malandro do valente? Geralmente, o malandro se associava à contravenção e ao furto, enquanto o valente era associado ao uso ou ameaça do uso da força, à “proteção” de bocas de fumo e pontos de jogo, mas também a “ganhos” que exigem a ameaça da força, como o roubo. Ambos são respeitados em suas áreas, mas por motivos diferentes. O malandro não é sempre valente, vale-se principalmente de ardis; o valente não é necessariamente malandro, depende de produzir o “medo” no outro, mas respeita os iguais e as mulheres e crianças. O malandro mantém relações instrumentais com policiais, o valente geralmente não. Entretanto, muitos malandros e valentes têm em comum o conhecimento da capoeira, e a junção e disjunção dos dois tipos varia segundo a maior ou menor presença das características contrastantes. (MISSE, 1999:258) No samba “Zé da Pinga”, a partir da conversa entre os malandros da cidade, é possível depreender uma relação de intimidade deles com relação a Chico Brito, já que este é citado por meio de um apelido (Chicão). O grau aumentativo sintético do apelido também traduz a sua superioridade no universo da malandragem, reconhecida inclusive entre o “da pesada”, até porque talvez Chico Brito se situasse mais próximo de suas ações no dia a dia. Por sua vez, o protagonista é demarcado com um “Zé”, um desclassificado e bêbado. Além disso, no trecho, o malandro “da leve” troca o seu apelido por um
valetes. Essas são consideradas as 12 cartas quentes. Com uma lixa de unha, desbasta um pouquinho os quatro cantos de cada uma, ficam mais altas no meio. As 24 restantes são chamadas frias e são lixadas nas extremidades da largura de cada, ficam mais estreitas. O malandro não gosta quando o adversário “serra”, enfia uma parte das cartas na outra, no momento de embaralhar. O macete fica mais difícil. Se o baralho não for cerrado a trapaça não falha nunca. O baralho é desfiado, as 12 quentes ficam juntas, o malandro entrega as cartas pro parceiro cortar. Se o corte for nas quentes, o carteador pode ganhar uma bolada. Basta o adversário apostar na podre. Exemplo: a ‘boca’ do baralho fica escondida, de cabeça pra baixo: ás e rei, o ás é quente. Os outros ases estão juntos, próximos. Se o parceiro parar no rei, a podre, o cara desafia: ‘Quem é mais barbudo? Com a cara ganha remela, com a bunda ganha manjuba! Quem é mais rei? Ninguém vai mais?’ O jogador vira a “boca” pra cima, se a primeira carta não for ás nem rei, vai descartando uma por uma. Se vier primeiro o ás, ele ganha. Se a primeira for rei, o vencedor é o parceiro. Mas como o ás é quente, vem logo um. Aí o malandro já sabe que os outros dois ases estão perto, na frente dos três reis. Ele esconde a ‘boca’, instiga: ‘vamos pro mata, quem é mais rei?’. O otário pensa que tem chances de ganhar. Novas apostas, o marginal carteia, vem outro ás, limpa a mesa de barro, desnorteia os otários. Se o parceiro parar na quente, no ás, aí o malandro não aumenta as apostas, carteia logo gritando: ‘jogador não é surdo, não chamei mais ninguém!’ Outras trapaças: malandro marca as costas das cartas com pintinha de nanquim”.
sinônimo (pinga/ uca), que antecedido pela expressão “esse tal” indica um distanciamento.
