SÉRIE ESTAÇÃO CAPIXABA volume 11 ____________________
Copyright © Arlindo Villaschi PROJETO GRÁFICO E CAPA Maria Clara Medeiros Santos Neves IMAGEM DA CAPA Foto Samuel Zeller https://unsplash.com/photos/j0g8taxHZa0 EDITORES Maria Clara Medeiros Santos Neves Alfredo Andrade CATALOGAÇÃO Elizete Caser Rocha
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) V726c
Villaschi, Arlindo Caderneta de campo [recurso eletrônico] : mapeando possibilidades, coletânea de artigos / Arlindo Villaschi.— Vitória, ES : Estação Capixaba : Cândida, 2017. 1 recurso online (452 p.) : digital, PDF arquivos .-(Estação Capixaba; v.11). 1. Economia – Brasil. I. Título. II. Série. CDD 330
|2017| Estação Capixaba / Cândida Editora Vitória | ES www.estacaocapixaba.com.br
Agradeço
a Iacy Rampazzo, que se fez presente em todas as anotações da caderneta de campo; àquelas pessoas que, pelos mais diferentes meios, reagiram a cada publicação feita. Cada registro – concordante ou discordante – serviu de estímulo para a busca de alternativas; e a Maria Clara Medeiros Santos Neves, que hospedou a ideia da publicação e deu forma à caderneta.
Arlindo Villaschi: amor cívico em tempos de cólera política, por Rogério Studart, 13 Introdução, 23 Natal com fome, 33 Perdedores e culpados, 36 Novembro marrom, 38 Sem essa de omissão, 41 Tributados e tributáveis, 44 Microações, 47 Hora de mudar, 50 Possibilidades na crise, 53 Diversificação sustentável, 56 Sem paralisia, 59 Novas formas e conteúdos, 62 Inserções e tragédias, 65 Consumismo e gestão da casa, 68 Calça de veludo ou... 2017, 71 Pingos nos is 2, 74 Transição e reconciliação, 77 Instituições necessárias, 80 (Re)conciciliação, 83 O melhor para o Brasil, 86 Reconciliação necessária, 89
(Des)ordem, 92 (Re)formas, 95 Agenda necessária, 98 Formas e reformas, 101 Vamos combinar, 104 Novas parcerias, 107 Dose exagerada, 110 Remédio, 113 Distribuição, 116 Transição prolongada, 119 Conhecer e valorizar, 122 Amazônia azul, 125 Pobre dezembro, 128 Reformas, 131 Aritmética, 134 Vale!, 137 Velhos conteúdos, 140 Possibilidades municipais, 143 Pingo nos is, 146 Tempo eleitoral, 149 Nova agenda necessária, 152 ‘Ous’ equivocados, 157 Legado olímpico, 160 Eleições chegando, 163 Retrocesso na saúde e na educação, 166 Microações, 169
Lembrando Detinha, 172 Ajuste e legitimidade, 175 Avançar onde o País está na fronteira, 178 Avante SUS!, 181 Retardatário, 184 Transição com riscos, 187 Agenda positiva, 189 Por ações inovadoras, 192 Desafios ampliados, 195 Novos rumos, 198 Afeto e efetividade, 201 Lições do samba, 204 Emergências continuadas, 207 Começar de novo, 210 Esperançar, 213 Velhas e novas agendas, 216 Café e lama, 219 Gabinete de emergências, 222 Bons ventos, 225 Isto vale? 228 Boa sinalização, 231 Crescer com qualidade, 234 Mudando o rumo, 237 O que temos de melhor, 240 Crise institucional, 243 Construtor de pontes, 246
Simples sem ser fácil, 249 Igualdade e equidade, 252 O desafio das águas, 255 Crise continuada, 258 Aprendendo com a história, 261 Dois alertas importantes, 264 Sinais de futuro, 267 Atenção para a travessia, 270 Temos dever de casa, 273 Economia do cuidar, 276 A qualidade do ajuste, 279 Mudanças necessárias, 282 Trabalho e crescimento, 285 Oferta e demanda, 288 Política industrial, 291 O país está imobilizado, 294 Reformas necessárias, 297 Cartas de intenção, 300 Interagir e transformar, 303 A população envelhece, 306 Enfrentando a pobreza, 309 À frente do seu tempo, 312 Votos para Vitória, 315 Respira, Vitória!, 318 Mudar o foco, 321 Outros votos, 325
Importante e fundamental, 327 Preferência dos candidatos, 330 Política industrial, 333 Acomodação ou ousadia, 336 Mudança de direção, 339 Elos faltantes do Real, 342 Eduardo visionário, 345 A metrópole em debate, 348 É hora da colheita, 351 Aprendendo com o real, 354 Humor e economia, 357 Bola rolando, 360 Bem comum, 363 UFESessentona, 366 Desafios para a cidadania, 369 Economia em questão, 372 Tempos e movimentos, 375 Comprismo e consumo, 378 Doces ilusões, 381 O necessário debate sobre distribuição, 384 Porto de discussões profundas, 387 Combinou com o povo?, 390 Aritmética e política, 393 Tragédia anunciada, 396 Heranças 2013. Esperanças 2014, 399 Inversão de sinais, 402
