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Educação e Pensamento Político em Eric Weil
EDUCAÇÃO E PENSAMENTO POLÍTICO EM ERIC WEIL
Marcela da Silva Uchôa1
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Resumo: Este artigo terá como foco a educação, bem como sua relação com a instrução na sociedade moderna, sendo esta relação um dos instrumentos fundamentais para efetivação de uma ação razoável; o que mostra o sentido radicalmente ético da filosofia no pensamento de Weil. O pensamento do filósofo reflete a questão da educação sob o aspecto da moralidade. A moral formal kantiana serve de fundamento para a reflexão weiliana sobre a ação educativa razoável. Segundo Weil, o papel histórico do educador é levar o indivíduo a discernir sobre a razão no mundo, visto que o objetivo da educação é oferecer ao indivíduo violento um modo de agir virtuoso com os outros membros da comunidade. Daí decorrem as diferenças entre educação e instrução. A valorização excessiva da instrução, da procura por qualificação e da formação de mão-de-obra para o sistema capitalista esconde o que deveria ser o verdadeiro sentido da educação, a saber: educar os homens para que se submetam espontaneamente à lei universal (natural), uma educação que se opõe a ser escravo das paixões e se realiza por meio delas.
Introdução
O artigo tem por objeto a explicitação dos conceitos de educação e instrução na filosofia política de Éric Weil, tomando como referências principais, as obras: Filosofia Política, Philosophie Morale, a introdução do livro Logique de La Philoshophie e o artigo A Educação Enquanto Problema do Nosso Tempo. É preciso reconhecer que à primeira vista a questão da educação não ocupa um espaço primordial na obra de Weil; visto que, ela não se encontra na lista das categorias da Lógica da filosofia, sua obra principal. Porém, a educação é, por outro lado, objeto de amplo estudo na Filosofia Política, de maneira especial, na primeira parte consagrada a moral. O autor nos oferece, ainda, a oportunidade de distinguir entre instrução (o que comumente conhecemos como ensino) e educação. Conceitos estes que tendem a ser hoje dramaticamente confundidos. Por trás desta questão está uma discussão sobre a própria visão de mundo. A crítica de Weil à supervalorização da instrução evidencia uma crítica a uma visão mecanicista do mundo, ao esgotamento do sentido da razão no seu sentido instrumental (problema gnosiológico).
1 Bolsista CAPES 2012.01. E-mail: marcela.s.u@hotmail.com PPG Filosofia UFC.
A Modernidade submeteu todas às outras perspectivas do agir e do pensar humanos às exigências científicas e técnicas, o que gerou uma visão unilateral de conhecimento (reduzindo outros saberes – inclusive o moral – a subconhecimentos). Partindo da definição filosófica tradicional de que o homem é um animal dotado de razão e de linguagem, Weil medita sobre a Filosofia e a violência, quase configura como uma das três partes componentes da Introdução à Logique de la philosophie. As outras duas são, Reflexão sobre a filosofia e Reflexão da filosofia. Weil reformula, no entanto, este conceito, afirmando que tal definição deve ser ampliada, de tal modo que se apresente como significando o ponto de vista da realização, e não da mera descrição de um fato para sempre dado. Ele define o homem, então, não por aquilo que ele é, mas pelo que deve ser, ou seja, por aquilo que ele ainda não é. Neste sentido, a definição de homem aponta para a dimensão moral e política de sua constituição, mostrando que os homens não dispõem de razão e de linguagem razoável, mas devem dispor delas para serem plenamente homens.
A Instrução e a Sociedade Moderna
Ao debater o problema educação e instrução, Eric Weil evidencia uma questão intensamente discutida e evidente, porém pouco posta em prática e pensada no que tange a forma como se relacionam. A instrução pode contribuir para que haja uma educação, mas por outro lado: [...] ela é o meio mais fácil, mais direto, para que o indivíduo aprenda quão pouco valem suas paixões, seus desejos, suas preferências, quando se trata do que é e do que é verdadeiro: uma data histórica é o que é, a solução de uma equação é correta ou não é, uma tradução é correta ou elegante, ou não é2 . Entretanto, foi este o ideal que agradou grande parte da sociedade contemporânea, o que podemos ver no decorrer do início desse terceiro milênio foi um grande esforço para que todos tivessem acesso à instrução; porém pouco esforço foi empenhado para que todos os homens fossem educados. Os conhecimentos que a instrução oferece são indispensáveis para quem quer participar do trabalho em sociedade. A única exigência é aprender o método e essa aptidão torna o homem instruído, “só homens instruídos seriam trabalhadores competentes [...] A instrução era o meio, o progresso e o fim” 3. É evidente que o homem sempre se educa através de qualquer estudo
