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Tabela 6 - Número de ataques a agências bancárias no primeiro semestre de 1999, com valores roubados e armas

mil de agências e postos bancários localizados em diferentes regiões da cidade, como Jardins, Santo Amaro, Belenzinho, Lapa, Vila Santa Catarina, Paraíso. O pico dos assaltos a bancos acontece na metade da década de 1990, conforme matéria d’O Estado de S. Paulo, publicada em 8 de setembro de 1999, p. 21, com o título: “Número de roubo a banco cai, mas valor cresce”. Os autores do levantamento advertiam que, apesar do menor número de assaltos, o sequestro com vistas a saques estava se tornando o “mais novo terror” para clientes, bancários e suas famílias.

Tabela 6 – Número de ataques a agências bancárias no primeiro semestre de 1999, com valores roubados e armas

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Ano Assaltos Valor (em reais) Armas roubadas

1994 189 2.609.712,26 268 1995 391 13.289.929,91 499 1996 798 26.146.497,64 1.106 1997 910 27.498.919,16 1.317 1998 775 17.544.367, 85 1.020 1999 590 29.501.044,42 821

Fonte: Secretaria da Segurança Pública de São Paulo

Do mesmo modo que a população buscava se precaver e o Estado intervir, os criminosos se tornariam cientes dos riscos envolvidos. Na empreitada descrita no rap, o protagonista veste um colete à prova de balas (“No frio já é quente, ainda usando colete”), por exemplo. A desconfiança que ele demonstra em relação à mudança no curso dos acontecimentos ao chegar ao local do assalto pode ser lida como um resultado da experiência acumulada como ladrão, demonstrando prudência e sensatez ao falar com o parceiro.

Mas por que logo hoje? Por que que mudaram? É difícil errar, os que deu a fita erraram Sei não, tá esquisito, jão, tá sinistro Não é melhor nóis se jogar? Vê direito, hein? E, qualquer coisa, a loira vai ligar, não tem pressa Cê é que nem meu irmão, caraio, porra, num dá essa!

A comparação com o irmão, associada a características como a afobação e a ansiedade (“Nossa senhora, o neguinho passou a mil/ Eu falei, nem ouviu, nem olhou, nem me viu”), também sugere a situação de um indivíduo mais velho se dirigindo a um adolescente. Além disso, o apelido baseado no traço racial é usado no diminutivo, podendo indicar tanto alguém menor como também uma conotação afetiva. Depois de ser baleado na saída do banco, a afirmação do narrador (“Pra mãe dele, quem que vai falar, quando nóis chegar?/ Um filho pra criar, imagina a notícia”) condensa a imagem de um jovem, pai e novato na carreira criminal. A relação do protagonista com esta personagem recorda um amplo panorama da violência no Brasil estudado por Alba Zaluar (1998:297), no qual a quadrilha pode ser entendida como uma “agência de socialização”, “um dos centros de reprodução da criminalidade como meio de vida – ensino das técnicas, transmissão de valores e de histórias de seus personagens, internalização de regras da organização”. Na periferia paulistana nos anos 2000, Gabriel Feltran (2007:16) destacou a existência de redes organizadas de assaltos e roubos de carro, que subcontratavam adolescentes mediante pagamentos fixos.

O dinheiro obtido é garantia de usufruto imediato dos bens fundamentais à vida “social” do jovem da periferia: tênis sofisticados, telefones celulares de último tipo, roupas de marca e, se possível, motos e carros com acessórios e aparelhagem de som. Quem ingressa no “mundo do crime” passa a dominar, para além dos códigos cotidianos da sociabilidade da periferia, uma série de códigos simples de conduta, mas estritos, distintos daqueles que situam “o favelado” nos degraus mais baixos da ordenação social. (FELTRAN, 2007:16)

O envolvimento em atividades ilícitas e arriscadas é o efeito perverso que garante acesso à renda, aos bens de consumo e a uma percepção social que liberta o jovem da condição de “favelado”, como na letra do rap aparece sentenciado no verso: “O pesadelo do sistema é não ter medo da morte” – morte que ocorre com o indivíduo abraçado ao dinheiro. O sorriso do “neguinho” na saída do banco, antes de ser atingido pelas costas, indicaria vanglória e a sensação de acoplamento a um ideal de masculinidade e poder, que na letra do rap se reforça por meio da afirmação de que o jovem teria caído “como um homem”. Alba Zaluar (1998) destaca que

Entre os rapazes ou meninos, o principal motivo de orgulho advém do fato de que fazem parte da quadrilha, portam armas, participam das iniciativas ousadas de roubos e assaltos, adquirem fama por isso e podem, um dia, caso mostrem 250

‘disposição para matar´, ascender na hierarquia do crime. (ZALUAR, 1998:295) A frieza e o senso prático (“Lamentável, vamo aí, vai chover de polícia”) ao presenciar a morte do parceiro revela o calculismo que precisa se desenvolver num universo onde os valores monetários194 e os riscos ditam as regras da sociabilidade cotidiana, seja para as vítimas, seja para os bandidos. A noção utilitária da “opção”195 pelo crime se evidencia nos versos finais: “É tudo uma questão de conhecer o lugar/ Quanto tem, quanto vem e a minha parte, quanto dá”. Segundo Carlos Augusto Teixeira Magalhães (2006:119-121), a constatação de vantagens e desvantagens na vida do crime é um “pressuposto interpretativo que orienta e dá sentido aos relatos” dos criminosos entrevistados em sua pesquisa sobre sujeição criminal. Os riscos são considerados inseparáveis à atividade, assumidos e administrados até onde for possível. Porém, há uma expectativa de que, em algum ponto, alguma coisa não só pode como vai dar errado – como se fosse um preço a se pagar – e que, com o passar do tempo, a probabilidade de um fracasso é cada vez maior. A expressão “vem fácil, vai fácil”, resume essa lógica de perdas e ganhos na carreira criminal, de fluxos de mercadorias, de prestígios que se dissipam, da própria vida, que pode terminar bruscamente. A afirmação que “todos têm o mesmo valor”, presente na “moral da história” apresentada pelo líder do Racionais, busca recuperar um sentido humano das relações, no qual todos são estimáveis e não devem ser determinados por aspectos financeiros, nem por preços, que servem para categorizar objetos, coisas, mas não pessoas. Porém, a voz do MC não fala mais alto do que os apelos que povoam a sociedade, do que os preconceitos e do que as dificuldades objetivas para “ganhar” a vida. Essas contradições se espelham na estrutura do rap. A cena é triste, acerta Mano Brown, e exige piedade, como clama Almir Guineto no samba “Orai por Nós”196, feito em parceria com Luverci Ernesto, e sampleado197 em “Eu Sou 157” junto ao som que evoca o choro da mãe do ladrão morto.

194 Assim, a modalidade “assalto a banco” casa perfeitamente às discussões que são promovidas ao longo da letra. 195 Gabriel Feltran (2007) lembra que o termo “opção pelo crime” é uma categoria de uso corrente nas periferias. 196 “Orai por Nós”, Almir Guineto e Luverci Ernesto. A Chave do Perdão. Beverly (1982). 197 O samba “Orai por Nós”, sampleado pelo Racionais em “Eu Sou 157”, é interessante na medida em que representa um diálogo com a tradição da música negra urbana, da mesma forma que o trecho da música de Ray Charles incorporado à base musical do rap. Estou me apoiando no pensamento do filósofo e historiador 251

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