Luiz Guilherme Santos Neves
ESCRIVÃO DA FROTA
edição digital
ESCRIVÃO DA FROTA
SÉRIE ESTAÇÃO CAPIXABA volume 7 ___________________________
Luiz Guilherme Santos Neves
ESCRIVÃO DA FROTA
edição digital
Estação Capixaba | Cândida Editora Vitória | 2017
editores Maria Clara Medeiros Santos Neves Alfredo Andrade projeto gráfico e editoração (baseados na edição impressa de 1997) Joca Simonetti adaptação do projeto gráfico Maria Clara Medeiros Santos Neves ilustrações Open Clipart - https://pixabay.com revisão com atualização ortográfica Reinaldo Santos Neves Catalogação Elizete Caser Rocha
2017 | Estação Capixaba Vitória | ES | www.estacaocpixaba.com.br
Sumário
Apresentaçãozinha Velas ao vento Ad Aetemitatem Plat Noite Inglória Senhor Nosso Mestre Visão Matinal Trianon: um Souvenir Je Vous Salue Maria No Tempo das Diligências Manjubas e Quitungos O \1enino e a Guerra Zepelim O Signo na Pedra Lisboa Oficina Li terá ria Dores Uma, Dores Duas, Dores Dez A Cidade Invisível Dança Ritual do Fogo
As Cinzas das Horas Memória Sob Medida À Sombra das Brancas Nuvens de Maio Balanço ao Embalo do Mavé-dici Vilão Farto do Capitão dos Sonhos A Duras Pedras A Foto da Capa Meu Nome Não É Arthur Gordon Pym Torrão Natal Blue Moon e Lobisomem Crônica em Que se Fala de Atravessadores Desolações e Alabamas O Coração da Matéria O Pássaro Nupcial No Alto Pongal Ao Passar da Barca Os Olhos de Marianita As Chamas do Padre-Poeta
Apresentaçãozinha
Entre as importantes contribuições que a revista Você, da UFES, de saudosa memória, deu à literatura local nos anos 90 está a invenção de dois grandes cronistas capixabas: Ivan Borgo e Luiz Guilherme Santos Neves. (Reinvenção talvez seja a palavra mais conveniente no caso de Ivan, que já ensaiara como cronista na velha Vida Capichaba dos anos 50.) Há poucas semelhanças entre os dois cronistas e grandes diferenças. A primeira semelhança está em que ambos escolheram escrever sob pseudônimo: Roberto Mazzini e Luís de Almeida; a segunda, na abordagem lá uma vez ou outra de temas comuns: Lisboa, o cinema Trianon, a guerra mundial, por exemplo; e a terceira, no fato de que ambos mais tarde reuniram em livro as crônicas em primeira mão publicadas na Você. A grande diferença está no espaço geográfico em que 7
desenvolvem as crônicas: o de Mazzini é o planeta inteiro, desde as montanhas italianas do Espírito Santo até Europa, Japão, Londres, Nova York e a própria Itália de origem; o de Luís de Almeida é estritamente o rincão espírito-santense e estamos conversados, própria Itália de origem; o de Luís de Almeida é estritamente o rincão espírito-santense e estamos conversados. Não tratarei aqui de Mazzini, porque já o fiz na própria revista Você e porque é o livro de Luiz Guilherme que estou apresentando, fraterno suspeito que sou. Luiz Guilherme herdou do pai, o assim chamado (e bem chamado) Mestre Guilherme, um enorme amor pelas coisas do Espírito Santo. Fernando Achiamé já teve ocasião, escrevendo sobre o folclorista Mestre Guilherme, de tratar desse amor filial pela pátria natal, não a pátria nacional, distante e fria, e até madrasta, mas a estadual, a provinciana, a capitaniense, enfim, a do coração, cabeça e estômago. Trata-se realmente de um enorme amor, esse que partilharam pai e filho, e que se derrama todo sobre um pequeno território, de pouca expressão histórica e literária, um corredor à beira-mar que liga Rio à Bahia – o estado patinho feio da federação brasileira. 8
Mas foi aqui que ambos nasceram, daí por que tudo que há aqui e que está aqui agrega um inestimável valor especial. E se vale esse valor quando aplicado àquilo que, sendo embora brasileiro, é também capixaba, imagine-se o valor daquilo que é capixaba sem ser brasileiro: a puxada do mastro, por exemplo. Embora as crônicas deste livro tenham como unidade temática o Espírito Santo, algumas diferenças são visíveis entre elas. A principal diferença está ligada ao tempo em que se ambientam: passado e presente. O passado tem marcada preferência. Luís de Almeida é um nostálgico, um passadista de carteirinha (sem, porém, pieguice). Daí por que o cronista nos leva, em sua máquina do tempo, a décadas risonhas e francas como as de 30, 40 e 50. O passado a que nos remete o cronista passa pelos velhos cinemas, pela visita de Câmara Cascudo a Vitória, pela velha prostituta em seu final de vida, pelas cantigas de roda, pelas catraias da baía de Vitória etc. Do mesmo passado falam duas crônicas de caráter antropológico: “Manjubas e quitungos”, sobre a pesca em Manguinhos, e “A duras pedras”, em que o cronista descreve vivamente e passo a passo o processo de calçar as ruas com paralelepípedos. Tudo isso Luís de Almeida recorda e registra na condição 9
de cronista da memória. Já as crônicas do presente (no caso, os anos 90) tratam preferencialmente de questões ligadas ao ofício de escritor – é o que vemos em “Oficina literária” e “Meu nome não é Arthur Gordon Pym” e, por um viés metalingüístico, “À sombra das brancas nuvens de maio”, “Crônica em que se fala de atravessadores, desolações e alabamas” e “Balanço ao embalo do mavé-dici”. Nesta última Luís de Almeida faz (como o título indica) um balanço de sua temporada à frente da coluna Escrivão da frota, ao qual acrescenta uma síntese do conteúdo de todas as crônicas publicadas até ali. E essa síntese, embora ele não saiba nem vai gostar de saber, ele a faz na linha do que Gérard Genette, em seus Palimpsestos, denominou resumo autoral ou auto-condensação. Outro ponto a ser destacado é que estas crô-nicas, sobretudo a que tem por título “A cidade invisível”, compõem uma mitologia espírito-santense (e, em especial, vitoriense) e, como tal, anunciam o que ele fez mais tarde em seu Cidadilha. Mas o conceito mesmo que inspira toda a coletânea está formulado em “Torrão natal”. Essa crônica, composta no tom irônico que é uma das marcas do estilo do autor, foi escrita e deve ser lida como um verdadeiro 10
poema de amor às coisas do Espírito Santo – e é pena que Mestre Guilherme não tenha podido lê-la. Por fim, Escrivão da frota é livro em que, em várias crônicas, passeia o personagem que Luiz Guilherme chama de “meu amigo de muitas pesquisas históricas” – mas também o cita pelo nome: Rena-to Pacheco. Para quem conheceu e conviveu com o “capixaba tranqüilo”, é um prazer topar aqui de novo com ele e seu vozeirão.
Reinaldo Santos Neves
[Nota: A pedido do autor da apresentação, foi aqui respeitada a ortografia pré-acordo.]
