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3. A arte do blefe

fixado já nos versos iniciais, através de um narrador que assume a 1ª pessoa e descreve cenas de crimes contra o patrimônio. É possível arriscar que essa faixa consolida um formato bastante replicado por outros MCs, inclusive no próprio grupo. Um exemplo que será apresentado adiante é “Na Fé Firmão”, de Edi Rock, sétima faixa do primeiro disco (Chora Agora) do álbum Nada Como Um Dia Após o Outro Dia (2002), na qual o MC se compara a um ladrão nobre, inspirado por Robin Hood. A representação da figura do marginal por meio do discurso dos rappers se popularizaria, assim como histórias sobre delitos se transformariam em mote para as rimas. Mais do que retratar um tipo humano ou um papel relacionado a um contexto histórico-social, essa temática parece condensar, de maneira crítica, classificações acerca dos indivíduos excluídos na sociedade brasileira.

3. A arte do blefe

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“Capítulo 4, Versículo 3” (Mano Brown) [PRIMO PRETO] 60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela polícia três são negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente. [MANO BROWN] Minha intenção é ruim, esvazia o lugar Eu tô em cima, eu tô a fim, um, dois pra atirar Eu sou bem pior do que você tá vendo O preto aqui não tem dó, é cem por cento veneno A primeira faz bum, a segunda faz tá Eu tenho uma missão e não vou parar Meu estilo é pesado e faz tremer o chão Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além E tem disposição pro mal e pro bem Talvez eu seja um sádico, ou um anjo, um mágico Ou juiz, ou réu, um bandido do céu Malandro ou otário, padre sanguinário Franco-atirador, se for necessário

Revolucionário, insano ou marginal Antigo e moderno, imortal, fronteira Do céu com o inferno, astral imprevisível Como um ataque cardíaco do verso Violentamente pacífico, verídico Vim pra sabotar seu raciocínio Vim pra abalar seu sistema nervoso e sanguíneo Pra mim ainda é pouco, Brown cachorro louco Número um guia, terrorista da periferia Uni-duni-tê, eu tenho pra você Um rap venenoso ou uma rajada de PT E a profecia se fez como previsto [KL JAY] Um, nove, nove, sete [MANO BROWN] Depois de Cristo A fúria negra ressuscita outra vez Racionais, capítulo 4, versículo 3 Aleluia Aleluia Racionais no ar Filha da puta! Pá, pá, pá [ICE BLUE] Faz frio em São Paulo, pra mim tá sempre bom Eu tô na rua de bombeta e moletom Dim-dim-dom, rap é o som Que emana no Opala marrom E aí? Chama o Guilherme, chama o Vainer, chama o Dinho E o Di, Marquinho, chama o Éder, vamo aí Se os outros manos vêm, pela ordem, tudo bem, melhor Quem é quem no bilhar, no dominó [MANO BROWN] Colou dois mano, um acenou pra mim De jaco de cetim, de tênis, calça jeans [ICE BLUE] Ei Brown, sai fora, nem vai, nem cola Não vale a pena dar ideia nesses tipo aí Ontem à noite eu vi na beira do asfalto Tragando a morte, soprando a vida pro alto Ó os cara, só o pó, pele e osso

No fundo do poço, uma pá de flagrante no bolso [MANO BROWN] Veja bem, ninguém é mais que ninguém Veja bem, veja bem, eles são nossos irmãos também [ICE BLUE] Mas de cocaína e crack, uísque e conhaque Os mano morre rapidinho, sem lugar de destaque [MANO BROWN] Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma? Nem dá, nunca te dei porra nenhuma Você fuma o que vem, entope o nariz Bebe tudo o que vê, faça o diabo feliz Você vai terminar tipo o outro mano lá Que era um preto tipo A, ninguém entrava numa Mó estilo, de calça Calvin Klein, tênis Puma Um jeito humilde de ser, no trampo e no rolê Curtia um funk, jogava uma bola Buscava a preta dele no portão da escola Exemplo pra nós, mó moral, mó ibope Mas começou colar com os branquinho do shopping [EDI ROCK] – Aí já era [MANO BROWN] Ih, mano, outra vida, outro pique Só mina de elite, balada, vários drinque Puta de butique, toda aquela porra Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra Faz uns nove ano Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano Cê tem que ver, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto Dente tudo zoado, bolso sem nenhum conto O cara cheira mal, as tia sente medo Muito louco de sei lá o quê... logo cedo Agora não oferece mais perigo Viciado, doente, fudido, inofensivo Um dia um PM negro veio embaçar E disse pra eu me pôr no meu lugar Eu vejo um mano nessas condições não dá Será assim que eu deveria estar? Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor Pelo rádio, jornal, revista e outdoor Te oferece dinheiro, conversa com calma