2 WEIL, Eric. Filosofia Política, p. 64. 3 WEIL, Eric. A educação enquanto problema do nosso tempo, p. 58.
chegando a discernir o verdadeiro do falso. E é nessa linha de pensamento que emerge a ideia original de Weil: [...] uma opinião tão injusta quanto sem fundamento consiste em supor que os homens são aptos só para serem adestrados a determinadas funções [...] mas, não para desempenhar ora uma função, ora outra, sem perder sua identidade4 . É este o modelo de todos os ambientes educacionais vigentes no nosso atual modelo de sistema capitalista, frutos de uma sociedade industrial e racional. Assim, a instrução é guiada a partir de uma razão calculadora onde, segundo Weil, “as instituições políticas existem para fazer com que os homens ajam segundo a moral, não para ocuparem-se da consciência moral.”5 É importante salientar que essa moral exigida pelas instituições políticas não se trata de uma moral da razão pura, mas sim de uma razão calculadora, uma racionalidade calculista, materialista e mecanicista em vista do progresso material e técnico. Ao refletir sobre as características da sociedade moderna, Weil constata que a sociedade moderna é calculista: toda decisão, toda transformação dos processos de trabalho, deve ser justificada demonstrando que o domínio do homem sobre a matéria é reforçado. A sociedade moderna é materialista porque em suas decisões só os fatores materiais são levados em consideração. Ela é mecanicista porque todo problema deve ser transformado em problema de método de trabalho e de organização. Um número significativo de cidadãos despreocupa-se com a ação política, contrariando a máxima weiliana segundo a qual todo cidadão é considerado um “governante em potencial”. Não tendo o cidadão uma participação ativa sobre os governantes, não haverá possibilidade para um revezamento que garanta aos cidadãos a certeza de serem sucessivamente governantes e governados. É através dessas condições que emerge a questão do tipo de educação que deve ser levada adiante. Trata-se de dizer que a educação, no modo de pensar de Weil, não poderá consistir simplesmente numa instrução que faça do indivíduo um cidadão passivo; vale dizer, um cidadão que não tem conhecimento de seus direitos e deveres para com o estado moderno. Para o autor, além da instrução, o cidadão deve receber uma educação que o leve à posição de “governante potencial”. A instrução nos conduziu a uma liberdade do fazer onde a violência tornou-se o retrato do sentimento geral de insatisfação e do aborrecimento nato da satisfação do interesse satisfeito, o que acarreta a violência como único e verdadeiro passatempo;
4 WEIL, Eric. Filosofia Política, p. 64. 5 Idem, p. 35.
mesmo nas sociedades mais avançadas do nosso tempo, ela (a violência) emerge como um mal crescente que se revolta contra o próprio sujeito. Violência essa que faz do homem um escravo de si, o ser humano sofre de si mesmo. Dessa forma, falta algo que esteja para além da instrução: a educação.
A Educação e o Estado
O Estado não é um órgão; mas a organização de uma comunidade enquanto tal. É nele que as discussões, conflitos de interesses são levados a exprimirem-se em linguagem racional e razoável, ou pelo menos pretendendo ser tal.
O Estado é o plano da decisão racional e razoável, embora um determinado Estado possa tomar más decisões, ou ser incapaz de tomá-las. Muitos Estados, e provavelmente todo o Estado em certos momentos, transformaram-se em instrumento de opressão6 . O Estado moderno é governado por pessoas que tem interesses particulares, entretanto se o Estado estiver somente a serviço desses interesses permitindo que certos grupos da população dominem os outros, consequentemente, a educação do cidadão será sempre um engano propositado. O Estado de direito, é capaz, na perspectiva de Eric Weil, através da democracia, de pôr fim a violência que ameaça internamente e externamente. No entanto para que isso seja possível, supõe-se uma educação do cidadão. Weil entende que o Estado, através da educação, tem a tarefa de humanizar por suas leis os homens, para que possam recusar o que é violento e contraditório. Esse fato supõe, então, que o Estado forme cidadãos ativos. Ao situar-se no plano da moral, o modo de pensar weiliano revela que a moral emerge como o ponto de partida da compreensão da ação educativa razoável. O princípio de universalidade das máximas morais acontece pela “decisão da vontade livre à liberdade da vontade, a autodeterminação do indivíduo e o respeito da humanidade nele como em todos os outros”. É a partir desse princípio que se dá a ação política no pensamento weiliano. Entretanto, faz-se necessário afirmar, ao mesmo tempo, que a moral formal, como ponto de partida, deverá ser superada por uma moral concreta. Assim, torna-se necessário dizer que ultrapassar o plano do formal e atingir o plano do concreto é a meta da ação educativa weiliana. Dessa forma, a educação deve inserir no indivíduo o objetivo de fazer com que tenha um papel social que vise seu reconhecimento e satisfação
