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4. Raps que atiram consciência

mudança de imagem e de atitude entre os negros e os pobres; defende a sua honra e a de seu grupo, a quem se encarrega de apresentar por meio de uma ideia de coletividade; e provoca assombro e desgosto no ouvinte de outros grupos sociais que se reconhece, num primeiro momento, ameaçado, e depois, desmascarado em suas visões preconceituosas.

4. Raps que atiram consciência

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A associação do MC com um bandido volta a aparecer na obra do Racionais em Nada como um dia após o outro dia (2002), agora segundo o ponto de vista de Edi Rock, como anuncia o scratch da abertura de “Na Fé Firmão”, sétima faixa do primeiro disco (Chora agora).

[SCRATCH] Meu modo Meu ponto de vista [EDI ROCK] Século vinte e um, eu sei muito bem o que eu quero Começo o plano, dois zero, zero dois (três, quatro) É um mistério, trago na manga um suspense Tenho um revólver engatilhado dentro da mente Pense e vá, raciocine já A profecia diz que o mundo tá pra acabar Eu quero resgatar tudo aquilo que eu perdi Cronometrei o tempo, só que ainda, truta, não venci O que eu falo é ilícito, sangue Demarco meu espaço sem aço, sem gangue Aonde eu ande trago o anjo do bem Que ilumina meu caminho Me mostra quem é quem Comprei um colete a prova de bala Tenho a guerrilha na mente, falange de senzala Som que abala, a parede estremece Playboy sua frio, mauricinho não se mete Sou lá do Norte e eu venho pra rimar Eu sei do meu direito ninguém vai me intimar Pra bala eu só vou se um pilantra me matar Quem não deve não teme, vem Tobias de Aguiar No corredor da morte, o apelo da sentença O sol da liberdade é a verdadeira recompensa Meu delito, um rap que atira consciência É crime hediondo a favela de influência Na rua eu conheço as leis e os mandamentos

Minha dívida sagrada eu carrego o juramento Corra sempre atrás do que é seu Quero dinheiro igual coreano e judeu Fudeu, então, venha com a minha cara o rap aqui não para Racionais de volta igual a febre da malária Rátátátá Mãos ao alto, é um assalto E-D-I-R-O-C-K (Tô firmão, na fé firmão) Escuta aqui, escuta aqui E-D-I Inspirado na selva de Robin Hood A fita foi tomada, se joga, tô envolvido Pilantra aqui não cabe, é só guerreiro no abrigo, eu digo Escuta aqui, escuta aqui E-D-I Inspirado na selva de Robin Hood A cena foi tomada, se joga, tô envolvido Pilantra aqui não cabe, é só guerreiro no meu abrigo Pros manos e pras mina a cura, a vacina Protótipo, antídoto, uma nova adrenalina Puxa, prende, solta a fumaça Viaja no meu som que essa erva é de graça Levante a taça e tome um trago Não é cigarro nem vinho tinto amargo Não é skank, mesclado ou haxixe É bem pior que tomar ácido ou heroína (vixi) Chega mais que tem pra todos Não sou racista nem um tolo preconceituoso Sei meu valor quem quiser vai aprender Não me comparo a Cristo, não dou a cara pra bater Quem vai querer? Ainda tenho meia dúzia Tá muquiado como esquema do crime Yakuza Uso uma blusa preta de couro puro Se eu vazar ninguém vai me encontrar no escuro Eu tô trepado, armado, pente estufado Inteligência e Q.I. pós-graduado Cocão, uma violação do código penal Eu sou parceiro de Ice Blue e Mano Brown KL Jay, Vila Mazzei, é puro veneno Cachorro louco, lado norte, pra quem tá vendo No nosso exército tem vários trutas De prontidão pra enquadrar filhas da puta Traidor aqui logo mostra a sua cara Desertor no caminho não aguenta e para