Vantagens do atraso, 405 Instituições e suas limitações, 408 O desafio do cais, 411 Momento singular, 414 Encadeamentos produtivos, 417 Aprendendo com Roterdam, 420 Sobre o fim da escola, 423 A ver navios?, 426 Desenvolvimento – Debate necessário, 429 Calçadas e cidadania, 432 Qualidade de vida, 435 As ruas e os nós, 438 Trabalho, 441 (Cres)cimento ou (des)envolvimento, 444 Reexaminando espaços, 448
Rogério Studart 1
Foi com enorme orgulho e gratidão que recebi o convite de escrever o prefácio desta coletânea de artigos do professor Arlindo Villaschi. Já havia lido quase todos os artigos, mas relê-los me deu a certeza de que eles representam uma extraordinária reflexão sobre a nação e a sociedade brasileira em um momento absolutamente delicado e crítico. Trata-se também de um alerta para os perigos de não enfrentá-lo com tenacidade e amor cívico. Para entender a gravidade da crise atual e a relevância do alerta que nos faz o professor Villaschi, me atrevo a fazer um “voo de pássaro” sobre a trajetória que a nação vinha seguindo após a redemocratização. Rogério Studart é professor e economista e foi, junto com Arlindo Villaschi, representante orgulhoso do Brasil e Suriname no Banco Interamericano de Desenvolvimento entre 2004 e 2007. 1
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Comecemos com os anos 80. Saímos de mais de quinze anos de regime militar com uma herança pesada e, em muitos sentidos, trágica. Além de suprimir direitos individuais e humanos com diversos tons de brutalidade, o regime militar impôs, para utilizar a expressão do clássico livro dos professores Antônio Barros de Castro e Francisco Eduardo de Souza, uma trajetória de “marcha forçada” de conclusão do processo de industrialização iniciado nos democráticos anos 60. Como herança, o regime militar nos deixou um parque industrial mais completo e integrado. Mas também herdamos uma dívida financeira externa insustentável e, o mais trágico, um “enorme déficit social e humano”, fruto da desconsideração da desigualdade na distribuição da renda e da riqueza do país – um verdadeiro gargalo moral e econômico ao futuro da nação. Grande, desigual e desumana, a nação adentra a década perdida dos 80 “mais aos barrancos do que aos trancos”. E vê, estarrecida, o projeto do “Brasil grande” terminar em uma economia estagnada, com inflação galopante, um tecido social esgarçado e marcado por violências de todo o tipo. Não surpreende que neste período se criou o mito do “país do futuro que nunca lá chega”. Por outro lado, já no final da década, uma
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nova constituição cidadã (de 1988) prometia o restabelecimento (e em muitos casos da fundação) dos direitos individuais e coletivos, e das instituições sociais e econômicas. Estes preceitos, esperávamos, se tornariam o pilar de um novo Brasil democrático, de uma economia de mercado e de uma nova trajetória de desenvolvimento inclusivo e sustentável. A redemocratização do início dos anos 90 começou com as dolorosas perdas do primeiro presidente civil (Tancredo Neves), um dos líderes da resistência pacífica à ditadura. Depois de mais um trauma com o impeachment, em dezembro de 1992, do primeiro presidente eleito (Collor de Mello), e a posse de Itamar Franco, a estabilidade econômica foi alcançada com um plano brilhante do primeiro governo civil. Nestes anos também se consolidaram princípios de administração macroeconômica e pública foram restabelecidos. Com o presidente FHC, o segundo presidente democraticamente eleito, avançamos o século XXI com uma forte esperança de que pudéssemos por fim cumprir o nosso compromisso, assumido na redemocratização, com uma nação mais próspera para todos, orgulhosa do seu projeto de sociedade, e com a voz e representação nas grandes decisões globais.