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Velas ao Vento
De maio de 92 a junho de 95 exerci, nas páginas da revista Vocé, as funções de escrivão da frota, na coluna que dá título a este livro, e que me foi aberta pelos editores Joca Simonetti e Reinaldo Santos Neves. Agora, o mui nobre e distinto Miguel Depes Tallon, presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, mandou-me recado, como ordem reat para que ajuntasse o que escrevi na escrivaninha de bordo e publicasse em livro. Como a convite dessa envergadura não se há de obstar recusa, sob pena de comprometer amizade de algumas décadas - rendi-me à convocação que me foi feita e irmano-me aos demais autores, também "clarinetados" pela generosidade do Miguel
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para participar da verdadeira tertúlia editorial que o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo promove neste final de 1997, "ainda que, para o bem contar e falar, o saiba pior que todos", como ressalvou mestre Vaz de Caminha. As crônicas que aqui estão seguem a mesma ordem com que apareceram em Você, escritas sob o pseudônimo de Luís de Almeida, homenagem ao sobrenome de meu avô matemo. Como a oportunidade não era de jogar fora, acresci-lhes, n? final do livro, dois outros textos, que, não acobertados pelo pseudônimo, saíram na Você de junho de 1993 ( Os Olhos de Marianita ) e de agosto de 1993 ( As Chamas do Padre-Poeta). Meu tempo de escrivão da frota aí está, exposto com essas duas marolas de acréscimo, antes que me desse por desembarcado em Calecute.
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Ad Aeternitatem Plat
Na livraria A
Edição o lançamento de
Você. Lançamento libado a vinho branco que Luiz Borges (sempre ele, bem-vindo sois), serve academicamente. Há alegria nas faces, risos, o ronronar da amizade. É também a derradeira noite de junho, temperada e suave, propícia para um sax com vibrações estelares, um vernissage de penumbras e veludos, um grandiloquente ato de amor. Pela manhã o dia começara amorável e premonitório . Da Terra olhares foscos flagraram o acasalamento da Lua, amante oferecida, com o Astro Rei, circunspecto e senhoril. Jaci e Guaraci, os deuses indígenas da minha infância, voltarão a repetir nupci-
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as daqui a setenta anos, dizem os entendi dos em astronomia. Mas que são setenta anos para os astros? Reúno-me aos irmãos Ivan e Ivantir Borgo e a Chico Grijó para mergulharmos no êxtase da saudade. - Chico, e aquele pênalti perdido pelo Marmorato? O pênalti, que daria aos capixabas o em pate com a seleção mineira, foi o nosso Bra sil-Uruguai de 50. Marmo rat o, be que riobranquense - e naquele tempo era beque mesmo - veio lá de trás, destróier resoluto singrando através do silêncio expectante do Estádio Governador Bley. Depois, foi o petardo formidável que até hoje ecoa na memória dos pósteros - nós, os pósteros quando a bola explodiu no alambrado atrás do gol fazendo plat. Ad aeternitatem plat. Imortalizado plat, imortalizado Marmorato. Grijó ri ouvindo o plat remoto e vivo, tor cendo o corpo miúdo de ex-ponta direita. Porque, naquele tempo (e estamos falando de saudades), havia linha com ponta direita, que tinha de ser miúdo e corredor como Chico, para ser perfeito. 16
Com a prerrogativa de quem participou da preliminar do jogo, relembra ele: - Marmorato só bateu o pênalti porque ninguém quis bater. Foi um ato de coragem. A conversa a quatro flu i p elos descaminhos da memória. - Goleiro, Chico, qual o melhor que você viu jogar? - Não era por ser nosso não, mas o maior foi Dias III. Dias era um gato, virava no ar. Nunca soube se existiu um Dias I e II como existiram Dario I, II em, imperadores persas do tempo das greco-campanhas clás sicas. Mas Dias III, goleiro do Caxias, time da Polícia Militar, foi um dos ídolos da mi nha meninice. Um dia, indo pela rua Dom Fernando para o Ginásio São Vicente de Paula, deparo com o Ídolo. Fardado, ele espera o bonde no ponto em frente ao Convento de São Francisco.Vejo-o, porém, emoldurado no sagrado retângulo das traves. Tomo coragem e busco a confirmação:
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li
- Você é o Dias III -pergunto em algarismo romano. Ele confirma, adivinhando talvez a minha sacudida emoção. Só isso. Bastou, todavia, para me engrandecer a alma. Foi como se eu tivesse decifrado o Ídolo. Podia agora declinar rosa, rosae na aula do professor Miguel Leão com ares de quem havia falado com Júlio César. Junto de Chico Grijó e dos irmãos Borgo, concordamos: a saudade é luminosa.
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Noite Inglória
Não invoco apenas o testemunho de nato José Costa Pacheco mas também o Re de Olegário Wanguestel: pensamos em criar um clube de excursionismo e já o puséramos morro da Fonte Grande acima, num passeio domingueiro. Coisa simples e amadorística, quase acadêmica, numa Vitória de meio de século. O fato é que a notícia ganhou asas e, por meio de um amigo, chegou à cidade de Alegre, justo para alcançar, ali, dois alpinistas do Rio de Janeiro que escalavam o pico da Bandeira. Não deu outra. Os dois, passando por Vitória de volta do pico famoso (um deles, vejam a coincidência, chamava-se Renato 19
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José), marcaram um encontro conosco. Que riam, cert amente, conhecer os confrades capixabas. Ao encontro fomos eu, nosso Renato José e Olegário que, naquele tempo, ainda não se assinava Oleg, o fotógrafo da alta sociedade capixaba. Às oito da noite lá estávamos em frente do hoje extinto casarão do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, cujo prédio recendia a cebola e alho devido à Cooperativa de Consumo dos Servidores Públicos que ficava no térreo. Diga-se que Vitóri a era pacata e pundorosa e apreciava o respeito por parte de seus filhos. Tudo que fugia à rotina sabia a espalhafato. Foi quando nos apareceram, vindos da rua Dom Fernando, nossos visitantes. Só que vestidos literalmente a caráter, com roupas de alpinism o, sacola com po nteira s e marteletes, botas com cravos que retiniam nos paralelepípedos, quase provocando faíscas no meio da noite. É fácil imaginar a nossa cara. Mas aguentamos firmes porque nessa época se 20
dizia que o bom cabrito não berra. Aliás, nunca pretendemos passar de bons cabritos monteses, sem pretensão a escaladas imorredouras. De Rolleiflex como sempre, Olegário não perdeu nem perdoou a oportunidade, docu mentando em foto a mim e a Renato Pacheco sentados com os dois recém-chegados, num antigo sofá da conspícua Casa de Domingos Martins. Pior que não ficou nisso. Veio do nosso Renato a triste ideia de irmos até o jornal A Gazeta, na antiga sede da rua General Osório, para uma visita ao Mesquita Neto, seu diretor. E lá fomos, eu encabuladíssimo, pelas sombras da noite que tremiam às passadas metálicas dos nossos acompanhantes. Feita a visita, assegurado o registro jornalístico da passagem por Vitória de tão ilustres alpinistas, Renato, pretextando ter aula na manhã seguinte, em saída estratégica e de mansinho, deixou a mim e a Olegário a tarefa final de levá-los ao hotel. Era o Hotel Universal, no prédio das Casas Pernambucanas, na Jerônimo
Monteiro,
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l:i
onde fomos parar na água-furtada de tabi que em que os dois dignos escaladores esta vam alojados. Ali, com cara de beócios, ain da fomos submetidos, num show de fim de noite, a exímias demonstrações de como nos sos parceiros utilizavam o saco de dormir em que pernoitavam no topo das montanhas. Voltamos para casa às gargalhadas. Nos so clube de excursionismo morreu naquela noite.
