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Imagem 2 – Notícia publicada em O Estado de S.Paulo, em 4/5/1993, p.18

Técnico é tomado por assaltante, espancado e baleado por policiais

O técnico em eletrônica, Márcio dos Santos Carneiro, de 18 anos, foi baleado por policiais civis da equipe E da Divisão de Homicídios de Osasco, ao ser confundido com um ladrão de banco. O fato aconteceu às 21h30 de sexta-feira, em frente à Igreja São Paulo Apóstolo, na Cohab 2, em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Além de balear e espancar o rapaz, que é funcionário do Grupo Estado, os policiais só decidiram levá-lo ao hospital três horas depois. Carneiro está internado na UTI do Hospital Cruzeiro do Sul, em Osasco. (...) (O ESTADO DE S. PAULO, 4/5/1993, p.18) Imagem 2 – Notícia publicada em O Estado de S.Paulo, em 4/5/1993, p. 18.

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Assim, a postura agressiva do MC diria respeito a um caráter de resistência do Rap, conforme Tricia Rose (1997). Ela faria parte da elaboração sobre a vida em um mundo hostil, onde os diferentes jovens que integravam e se reconheciam por meio da cultura Hip Hop eram igualmente discriminados. Erving Goffman (1985) explica como a conduta e a aparência são indicativos utilizados para obter informações sobre um indivíduo, o que ocorre, em geral, com base na experiência anterior com pessoas parecidas ou com a aplicação de estereótipos não comprovados. Segundo o sociólogo, quem se apresenta também utiliza este momento

para regular a conduta dos outros, principalmente, a maneira como será tratado, mesmo que para isso trapaceie, induza ao erro, provoque confusões e demonstre oposição. É neste sentido que o MC, acumulando conhecimentos e experiências sobre sua condição de jovem negro periférico, aterroriza o ouvinte e rouba o olhar que já o enxergaria como um marginal. Ao discutir a criminalização de expressões culturais juvenis, como o funk carioca e o Rap, José M. Valenzuela Arce lembra que

A proscrição, bem como o racismo, constroem-se em um âmbito de desigualdade de poderes sociais que reproduzem a subordinação de um grupo social. Sua manifestação vai além das disposições jurídicas e normativas, expressando-se por meio de múltiplos canais que vão desde as proibições explícitas até a dimensão tênue, mas humilhante, do olhar do discurso gestual. Aqui a construção dos outros é ameaçadora, sua conduta é violenta e seus atos criminais. (ARCE, 1997:141) A interpretação de Brown soa em plena concordância com o que é enunciado na letra do rap, ao revelar, por exemplo, impaciência (“Um, dois, pra atirar”), determinação (“Eu tenho uma missão e não vou parar”) e raiva (“A fúria negra ressuscita outra vez”). Diante da desconfiança provocada pela sua imagem, ele se assumirá publicamente como mau (“O preto aqui não tem dó, é cem por cento veneno”) e irá se impor pelo medo, em um ato “violentamente pacífico”, que mostrará a quem escuta, de maneira combativa, a diversidade e as dificuldades que envolvem os indivíduos semelhantes a ele. As cenas descritas no rap colocam em discussão como se constituem as representações dos jovens de periferia. Isso é ressaltado nas várias passagens que destacam a função do olhar: “Eu sou bem pior do que você está vendo”; “Ontem à noite eu vi na beira do asfalto”; Ó [olha] os cara, só o pó, pele e osso”; “Veja bem, ninguém é mais que ninguém / Veja bem, veja bem”; “Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano / Cê tem que vê”; “Eu vejo um mano nessas condições, não dá”; “Quatro minutos se passaram e ninguém viu”; “pra ver branquinho aplaudir”; “foda é assistir a propaganda e ver”; “Um, dois, nem me viu, já sumi na neblina”. Mesmo as percepções que se formam entre os próprios manos e que são questionadas pelo MC estão baseadas em aspectos aparentes, como o vestuário (“De jaco de cetim, de tênis, calça jeans”; “Mó estilo, de calça Calvin Klein, tênis Puma”; “aquele moleque de touca... De quebrada, sem roupa”) ou os comportamentos nas situações do cotidiano. Uma relação com o consumo também é estabelecida a partir dos apelos visuais de marcas, da comunicação visual transmitida por meio do Cinema, da Propaganda e da

Televisão, e da posição de vitrine ocupado pelo preto tipo A, cujo lugar “custa caro” – uma referência que não se restringe ao sacrifícios monetários, mas que indica o pertencimento a uma sociedade em que critérios financeiros são utilizados para reconhecer um indivíduo. Do mesmo modo, parece ser através da observação, principalmente, que o MC constrói a sabedoria que lhe permite se situar no mundo e permanecer vivo. Na verdade, a simples enunciação feita por Brown e Edi Rock de diferentes sujeitos invisibilizados ou proscritos na sociedade, como os mendigos, os delinquentes, os pobres e os negros, já lhes evidencia. Mais do que isso, na narrativa eles são reconhecidos como semelhantes, unidos pelo pertencimento a uma coletividade, por um mesmo sistema de valores, conforme Leandro Silva de Oliveira, Marcelo Segreto e Nara Lya Simões Cabral (2013). Em meio à identificação com outros iguais, ao mesmo tempo em que afirma a sua individualidade (“Cada um, cada um, você se sente só”), a identidade se transformaria e se expandiria. Como destaca Maria Rita Kehl (1999:96) sobre a obra do Racionais, a designação “mano” faria sentido, pois “eles procuram ampliar a grande fratria dos excluídos, fazendo da ‘consciência’ a arma capaz de virar o jogo da marginalização”. De modo geral, um MC cria uma personagem a partir de sua história de vida, pensando quais são as razões de ordem social, política, econômica para ela. Além do autoconhecimento, isso também o leva a compreender os grupos sociais identificados com ele. Segundo Guilherme Botelho (2017:51), o ato de interpretar uma personagem com a reprodução de diálogos é um artifício muito comum no rap. Essas performances têm a função de transmitir “saberes sociais, memórias, denúncias e percepções através de atos artísticos. Sua força está em levar para o ouvinte o texto musicado com um grau de seriedade incontestável, uma verdade absoluta”. O pesquisador da cultura Hip Hop também aponta como a representação foi um “recurso bem aproveitado nos raps para que os objetivos fossem alcançados”, e cita Erving Goffman (1985:25), para quem o indivíduo que representa faz isso em benefício dos outros. Percebido pela sociedade como um marginal, por sua aparência e sua postura, sua origem e sua condição social, o MC cria um meio de incorporar a transgressão que lhe é atribuída e colocá-la a favor da sua crítica em “Capítulo 4, Versículo 3”. Assim: revida e contesta seu estigma de maneira “verídica”, como um “efeito colateral”, por meio de palavras que valem por tiros; torna-se mais perigoso do que o previsto, ao suscitar uma

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