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Foi, entretanto, no governo do terceiro presidente democraticamente eleito, o Presidente Lula, que, entre “trancos e barrancos”, a nação viu avanços significativos no sentido da inclusão econômica e social. Também se consolidou o consenso, incluindo grande parte da população, de que o desenvolvimento inclusivo, sustentável e humanista seria a opção seguida pela nação brasileira. Os que tiveram a honra e o prazer de representar o Brasil nos debates internacionais, como foi o caso do professor Villaschi e meu, sabem que também esta trajetória brasileira passou a ser admirada e referência como modelo de desenvolvimento. Nestas duas décadas de consolidação de avanços institucionais e conquistas sociais não faltaram contradições. Por exemplo, as lideranças nacionais do país redemocratizado assumiram que a governabilidade exigiria crescentes concessões, inclusive, e lamentavelmente, no plano da ética. Estas “concessões” terminaram ainda por contaminar uma parte significativa do jogo político, transformando o “toma-lá-dá-cá” e a corrupção parte constitutiva do jogo político. No plano econômico, o custo da estabilidade foi um tripé de política – caracterizado por estruturas de dívidas públicas e privadas com prazos muito curtos e juros muito elevados – desfavorável ao investimento, à inovação e 16
ao empreendedorismo, pilares necessários para dar vigor e fôlego a qualquer economia. Pior ainda: um regime que se tornava cada vez mais aprisionado à lógica financista, em que a cada choque – externo ou interno – se utilizava dos juros como única variável de ajuste, mantendo o país na liderança do ranking do custo de capital e do pagamento de juros sobre dívidas pública e privada. No plano social, por um lado houve a ampliação dos programas de inclusão – como o Bolsa-Família –, a devida valorização da remuneração do trabalho, e melhorias da proteção social. Tudo isto avançou também no governo da quarta presidente civil do Brasil democratizado, Dilma Rousseff, e contribuiu para uma significativa redução da pobreza e da desigualdade, mesmo num contexto de baixo investimento e crescimento. Por outro lado, com a expansão de novas cadeias de produção e agressiva ascensão de economias exportadoras, como no caso da asiática, pudemos aproveitar anos de crescimento de exportações de commodities agrícolas e acumular reservas internacionais que davam espaço para um crescimento socialmente mais inclusivo.
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As contradições só foram se ampliando ao se aproximar a segunda década deste século. A falta de dinamismo do investimento privado, o pouco avanço do investimento público, e os baixos investimentos em gente (para não usar a expressão “capital humano”, de que pessoalmente não gosto), geraram, como citamos, uma economia pouco produtiva e pouco competitiva, cada vez mais exposta aos ciclos globais – por azar cada vez mais erráticos. No plano social, os avanços foram importantes, mas seria preciso muito mais para chegarmos próximo ao conceito de justiça social e oportunidades para o qual nos determinamos na constituição de 1988. Por fim, a crise de 2008-9 expôs todas estas contradições de forma abrupta e cruel, iniciando uma série de respostas econômicas e políticas que somente agravaram as contradições – inclusive as políticas e éticas –, fragilizando mais a economia e a governabilidade. A partir de 2012 entramos em período de descenso econômico e ebulição social e política, e começamos a perder o rumo. Passamos a navegar à deriva nas cada vez mais turbulentas ondas internacionais. Os artigos da coletânea do professor Villaschi cobrem o fim do período mais dramático desta trajetória de enormes contradições. No segundo mandato da 18
Presidente Dilma, em 2015, mais especialmente a partir do seu impeachment em dezembro do mesmo ano, brasileiros e o resto do mundo observamos atônitos não só a interrupção, como também o retrocesso social e econômico. Como presságio do que viria após o impeachment, a tragédia de Mariana em novembro de 2015 – tema que é recorrente nos artigos do professor Villaschi – e o rio marrom que termina por destruir vidas, cidades e ecossistemas. O descaso com as consequências somente anuncia como o país passaria a tratar os temas mais centrais ao futuro da nação. No plano nacional e estadual, assistimos à crescente subordinação da cidadania ao imperativo do ajuste desorganizado e socialmente deletério de efeito imediato (desemprego e miséria) e possíveis efeitos de longo prazo. Mas, mais que isto, vimos o rompimento de muitas outras represas que garantiam a civilidade do debate, a respeitabilidade das instituições e mesmo os direitos adquiridos. Assistimos, em suma, estarrecidos, o desmonte de todos os conceitos construídos com muita luta e aprendizado a partir da redemocratização do país. Práticas e preconceitos, no jogo social e político, que pensávamos estar no nosso passado, voltaram como uma fênix macabra a abertamente ressurgir das cinzas. E nos últimos meses vemos, também atônitos, 19