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Senhor Nosso Mestre
Não, não vou cometer o exagero de afir mar que ele é o Mestre de todos os capixabas. De uma parte deles, sim. Estes privilegiados são os que, diariamente, podem saudá-lo com um matinal bom dia, Mestre. Ou os que, simplesmente, podem se dar ao luxo de contemplá-lo com religiosa reverência e sabê-lo presente e firme e permanente. Também não vou discutir se seu nome é Alves, Álvaro ou Alvo. Não me seduz investigar-lhe a questionante toponímica. A mim me basta tê-lo ali, morro com lombada de serra e porte de vulcão aposentado, visual infalível ao norte de minha urbana geografia. Se me fora dada a ciência dos astrolábios, nele fixaria, como numa estrela magna, o 23
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ponto de referência para determinar as lati tudes do mundo. Mas como sou vazio de saberes náuticos e astronáuticos, contentame ter no Mestre a motivação para esta minha vã e literária navegação. Na qual prossigo. Pelo menos duas vezes defrontei-o cara a cara. A primeira, há quase duas décadas. Éramos um grupo de excursionistas improvisados mas decididos. O mês era maio, o dia, primeiro, a manhã, luminosa e ática - afinal, repito, era maio em Vitória e na Serra. Olímpico (impossível fugir ao adjetivo), o Mestre nos desafiava � escalada. E lá fo mos com ardor escolar e merendeiras alpi nistas através de suas veredas, cacunda aci ma. Num desvão do caminho tinha um córrego silvestre em o qual me banhei. E me banhei à grega. Aqui vos digo que só quem já se banhou num córrego silvestre sabe o que é se banhar em o qual. Mesmo com a parada revitalizante, até hoje creio que os dois retardatários da ex 24 IS
cursão, que de nós se desgarravam resfolegando pela encosta olímpica, só chegaram ao alto porque o Mestre os ajudou com um dar de ombros. Já nos píncaros, vivemos nosso momento de glória espírito-santense na contemplação do mapa da terra natal. A segunda vez em que tive o Mestre cara a cara ocorreu na est rada para Santa Leopoldina. Íamos, eu e Roberto Mazzini, um dos companheiros da escalada olímpi ca, quando de súbito o deparamos pela fren te. Com sua imponência magistral impôs-se preenchendo o pára-brisa do carro. Foi tam bém um reencontro de amigos. Parecia até vá lá o romantismo - que nos lançava, vinte anos depois, um convite para nova escala da. Não, não nos permitirão a proeza nossos joelhos mais que cinquentenários. Fica-nos a glória de a termos realizado um dia. É fruindo dessa glória que Roberto Mazzini, conforme me confidenciou, sempre que recepciona algum amigo no Aeroporto de Goiabeiras, ergue para o Mestre o dedo cicerone e apresenta: 25
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- Aquele é o Mestre Álvaro. - Depois arremata, superior: - Eu estive lá no alto.
Foto Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2016.
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Visão Matinal
Lusco-fusco da manhã na avenida Bei ra-Mar. E só naquele fusco-lusco poderia acontecer o que vou contar. O Penedo começava a se livrar da capa da noite. No cais, navios ainda respiravam como centauros adormecidos. Súbito, o matraquear seco. Dou ênfase: de súbito, o matraquear seco, castanholas estalando no ar. Com voz de teco-teco o aeroplano de asas duplas, interligadas por hastes de palitos, apareceu sobre a baía. Voejava suave na brisa preguiçosa que perpassava o porto. Veio do lado das Cinco Pontes (que um dia vão acabar), passou à minha esquerda e logo retomou, depois de mergulhar sob o feixe de fios que os postes do Penedo sustentam. Na década 27
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de quarenta, Melo Maluco se especializara neste tipo de acrobacia, fazendo piruetas aéreas de cabeça para baixo, sob os mesmos fios e sobre a mesma baía. Este, porém, é um aeroplano de fantasia. Ao invés de firulas doidivanas levita compenetradamente em voo de reconheci mento, enquanto desce. Porque, agora, já desce na minha frente. Percebo, então, que se trata de um hidroavião que rasga as águas salgadas com suas sapatas em forma de gôndolas. Certo de que a ocasião é única, paro à amurada e entrego-me à contempla ção da amerrissagem inverossímil. O aparelho risca um volteio de jet-ski e bate hélice na minha direção. O mar sem ondas favorece a manobra. Tenho-o assim ao alcance da vista e da voz, como ele a mim. Incrédulo, vejo a bordo, num regresso à baía de Vitória, Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Qual o Gago, qual o Sacadura, não sabe ria dizer. Nem seria aquela a hora para pas sar a dúvida a limpo. Até porque ambos for
mavam a dupla perfeita, o par indissolúvel, 28
o uno e o indivisível, o para todo o sempre Gago Cabral e Sacadura Coutinho. Também não sei qual deles me dirigiu a palavra com o sotaque lusitano carregado de consoantes. Erguendo sobre o boné de avia dor os óculos idem, Gago-Sacadura quis sa ber como chegar ao Cais do Avião. Expliquei, consternado, que 6 cais, que ficava em Santo Antônio, fora desativado há muito tempo. Por instantes ambos revelaram uma cer ta perplexidade nos óculos. Depois, vi Sacadura ou Gago baixá-los sobre os olhos enquanto crescia a aceleração do hidroavião, afastando-se. Deixando para trás um rabicho de espumas, alçou vôo contra o vento nor deste, castanholando sobre a baía. No lusco fusco. Olha, gente, se eu não tivesse visto com esses olhos que a terra há de comer, juro que não acreditava.
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Trianon: Um Souvenir
Abrir um cinema em Jucutuquara, ora
direis, acaso perdeste o tino. Pois vos digo que o Georges Henri Delanos perdeu sim e ergueu ali o Cine Trianon. E o Trianon, com jeito de armazém e fascínio de lanterna má gica, veio cavalgando arrojos, enfrentando o establishment do Glória e do Carlos Go mes, imperantes em plena praça Costa Pe reira. No final dos anos quarenta, se bem me lembro, só havia três coisas em Jucutuquara, tirante o valão a céu aberto da Paulino Müller: a gente jucutuquarense, a Escola Técnica de Vitória e o estádio Governador Bley. Pensando bem, creio que o próprio Frei Leopardi, com suas duas cavernas em for-
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ma de órbitas, somente apareceu depois, falo granítico em rictus nupcial. Fradinhos, a montante, ain_da era um so vaco da Mata Atlântica; Maruípe, logo a se guir, respirando bons ares silvestres, era lu gar de clima para cura da tísica, ambiente rural onde cabritos à solta comiam do capim dos morros. O bonde, por exemplo, virava os bancos no final de Jucutuquara como se, dali , a civi lização voltasse as costas a Fradinhos e Maruípe. Postado em pachorrento vale, Jucu tuquara - ou o buraco da coruja, se preferi rem - tinha ainda outra particularidade: não era começo, nem fim, era meio entre o cen tro de Vitória e a Praia Comprida. E embora o trajeto de Jucutuquara ao Centro fosse o que ainda é, meia avenida Vitória mais meia Jerônimo Monteiro (na época avenida Capixaba), nenhum cidadão que se prezava fazia, como não faz até hoje, esse trajeto a pé. De forma que era de bonde ou de carro que se ia ao Cine Trianon. Mas se ia - eu fui, tu foste, todos fomos. Como deixar de ir?