Contamina seu caráter, rouba sua alma Depois te joga na merda sozinho É! Transforma um preto tipo A num neguinho Minha palavra alivia sua dor Ilumina minha alma, louvado seja o meu senhor Que não deixa o mano aqui desandar E nem sentar o dedo em nenhum pilantra Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei Racionais, capítulo 4, versículo 3 Aleluia Aleluia Racionais no ar Filha da puta! Pá, pá, pá [EDI ROCK] Quatro minutos se passaram e ninguém viu O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil Talvez o mano que trampa de baixo do carro sujo de óleo Que enquadra o carro forte na febre com sangue nos olhos O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol Ou o que vende chocolate de farol em farol Talvez o cara que defende o pobre no tribunal Ou que procura vida nova na condicional Alguém num quarto de madeira lendo à luz de vela Ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela Ou da família real e negro como eu sou Um príncipe guerreiro que defende o gol [MANO BROWN] E eu não mudo, mas eu não me iludo Os mano cu de burro têm, eu sei de tudo Em troca de dinheiro e um cargo bom Tem mano que rebola e usa até batom Vários patrícios falam merda pra todo mundo rir Haha, pra ver branquinho aplaudir É, na sua área tem fulano até pior Cada um, cada um, você se sente só Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério Explode sua cara por um toca fita velho Click pláu pláu pláu e acabou Sem dó e sem dor, foda-se sua cor Limpa o sangue com a camisa e manda se foder Você sabe por que, pra onde vai, pra quê? Vai de bar em bar, de esquina em esquina Pegar 50 conto trocar por cocaína

Enfim, o filme acabou pra você A bala não é de festim, aqui não tem dublê Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia De Guaianazes ao extremo sul de Santo Amaro Ser um preto tipo A custa caro É foda, foda é assistir a propaganda e ver Não dá pra ter aquilo pra você Playboy forgado de brinco, cu, trouxa Roubado dentro do carro na avenida Rebouça Correntinha das moça, as madame de bolsa Dinheiro, não tive pai não sou herdeiro Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal Por menos de um real, minha chance era pouca Mas se eu fosse aquele moleque de touca Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca De quebrada, sem roupa, você e sua mina Um, dois, nem me viu, já sumi na neblina Mas não, permaneço vivo, prossigo a mística Vinte e sete anos contrariando a estatística Seu comercial de TV não me engana Eu não preciso de status nem fama Seu carro e sua grana já não me seduz E nem a sua puta de olhos azuis Eu sou apenas um rapaz latino-americano Apoiado por mais de 50 mil manos Efeito colateral que o seu sistema fez Racionais, capítulo 4, versículo 3

Estatísticas apresentadas conforme o padrão jornalístico raramente dão conta de mobilizar quem depara com elas, por mais chocantes que sejam. Conforme José Carlos Gomes da Silva (2007:7), de diferentes maneiras, os rappers têm procurado evitar que as identidades individuais daqueles que foram mortos nas periferias sejam diluídas no conjunto frio dos números. Em “Capítulo 4, Versículo 3”, depois de Primo Preto listar a crueza dos fatos, ressaltada pelos acordes, outra estratégia é colocada em prática para sensibilizar o ouvinte. A trama é anunciada por uma introdução musical construída a partir de “Slippin' Into Darkness”123, que produz um efeito cinematográfico, como se preparasse a entrada em cena de uma personagem.