o esfacelamento de consensos políticos em torno do modelo social e de desenvolvimento, da ética individual e coletiva e dos sonhos e projetos de sociedade. Trata-se, sem exagero, do momento mais delicado desde o fim da triste fase autoritária que caducou nos anos 80. Num contexto tão dramático, é fácil ceder a posicionamentos polarizados e ao rancor que divide. Muito mais difícil e excepcional é, frente à violência e às profundas incertezas, procurar, com clareza de mente e leveza de espírito, oferecer uma luz que procure, simultaneamente, unir, resistir à desconstrução e projetar uma visão para o Brasil que a grande maioria de nós, em qualquer parte do espectro, queremos. Podemos, sim, superar a crise, e para isto precisamos retomar a nossa humanidade, e voltar a pensar no projeto que faça os indivíduos avançarem juntos e em harmonia, com o avanço de toda a comunidade. Ou podemos sofrer, como indivíduos e coletividade, mais algumas décadas perdidas. Este é o alerta e o conselho que permeiam quase todos os artigos desta coletânea. Ela também representa uma postura frente à crise: uma aposta na possibilidade de recobrarmos a “humanidade” e o “humanismo” no difícil debate de ideias, no convívio social e no jogo democrático. Este é o presente que nos oferece 20
o professor Arlindo Villaschi, ao refletir – entre entristecido, irado e esperançoso – sobre temas absolutamente críticos para o futuro da nação, seja nos âmbitos global, nacional ou do seu querido Espírito Santo. Sugiro ao leitor que a coletânea seja deliciada pelo menos duas vezes: uma para desfrutar da reflexão precisa e generosa de cada tema, uma segunda já entendendo a mensagem de construção e esperança que o conjunto traz. Quem o fizer entenderá que, como ressalto no título desta introdução: esta coletânea representa uma profunda demonstração de amor cívico em tempos de cólera política. Obrigado, meu querido Arlindo.
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Caderneta de campo é instrumento de quem gosta de anotar ideias e observações que pretende desenvolver sob diversas formas no futuro. A utilizada para os escritos que seguem tem formas e conteúdos variados; às vezes anotei em um ‘note’ do celular; outras, em um rabisco em nota fiscal de alguma compra. O que têm em comum é a busca de mapear possibilidades. Possibilidades que se apresentam em pensamentos que surgem ao se caminhar; na observação despretensiosa pela janela do ônibus; numa conversa amena sobre tema diverso; em uma pergunta feita por pessoas com quem interajo mais ou menos frequentemente. O mapear tem referências. Referências que ajudam no colocar-me no mundo. Colocar-me no mundo com os vieses que se constroem seja pela busca do conhecimento sistematizado em áreas de minha atuação mais imediata – economia e educação; seja pela valorização do saber tácito que as pessoas trazem consigo. 23
Na economia, busca vê-la com olhos distintos dos apologistas do mercado enquanto altar supremo das relações sociais envolvidas na produção, na circulação e na distribuição de bens, serviços e conhecimento. O viés apologético do mercado enquanto altar valoriza a economia enquanto ciência da escassez. Entendida como ‘ciência da escassez’, o estudo da economia empobrece o debate. A ideologia por trás da escassez implica imposição de restrições a gastos voltados para quem tem menor poder de negociação ou de pressão política. Poder de negociação e de pressão política que faltou aos beneficiados pela universalização de serviços como saúde, educação e assistência social. Por serem difusos e espalhados pelo território, os beneficiados pelo direito universal a serviços essenciais perderam o estabelecido na Constituição de 1988 por argumentos da pós-verdade. Em nome de um falso equilíbrio fiscal, foram congelados gastos por vinte anos; congelamento que tira futuro dos recém-incluídos no acesso à saúde, educação e outros serviços essenciais. Se, de forma oposta ao viés da escassez, a economia for entendida como o estudo do progresso e da forma como ele é distribuído, o debate que se faz necessário