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Não ir era ficar submisso ao jugo da Empresa Santos, responsável pelo Glória e pelo Carlos Gomes, domínios hollywoodianos. Não ir era ferir o orgulho da nação jucutuquarense que se envaidecia da presença do Trianon dentro de casa. Não ir era, sobretudo, abdicar da janela que Delanos, com coragem gaulesa, havia aberto do buraco da coruja sobre a Europa, trazendo para Vitória a revolução neo-realista do cinema do pós-guerra. Aquilatai, senhores, este progresso. Aquilatemos. Graças ao Trianon tornaram-se inteligíveis, em Vitória, as críticas das colunas especializadas dos suplementos literários publicados nos jornais cariocas sobre o cinema europeu. Graças ao Trianon, Rosselinis e outros inovadores viraram tema de conversa de cinéfilos capixabas. Graças ao Trianon, e que me relevem o trocadilho, fezse a Lumiere em Vitória. Compreenda-se por que o Trianon se ransformou no Cahiers du Cinéma da 33 :ló
minha geração, o elo faltante na minha perspectiva vanguardista de aldeão vitoriense. O Trianon criou ainda guardados sentimentais. Nele, adolescente, perguntei a minha namoradinha se podia segurar na sua mão. Estávamos na matinê, a penumbra impunha atrevimentos, eu começava a me tornar um vanguardista. Ela respondeu que era cedo, e era. Suaves trianonices. No Trianon, algum tempo depois, eu, meu irmão e meu pai assistimos a um filme que viraria cult, O Terceiro Homem. Bom de ouvido, bom de assovio, meu pai saiu do cinema assoviando o terna do filme, que também virou clássico. Meu pai se foi, o Trianon, idem. Hoje, porém, quando ouço a mesma música, lem bro do terceiro homem no Trianon, naquela noite, junto a mim e a meu irmão.
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Je Vous Salue, Maria
Quando a ilha do Príncipe era cercada de
mar por todos os lados nela entrava-se por uma ponte e saía-se por outra. O mar à roda, mais as pontes ao alto, de germânica procedência, não deixavam em erro quem por ali passasse de que estava indubitavelmente numa ilha. A olho nu comprovava-se a evidência, nem precisava conferir no atlas. E aqui registro, com superior ilustração, que há uma categórica diferença entre se ver uma ilha no mapa, e se ir a uma ilha, mesmo que a ela se chegue sobre pontes ou que nela se passe, transitório. Penso que esta essencial distinção remonta a mapas e tesouros, a Robert Louis Stevenson e a Long John Silver. 35
A ilha do Príncipe era também, naqueles tempos de Pequena Vitória, a localidade pois bairro a ilha nunca se arvorou a ser - a localidade mais perto da Capital. A única separação existente era um braço colateral de mar qual veia consanguínea hoje tão complet amente san grada que ficou seca, entupida de areia. Mas a ilha, além de ter cara de ilha sendo ilha mesmo, tinha outro merecimento: nela vivia e reinava Maria Tomba-Homem. De Maria eu ouvi falar menino e, adolescente, a conheci, meninos. Não no sentido bíblico do conhecimento, porém de nome, de vista e de fama. Não a ter conhecido pessoalmente é um furo no meu curriculum vitae, dirão os im placáveis - e eu concordo. Não a ter conhe cido no sentido bíblico é um furo duplo, aduzirão os sátiros, e não discordo. Resta me, assim, lembrar apenas da figura e da fama de Maria, das quais, sem me terem pe dido, falo. Meretriz em corpo de rainha nagô era Tomba-Homem uma mulher monumental. 36
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Busco a precisão e sublinho: era portinaresca. Tomba-Homem a chamavam por força da força com que prostrava ao solo um homem. Não no sentido bíblico da prostração, mas no tapa de estalo. Podia ser o macho de mais indômita macheza ou marujo desembarca do de circunavegações trágico-marítimas. Se desacatassem Maria corriam o risco do bofete africano, poderoso e acachapante. Quero crer até que por mais macho que fosse o elemento tinha de pedir licença res peitosa, para se dar licenças com Maria. E por coisas tais que dela se diziam ou a viam fazer, e das muitas outras coisas que não se viam mas se sabiam, o nome e a fama de Tomba-Homem transbordaram ilha do Prín cipe afora, muito além das Cinco Pontes e da Sexta. Toda esta memória me assalta, vinda de antanho, d_iante da foto de Maria tirada por Rogério Medeiros no barraco modesto. Gra ças à foto notam-se vestígios de nobreza em Tomba-Homem. Pode-se perceber ainda, embora ela apareça sentada, o tamanho do seu corpo notável. Mas também se vê o olhar 37 50
que se alonga em melancolia, a face que nĂŁo esconde a cinza dos anos e, em alto relevo, quietos e nus, os seios sĂłs no abandono da extinta realeza.
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SI
No Tempo das Diligências
Tílburis,
corno no Rio de Janeiro de
Machado de Assis, Vitória nunca teve. Nenhum cavalheiro de fraque e cartola tornou um tílburi no Éden Parque e mandou tocar para os ventos do Romão a fim de privar, em discretas horas vespertinas, do aconchego de urna respeitável senhora entre goles de refresco de groselha e sons de pianola. Mas, em compensação, Vitória teve diligências, heroicas diligências. Elas passavam velozes, sacolejantes, instáveis, nos domingos à tarde, no Parque Moscoso. urnas caíam logo ao primeiro obstáculo do terreno; outras duravam mais tempo antes de virarem, de rodas para o ar, rodantes. 39
Todas vinham puxadas por cavalos de crina ao vento. À boleia, o cocheiro, vestin do camisa de xadrezão, esforçava-se para controlar os animais em disparada. Ao seu lado, o acompanhante mantinha o rifle ao alcance da mão para os imprevistos da via gem. Os imprevistos eram os previsíveis assal tos de índios ou bandidos, estes de lenços puxados sobre o nariz, aqueles cavalgando corcéis em pelo. No momento oportuno de sabavam sobre a diligência, caninos. O acompanhante do cocheiro rolava pri meiro, chão abaixo, fulminado por tiro ou flechada. Dentro da diligência a mocinha e o tio obeso, ou a tia nédia, encolhiam-se as sustados. Então, quando tudo parecia per dido, surgia o mocinho audaz em seu cava lo branco e o cinema se eletrizava sob gritos e silvos saudando o herói galopante. A matinê atingia um de seus orgasmos, no Cine Politeama, no Parque Moscoso, no tempo das diligências. No dia seguinte, segunda-feira à noite, bisava-se o filme da matinê, na sessão 40
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colosso, a preços populares. Na cena da per seguição à diligência o Politeama voltava a tremer vários pontos na escala Richter. Além da sessão colosso, o Politeama exi bia outras marcas pessoais. Uma delas, seu formato de barracão com telhado de folhas de zinco, que se chamavam folhas-de flandres. Quando chovia forte o flandres cascateava amortecendo o som do filme. E tinha a geral, na parte de trás, com seu jeito de arquibancada de circo, em meia curva. O preço do ingresso para a geral era mais po pular que o próprio Politeama, a grande casa do povo. Sobre a geral ficava o relógio de parede, à vista de todos. E todos, com a vista no re lógio, aguardavam a hora do início da ses são, sempre única, anunciada com gritos es tridentes e assovios entredentes. Não seria de admirar se o tremor da algazarra despren desse os cartazes que faziam o reclame da programação da semana, presos na parede do lado de fora. No Politeama a cabine de projeção não tinha o recato das cabines dos outros cine41
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mas, exibindo-se sem pudor ao rés do chão. À frente dela, o recinto destinado - digamos - à plateia mais nobre era também sui generis: no centro, as cadeiras de madeira; nas laterais, separadas pelo corredor estrei to, os bancos corridos, em nível mais eleva do. Quem neles se sentasse via os filmes por cima dos espectadores encadeirados. Desses bancos assisti, garoto, aos primei ros filmes em pretíssimo e branco de minha vida. Foram seriados de faroeste com moci nhos vividos por Tim Holt, Charles Starret, Buck Jones, Bill Elliot. Este último veio metido a besta: sacava os revólveres, invertidos nos coldres, cruzando os braços sobre a cintura. E olha que era rapidíssimo. Seu cavalo também, diferentemente dos corcéis dos demais mocinhos, era malhado, o que a mim causava decepção. Aliás, o fascínio exercido pelos cavalos brancos dos mocinhos nos filmes de faroeste constituía atração à parte. Se me pergunta rem, por exemplo, qual a cor do cavalo bran co de Napoleão, fico ofendido. Mas se me indagarem de que cor era o cavalo branco 42
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de Charles Starret, respondo, meninamente, que era dourado. Assim me parecia, no tem po das diligências, na tela do Politeama.