É mais difícil do que ele pensou Tem que ser malandro pra ficar de pé e fazer gol Vou que vou, morô? Liga os louco do trago que Pablo ressuscitou Sou o franco atirador, meu homicídio é diferente Eu sou o bem, mato o mal pela frente Escuta aqui, escuta aqui E-D-I Inspirado na selva de Robin Hood A fita foi tomada, se joga, tô envolvido Pilantra aqui não cabe, é só guerreiro no abrigo, eu digo Escuta aqui, escuta aqui E-D-I Inspirado na selva de Robin Hood A cena foi tomada, se joga, tô envolvido Pilantra aqui não cabe, é só guerreiro no meu abrigo Voltei, tô firmão, então, daquele jeito Eu não sou santo, eu tenho meus defeito Meu homicídio é diferente (é quente!) Eu sou o bem, já citei, mato o mal pela frente Pois o mal te oferece te entregar o céu numa bandeja Depois te escracha na capa da revista Veja Ou seja, anuncio o fim da Guerra Fria Na política ou na Globo, em quem você confia? Não sou o crime e nem o creme Mas o meu time não hesita. Aqui não treme! Pra mim o rap é o caminho de uma vida A vida é o jogo onde vencer é a única saída Cheguei até aqui e não posso perder Vacilar, vou prosseguir, aprendi, sei jogar 30 anos se passaram, não é nenhum brinquedo Eu tô na fé, parceiro, prossigo sem medo Armadilha tem um monte à minha espera Final feliz (hã) só em novela Nos deram a pobreza, a favela, a bola, Tráfico, tiro, morte, cadeia e um saco de cola Droga, toca, rola, a bola tá em jogo 5 a 0, os cartola ganharam de novo Caviar e champanhe pra quem não conhece Ligue a TV e assista o programa Flash Socialite, piscina, dólares, mansão Isca forte brilha olho de qualquer ladrão Pra quem não tem mais nada a perder Enquadra uma Cherokee na mira de uma PT

Escuta aqui, escuta aqui E-D-I Inspirado na selva de Robin Hood A fita foi tomada, se joga, tô envolvido Pilantra aqui não cabe, é só guerreiro no abrigo, eu digo Escuta aqui, escuta aqui E-D-I Inspirado na selva de Robin Hood A cena foi tomada, se joga, tô envolvido Pilantra aqui não cabe, é só guerreiro no meu abrigo [SCRATCH] Tô ligeiro

Sem causar o mesmo impacto de “Capítulo 4, Versículo 3”, o MC anuncia um assalto em “Na Fé Firmão”. Neste instante, por mais que se crie uma ênfase sobre a ameaça, ao privilegiar a voz grave do MC e silenciar os demais instrumentos da base (com exceção do efeito do teclado, que reverbera do trecho anterior), a intimidação não convence. Na verdade, para reforçar a mensagem da letra e criar um clima de perigo e de suspense, os recursos empregados acabam por explicitar artifícios. São exemplos disso as colagens sonoras, como o tic-tac do relógio no verso “Cronometrei o tempo só que ainda, truta, não venci”, a arma engatilhada em “Demarco meu espaço, sem aço, sem gangue”, o som da queixada, que sugere o tambor de um revólver girando em “Playboy sua frio, mauricinho não se mete”, o disparo de uma arma em “Meu delito, um rap que atira consciência”. A própria reprodução da rajada de tiros, que soa quase infantil com a onomatopeia (“Ratatatá”), já havia sido utilizada nos segundos iniciais da música, como um efeito criado a partir de uma sequência de ataques na caixa132. É essa variação de som de caixa, identificada como um tiro, que também irá compor a base rítmica do rap, marcando o 2º e o 4º tempo do compasso e reforçando, por meio da forma musical, a associação entre o rap e a transgressão. Além disso, apesar de possuir os mesmos 90 bpm de “Capítulo 4,

132 Tanto a onomatopeia da metralhadora (ratátátá) quanto a de marcação do tempo (tic-tac) já haviam sido melhor aproveitadas em “Diário de um Detento”, rap de Mano Brown gravado em Sobrevivendo no Inferno (1997). Conforme análise do professor Walter Garcia (2004:169-170): “Imitação há, na mesma canção [Diário de um Detento], quando se usa a onomatopeia ‘rá-tá-tá-tá’ em dois sentidos, para metralhadoras e para o metrô, o que é interessante pois aproxima da morte causada por tiros a curiosidade de uma ‘gente de bem, apressada, católica/ Lendo o jornal, satisfeita, hipócrita/ Com raiva por dentro, a caminho do centro’ (rima externa toante de proparoxítonas e rima interna consoante). E imitação também há em ‘Tic-tac ainda é 9h40/ O relógio na cadeia anda em câmera lenta’, onomatopeia que parece se expandir, a cada dois compassos, no timbre mais agudo do acompanhamento (produzido por Kl Jay, o DJ do grupo).”

