A independencia do doce

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António Marques

A independência do doce Texto Margarida Reis | Fotografia Humberto Mouco

Nem sempre alvo da devida consideração e eternamente comparada com a cozinha, a pastelaria vê nos seus jovens profissionais hipótese de evolução e independência, a partir das bases do que é tradicional. É a convicção partilhada por Patrick Mignot, António Melgão e António Marques, três nomes ligados à actividade. Uma defesa da inovação na formação, o associativismo e o orgulho em ser pasteleiro como propulsores da mudança. MAGAZINE

Juntámos dois pasteleiros e um ex-cozinheiro ligado à pastelaria para que, em formato de tertúlia, falassem sobre a arte. Em cima da mesa estiveram os temas ‘Pastelaria tradicional e conventual’, ‘Industrialização dos processos’ e ‘Formação vs. realidade’, em busca de resposta para a pergunta fundamental: que futuro para a actividade? A abrir a discussão, questões que se ligam com as cada vez mais poderosas preocupações com a saúde. Devem as receitas tradicionais manter-se inalteradas, usando por exemplo a mesma quantidade de açúcar? Ou devem pelo contrário tornar-se mais adaptadas aos tempos de hoje em nome da boa forma física e do equilíbrio nutricional? Patrick Mignot, ex-cozinheiro e representante da Valrhona em Portugal, defende a manutenção do original: “Portugal

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Dossiê | Pastelaria

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tem a melhor pastelaria conventual da Europa. Pode-se talvez reduzir o tamanho. Os bolos não são para comer de cinco em cinco minutos; não é para se comer um quilo.” António Melgão, pasteleiro e responsável pela Capri, empresa de produtos alimentares, formação e comercialização de software para pastelaria, discorda. “Devemos adequar a pastelaria ao nosso tempo, preservando ao máximo a tradição. Podem fazer-se alterações na quantidade de açúcar ou ovos, por exemplo.” E continua: “Não quer dizer que se tenham de utilizar todos os novos produtos que existem, ou todas as novas tecnologias, mas com os mesmos produtos com que se fazia o tradicional, novas técnicas podem conduzir a produtos mais equilibrados.” António Marques, pasteleiro da Bica do Sapato e embaixador Callebaut, fala da sua experiência em particular. Na tentativa de chegar às receitas originais, tantas vezes recônditas, faz longas viagens para se encontrar numa quinta com uma caseira, de 86 anos, e com ela aprender a fazer desde os famosos Esses a pão de rala e charutos de chocolate – como se faziam antigamente. É o caso de um pasteleiro que está há poucos anos em Portugal e que quer agora ir às raízes da pastelaria tradicional e conventual, fazendo o levantamento de receitas junto de fontes fidedignas. Se a nível de pessoas de idade que ainda sabem de cor as receitas originais - ou as têm escritas à mão – as fontes são escassas, também em termos de literatura a informação se apresenta em poucos suportes. O livro da Maria de Lourdes Modesto é interessante, refere António Marques; mas mesmo assim, diz, “muitas não são de facto as primeiras receitas, as originais”. O pasteleiro é da opinião que se estão a “saltar etapas” quando se fala de modernizar as receitas. “Antes de tentarmos mudá-las temos de saber como é que elas se faziam antigamente.” Para António Melgão, “maior do que o perigo da mudança é o perigo da nãomudança”. “Por que é que a forma de fazer dos nossos avós é que seria a correcta e não esta forma, como nós fazemos? Por que é que nós não podemos evoluir? Hoje em dia alguém escreve um livro à mão? Os nossos avós escreviam, e hoje ninguém pensa nisso. Então por que é que não se fala da mesma forma?”. As perguntas sucedem-se. “Se tudo evoluiu, a pastelaria tradicional tem de evoluir também. Se não morre”, conjectura. Derivado da questão sobre que bolos constituem o receituário de pastelaria tipicamente portuguesa e da observação de Patrick Mignot de que “tudo são mixes”, o ex-cozinheiro culpou os nutricionistas. “Ninguém diz nada, é revoltante. Os mixes que se vendem nas pastelarias são todos feitos com gordura hidrogenada, que causa obesidade. Alguém fala de calorias na escola?”. A pergunta foi dirigida a António Marques, formador na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, que afirma que não. O problema, riposta António Melgão, passa não só pela formação mas também “pelo conceito de pastelaria que existe, em si. Em Portugal é para abrir hoje e amanhã dar lucro.” Usam-se assim ingredientes com menos qualidade e contratam-se profissionais com pouca formação. Comprar o produto totalmente finalizado é uma solução mais cara, mas pode revelar-se mais saudável. “Vê-se que hoje em dia existe da parte das empresas que vendem produto já adiantado ou feito, alguma preocupação em vender qualidade”, observa Melgão. São as exigências dos pasteleiros e a necessidade de vender que acabam por conferir a estes produtos características mais saudáveis.


