A Torre

Page 1

A To r r e A Torre é onde todos estamos. Um castelo que construímos para nós, excluindo os outros e só permitindo o acesso a poucas pessoas muito bem selecionadas. Essa fortaleza, sem que percebamos, pode se tornar uma prisão e cabe a nós sabermos o que fazer para sair dela. Essa fábula agridoce nos mostra as armadilhas de estarmos “protegidos”. Muito aplicada aos dias violentos de hoje...

2006

d e Marc el o Vi tal



Segunda Edição Rio de Janeiro, 2006


A Torre © Marcelo Vital 2006 V 836

Vital, Marcelo

A Torre / Marcelo Vital - Rio de Janeiro, 2005 44p.: il. 2a Edição ISBN 85-906023-1-1 1.Contos Brasileiros CDLL 869.0(81)-34 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a expressa autorização do autor.


Para os de cima e os de baixo.



Ele estava naquela torre alta...

5



Cercada de grades enferrujadas...

Em uma cela muito pequena.

7



Da janela podia-se ver o movimento das pessoas naquele campo infinito e vazio.

9



Elas passavam...

E ele as observava.

E se remoĂ­a.

11



“Como elas podem passar tão livres lá por baixo e eu aqui, mofando nessa cela.”

“Tão pequena e mesquinha. Sem sequer um carcereiro para falar comigo. Só eu e meus pensamentos.”

“Só eu e Deus...”

13



Não que Deus não fosse o bastante para ele, claro, mas pensava e pensava em como seria a vida dele se pudesse estar lá fora como as outras pessoas. Ele as imaginava rindo, correndo e vivendo. Podia ouvir o eco de suas vozes pelo espaço. Conhecia cada nuance de suas vidas. Todas pareciam estar esfregando felicidade em sua cara. Mas, de fato, nada ele via com muita definição.

15



De vez em quando a sua torre parecia mais alta e ele não conseguia ver ninguém lá em baixo. Só ouvia suas vozes. Esses eram os piores momentos. Os da falta de controle

17



Não podia controlar o que as pessoas faziam. Não as via, não podia nem saber o que estavam tramando. Certamente nem sabiam que ele morava lá, pensava. Todos viviam suas vidas maravilhosas sem sequer tomar o conhecimento dele. Passavam pela torre e, não sabia como, nem a viam. Ele não era nada para eles. Por que, continuava pensando, eles o haviam prendido por lá, deixando-o separado do resto do mundo? Se ele fosse tão inferior, porque teriam tido o trabalho de prendê-lo e deixá-lo por lá, apodrecendo? É... talvez ele significasse algo para alguém... Mas logo caía na real e via que a verdade não era bem essa...

19



Nas longas noites deitado em seu colchãozinho duro e fedido, ele podia ver (as noites são pródigas em criar imagens) que o haviam prendido na torre porque era um ser humano. Se fosse um bicho estaria num valão qualquer. Não se deram ao trabalho de excluí-lo por significar algo importante, mas por simplesmente não ser nada. E o que se faz com lixo? Joga-se fora. E lá , do seu lixozinho particular, podia ver de onde fôra degredado. Via tudo e todos lá de cima com um misto de raiva, inveja, pena de si mesmo e toda a sorte de mazelas dos ultra-românticos. Lá estavam todos, muito bem, andando pra lá e pra cá. E ele, só

21



Chorava calado de quando em quando, mas para isso se agachava sob a abertura da janela e ficava entre a parede de pedra e o colchãozinho, para que ninguém de fora o visse. Ficava longe da porta, pois o carcereiro, se viesse, poderia vê-lo e, talvez, se apiedasse e o libertasse. Mas o homem nunca chegara. A bem da verdade nem sabia se realmente haveria algum carcereiro ou, até mesmo, como havia chegado lá. Quem o prendera? Como subira todos aqueles degraus? Só sabia que estava por lá, preso. E por muito tempo, sentia.

23



E o casalzinho de namorados continuava se beijando lá embaixo. “Gosmentos” ele pensava, pois, no fundo, daria tudo para estar lá.

25



O garotinho corre com a bola. “Moleque!”, xingava, pois não se lembrava de quando tinha aquela idade.

27



O rapaz fala da festa em que tomara um porre. “Vadio” resmungava, uma vez que na sua prisão não serviam bebidas nem se podia fazer festas. Ah, como ele gostaria de sair de vez em quando... Não havia sequer possibilidade de Liberdade Condicional...

29



E continuava se remoendo. Trabalhava criando pequenos jardins com o musgo das paredes para ocupar a mente, mas o grande tamanho das janelas o distraía e acabava olhando os passantes. De vez em quando gritava para ver se alguém o ouvia, mas lá embaixo só chegavam os ecos distorcidos de sua voz. Também não podia dizer tudo o que precisava para não assustar os transeuntes. Se pudessem ouví-lo.

31



Mas o que ele n찾o sabia era que n찾o existia s처 aquela torre.

33



Muitas outras estavam espalhadas por aquele enorme campo, com as janelas viradas em direçþes opostas.

35



Nem, coitado, sabia que a porta estava aberta. Era meio dura de abrir e muito pesada (com o tempo fechada, criara ferrugem, o que enguiçara as dobradiças). Mas estava lá, pronta para ser aberta, só esperando a força para empurrá-la de seu enorme portal.

37



Mas o que ele realmente não percebia, da sua cela, era que o pessoal da rua não tirava os olhos dele, aliás, só tiravam quando passavam perto da torre.

39



Não dariam esse gostinho para aquele sujeito lá de cima, arrogante, que se mete em uma fortaleza por que se acha melhor que os outros e não deseja se misturar à multidão. Fica olhando todo mundo do alto e, de vez em quando, ainda dá uns gritinhos para afugentar quem pretende se aproximar e não está no nível dele. “Soberbo cretino! Onde já se viu isso?” Reclamava o povo, pois adorariam ter suas próprias torres, de onde poderiam ver os outros, meros mortais como eles, lá do alto.

41



Mas o que não sabiam, era que só bastava pegar as pedras que pavimentavam o chão e construir suas torres, o que não era tão difícil assim. E continuavam passando por baixo da torre, esfregando sua “felicidade” para o esnobe lá de cima e ele, solitário, continuava querendo poder sair um pouquinho para ser um sujeito normal, como os lá de baixo.

43


Esse livro foi composto em Georgia Regular e impresso em papel offset 90gr.



A Torre A Torre é onde todos estamos. Um castelo que construímos para nós, excluindo os outros e só permitindo o acesso a poucas pessoas muito bem selecionadas. Essa fortaleza, sem que percebamos, pode se tornar uma prisão e cabe a nós sabermos o que fazer para sair dela. Essa fábula agridoce nos mostra as armadilhas de estarmos “protegidos”. Muito aplicada aos dias violentos de hoje...

2006

d e Marc el o Vi tal


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.