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3Ăł
Manjubas e Quitungos
P eixe
muito era o brado e o aviso. Logo os pescadores acorriam à praia e, celeremente, lançavam a canoa ao mar. A pesca do arrastão tinha início, na época das manjubas, nos meses de verão, porque havia manjubas em Manguinhos. Tem isto trinta, trinta e cinco anos. Manguinhos ainda conservava-se vila de pescadores encolhida em sua pachorra praiana, plácido povoado devotado à pesca, poucos veranistas banhando-se por lá. Estava longe, portanto, do balneário em que se transformou, perto de Vitória, de acesso fácil, que se apinha de gente no tempo em que o sol domina e reina. 45
Claro que a capelinha branca já existia,serena e simples como se mantém, no cocuruto da colina, descortinando o vasto oceano azul e espesso.
Lá
estavam
também,
enquanto
puderam estar, os quitungos a cavaleiro da praia,
abrigos
de
pau-a-pique cobertos de
palha. Porque havia quitungos em Manguinhos. Era nos quitungos, nas límpidas noites de verão que se espichavam madrugada afora, que as mulheres da vila salgavam o peixe recolhido pelos arrastões, o peixe muito que fora visto, anunciado e pescado, porque havia manjubas em Manguinhos. O trabalho da salga constituía o capítulo feminino e noturno dos arrastões, ha\·ia balaios de fibra apinhados de peixe até a boca, o peixe era muito, as mulheres eram poucas, a salga avançava entre ditos e chistes, as salgadeiras puxavam versos de reis para atenuar o cansaço e espantar o sono, acordai que estais dormindo, neste sono em que estais, já nasceu o Deus menino. Facas amoladas nas mós raspavam e abri am os peixes extraindo-lhes as supérfluas escamas e as desprezíveis entranhas, os ges-
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tos eram curtos e precisos, os peixes escorri am das mãos das mulheres para o cocho da salmoura, nem se pensava em sono e cansa ço, acordai que estais dormindo. O vento nordeste soprava com benevolência, os ver sos de reis alongavam-se na noite no sargaço das vozes das salgadeiras, chegavam até a capelinha branca, no cocuruto da colina, iam além e além, sobrevoando a vila, porque havia cantigas de reis em Manguinhos. Enquanto a manhã se abria compassiva os peixes eram espalhados no capim para curtir o sal ao sol, o tapete de alumínio co bria o chão da vila exalando seu odor acre e infinito, o cheiro forte impregnava o ar da manhã, porque havia manjubas a secar nos capins de Manguinhos. A visão daquele imenso tapete de gomos grossos dava a ideia da quantidade-milhar das manjubas pescadas e salgadas, quem gritou peixe muito falou a verdade, o brado e o aviso estavam agora estendidos diante dos olhos de todos, nenhum São Tomé poderia desacreditar daquela anunciação feita em tom de advento, as palavras fizeram-se peixes. 47
Das redes do arrastão vieram esses fru tos de prata, nasceram esses frutos do brado e do aviso, em poucos minutos lançou-se a canoa no mar, em poucos minutos lançou se a rede nas águas, brados e avisos cerca ram o cardume errante na beira da praia, os cordões das manjubas formavam sombra passageira nas águas, cerca e pega, pega e puxa, ferve a rede em manjubas, as palavras faziam-se peixes. Tem isto trinta, trinta e cin co anos. Neste verão assisti a um arrastão em Manguinhos. A rede que deu à praia era um útero murcho e vazio, pobre ventre desnutrido trazendo no bojo umas cinquenta,cinquentinhas manjubas se tanto, para triste refresco dos olhos, para triste consolo da fome. A festa primitiva do alimento recolhido ao mar no milagre dos peixes multiplicados não mais se repete nos arrastões de Manguinhos.
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Fotos Luiz Guilherme Santos Neves, anos 1950.
O Menino e a Guerra
Quando
o Baependi foi a pique e
Vitória entrou na guerra o menino tornouse um pracinha em potencial. A guerra então invadiu sua infância com alarmes e sustos, um quebra-quebra gabiroba, justiceiro e patriótico, irrompeu nas ruas da cidade quebrando tudo o que cheirava a alemão e italiano, para os a nova ordem quebra-quebradores impunha o dente por dente, quebra lá que eu quebro cá, quero ver quebrar. Com olhos ébrios de ódio a turbagabiroba investiu contra a ferraria Mainardi em frente à casa do menino, se a maltagabiroba errasse de endereço estouraria a varanda da casa com sua fúria de desagravo. Felizmente a turba-malta sabia onde ti51
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nha o nariz, indo se chocar sem erro no gros so portão de ferro dos Mainardi. Agindo rá pido, um cidadão, paladino do bom senso, conseguiu deter no grito a malta turbulenta, alertando sobre o perigo das cápsulas de oxigênio das soldas azuis estocadas na fer raria. Evitando a explosão que levaria pelos ares auriverdes da pátria desagravada a fer raria com seus ferros e, de permeio, os ferre nhos dep redadores, estes puseram a gabiroba no saco e foram bater em outro portão, atrás de novos gringos, quebra lá que eu quebro cá. Mas a guerra havia chegado a Vitória. Nos dias seguintes, rastros de sua passagem estavam visíveis nos estabelecimentos co merciais e nos estabelecimentos residenciais de alemães e italianos em pandarecos. O menino viu o Empório Capixaba de portas arrombadas e o sinistro buraco negro que, em seu interior, sobrou da pilhagem e da depredação desenfreadas. Viu o Arens Langen e outros prédios exemplarmente la pidados a porradas cívicas.
