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8. Malandragem em mutação
from Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC'
Segundo Michel Misse (1999), nos anos 1970 se estabelece a percepção de mais violência nas grandes cidades, em decorrência do crescimento das “classes perigosas”, da impunidade dos bandidos, que permitiria o alastramento do tráfico de drogas, das tensões dos mercados ilícitos com as práticas policiais operadas na sua repressão ou resultantes da interligação clandestina com suas redes. Em São Paulo, Alessandra Teixeira (2012) destaca a década de 1970 como a conclusão de um processo de reestruturação das forças do crime na cidade, levado ao cabo ao longo dos anos 1950 e 1960. Ele é marcado pelo declínio da prostituição como economia criminal e a desagregação da Boca do Lixo como epicentro das ilegalidades, a difusão de seus atores e processos pela cidade e a intensificação da violência de Estado.
Os anos 70 representam, assim, o final de um período no qual foi sendo forjada, gradativamente, uma criminalidade patrimonial a que se atribuirá o nome de violenta, formada sobretudo por parcelas humanas marginalizadas, para usar a gramática daquele momento. Esses contingentes humanos vão se caracterizar pela construção de carreiras criminais e institucionais, ou mais especificamente pelo fato de se converterem ao mesmo tempo em elemento e resultado do circuito polícia e prisão, numa espécie de fenômeno a que Foucault deu o nome de delinquência. (TEIXEIRA, 2012:146) A diversidade dos tipos de malandros e sua visibilidade, como aparece na letra do samba analisado, refletiria também este contexto, com destaque para a prevalência do poder já centrada na figura do malandro “da pesada” e da cidade, e a astúcia do malandro “da leve” se sobressaindo na narrativa. Para Michel Misse (1999:201), inclusive, a ideia do malandro como “um tipo ideal mais geral”, positivo, seria um resultado tardio, já por oposição ao “marginal” ou ao “bandido” entendidos como violentos. Como acredita o sociólogo, os acontecimentos que começariam a chamar a atenção da sociedade e da imprensa – perdendo o status de faits divers – não decorreriam de uma ruptura brusca nos anos 1970, mas de uma “continuidade nas metamorfoses acumulativas das práticas criminais, dos tipos sociais de seus agentes e da seleção criminal ainda nos anos 50 e 60”.
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8. Malandragem em mutação
A época das músicas que citam as transformações da malandragem coincide com uma constatação de Michel Misse (1999) sobre a idealização do malandro por oposição ao crime e à violência. Para o pesquisador, a ideia do “malandro simpático” seria um produto da década de 1950, quando já estaria estabelecido, no dia a dia, o tema do
desparecimento da malandragem e de sua substituição por “criminosos sem astúcia”. Além disso, Misse defende que durante o segundo ciclo de acumulação social da violência – dos anos 1945 até o final da década de 1960 – ocorre a fixação e a transformação de tipos sociais de sujeição criminal do primeiro ciclo de violência urbana.