123 Originalmente gravada por War, banda de funk norte-americana, da década de 1970.

É de fato o que acontece quando o MC começa a cantar e se apresenta124 ao ouvinte por meio de um discurso ambíguo, que o identifica como bandido e como MC ao mesmo tempo. Nesse primeiro trecho (que vai até 2’07’’), a força da ameaça proferida e a linguagem, que ora parece figurada, ora literal (“Minha palavra vale um tiro / Eu tenho muita munição”), deixam quem escuta atordoado e com poucos recursos para fazer um julgamento preciso a respeito da personagem que fala no rap. Sobre ela, apenas uma característica física é fixada, a cor da pele. Essa informação é apresentada só depois do verso “Eu sou bem pior do que você tá vendo”, de maneira que parece complementar ao adjetivo “pior”, com o significado de alguém perigoso além do que demonstra ou que estaria em uma escala de mais inferioridade. Assim, também se coloca em questão a relação entre a figura do negro e do marginal (como as estatísticas da introdução já abordam), uma vez que a característica racial é apresentada depois que o assalto metafórico é anunciado. Além disso, a construção indica como a personagem conta com o olhar do outro para se constituir (“você tá vendo”), de modo a quase decifrar o enigma que faz esse rap capturar o ouvinte à trama. Não só na caracterização do MC, mas ao longo de todo o rap, a ambiguidade será um dos principais recursos empregados. O tom de incerteza pode ser reconhecido na letra por meio da presença do advérbio “talvez”, tanto no trecho inicial cantado por Brown quanto nas rimas de Edi Rock. No primeiro caso, uma série de oposições mobilizam conceitos e figuras genéricas relacionados a moral (mal/bem), à justiça (juiz/ réu), à astúcia (malandro/ otário), às temporalidades (antigo/ moderno), entre outros. Eles apontam para classificações binárias e estanques, assim como a sugestão de que o ouvinte pode escolher, como na brincadeira infantil (“uni-duni-tê”), em qual lugar vai colocar o protagonista: no de quem canta um rap venenoso ou lança uma rajada de PT125 . Já nos versos de Edi Rock, as possibilidades se corporificam em figuras humanas, como trabalhadores (mecânico, carteiro, ambulante, advogado), estudantes pobres (“Alguém num quarto de madeira lendo à luz de vela”), atletas (“Um príncipe guerreiro

124 A apresentação do cantor no Rap é uma forma muito comum no gênero, assim como em outras expressões musicais populares que envolvem desafios poéticos, como o samba de partido-alto e o repente. Nelas, nota-se também a construção de imagens de afirmação de valentia, com a transferência das rivalidades para o plano da Arte e a narração de atos violentos de forma sublimada. 125 Pistola produzida pela empresa brasileira Taurus.

que defende o gol”), e também bandidos, ex-presidiários e detentos (“[o mano] Que enquadra o carro forte na febre com sangue nos olhos”; “Ou que procura vida nova na condicional”; “[Alguém] Ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela”). A autorreferenciação como negro também ocorre. Nota-se ainda como ambos os MCs constroem as alternativas a partir de figuras associadas à ideia de maldade, desumanidade, anomalia. No caso de Edi Rock, o verso explicita que um “monstro” nasceu em algum lugar do Brasil; no de Brown, a ruindade é expressa por meio dos comportamentos e propósitos anunciados no trecho inicial. Neste ponto, é interessante retomar a discussão apresentada a partir do Anexo III, no encerramento do capítulo anterior, para lembrar como nas transformações das figuras de marginalidade, a imagem do bandido vai se constituir na sociedade dentro de uma feição de crueldade e de perversidade. Os contrastes serão explorados mesmo quando o foco da narrativa cantada se desloca para o universo social da periferia. Nos diálogos, descrições e digressões entre os manos, eles aparecem, por exemplo, por meio de personagens como o “preto tipo A” que se transforma em “neguinho”, por influência dos “branquinho do shopping”. Além deles, outros grupos e personagens representarão o antagonismo, como as “minas de elite”, os “manos cu de burro”, o PM negro. As diferenças serão abordadas ainda a partir da questão da desigualdade social. A miséria confrontada pelos apelos do mercado (como a propaganda, que mostra aquilo que não se pode ter) gera figuras opostas e complementares, como o “cara que se humilha no sinal por menos de um real” e o “moleque de touca que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca”. Pois ambas as condutas correspondem a formas desesperadas de conseguir algum dinheiro, sempre difíceis para quem não é herdeiro – imagem oposta que depois se reforça com a remissão ao “rapaz latino americano”126 de Belchior (“sem dinheiro no banco” e “sem parentes importantes”).