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Um novo tempo raiara. A BBC falava para o mundo no ouvido do avô do menino, a voz chiando em ondas curtas no rádio em forma de gaiola. O recrutamento militar recrutava recrutas para a guerra, formando a desabrida confraria da cobra fumante que, na verdade, exalava uma fumacinha sem muita ofensa ecológica. A canção do expedicionário espalhou-se radiofonicamente, o por-mais-terras-que--eu -percorra-não-permita-deus-que-eu-morra-sem-que-eu-voltepara-lá prenunciando as cruzes brancas de Pistóia. No porto da cidade, os holofotes das fra ga tas chifravam a noite nos treinos dos blecautes, afinal o Péla-Macaco era um cais estratégico, cobiçado pelo inimigo, dizia-se. Em Guarapari, as areias monazíticas ofere ciam-se desguarnecidas como chamariz vul nerável, dizia-se. Submarinos boches, mui interesseiramente, periscopiavam essas pre ciosidades do nosso litoral recebendo men sagens quinta-colunas piscadas pelas lâm padas das madrugadas, dizia-se, pois, em tempo de guerra, boatos como terra. 53
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As campanhas do ferro-velho limpavam do quintal das casas emangueiradas o lixo dos entulhos oxidados para fazer obuses de canhão. A mãe do menino mil mães, mil mãos - tricotava suéteres de lã para os pracinhas na Itália, se o menino fosse convocado para a guerra já podia deixar a casa materna com a suéter sob medida, esbelto infante com seu fuzil lesto a marchar. A revista Em Guarda estampava o sangue das batalhas em páginas coloridas, em guar da estava o menino com a guerra sem fim, cada vez mais perto de sua idade de recruta, já havia pracinhas enfrentando balas de aço na Sicília para mostrar que braço é braço. Mas, como Deus era aliado dos Aliados, num certo dia D, deu-se o desembarque na Normandia sob o sorriso colgate na cara palmolive de Eisenhower, embora fossem os russos que, vindos na contramão da história, fincassem a bandeira na Berlim despedaçada. Mesmo aliado, Deus mostrava suas fraquezas comunistas. No bunker 54 .J./
sombrio Hitler casou-se com Eva e morreram infelizes para sempre. Era o fim. Dançava-se em Paris enquanto a BBC continuava falando para o mundo. O avô do menino, porém, não pôde ouvir os chilreios festivos na gaiola em que pregava o ouvido de médico. Acabada a guerra, o menino aliviado ex-futuro pracinha em potencial - sentiuse imortal.
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Zepelim
Quando
Ivo via a uva viu também o
zepelim. Um zepelim era um acontecimen to raro e inesperado. Ivo viu o Zepelim e se surpreendeu com sua aparição repentina, sua chegada sem avi so prévio e sem alarde, sem um toque pre paratório de clarim, sem exalar sequer um perfume alado e prenunciador, surgindo silente como uma nuvem indissolúvel, qua se pedindo vênia para se fazer presente, sen do ele próprio o presente presenteado a Ivo, presenteado à cidade. Quando Ivo viu o zepelim este estava ren te ao Penedo avançando sobre as águas ver des da baía, nave entrando no porto pelo ar em voo letárgico como que impulsionado pela brisa. 57
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Ivo viu o ze pe lim prime iro de frente, quando ergueu a vista por acaso. De frente, o zepelim ainda não era zepelim, parecia, na verdade, um balão argênteo com sua cesti nha de vime. Virou zepelim quando se fez ligeiramente oblíquo e seu corpo de cetáceo se desenhou contra o azul do céu. Ivo soube então do que se tratava, que pássaro brilhante era aquele diante de seus olhos assombrados, porque já conhecia o zepelim das páginas ilustradas. Eram pági nas de uma revista alemã que o pai recebia antes que receber revistas alemãs a domicí lio se tornasse um hábito suspeito e perigo so, quando a guerra se derramava pela Eu ropa e África, neves e desertos. Mas os tem pos ainda não tinham se tornado belicosos, havia uvas para serem vistas por Ivo e zepelins que flutuavam no ar como torpe dos inofensivos. Mais tarde, Ivo saberia que houve alguém na cidade, de olho atento e dedo presto, que acionou a máquina de tirar retratos para se gurar o zepelim sobre a cidade, fixando-lhe
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a imagem graças aos mistérios dos sais e dos ácidos que o eternizaram na foto que Ivo reveria tantas vezes. Mais tarde Ivo também saberia que o zepelim não era o pássaro imortal que pare cia ser quando Ivo o viu pela primeira e úni ca vez em sua vida, mas um mero artefato voador, frágil e inflamávet que virou fuli gem no capítulo final de sua existência. Quando Ivo viu o zepelim o zepelim viu a cidade. Viu que a cidade era pequena e dóciC espremida entre uma rama de mar, que lhe fazia de porto, e as montanhas revestidas de matas, que lhe faziam de selva, e que isto era bom para a cidade. Viu que a cidade pratica mente se bastava com a longa avenida que a cortava acompanhando o caminho do mar, e que nessa avenida moviam-se bondes para o coletivo transporte dos seus habitantes, e que isso bastava à cidade e aos seus habitantes. Viu que esses habitantes formavam um povo tran quilo e que todos pareciam amistosos e cívi cos, o que era de fundamental importância na vida de todos. Viu que na cidade havia uma praça central e redonda, assinalada por pal59
meiras imperiais, e que, pouco antes da praça, havia uma igreja branca tendo na frente duas outras palmeiras imperiais, à qual se chegava através de escadaria, e que logo depois da pra ça uma catedral de torres pontiagudas e vi trais multicoloridos precedia um palácio em forma de convento, servido também por uma escadaria larga e arejada, com estátuas no cor rimão. Viu mais o zepelim que havia muitas outras escadarias na cidade, porque a cidade se fizera no morro e viu que, em barcos a remo, catraieiros passavam pessoas de um lado para outro da baía em cujo fundo sobressaíam cin co pontes cunhadas em aço, importadas da pátria do zepelim. O zepelim viu assim que a cidade se mos trava gentil e fraterna e dela se enamorou à primeira vista colhida do alto, num rasgo de amor conjugal, sem pressentir que, naquele momento de enlevo, sua alma já estava pre sa na foto da cidade onde ficou gravada para sempre, mesmo depois de se ter dissolvido, frágil e inflamável, seu corpo cetáceo.
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Zepelim sobrevoando Vitรณria nos anos 1940. Foto Guilherme Santos Neves.