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sobre ela ganha contornos de maior legitimidade. Debate que pode e deve explicitar os que mais contribuem para o progresso e que participação têm na distribuição de seus frutos. Distribuição que precisa aquinhoar de forma distinta aquela que produz mais de 2/3 dos alimentos consumidos pelos brasileiros – a agricultura familiar. Diante dos postos de trabalho e da distribuição de renda que gera, a agricultura familiar deveria ter maior destaque no acesso a crédito, financiamento, assistência técnica. Crédito, financiamento, assistência técnica e outros benefícios mais facilmente acessíveis pelo agronegócio. Distribuição dos frutos do progresso que precisa contemplar de forma diferente as empresas de micro, pequeno e médio (MPM) portes espalhadas por todo território nacional. Geridas por quem mora no País, as MPMEs têm acesso a financiamento, crédito, incentivos etc. desproporcionalmente menor do que os chamados grandes empreendimentos. A visibilidade das maiores empresas e o poder de defender seus interesses as tornam beneficiadas maiores de toda sorte de incentivos e de regalias, muitas vezes em detrimento do interesse coletivo, como no caso de questões ambientais. 25
Para que seja mais justa a distribuição dos frutos do progresso, há que se explicitar o quanto dele é apropriado pelo capital especulativo que gira em torno do mercado financeiro, e quanto vai para o setor produtivo, composto por toda uma gama de micro, pequenas, médias e grandes empresas. Explicitação que certamente lançará outras luzes sobre o ideologizado debate centrado na escassez. Outras luzes necessárias para o melhor entendimento de mudanças pelas quais passa boa parte do mundo. Enquanto processo histórico, a crise política e econômica pela qual passa o mundo é mais antiga do que 2008, 2001, 1997 e outros anos em que ocorreram choques no funcionamento da ordem acordada entre vencedores no pós-Segunda Guerra. O choque do petróleo em 1973 foi um teste para a institucionalidade acordada em Bretton Woods com o objetivo de evitar equívocos que levaram a duas guerras mundiais em menos de quarenta anos. O primeiro aumento abrupto do preço do petróleo abriu uma possibilidade para se pensar a economia para além do que queria a ortodoxia acadêmica e instituições – como o Banco Mundial e o FMI – representativas dos países dominantes.
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Uma dessas possibilidades foi levantada por E. F. Schumacher em ensaios publicados no seu livro de 1973. A tradução para o português peca em seu título – O negócio é ser pequeno. O original em inglês, além de se contrapor ao dominante ‘quanto maior melhor’ com Small is beautiful, aponta para seu objetivo de propor uma economia onde as pessoas sejam para ela importantes. A crise do petróleo motivou Schumacher a uma crítica, por um lado, à forma como a economia era estudada pela ortodoxia. Por outro, às consequências negativas que a emergente globalização poderia ter para as pessoas mundo afora. Defendeu suficiência como uma filosofia que valorizasse as necessidades e as limitações humanas. Inspirou-se na sabedoria oriental para propor uma evolução voltada para um sistema industrial mais digno. Dignidade que seria consubstanciada pelo uso de máquinas e equipamentos de forma a privilegiar quem com eles trabalha e quem utiliza os bens e serviços produzidos. Dignidade a ser alcançada pelo melhor uso dos frutos da ingenuidade humana e de seus esforços. Ingenuidade a ser valorizada para além da remuneração
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ao trabalhador quando incorporado ao processo produtivo. Incorporação do trabalhador ao processo produtivo que precisa contemplar a aspiração do humano pelo exercício de atividades produtivas que deem vazão à sua necessidade de ser socialmente útil. Passados mais de quarenta anos desde as críticas feitas por Schumacher e as propostas por ele feitas para novos olhares sobre a economia, suas contribuições ainda estão por ser analisadas. Analisadas criticamente para que possam instrumentalizar políticas de desenvolvimento. Políticas de desenvolvimento que precisam aprender com os erros passados e a ousar cometer novos erros. Aprendizagem e ousadia que precisam também permear enfrentamento dos desafios da educação. Unanimidade quanto à sua prioridade, a educação como apresentada para a maioria das pessoas está crescentemente deslegitimada. Deslegitimada quanto ao fim que se propõe – preparar para o mundo do trabalho. Deslegitimada pelos instrumentos que continua utilizando majoritariamente – o ensino em sala de aula, seguindo grades curriculares e submetido a calendários rígidos.