126 “Apenas um rapaz latino-americano” é a primeira faixa do disco Alucinação (1976), de Belchior, lançado pela Philips. Um dos trechos da letra diz: “Não me peça que eu lhe faça/ Uma canção como se deve/ Correta, branca, suave/ Muito limpa, muito leve/ Sons, palavras são navalhas/ E eu não posso cantar como convém/ Sem querer ferir ninguém”. O narrador então pede ao ouvinte que não lhe mate e nem se preocupe com os horrores que pronuncia, pois se trata somente de uma canção e a vida é ainda pior.

O trecho127 referido acima é de elevada tensão e peso musical, em que permanece apenas o groove do baixo e da bateria e a voz do MC. Em um devaneio raivoso, ele irá se colocar no lugar dessas duas figuras, o pedinte e o bandido, que indicam os papéis reservados na sociedade para pessoas do seu grupo social, para então rejeitá-las, como se acordasse do sonho128 e retomasse a consciência que adquiriu e que demonstra ao longo da letra. A última imagem apresentada, antes de sua afirmação final, é a do ladrão e encerra o ciclo iniciado nos primeiros versos do rap. Não à toa, já que ela corresponderia no senso comum à concepção mais forte e temerária em relação a um indivíduo como o MC. Em “Capítulo 4, Versículo 3”, visões preconceituosas são aproveitadas de maneira habilidosa para que se proponha a sua superação. A narrativa da música transita pelas diferentes formas de existência periféricas, de modo a refutar a rigidez de classificações que partem de noções como raça, classe social ou lugar de origem, e que restringem os pobres e os negros ao campo da marginalidade. É possível sintetizar o propósito da narrativa do rap em uma ideia apresentada pelo escritor Toni C: “Os estereótipos que colocam para nós, nós transformamos em poder” 129 . Assim, a funcionalidade das várias antíteses e ambiguidades empregadas seria a de embaralhar posições, desestabilizar evidências, estimular questionamentos, de início, em relação à visão das classes médias e altas (alvos principais das ações de bandidos da criminalidade patrimonial urbana), mas também a que se formaria entre os próprios manos (“Não vale a pena dar ideia nesses tipo aí”). A inversão de ideias é sugerida já no primeiro verso que, se considerado dentro do contexto religioso da obra, traz à lembrança o provérbio “De boas intenções o inferno está cheio”, o que justificaria a disposição do MC. No início, o MC também enfatiza que está ali com uma missão: sabotar o raciocínio do ouvinte. Para isso, buscará uma solução particular, que é também uma forma de se opor, negociar e reelaborar o processo social no qual se reconhece e é reconhecido.

127 O intervalo é entre 7:06 e 7:33, começa com “Playboy forgado” e vai até o verso iniciado com a conjunção adversativa “Mas não, permaneço vivo”. 128 É nesse momento que os demais instrumentos voltam a integrar a base do rap. As notas do teclado marcam sonoramente essa passagem entre o devaneio e a realidade. 129 Fala durante o colóquio “Repensando o Popular”, realizado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, em 26 de outubro de 2017.

Sua estratégia parece dialogar com o “princípio da imprevisibilidade”, explicado por Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino (2018:39) como “uma peripécia exusíaca que, assim como seu autor, nos desloca e nos confronta com a possibilidade de uma verdade que seja única”. A estratégia também se apoiaria em recursos de um “marginal antigo e moderno” – o que já indica como a violência urbana seria composta por sobreposições. Sua atitude remete a um expediente corriqueiro de antigos malandros, o blefe, como comenta o próprio Mano Brown anos depois, em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil130:

O que um moleque de 20 anos poderia fazer de tão mal contra o sistema, fora aquele rap? Era a arte do blefe. Eu pesava 70 quilos, não tinha dinheiro para pegar ônibus e já ameaçava o sistema. E o sistema acreditou. O que mais eu poderia ter feito? Pegar uma arma, virar assaltante e morrer rápido? (MANO BROWN, 2018)