Vinhos na Restauração | Perfil

António Melgão

O peso da industrialização

mais um ingrediente. O ‘mix’ tem, em bolos como o de arroz, a vantagem de normalmente os tornar mais leves. “A industrialização dos processos é fazer num dia produtos para a semana. É possível e viável”, afirma Melgão. Fazer e congelar começou a fazer sentido com o surgimento de salas de arrefecimento rápido, bons armários de frio negativo, máquinas de congelação e de descongelação. Fabricar – colocar no congelador – colocar no abatedor – voltar ao congelador – colocar na máquina de congelação – colocar na máquina que faz frio e quente é a “sequência de sucesso” descrita pelo pasteleiro. Melgão fala de poupança de tempo e de trabalho: “antigamente os pasteleiros de pastelaria levantavam-se às três horas da manhã para fazer massa, para fazer os cremes. Isso acabou.” António Marques completa: “Hoje temos de industrializar para poupar mão-de-obra, que está cara e escassa.”

MAGAZINE

A industrialização dos processos veio mudar a forma de trabalhar em pastelaria - se há uns anos atrás ainda se fazia manteiga, hoje até já se compram as natas batidas e o creme de ovos em balde. Se isso é positivo ou negativo? António Marques, por exemplo, não passa sem a massa folhada já feita (congelada), pois na Bica do Sapato não tem condições para a preparar. “Mas não há nada como sermos nós a fazê-la”, considera. António Melgão diz que essa é situação nos restaurantes, mas que em grandes pastelarias, onde são necessárias grandes quantidades do produto, a massa folhada tem de ser feita no local. Na sua pastelaria, fá-la à antiga, admitindo porém que a máquina ajuda. Os purés de fruta já preparados são produtos que os dois pasteleiros defendem, pela sua qualidade, rentabilidade e estabilidade. Vêem-no como

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Patrick Mignot

Oferta formativa: ajustar

este pasteleiro ela vai no bom caminho. “Está a mudar, para melhor.” Ainda assim, poucos são os alunos dos cursos de cozinha e produção alimentar que enveredam pela pastelaria. “Mas as pessoas que trabalham com um bom profissional ficam a gostar de pastelaria. Isso é de certeza”, garante António Melgão. António Marques gosta de, nas suas aulas, fazer com que os alunos se interessem por este mundo. “Eu gosto do que eu faço, de transmitir e que eles também fiquem a gostar. Quando dou formação sobre um tema para o qual tive de trabalhar horas e horas, através do qual também aprendi comigo próprio, consigo passar esse entusiasmo aos outros.” Tal estudo a fundo, para apresentação aos alunos, é modelo que vê pouco entre os professores/formadores. Só ultimamente se começou a desenvolver uma pastelaria com dimensão suficiente para o trabalho internacional. António Marques faz a sua parte, introduzindo técnicas mais complexas e investindo mesmo em material. “Dos planos gerais de formação arranjo tempo extra para transmitir algo mais aos alunos. Mas é algo que ninguém faz. Há muito por fazer.” Na assunção de que a “pastelaria nada tem a ver com a cozinha” (nas palavras de Patrick Mignot), por ser uma “ciência exacta” (diz Melgão), para os três profissionais é essencial separar-se as duas profissões e não fazer uma depender da outra. ! MAGAZINE

A evolução dos pasteleiros não tem sido muito evidente, e isso nota-se na tentativa de enumerar alguns chefes de pastelaria que tenham conseguido destacar-se. Poucos nomes surgem, sobretudo se compararmos com os que surgiriam se o objectivo fosse o de encontrar cozinheiros. “E estamos a falar de uma pastelaria que já está evoluída. Porque se formos falar de pastelaria de rua, então vocês não conhecem praticamente ninguém. Há um ou dois que estão lá em cima [norte]”, diz Melgão. O pasteleiro refere a falta de informação sobre o trabalho dos pasteleiros nas revistas de cozinha e meios de comunicação em geral como problemática. Mas atribui parte da culpa aos próprios profissionais: “Como é que a pastelaria pode evoluir se não há quem tenha orgulho em ser pasteleiro? Enquanto a pastelaria não for vista como uma profissão digna e os pasteleiros não se orgulhem de ser pasteleiros, a pastelaria não evolui.” Também António Marques sente a falta da pastelaria nas revistas. “Quero ver doces. Gostava que aparecesse aqui uma página que interessasse mesmo, que deixasse as pessoas curiosas e com interesse em relação à pastelaria”, comenta ao folhear a INTER. Quanto à formação, para

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