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A crítica ao sistema de educação que continua em vigor – é bom lembrar que ele foi pensado para responder às demandas de uma industrialização nascente no século XVIII – é antiga. Crítica que aumenta cada vez mais na medida em que seus principais meios estão na contramão das possibilidades abertas pelas tecnologias da informação e das comunicações (TICs). Antes mesmo das TICs estarem desenvolvidas e difundidas como na atualidade, o austríaco Ivan Illich propôs uma crítica à instituição educação e às organizações que a ela dão sustentação. À institucionalidade existente no início dos anos 1970 contrapropôs busca de novos canais educativos. Canais que buscassem a formação de redes de aprendizagem que aumentassem a oportunidade de cada um transformar cada momento da sua vida num outro. Em momentos de aprendizagem, de partilha e de interesse. Momentos pouco vivenciados na escola com características de ser, segundo Illich, “a igreja universal da nossa decadente cultura ... (onde) seus fiéis são inúmeros, sendo um mercado promissor”. Mercado promissor já que o ritual escolar é trabalhado para que a escolarização seja um processo sem fim.
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Por caminhos diferentes, nem sempre convergentes, Illich trilhava com Paulo Freire a crítica a mitos dominantes na educação que servem para esconder condicionamentos históricos. Mito como o do conhecimento enquanto posse de alguém ou determinado grupo social – criticado por Freire. Mito como o do conhecimento enquanto monopólio das instituições da educação – objeto de Illich. Em tempos de mercantilização do ensino e da crença arraigada na educação como algo voltado para atender demandas do mercado, Illich e Freire podem servir de inspiração para aqueles que questionam os modernos sistemas educacionais. Sistemas educacionais que contribuem para a continuidade da condição de opressão dos seres humanos. Opressão inaceitável ética e economicamente diante do progresso material atualmente disponível. Disponibilidade que precisa ser melhor distribuída como forma de sustentabilidade do ser humano. Recusa de aceitar todo e qualquer tipo de opressão como ‘sempre foi assim’ que caracteriza o mapeamento de possibilidades que sob diversas formas caracterizam os escritos a seguir. Redigidos a convite de A Gazeta, da Revista da Arquidiocese de Vitória e de ES Brasil e aqui publicados em ordem cronológica, a partir do 30
mais recente, são artigos que podem ser lidos em qualquer ordem e desordem. Marcados quanto às datas de publicação, os artigos nem sempre estão datados quanto ao tema que tratam. Artigos que buscam retirar quem os lê das zonas de conforto construídas pelo noticiário da grande imprensa. Zonas de conforto que favorecem a ideologia da classe dominante – constituída por tão poucos em alguns lugares privilegiados – em detrimento dos interesses da maioria espalhados por vizinhanças próximas ou distantes de todos nós. Zonas de conforto que embrutecem as pessoas no trato com seus semelhantes e com os demais seres viventes. Embrutecimento que leva à indiferença diante de catástrofes anunciadas, como as das ameaças provocadas pelo crescente potencial bélico – fortemente concentrado nos Estados Unidos; pela exploração frenética de recursos naturais; por mudanças climáticas que afetarão mais os menos favorecidos. Ameaças, concentração, exploração e mudanças que precisam ser contestadas. Se está difícil contestar por processos que levem a alterações estruturais na forma e no conteúdo da ação de instituições públicas e
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privadas, que a contestação seja por microações por parte de pessoas e pequenos grupos. Tomara que a microação desta publicação motive o prosseguimento de outras que estão por muitos lugares e, quem sabe, enseje que outras surjam na direção de um outro mundo possível.
O autor.
