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2.2 Perdeste o tempo e a viagem
from Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC'
Orai por nós Os cativos E há tanto fugitivos Dos grilhões Do horror das questões Orai por nós Em alta voz Quantos querem nos destruir E tão poucos vêm acudir É difícil assim encontrar O solar do porvir Pedem cruz se não temos luz E o destino é de escuridão Um abismo, a razão Como ir sem visão? Senhor do infinito Ouvi o nosso grito Olhai pelos aflitos E orai por nós Senhor dos condenados Dos mal-aventurados Traçai-nos melhor fardo E orai por nós
2.2 Perdeste o tempo e a viagem
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Ao contrário do samba “O Assalto”, que consegue tratar da ocorrência criminal com certo humor, o rap “Eu Sou 157” traz uma abordagem sombria do tema. De início, isso se deve aos diferentes pontos de vista apresentados, sendo o malandro sempre autor de um discurso risonho e irônico, enquanto o bandido é apresentado como alguém “aborrecido, mal-encarado” já na letra de Zé Keti, e depois, autorreferido como um indivíduo “de mal com o mundo” no rap.
Amailton Magno Azevedo (2018), para quem a configuração estética do Rap está “profundamente ancorada nas heranças musicais do circuito negro atlântico, tendo Brasil, EUA e Jamaica como centros geoculturais deste circuito”. A inserção do samba de Almir Guineto no trecho que remete à mãe de um dos ladrões (“Pra mãe dele, quem que vai falar, quando nóis chegar?”) ajuda a caracterizar a situação narrada (devido ao conteúdo da letra) e a personagem mais velha, por meio da figuração de uma ideia de herança cultural. Essa herança diz respeito não apenas ao samba, enquanto vivência de determinados grupos, mas à segregação social, espacial, econômica e racial a que esses mesmos grupos foram submetidos. O sentido dado pela colagem musical é o de rearticulação e, portanto, aprofundamento da discussão proposta pelo rap.
No samba, apesar do investimento na comicidade – como se “rir da própria desgraça” fosse uma forma de não deixar outras emoções ganharem vulto –, é perceptível um fundo melancólico na interpretação de Germano Mathias. Há uma sensação de perda na canção, evocada de maneira óbvia pelo acontecimento narrado, mas que parece não dizer respeito apenas à subtração dos bens do indivíduo. Esse sentimento se relaciona com as mudanças sociais em curso e com uma percepção de perda de potência da malandragem. Por exemplo, quando a personagem se define como “encurralado”, ou seja, sem movimento, sem a possibilidade do gingado que é a sua arma e a sua defesa. A ginga é uma forma de saber praticada pelo corpo (RUFINO, 2016), um movimento que preenche o vazio deixado pela alternância entre a marcação de dois tempos. O bloqueio da movimentação do malandro impede a reelaboração criativa da realidade através do corpo, como se demarcasse um tempo paralisado, sem resposta adequada, entre a malandragem e a bandidagem. Do mesmo modo, a habilidade de tirar vantagem em situações diversas, e adversas, não surte eficácia quando o protagonista tenta negociar com a quadrilha (“Conversei muito bem com a patota/ Mas ninguém me livrou”), nem seu apelo para uma retórica lisonjeira (“Chamei o bandido de doutor”). A personagem do samba não consegue superar o assalto por meio da simpatia, o que se estabelece de forma objetiva é uma dinâmica explicitamente violenta. Em linha com o pensamento formulado por Jessé Souza (2004:48) a respeito das mudanças de sentido histórico da figura do malandro no imaginário brasileiro198, a frustração do personagem do samba decorre de um “reconhecimento de que ele não domina suas condições de existência”, tornando-se produto de uma realidade que ele não controla. Nesse sentido, a própria ambiguidade que surge em torno do protagonista se explica, pois o “O Assalto” se encaixa em uma categoria de sambas que servem à “desconstrução do malandro”:
Aqui o malandro não é mais o rei do morro, o barão da ralé ou a quintessência da brasilidade. Nesses sambas já não há oposição entre o malandro e o Mané. Os dois fazem parte de uma mesma realidade e são simples faces de uma
198 Vale advertir que Souza (2004) ignora a existência real dos malandros, como se a malandragem surgisse das obras de ficção e dos estudos de interpretação. O autor pensa o malandro na música popular a partir do ponto de vista da Sociologia, como um contraponto popular à noção de indiferenciação social presente no pensamento erudito de intérpretes do Brasil, como Gilberto Freyre (1933) e Sérgio Buarque de Holanda (1936).
mesma moeda e de um mesmo destino. A morte lenta do Mané na sua labuta diária e sem esperança tem o seu contraponto na morte súbita e quase sempre violenta do malandro esquecido, sem admiradores, sem morenas. [grifos do autor] (SOUZA, 2004:47) Na análise do sociólogo, sem o malandro, o otário, que só existe por oposição, também perde o lugar. Agora, só resta a vítima, em estado de tensão permanente, pronta para ser assaltada, para morrer. Nesse contexto, um dos acertos de “Eu Sou 157” é explorar, desde a base musical, a sensação crescente de insegurança dos moradores das grandes cidades brasileiras. No entanto, essa inquietude se estende mesmo ao ladrão, como constatado nas ponderações do protagonista sobre as chances de ser preso, denunciado, delatado ou morto a qualquer instante. Apesar da tentativa do Estado, da sociedade e da imprensa de centralizar na figura do bandido a questão da violência urbana, o verdadeiro inimigo não se concentra em um agente. Como um “Cavalo de Troia”, a violência não é prontamente reconhecível e não desperta políticas estratégicas de segurança. Essa violência é encarada apenas a partir de uma vertente, por mais que se trate de um problema que diz respeito tanto à criminalidade como ao seu enfrentamento. Sendo uma corrente maior e impessoal, a violência gera riscos para todos, inclusive para os que são culpabilizados por sua ocorrência. A voz do bandido, escutada através do rap, rompe com explicações simples e causais, pois se trata de alguém que participa, sente, pensa e sofre essa realidade (“São Paulo é selva e eu conheço a fauna”). A remissão à vida animal é interessante, porque estende à população da cidade características comuns, como se dissesse respeito a diferentes espécies de bichos – sendo “bicho”, também, uma gíria para bandido199 . O ladrão não se mostra como um mero fantoche da pobreza, nem como um indivíduo sem vínculos afetivos. Há um entrelaçamento de eventos, sujeitos, interpretações, representações que complexificam as questões, em linha com o que se pratica nos estudos sociais contemporâneos, conforme explica Alba Zaluar.
Esses arranjos sempre renovados mobilizam a exterioridade e interioridade, o objetivo e o subjetivo, e não permitem pensar apenas em termos das “vítimas” da estrutura nem em atores meramente calculistas e plenamente conscientes, ou seja, culpados pelas consequências de seus atos. (ZALUAR, 1998:254)
199 A diversidade animal é exemplificada nos versos seguintes do trecho destacado, com “os ganso” e “as cachorra”.