Versículo 3”133, a música parece incitar mais ao balanço134, favorecido pela presença de um refrão que se constrói em torno de um riff de guitarra. Tais fatores comprometem a intimidação do ouvinte, mas talvez o objetivo primordial de “Ná Fé Firmão” não seja causar pavor. Embora existam referências a armas (“Eu tô trepado, armado, pente estufado”), a grupos criminosos, como a máfia japonesa Yakuza e o cartel de drogas de Medellín, sob o comando de Pablo Escobar, a comportamentos associados a práticas criminosas (“A fita foi tomada”) e a atividades ilícitas, como a venda de drogas (“Quem vai querer? Ainda tenho meia dúzia”) ou a formação de uma quadrilha (“Cocão, uma violação do código penal/ Eu sou parceiro de Ice Blue e Mano Brown/ KL Jay, Vila Mazzei, é puro veneno”), as aparições do bandido durante o rap o situam como um restaurador da justiça, cuja inspiração é o lendário Robin Hood, citado em uma rima consoante ao próprio nome do MC (“E-D-I”). Neste rap, a ambivalência também se faz presente na figura de um bandido que atuaria desarmado (“demarco meu espaço sem aço, sem gangue”), guiado por um anjo bom, para roubar consciências e matar o mal que encontrar pelo caminho. Assim, ao contrário de “Capítulo 4, Versículo 3”, o delinquente aqui não se trata de um criminoso comum, mas se aproxima do “bandido social”, tal qual estudado por Eric J. Hobsbawn (2010). Essa abordagem é interessante, à medida em que dialogaria com uma das cinco teses equivocadas sobre a criminalidade urbana no Brasil, analisadas por Michel Misse (1995). De acordo com uma hipótese corrente no senso comum, o bandido das áreas pobres (favelas, conjuntos habitacionais, periferias) seria um herói justiceiro, ao estilo de Robin Hood, que roubaria dos ricos para dar aos pobres, em uma espécie de distribuição forçada da renda. Tal ideia seria contestada principalmente por Alba Zaluar (2000), ao pesquisar as representações dos trabalhadores e dos bandidos na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. De acordo com a antropóloga, por mais que alguns entrevistados em sua pesquisa se identificassem com o bandido na condição de oprimido, pobre, humilhado ou ofendido,

133 Estou me baseando no levantamento da velocidade das pulsações na obra do Racionais realizado por Marcelo Segreto (2015:26). 134 Em depoimento no Red Bull Music Academy Festival São Paulo, realizado em 5 de junho de 2017, Edi Rock explicou como pensa as suas produções: “A música não pode perder viagem. Ela tem que ter a harmonia, a melodia e a mensagem. Ela é informação e diversão. Pra mim, a diversão vem antes da informação, porque você tem que dançar, tem que curtir. Você curte raciocinando”.

e se referissem ao marginal como um “revoltado” e não como um “criminoso”, não é pertinente idealizar um bandido-protetor ou bandido-herói, como se diante de um herói romântico de um movimento social.

Apesar de todas as conotações com a injustiça que os termos “revolta” e “revoltado” trazem à tona, a atividade principal está num rendoso comércio – o tráfico de tóxicos – e o seu estilo de vida está longe de ser contestatório. (...) Como consumidores, os bandidos não desenvolvem um estilo próprio de vida em bandos de fora-da-lei, mas almejam os bens que a sociedade de consumo lhes oferece. Para distinguir-se dos demais moradores, cujo nível de renda não lhes permite isso, vestem-se com roupas Adidas, as mais caras do comércio de produtos esportivos. Tampouco têm “um programa de defesa ou restauração da ordem tradicional das coisas como deveriam ser”, como supostamente teriam os bandidos sociais ou os camponeses fora-da-lei (Hobsbawn, 1969). Não são reformistas, nem revolucionários. Não lutam por relações mais justas entre ricos e pobres, fortes e fracos. Suas ações podem ser interpretadas como uma revolta individual contra as contradições adversas sob a forma de recusa ao trabalho destinado à população pobre, assim como a participação num dos mais rendosos comércios que se tem notícia no mundo capitalista. (ZALUAR, 2000:165-166)

Alba Zaluar (2000:166-167) também fala em ambivalência como uma característica – de fato, bem aproveitada nas narrativas do Racionais –, ao definir a relação dos bandidos com os moradores das comunidades, pois eles não possuiriam a legitimidade do Estado, mas ganham a aceitação dos moradores locais como protetores e justiceiros. Além disso, a ambiguidade se apresenta no abuso das técnicas repressivas, aprendidas por meio da experiência como membros das classes subalternas diante do aparelho repressivo do Estado, e no fato de empregarem sempre meios violentos para manter o poder. Segundo Eric J. Hobsbawn (2010), o bandido social se diferencia de outros marginais por oferecer resistência ao poder manifestado por meio da autoridade, do capital ou da sociedade de classes. Na narrativa cantada por Edi Rock, o protagonista afirma a sua soberania diante da opressão sofrida por várias instâncias de poder, como as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), batalhão de choque da Polícia Militar de São Paulo, a mídia e as elites, por meio de referências à revista Veja, à Rede Globo e à coluna social eletrônica “Flash”, apresentada por Amaury Jr. em diferentes canais televisivos, com a cobertura de eventos com “caviar e champanhe” e entrevistas com ricos e famosos. Neste ponto, é preciso considerar este rap em diálogo com a faixa que o antecede, “A Vítima”, em que Edi Rock versa sobre um acidente de carro em que se envolveu em

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