Dada a verossimilhança da interpretação de Brown, a postura criminosa é mais enfatizada do que este ponto de partida – pode-se dizer que ele é mesmo ignorado pelo ouvinte, tomado pelos versos iniciais do rap. Conforme José Augusto Dias Jr. (2010), que estudou o conto do vigário e outras trapaças históricas na sociedade brasileira, “não se pode entender um golpe senão a partir do conhecimento das construções mentais das quais ele se apoia e das quais se alimenta”. A intimidação levada adiante pelo MC se mostra então sustentada por uma visão de senso comum, que reconhece a violência de maneira superficial, como uma ameaça à sociedade causada por um determinado tipo de indivíduo, ideia que constitui o conceito de “sujeição criminal”, elaborado por Michel Misse (1999, 2008, 2010). Segundo o sociólogo, trata-se da incriminação antecipatória de indivíduos que, em decorrência de sua experiência social, passam a constituir e representar identidades associadas ao “mundo do crime” para a sociedade e para as forças da lei. Mais do que uma estigmatização, ela é uma prática que unifica o crime com seu autor, ainda que ele seja apenas potencial e que efetivamente o crime não tenha se realizado. Dessa forma, a sujeição criminal rompe o curso do processo de incriminação racional-legal, em que primeiro se identifica um crime, para depois nomear a sua autoria e buscar a sua punição.

130 Entrevista publicada no portal em 8 de janeiro de 2018. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=U_OsF4y4zuY. Acesso em 2 de julho de 2018.

Quando a incriminação se antecipa à criminação (e mesmo à criminalização) de forma regular e extra-legal, isto é, quando se passa diretamente da acusação à incriminação, mesmo sem que qualquer evento tenha sido “criminado”, isto é, interpretado como crime, temos então que o foco se desloca do evento para o sujeito e do crime para o virtual criminoso. (MISSE, 2008:380) Ao ser identificado com o “crime em geral”, o indivíduo passa a carregar a transgressão como uma característica. Diante desse assujeitamento, restariam poucos espaços para negociar, manipular ou abandonar o papel demarcado. É daí talvez que venha o acerto de Mano Brown ao se comparar com um bandido e intimidar o ouvinte. Pois, por meio da atitude de um “revolucionário insano”, de um “terrorista da periferia”, ele será capaz de render, de sequestrar a atenção do ouvinte para o seu relato. De acordo com Michel Misse (2008b:380), na sujeição criminal, antes mesmo de cometer um crime, o indivíduo já tem a sua liberdade aprisionada. Ao cometê-lo, poderia então tentar resgatá-la, atualizando-a no crime, identificando-se com ele, tornando-se seu sujeito potencial a ponto de, no limite, reconhecer-se em sua superioridade moral. O “assalto metafórico” de Brown é o ponto de partida para a afirmação e o resgate de sua identidade, reinventada como MC. Por meio da personagem do assaltante, ele reitera expectativas, para depois romper com elas. Uma das passagens da letra que revelariam o estigma da marginalização é quando o narrador é enquadrado por um PM negro, figura que se soma às contradições exploradas na narrativa. A situação fica sugerida pelo verbo “embaçar”, com o sentido figurado de atrapalhar, dificultar, e com a delimitação de um indivíduo como MC entre a pobreza e a bandidagem (“E disse pra eu me pôr no meu lugar”). A atitude e a visão do policial refletem comportamentos usuais no cotidiano da periferia131 .

131 No momento em que escrevo, mais uma ocorrência causa horror, tristeza e revolta, a morte do músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, que teve seu veículo fuzilado com 80 tiros disparados por militares do Exército, no bairro de Guadalupe, área pobre na zona norte do Rio de Janeiro. Na tarde de 7 de abril de 2019, um domingo, Evaldo dirigia rumo a um “chá de bebê” com o filho de sete anos, o sogro Sérgio Guimarães de Araújo, a companheira Luciana Nogueira e a amiga Michelle da Silva Leite Neves, quando teve seu carro alvejado. Michelle relatou que os militares não tentaram parar o carro ou conversar, simplesmente começaram a disparar contra o veículo. Os tiros continuaram mesmo depois de Evaldo cair sobre o volante e de moradores alertarem que se tratava de um carro de família, enquanto tentavam prestar socorro, omitido pelos militares. O Exército afirmou que confundiu o veículo da família negra com o de dois criminosos que haviam disparado antes contra o jipe em que estavam. Além de Evaldo, também foi morto o catador de recicláveis Luciano Macedo, que ajudou a família a sair do veículo durante os disparos. O sogro do motorista foi baleado, mas sobreviveu.

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