O Signo na Pedra
No meio do caminho tinha uma pedra e nela estava gravado que Deus se esconde e o Diabo se revela. Mas ainda era cedo para esta metafísica conclusão. A pedra no meio do caminho não era uma pedra qualquer destas de se passar por cima e se ir em frente. Também não se vá pensar que fosse um magnífico rochedo como o Pe nedo ou a majestosa Pedra Azul com seu la garto no lombo, tão genuinamente lagarto que dá vontade de dizer largato. A pedra no meio do caminho tinha, na verdade, pouca elevação, não indo além de uma laJe rasa, alguns metros acima do nível do caminho, o muito que daquela altura se podia conseguir era empinar raias se sopras-se do mar um poema de vento. 63 50
Aliás, a pedra no meio do caminho fica va meio à deriva, na margem da estradinha de feitio rural que fazia o contorno da ilha de Vitória. Mesmo assim, constituía parada obrigatória para os meninos que vinham do Parque Moscoso com suas mochilas e suas bicicletas. Acompanhem agora o ritual. Os meninos chegam suados das pedaladas fortes - a estradinha tem subidas e descidas entre can celas com mata-burros- e deixam as bicicletas à sombra das árvores. A pedra é logo ali, e os meninos vão até ela, corredeiras e vivazes. Param então onde têm de parar, no exato ponto que eles sabem qual é, são os meninos que conhecem o segredo da terra, não os homens. Formam, observa dores, uma roda em torno do ponto que os atrai, que examinam e tocam com a atenção própria dos meninos, o olhar perscrutador de peritos rupestres. Mas a grande leitura da pedra os meni nos ainda não fazem, é preciso mais tempo para que entendam a mensagem no signo 64
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das pedras, para compreender que Deus se esconde e o Diabo se revela. Aí está, meninos, a fundamental diferen ça entre o Criador e o Demo: se Deus é es quivo e discreto e faz até ouvidos moucos às invocações e apelos dos homens, o Diabo, ao contrário, é pronto e prestativo, pode-se chamá-lo que ele surge fácil e cortês e ainda faz pactos de bom cavalheiro. Deus se es conde, o Diabo se revela. Vejam, por exemplo, as marcas que a Criatura deixa de sua passagem através dos caminhos terrenos ligando seu nome a pe dras, cachoeiras, gargantas e cavernas. Quem já viu uma pegada de Deus? O Dia bo, no entanto, as distribui por toda parte. Andarilho e senhor do mundo vai com pernadas ligeiras do Brasil à Itália, de Vitó ria ao Piave, onde deixa cair no rio a pedra de que fala a crônica de um certo Roberto Mazzini, comprovando para o povo que ali esteve o Inimigo do Gênero Humano. Todos creem e ninguém discute. Em Vitória, o sinal de sua passagem é outro, é a marca do seu pé cravada na pe65 -.·J .:,_
dra, que os meninos observam minuciosos e confabulativos antes de passarem a ocupa ções menos transcendentais como abrir as mochilas e comer mexericas e pão com quei jo. Vieram de longe os meninos, do Parque Moscoso vieram, e já estão no pé do Diabo, fizeram a volta de Caratoíra, deixaram para trás o cemitério de Santo Antônio, deixaram para trás a rua de paralelepípedos com o ponto final dos bondes, subiram ladeiras e ficaram das margearam suados, a ilha Caieiras, viram cabras pastando alhures, alhures viram bois afinando a baba em solitárias lagoas, cruzaram porteiras e mataburros até chegarem ao signo na pedra. Será este o começo de uma nova igreja edificada sobre a pedra do Demo? Não, não é, nem há razão para sustos. Embora no pé do Diabo, os meninos estão bem, gozando saúde e em paz com a vida, a barriga cheia de mexericas e pão com queijo. Benza-os Deus com sua mão invisível. 66
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Lisboa
Percorro
a exposição de fotos de Vitó
ria, anos quarenta, e concluo, convicto, gue não precisarei ir a Lisboa. Por que Lisboa? O mesmo poderia dizer de Liverpool, Roma, Dublin. Ou de Singapura, num exemplo ori ental. Mas é gue meu amigo muito viajado esteve recentemente em Lisboa e me disse, catedrático: - Lisboa é a nossa Vitória dos anos quarenta. Outro amigo, também internacional, pressionou, esporeando-me o interesse: Você tem que ir a Lisboa. Vai se sentir em Vitória dos seus tempos de estudante. Assim, eu que nunca irei a Lisboa, visito Lisb oa através das fotos na galeria, mergulhando nelas como no túnel do tempo em busca do paraíso perdido. 67 :i./
Caio à beira do Tejo, sem conseguir sa ber se estou na praça Presidente Roosevelt ou na Ribeira. Forma-se ao meu redor um jogo de luzes e de sombras como num sonho às vezes difuso, às vezes em claridade chocante. Ergo-me, rápido, da rua que se abre em mosaico de paralelepípedos. Lentos automóveis passam por mim em marcha cordial. À minha frente posta-se um prédio sóli do e róseo, mas não sei se é o Hotel Bragança ou o Tabajara Hotel. Gaivotas sobrevoam o Tejo, contornando os mastros das embarca ções presas nos frades de pedra por espes sos cabos marinheiros. À esquerda, a escadaria de corrimão lar go, que também dá acesso a um palácio, leva a um privilegiado miradouro - quem sabe o Alto de Santa Catarina - do qual se pode ver a chegada mansa dos barcos com seus far dos pardos. Sob a sombrâ denteada das palmeiras, o renque de velhos passa de mão em mão o jornal que, ao cabo, será lido por todos. Os 68
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que aguardam a vez observam os barcos desapressados ou olham indiferentes a es tátua do Adamastor da qual explode a forja de sons na metalurgia aguda das cigarras. Se aqui houvesse o caminho das estátuas era trilhá-lo para topar com Eça e seu pince nez irônico. No fervor lusófilo que se con trai em Lisboa talvez lhe dirigisse um aceno comedido, vencendo minha timidez atávica. Na praça Luís de Camões dou com o busto de bronze do protomártir Domingos Martins, o itapemirinense ausente que mor reu pela liber. .. Até parece que foi executa do ali, expondo o azinhavrado peito de gladiador r omano à boca ignóbil dos arcabuzes. Ouço tiros mas não saem dos arcabuzes de el-rei. Vêm dos rojões que espocam por outras partes de Lisboa onde caminha, com seus anjos de cetim e marianos congregados, uma procissão louvando a Santíssima Vir gem porque, lá e cá, Nossas Senhoras há. Novamente deparo palmeiras que não são as do Alto de Santa Catarina. São ou tras, mui esguias e agitadas, que largam as
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palmas secas na praça circular, que os elé tricos circundam. Do alto de suas ramagens é possível divisar os pombos do Rossio, os grossos muros do Carmo e os canhões senis do forte de São João. Ou será o forte de Almada? Faz calor em Lisboa. A canícula úmida leva a transpirar, no seu pedestal, o jovem rei Dom Sebast ião, envolvendo-o na tremulina vaporosa que o arrebatou na de satinada aventura africana. Homens vestem fatos com botões de madrepérola, usam cha péus e gravatas. Ombreias deslizam pelas calçadas suas tênues sombras de cogumelos. Lisboa transmite uma sensação confortadora de familiaridade. Há um jeito espontâneo de se dizer ei entre os lisboetas quando se encontram e se revêem. É fácil perceber que o cosmopolitismo provinciano da cidade formiga nos cafés e nas bancas de jornais onde se versam banalidades e palpi tantes temas políticos. Vou agora pela rua de velhos sobrados que têm soleiras de pedra e estreitas bandas de janela, parecendo portas pintadas de 70
marrom. Não me espreitam, através das frin chas das venezianas, olhos lusitanos de azei tona, nem vejo cravos colorirem as sacadas mornas desses prédios. Sinto-me à vontade tangenciando os sobradões hirtos e quietos. Se me salta, porém, dessas janelas entreaber tas o dedilhar de uma valsa de Strauss sou um português morto de emoção na via pú blica, candidato ao rabecão. Quando sento no bar em que se serve a média de café com leite e pão quentinho porejando manteiga derretida, fico mais à vontade ainda, legítimo lisboense de boina e sotaque. Sou tratado como rei pela fidalguia lusitana que me atende, cujo sobre nome Santos tem a ver com os próprios. Na parede está a flãmula do Benfica com as cores e glórias do Benfica. É dispensável sagacidade para adivinhar que, neste redu to de Lisboa, todos devemos ser benfiquenses em honra à derramada hospi talidade dos seus proprietários. Depois do lanche é hora de deixar Lis boa, a que nunca precisarei ir porque já a conheço - nela nasci. 71
Faz parte do roteiro das viagens sair das cidades pelo mesmo lugar em que a elas se chegou. Eis-me, pois, diante do Hotel Bragança, ao pé da escadaria de degraus em leque. Serei eu, por acaso, um daqueles dois cavalheiros em ternos de alvaiade que con versam amistosamente ao pé da escadaria do Palácio, na foto de Pedro Fonseca? Infelizmente não sou. Guardarei de Pedro Fonseca a imorredoura mágoa de não me ter incluído em uma de suas eternas fotos de Lisboa, nos anos amenos do meu tempo de estudante.