Foi assim que um da leve Começou a charlar Olha aí, da pesada Esse tal de Zé da Uca Fez o dele no Chicão Quase até que deu caixão
Assim, seria natural que o malandro “da pesada” desejasse vingar “Chicão”, quase morto pelo Zé da Pinga. Esse parece ser o assunto dos malandros na cidade, quando se ouve a tentativa do malandro “da leve” de acalmá-lo e pacificar a situação. Como confrontar um “da pesada” seria arriscado, ele utiliza uma estratégia perspicaz, a lábia. A neutralização moral dos acontecimentos seria alcançada por meio de uma lei interna da malandragem, apresentada como máxima no final do samba: “O malandro que apanha no morro/ Sem pedir socorro/ É bom tamborim”. Nela, estaria implícita uma sociabilidade violenta, diante da comparação com o instrumento típico do samba, utilizado para batucar, ou melhor dizendo, para bater. Mas também se reconheceria o valor central da valentia, daquele que apanha sem delatar quem lhe deu uma surra, em uma oposição à figura vil do caguete. Conforme Michel Misse (2000), a delação é uma denúncia considerada nãolegítima, que sai de um grupo fechado para fora dele, ou seja, quando acusado e acusador pertencem a um mesmo universo de significados tácitos, de modos de operar o poder em condições de uma “subcultura” estigmatizada, clandestina ou considerada desviante. Os malandros do morro, Zé da Pinga e Chico de Brito, portanto, não deveriam levar suas questões para os malandros da cidade, por mais que todos partilhassem do amplo universo social da malandragem. Mais do que oposições, todas as figuras revelam individualidades afirmativas – a astúcia do “da leve”; a periculosidade do “da pesada”; a boemia do malandro do morro; o uso da força do valente –, e se unificam na recusa a assumir a qualidade negativa que caracteriza o delator. A situação serve de exemplo da existência de uma ética do submundo, com seus códigos de convívio e de exercício da malandragem, de que fala Márcia Regina Ciscati (2000), por meio dos quais os papéis sociais se tornam explícitos e definidos, possibilitando a convivência de diferentes tipos de malandros.
Resta entender por qual motivo o “da leve” se envolve na contenda e tenta demover o “da pesada” da desforra. Ao lembrar o depoimento de Germano Mathias sobre as categorias de malandro, o sambista destaca que os malandros “da leve” só partiam para a violência em situações específicas, relacionadas a mulheres ou à defesa da moral. Ora, pelo o que se reproduz na letra, esses mesmos motivos teriam levado Zé da Pinga a brigar com Chico de Brito – a Iolanda e a discussão em torno do jogo de ronda, possivelmente, diante de uma tentativa de Chicão de levar a melhor, sendo ele uma figura eminente no baralho. Assim, Zé da Pinga, também pode ser considerado “da leve” e, portanto, um amigo do malandro que conversava com o “da pesada”. Nota-se que durante a conversa ele não defende Zé da Pinga, pelo contrário, reafirma seus atos (“Esse tal de Zé da Uca/ Fez a dele no Chicão/ Quase até que deu caixão”), mas toma o cuidado de fingir que não o conhece (“esse tal”). O amigo que fará o relato para Zé da Pinga do ocorrido irá, da mesma forma, optar pela discrição, o que aparece pela indeterminação dos indivíduos (“um da leve começou a charlar”; “olha aí, da pesada”) e das motivações da briga (“aquele atrito”, “aquele trelelê”). Aliás, apenas o discurso do “da leve” será reproduzido pelo amigo de Zé. Desse modo, o narrador diz sem dizer, não se compromete com o malandro perigoso, pois não se identifica e, ao optar pelo aforismo, reveste sua mensagem com uma “sabedoria imemorial”, “quase sacralizando as normas de sustentação do grupo”, conforme explica Antonio Candido (2010) em seu ensaio “O mundo-provérbio”. Ao se colocar no lugar de quem conta uma “novidade”, ou seja, algo que já estaria em circulação, também evita o estigma da delação, pois não faz o relato como alguém que está dentro da situação. E por fim, cumpre o papel de alertar Zé da Pinga, uma vez que a malandragem da cidade já estava sabendo de tudo o que acontecera no morro. O modo de estruturar o discurso se trata da própria artimanha desse malandro, já que a poética da malandragem se assenta na multiplicidade de formas explicativas e de conhecimentos do mundo, lembram Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino (2018:86). “Assim, para o malandro ou valentão, o ser esperto é saber ler nas entrelinhas do que é escrito, é ele que conhece as frestas e as dobras na linguagem encruzando os tempos/espaços, praticando o mundo no viés.” Por fim, é preciso se deter na dinâmica captada pela narrativa: os assuntos da malandragem do morro estão chegando à cidade, onde o poder é exercido por outro tipo