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A celebração maior dos cristãos será feita neste ano de 2017 no Brasil com a triste sensação de empobrecimento social. Empobrecimento provocado por um governo ilegítimo apoiado por um congresso igualmente ilegítimo que promoveram retrocessos sociais, políticos e econômicos no País. Retrocessos que colaboram para um Natal com fome. Fome de inclusão social, que fica cada vez mais distante diante dos retrocessos promovidos pela emenda constitucional do teto dos gastos. Junto com o congelamento de despesas por vinte anos em áreas de importância como saúde, educação, assistência social, dentre outras, a emenda constitucional estanca um processo de inclusão conquistado no processo de elaboração da Carta Constitucional de 1988. Conquista feita graças à forte mobilização popular em favor de direitos sociais compatíveis com o patamar econômico alcançado pelo Brasil. 2
Revista Vitória, dezembro 2017. 33
Direitos sociais que foram retirados em favor de interesses de uma minoria cujos rendimentos financeiros são mais do que assegurados. Interesses de uma minoria em detrimento de programas de inclusão como o Bolsa Família e a universalização do acesso a serviços de saúde. E mais, em detrimento do combate à pobreza entre gerações através de acesso ampliado dos mais pobres ao sistema educacional, inclusive em nível dos ensinos técnico e universitário. Natal com fome de justiça social, que se torna mais distante na medida em que foram retirados direitos conquistados pelos trabalhadores ao longo de boa parte do século XX. Direitos que, mesmo diante de salários baixos, asseguravam um mínimo de garantias à força de trabalho que constrói o crescimento do Brasil no dia-a-dia. Garantias que se transformavam em rendimentos que impulsionavam a demanda por bens e serviços produzidos por micro, pequenas e médias empresas, que empregam o maior contingente de trabalhadores. Empregos que impulsionavam o círculo virtuoso do crescimento. Crescimento cada vez mais distante diante do dogmatismo da política econômica do governo ilegítimo que prega uma liberdade de mercado que só favorece à classe dominante. Classe dominante que continua se 34
beneficiando de anistias fiscais, refinanciamento de tributos devidos, acesso privilegiado a gastos do governo, dentre outros. Classe dominante privilegiada por um sistema tributário regressivo; que desconhece mecanismos de equidade fiscal como o do imposto sobre grandes fortunas, há muito praticado em países mais desenvolvidos. Natal com fome após mais de uma década de retirada todos os anos de milhões de brasileiros da linha de miséria e de pobreza; Natal com fome porque neste 2017 que se finda milhares de compatriotas retornaram à pobreza e à miséria. Retorno que exige do espírito cristão a compaixão; compaixão que precisa ir além da filantropia que move a todos no momento das celebrações natalinas. Compaixão para com a pobreza na direção indicada pelo Papa Francisco ao instituir o Dia Mundial dos Pobres: “Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade”.
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Fonte: Revista ES Brasil.
Arlindo Villaschi Filho é capixaba de São Gabriel da Palha, pai de Aline, Angelo, André e Augusto, avô de Lily, Gabriel, Daniel e Michael. Tem-se dedicado à pesquisa e ao ensino de Economia, Inovação e Desenvolvimento com ênfase em questões do Espírito Santo. É pesquisador associado da RedeSist. Ocupou a Cadeira Rui Barbosa como professor visitante da Universidade de Leiden, Holanda (2016 e 2017). Pesquisador convidado do ETLA – Instituto de Pesquisa da Economia Finlandesa, Helsinque (2001/2002); e do IIITB – Instituto Indiano de Tecnologia da Informação – 451
Bangalore, Índia (março a maio de 2004 / janeiro a maio de 2009). Ph.D. em Economia pela University of London, Birkbeck College, Inglaterra (1992); mestre em Economia pela University of California, Santa Bárbara, Estados Unidos (1972); especialista em Problemas do Desenvolvimento Econômico pela CEPAL/ILPES (1969); e bacharel em Economia pela UFES (1969). Foi também Técnico em Desenvolvimento do Bandes, Diretor Técnico da Fundação Jones dos Santos Neves, Secretário de Estado do Planejamento e consultor em Economia em diversas organizações públicas e privadas. Entre setembro de 2004 e setembro de 2007, foi Diretor Executivo Alterno pelo Brasil e Suriname junto ao BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento, Washington, DC, Estados Unidos. Publicou três livros sobre economia capixaba e um sobre o Brasil e a mudança de paradigma técnico-econômico. É autor e coautor de vários capítulos de livros sobre inovação e desenvolvimento.
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