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1.2 Regeneração marginal x Degeneração policial
from Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC'
Nos termos de Walter Benjamin (1987:204), se apresenta um confronto entre a informação noticiada (sua “plausibilidade” e sua função explicativa pontual) e a potência da narrativa cantada, que conserva a força e a memória de uma vida. Além de frias, as versões oficiais da polícia e da imprensa são falsas diante do percurso do “Homem na Estrada”. A sobreposição dos tiros ao discurso jornalístico, no final do rap, leva ao questionamento a respeito da visibilidade dada pela grande imprensa ao fenômeno da violência urbana. Como destaca Maria Victoria Benevides (1983:22-3), a abordagem corriqueira contribui para reforçar a estigmatização das “classes perigosas” e não considera a violência em toda a amplitude de causas e atores.
1.2 Regeneração marginal x Degeneração policial
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Mesmo diante das particularidades das narrativas e das personagens, dos gêneros cancionais e das temporalidades referidas, a comparação entre “Senhor Delegado” e “Homem na Estrada” revela um diálogo que diz respeito à persistência histórica e à evolução perversa de certos tipos de práticas em relação a alguns grupos da população. Ambos os protagonistas são marcados pela marginalidade e tanto o malandro (ou exmalandro) quanto o ex-presidiário são vítimas de uma situação opressiva e do abuso de poder, mesmo quando revelam, cada um a seu modo, um ideal de regeneração. Assim como para o malandro, a aparência, a falta de emprego e a ficha criminal serão determinantes para o assujeitamento do homem da letra de rap, cuja “degradação” irá se sobrepor a todos os demais papéis sociais. Como demarcam as canções, o processo de estigmatização se trata de um movimento contínuo, acompanhado também pelo alastramento das economias ilegais e das ações de gestão da população urbana. Da região central, na Lapa carioca, ambiente público em que o malandro é detido, chega-se ao barraco, o lar, único bem (portanto privado) de um morador da favela paulistana. De modo geral, os territórios associados à marginalidade ganharão abrangência na cidade, expandindo para qualquer indivíduo da periferia, de maneira bem mais violenta, os padrões de sociabilidade com os agentes da lei, que sempre caracterizaram as relações no chamado submundo. A comparação das duas situações por
meio das letras das músicas é sintomática de como a violência policial vai se acentuando até se tornar parte do dia a dia das pessoas de uma determinada classe social. Esse roteiro, que inclui julgamentos subjetivos a partir de índices exteriores, como o discurso e a aparência, é apresentado como uma competência adquirida na prática pelos investigadores e empregada de maneira corriqueira. Na verdade, explicita práticas arbitrárias assimiladas pela polícia no dia a dia, que realmente determinam sua atuação e que passariam longe da “ilusão” do curso “muito técnico” recebido na Escola de Polícia, como é citado na reportagem destacada no Anexo II: “pesquisa técnica fica sendo apenas uma lembrança da Escola, investigação policial passa a ser só uma expressão a mais”. A partir dessa dinâmica, as lógicas policiais demonstram possuir outra premissa, cuja amplitude parece abarcar desde a figura do delegado do samba analisado até a ação dos operadores da lei no rap recém discutido. Se o samba “Senhor Delegado” suscitava dúvidas sobre a inocência de seu protagonista, o rap “Homem na Estrada” deixa claro que o suspeito “nem tava na treta” e ainda assim é sentenciado. Sendo preso, ao malandro restará argumentar por sua liberdade. Já o homem, ex-detento, não terá nem chance de falar (“minha verdade foi outra, não dá mais tempo para nada”), nem a perspectiva de ser preso, uma etapa que parece já superada nas rotinas de controle de suspeitos – em vez da privação da liberdade, é o merecimento da morte que estaria em jogo. A este homem, portanto, caberá lutar pela vida.
Em um trecho do espetáculo teatral Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, obra tributária ao legado do Racionais MC’s, com idealização, atuação, direção geral e dramaturgia de Jé Oliveira (2018:33-5), ator do Coletivo Negro, o narrador, também identificado na peça como “Homem”, reflete sobre os manos, vizinhos e conhecidos assassinados.
A nossa vida, por vezes, tem sido a construção do cadáver; seu enterro; e a perda silenciosa que se segue depois do tiro, do copo e do corpo em coma em camas de corredor, morô?! A sede do homem é fundura severina: mistério que a vida tenta explicar enquanto a morte se mostra fácil, de esquina, cotidiana, objetiva, é mato, não é trevo de quatro folha, orquídea, dália. Dali de onde venho olho nos olhos dela desde criança e sempre vejo lá os manos e os parentes... Já perdi a conta de quantos... (OLIVEIRA, 2018:35)
É possível cotejar o trecho com a narrativa do rap, a partir da ideia de “homem na estrada da vida” recriada na letra de Mano Brown. Além disso, no texto de Oliveira (2018:34), são questionadas as mortes tanto de “culpados”, como os “111 mortos do Carandiru, todos pretos”, quanto a de inocentes, como os cinco jovens executados pela polícia com 111 tiros, em novembro de 2015, quando viajavam de carro, no bairro de Costa Barros, subúrbio carioca. “E se todos fossem ladrão, igual o Kioio era, se todos fossem, ainda assim mereciam? Só porque é preto. Mereciam? Só porque é preto. Mereciam? Mereciam? Mereciam? Só porque é preto, preto, preto. Só preto.” A radicalização das abordagens policiais também fica perceptível quando se justapõem as consequências imediatas das injustiças cometidas. O encarceramento do malandro o levaria a quebrar o compromisso com a mulher na missa da Penha. Em outro nível, a morte do homem na favela implicaria o abandono do filho e a sua inevitável marginalização, num ciclo que parece interminável, já que o protagonista também passara pela Febem. O fato de a violência institucional atravessar ambas as narrativas cantadas também é sinal de que, ao contrário do que se costuma justificar, ela não se trataria de uma resposta heterodoxa das forças policiais à criminalidade, um excesso decorrente do aumento de poder dos bandidos, passível de ser corrigido e controlado, depois de cumprir um papel instrumental. Como conclui Alessandra Teixeira (2012), sua persistência, por meio de práticas que a atualizam na dinâmica das instituições, exige que seja percebida como um elemento central e constitutivo na reprodução das ilegalidades e na construção da delinquência. As figuras do malandro e do bandido nas canções parecem desdobramentos do “fantasma criminal” das “classes perigosas”, nos termos de Michel Misse (1999), que se mantém encarnado no imaginário das elites e das classes médias, assim como uma espécie de consenso, nem sempre velado, no que diz respeito à justificativa do descarte dessas vidas. A partir de suas singularidades, é possível também entrever uma série de transformações na realidade urbana ao longo do século XX, das quais se destacam o incremento da violência e o avanço da economia capitalista, que acentua a exclusão social e econômica. A longa duração desse processo parece se acumular também nas formas artísticas, vide a potência alcançada pelo rap para denunciar a situação opressiva, a pobreza e a