6 WEIL, Eric. Filosofia Política, p. 175.
consigo mesmo e com os outros, um agir razoável na história. Por isso, a ação educativa só pode ser posta pelo indivíduo que se instalou no domínio da moral; posto que não existe educação separada da moral. A tarefa fundamental do homem moral é realizar o contentamento, isto é, a busca do bem, tarefa ao mesmo tempo moral e política. E tal objetivo se dá porque o homem pretende encontrar o sentido da liberdade. A liberdade e a razão do indivíduo se encontram nele mesmo. Na análise sobre a categoria da consciência, necessária à perspectiva de sua Filosofia Política, Weil considera que o fundamento do bem se encontra no mal. Sendo o homem situado (não escapa da civilização em que está inserido) ele negará o mal, mas para tirar dele o bem. Para a análise moral, não há eliminação do mal, mas apenas sua negação. O indivíduo situado tem como papel compreender a sociedade e transcendê-la, isto é, instaurar uma situação digna de seus anseios. Daí porque a lei que rege o mecanismo social deve ser melhorada, quando for contraditória. O direito positivo (legal) pode ser justo e injusto. Se prevalecer o lado injusto, só há duas saídas para o homem: melhorar via discurso, ou sacrificar sua existência humana. Mas a ação humana, numa tal sociedade, tem que ter em vista a sua libertação, o que exige que as leis positivas não contradigam a moral e, ao mesmo tempo, estas leis positivas devem estar submetidas à reflexão, isto é, aos limites das leis naturais. A moral dá origem à concepção de um direito universal, de um direito natural. O conteúdo da reflexão sobre o direito natural emerge através da comunidade viva, isto é, pela comunidade em sua existência histórica. Assim, em Weil, compreende-se o direito natural como autorreflexivo, porque se fundamenta na comunidade (reflexão do direito enquanto fundamentado na comunidade). A reflexão aqui acontece na própria moral vivida e subsiste no seu interior. A moral é autônoma, ao mesmo tempo contingente e transcendente, mas sem perder o sentido histórico. Em Weil, o homem moral (filósofo educador) tem como tarefa principal educar os homens para a lei universal. O objetivo é combater o mal (paixões, interesses particulares, violência do homem natural) e garantir o bem. A moral, neste sentido, é dialética, já que se apoia na sua negatividade. A situação de violência natural do homem exige sua libertação para poder se beneficiar das vantagens da lei universal, e isso supõe a educação do homem. Tal educação tem como objetivo a busca de uma atitude correta em relação aos outros na sociedade; não visa a virtude (como era no período pós-antigo da tradição ocidental), mas sim uma atitude de relação com os outros na sociedade. A educação pretende, então, controlar a violência (estado natural). Estando fundada na moral histórica se caracteriza por levar os homens a agir e decidir razoavelmente com consciência pelo universal (educação em função do social); a educação individual está em função do social; ela é o meio pelo
qual podemos dizer que o indivíduo não é pura violência. Trata-se de um paradoxo: a violência existe em contraposição à razão, mas a educação educa a violência, tornando-a razoável. Para Weil a filosofia começa com uma escolha, a vontade de compreender e justificar a própria vida racionalmente. Dessa escolha se destaca uma outra possibilidade, que se ignora como possibilidade; “a existência daquele que vive e que fala sem procurar justificar para si mesmo, e para os outros, seu modo de viver”. Neste ponto chegamos à ampliação do conceito de razão, sendo esta entendida como razoabilidade, ou seja, como discurso coerente. O homem não é nunca pra razão, ele nunca será mais que razoável. Assim, a razão se encerra dentre as possibilidades para o homem, não se constituindo um, para sempre, mas surgindo como uma das saídas da violência. Neste sentido o problema da escolha é posto como escolha razoável, pois a definição do homem por aquilo que ele deve ser, o seu desejo último, revela que o que se busca é o contentamento, ou o mesmo, o fim do descontentamento. A origem do discurso e da filosofia está no desejo e na negatividade primitiva, e estes não se inscrevem no reino das necessidades, mas das possibilidades. A razão e a linguagem são, então, uma possibilidade para o homem e para a filosofia que busca ensinar o homem a usar razoavelmente a razão. Para Weil a filosofia começa com uma escolha, a vontade de compreender e justificar a própria vida racionalmente. Dessa escolha se destaca uma outra possibilidade, que se ignora como possibilidade; “a existência daquele que vive e que fala sem procurar justificar para si mesmo, e para os outros, seu modo de viver”. Em suma, cabe afirmar que o Estado, no fundo, sabe perfeitamente que uma instrução fechada em si mesma não tem condição de formar homens livres no contentamento; mas percebe que precisa da mesma aliada à educação, ou seja, a técnica precisa está aliada a moral para que a educação possa ser efetivada de forma concreta, pois somente uma educação que se faz de forma razoável é capaz de mostrar ao homem a capacidade que todo ser humano tem de não experenciar a violência sob o aspecto de toda negação do sentido humano. Após esta breve exposição sobre a concepção de Weil, podemos perceber que o diálogo entre educação e instrução, bem como a compreensão de suas diferenças e suas relações em conjunto na sociedade, leva-nos a uma educação para a prática da liberdade razoável, que não consiste numa instrução técnica que leve o cidadão a ser somente passivo, governado; mas, a uma verdadeira educação que vem fornecer ao ser humano o seu status de cidadão, consciente de seus direitos e deveres perante a si mesmo e a sociedade.