A metamorfose do malandro em marginal constitui, a meu ver, uma das dimensões mais importantes da acumulação social da violência no Rio de Janeiro. O “marginal” da perspectiva normalizadora é uma condensação de um tipo social e de várias formas de banditismo urbano, antes integradas indistintamente ao malfeitor. O termo “marginal” aparece com crescente frequência nos anos cinquenta, interligando marginalidade socioeconômica e banditismo, mas inicialmente não se opondo à caracterização geral do malandro ou do malfeitor. A oposição entre marginal e malandro parece ser um produto posterior, uma representação que se realiza pela ampliação de um tipo social historicamente quase desaparecido para uma forma de comportamento idealizada e adequadamente “limpa” de qualquer traço ou representação de violência. O malandro começa a ser retirado, na década de sessenta, do seu antigo habitat e ali substituído – na representação social dominante – pelo marginal. (MISSE, 1999:191)
De acordo com o sociólogo, os marcos das transformações na violência urbana carioca seriam o aumento das quadrilhas e o surgimento do primeiro “esquadrão da morte”, o “grupo de diligências especiais” criado no Rio de Janeiro pelo general Amaury Kruel, em 1958, sob o comando do detetive Le Cocq, transferido do “Esquadrão Motorizado” (E.M.) da antiga Polícia Especial para a Polícia de Vigilância. A iniciativa voltada ao extermínio de “marginais” se reproduziria no país ao longo da década de 1960, por exemplo, com a “Escuderia Le Cocq”, de 1962 (mesmo ano do lançamento do samba “Baiano Capoeira”). A arbitrariedade policial se estenderia ainda com os órgãos repressivos da ditadura militar, especialmente depois do Ato Institucional nº5, em 1968. Em linha com a pesquisa de Misse, é possível reconhecer registros culturais da transformação da “malandragem” para “criminalidade” na imprensa. No acervo online do jornal O Estado de S. Paulo, o emprego do termo “marginal”, como sinônimo para bandido, começa a ser utilizado com mais frequência no final dos anos 1950, até mesmo para descrever práticas usuais de “malandros”.
PRISÃO DE MARGINAIS – Na madrugada de ontem, o delegado de Furtos, dr. Emigidio Alvaro de Brito, chefiou uma diligencia policial efetuada no centro da cidade, para repressão ás atividades de decaídas e anormais, que aplicam modalidades diversas de contos do vigário. Algumas das mulheres reagiram á prisão, chegando uma delas a agredir um investigador a golpes de
lâmina de barbear, que trazia escondida no cabelo. A “batida” policial terminou ás 6 horas. Foram detidos cerca de 150 marginais. Ao chegarem á carceragem do DI, as marginais reagiram novamente agredindo então os carcereiros. (O ESTADO DE S.PAULO, 26/3/1959, p.9) ESPERTALHÃO – O oficial de justiça de S. Paulo, Ari Ramos Nogueira Filho, procurou a Delegacia de Falsificações e Defraudações, a fim de solicitar providencias contra o falsário Carlos Penido Lisboa. Na petição, declarou que conhecera aquele marginal em S. Paulo, meses atrás, sempre em companhia de gente ilustre. Há aproximadamente um mês, foi por ele convidado a montar uma agência lotérica, em Belo Horizonte, para a distribuição de bilhetes da loteria federal, em sociedade de quotas iguais. A vista disso, entregou ao chantagista 500 mil cruzeiros, para que ele promovesse a instalação da agência. Passaram-se muitos dias e não voltou a ser procurado por Carlos Penido Lisboa, nem mesmo dele podendo obter qualquer notícia. Fazendo investigações verificou que o seu sócio tinha um passado pouco recomendável e estava inclusive condenado a 5 anos de prisão pela justiça carioca. (O ESTADO DE S.PAULO, 8/11/1959, p.16) TENTATIVA DE MORTE – No plantão da Polícia Central, anteontem á tarde, foi instaurado inquérito contra o marginal conhecido por “Quinzinho”82 que alvejou a tiros de revólver Ronaldo Alquala, morador na rua Madeira, 55, Canindé, sem contudo atingi-lo. De acordo com a peça policial, “Quinzinho” estava agredindo uma mulher em frente á residência de Ronaldo e este interferiu ameaçando chamar a Rádio Patrulha. Em resposta, o marginal sacou de revólver e fez vários disparos, para depois fugir, com a mulher, no automóvel de aluguel, chapa 30-86-81. (O ESTADO DE S.PAULO, 3/4/1962, p.18)
Até o final da década de 1950, as ocorrências de “marginal” no acervo do periódico diriam respeito, principalmente, à localização espacial, por exemplo, “estrada marginal”. Por mais que não seja possível precisar o sentido utilizado em todos os textos, é notável o aumento da presença deste vocábulo em paralelo às notícias sobre o avanço da criminalidade urbana:
82 Quinzinho é citado por Germano Mathias, como um malandro “da pesada”, e por Joanides (2003), como “traficante e explorador de primeira linha”.