União entre Educação e Instrução
Na atualidade vivemos uma situação de profunda crise no que tange à educação do cidadão para prática da liberdade razoável. Ao iniciar seu novo milênio solidificado por transformações tecnológicas e ideológicas, acha-se em uma crise de consciência, marcada por uma perda de sentido não só existencial, mas do que é comunitário. Para que tenhamos uma nova comunidade, faz-se necessário um novo indivíduo que venha a se constituir através da relação da moral com a educação. Como mostra Weil, se o ideal oitocentista da instrução como forma de assegurar a difusão universal dos saberes fundamentais continua a ser uma tarefa incontornável na construção do progresso intelectual, científico e técnico, necessário a satisfação das necessidades materiais que caracterizam as nossas sociedades modernas, a educação mantém o seu lugar diferenciado enquanto tentativa, mais negativa do que positiva, de permitir que cada um encontre um sentido para sua vida. Uma educação que não seria positiva, mas negativa, que não mostraria onde reside o sentido, mas onde ele não pode estar. Uma educação que obrigaria cada um a admitir a sua perplexidade, o seu tédio, o seu desespero – Não a confessá-los publicamente a uma autoridade ou a um especialista, mas a confessar a si mesmo que está a procura de qualquer coisa que não tem e que deseja mais do que tudo no mundo7 . Tal afirmativa não significa, porém, que ao contrário da valorização excessiva do conceito de educação a que assistimos hoje, valorização essa sempre feita em vista da instrução (ensino), possa-se sequer pensar que a educação a recobre inteiramente, ou é possível sem ela. Nas palavras de Weil: “Nada nas páginas precedentes deveria permitir pensar que a instrução é destituída de valor e que a educação é possível sem ela”.8 A questão é que, sendo ganha a batalha contra a supervalorização da instrução, é que o problema de uma educação para liberdade pode ser posto num primeiro plano. O ensino (ou instrução nas palavras de Weil) não é condição suficiente da formação dos humanos, mas se mostra de maneira incontornável como a sua condição necessária. Definir o ser humano por aquilo que ele deve ser significa, em última análise, defini-lo por aquilo que ele ainda não é. Positivamente falando, essa definição afirma apenas que o ser humano é perfectível. Considerada negativamente, ela destaca aquele traço essencial do ser humano para o qual
7 WEIL, Eric. A educação enquanto problema do nosso tempo, p. 67. 8 Ibidem, p. 67-68.
Hegel, mais do que outros filósofos, chamou a atenção, a saber, a negatividade. O homem é um animal, mas não é um animal como os outros porque, além das necessidades, ele tem desejos, isto é, necessidades que ele mesmo formou e que não lhe foram dadas pela natureza. É essa negatividade que impulsiona o agir humano para satisfazer não só as necessidades, mas também os desejos.
Referências Bibliográficas
Weil, Eric. Filosofia Política. São Paulo: Edições Loyola, 1990. ______. Logique de La Philosophie. Paris: Vrin, 1996. ______. Philosophie Morale . Paris: Vrin, 1992. ______. A Educação Enquanto Problema do Nosso Tempo. Lisboa: Relógio d’agua editores, 2000. ______. Essais sur la Nature, l’histoire et la Politique. Lille: Septentrion Presses Universitaires, 1999. ______. Essais sur la Philoshopie, la Democratie et l’education –Cahiers Éric Weil. Lille III: Université Charles-de-Gaulle, 1993.