Praça Luís de Camões, Lisboa. Foto Francisco Aragão.
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Oficina Literária
Não insistam porque
não direi nomes
nem onde se deu o fato. Com a moda das oficinas literárias pode ter sido na UFES, em Cachoeiro ou Colatina, e até em Dores do Rio Preto, se o escritor Marcos Tavares ban casse o mestre e se lá houvesse aprendizes para o ofício das letras. No caso de que falo, a oficina tinha por escopo a cr ônica, sua conceituação e contextualização ( é assim que eles dizem), como interpretar-lhe texto e intertexto ( fa lam assim também), enfim, como fazê-la. Tratando-se de tema palpitante, grande foi a clientela inscrita, coordenada pela pro fessora pós-graduada em crônica. O velho cronista entrou a convite especial para a avant-premiere do curso. Narraria 73
sua experiência de cultor do gênero, como armava seus textos, em que motivos se ins pirava, se os vivenciava ou não, se escrevia depressa ou devagar, a caneta ou em com putador. Aceitou a contragosto, em concessiva atenção à professora sua conhecida, esplên dida quarentona separada judicialmente desde quando fizera o mestrado na PUC. Ante a plateia em expectativa tem a palavra o cronista. Vale aqui uma preliminar da plateia7 Sejamos controlados: que a plateia se manifeste no seu tempo próprio. Numa saída de quem dizia não possuir o dom da oratória_- o que é sempre uma boa entrada, mas sem muita originalidade - o cronista sugeriu o diálogo através de per guntas e respostas, quase urna variação do jogo de múltipla-escolha, familiar a todos os presentes. A sugestão foi bem recebida, a professora esplêndida achou que a oficina começava promissora, todos vivamente interessados. Como o crupiê que dissesse façam o jogo,
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senhores, o velho cronista solicitou pergun tas aos cronistas neófitos. A roleta girou, vermelho, preto. - O senhor é cronista há muito tempo? indagou a aprendiz de cabelo à homenzinho e suave pescoço de garça. Ele teve vontade de dizer que sim, que há muito, muito tempo, desde a remota Vida Capichaba, mas evitou retrocessos nostálgi cos e enveredou por outro caminho. Pediu para ser chamado de você e, em menção li terária, satisfez a curiosidade da garça: - Desde quando me iniciei em Machado de Assis e Eça. - O Eça era aquele escritor português ? rebateu a ave do pescoço esbelto. O cronista a fitou complacente. No cére bro acostumado a pensar entre parênteses se indagou o que tinha ido fazer ali, mas li mitou-se a confirmar que sim, o Eça era aquele escritor português. O digno pescocinho merecia sopros e afagos. Ele os concedia. - Você já publicou algum livro 1 Agora era um rapagão de cabelos soltos 75 o.'
sobre os ombros. A plateia se manifestava no tempo próprio. Nos parênteses do cérebro nascia a próxima crônica: a aprendiz de cabelo masculino, o aprendiz de cabelos louros, os tempos, modernos, a oficina, literária, a professora, magistral. - Nunca publiquei porque nunca me puseram em livro. Sou apenas um cronista de jornal que espera editor corno quem espera urna noiva - respondeu. Todos riram, o cronista sorriu no canto da boca, num cacoete antigo. As perguntas brotavam ansiosas, a esplêndida professora via, satisfeita, a oficina aquecer as forjas, fagulhas saltavam em vermelho e preto. Aplausos ao final. A segunda parte dos trabalhos estava reservada à conceituação de crônica. Sob a maestria da preceptora separada judicial mente os aprendizes formaram grupos e mergulharam em discussões acaloradas, à cata da melhor definição. O cronista, à parte, contemplava distraído a nuca da garça, no grupo à sua frente, fruindo a branda aragem que vinha da janela. 76
6.,
Algum tempo depois os conceitos já po diam ser lidos, apesar dos retardatários. O cronista reteve na memória o mais risonho deles - crônica é o registro do efêmero na diuturnidade do cotidiano - e esqueceu os outros, elaboradíssimos, falando até de emis sor e receptor dos textos, referindo-se a au tor e leitor. Quando tudo parecia terminado, a garça do pescoço viçoso pediu que o cronista tam bém desse a sua definição. Ele quis tergiver sar mas foi derrotado pelo coro crescente dos fala, fala, fala. Então, sorrindo uma segunda vez pelo cacoete antigo, disse: - Crônica é uma borboleta de brisa numa nuca de mulher. Os aprendizes romperam em palmas sem saber exatamente por quê.
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Dores Uma, Dores Duas, Dores Dez
Ninguém
deve dizer que nunca irá a
Dores do Rio Preto. Eu, que estive lá, doulhes uma, dou-lhes duas, dou-lhes dez razões, todas apreciáveis, para se ir a Dores. E a primeira já está dita, é este privilégio de tratar a cidade com afável intimidade, chamando-a Dores. Não é primazia rara ? A segunda razão é poder se dar ao luxo de conhecer o local onde dorme a pachorra sono denso, quase pétreo. Dá gosto se chegar em Dores e afundar nas painas de sua malemolência tépida. Tem-se a impressão de que se está no miolo de um novelo de lã, dando vontade até de ronronar entre um e 79
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outro miado lanífero para não se olvidar o som da própria voz. Um gozo. A razão terceira ponho-a à conta de uma controvérsia. Controvérsia em Dores do Rio Preto, estranharão os céticos. E eu lhes digo que sim, fomentando hipotética questão em tomo do nome da cidade. Garante o povo que lá habita - os dores do-rio-pretenses - que este dores vem de Nossa Senhora das Dores, o que daria, na sua forma nominal completa, Nossa Senho ra das Dores do Rio Preto. Eu, porém, que cultivo o hábito do contraditório, prefiro ver aquele dores sob halo poético, associando-o às dores de um parto líquido, às águas que dão nascimento ao Itabapoana, do qual o rio Preto é a costela formadora. Pode-se alegar que tal versão é rebuscada, mas não se pode negar que seja poética. No entanto, se não tivesse eu estado em Dores do Rio Preto ja mais o meu viés de poeta se teria ocupado nela. A quarta razão que lhes dou é para com provar, com a surpresa nos olhos, que o rio preto de Dores é um rio pardo. Um pardo 80 66
fluxo estreito e manso que se espreme indo lente entre sua margem capixaba e a minei ra. Diz o povo que lá habita que o Preto en grossa na estação das águas e degringola interestadual, acometendo as margens com ímpeto de assaltante. Mas não foi este bra vio rio pardo que vi em Dores do Rio Preto. O rio visto tinha a andadura lerda de uma lagartixa ao sol, mostrando sua inconfundí vel cara de afluente sonolento, parecendo navegar, compenetrado e domingueiro, para uma Assembleia de Deus. Mas valeu - e vale - apreciá-lo em seu passo taruíra, embora capaz de se converter em surucucu revolta para tragar os tranquilos boizinhos que suas margens apascentam. A quinta razão para visitar Dores do Rio Preto tiro-a de estar a cidade na divisa com Minas Gerais, tanto que se chamou Divisa. Paira, assim, no lugar, sob o céu translúcido, o sortilégio bandoleiro da fronteira sugerin do soturnas histórias de contrabando. Ou, numa segunda sugestão, despertando a pos sibilidade de nos fazermos emigrantes com
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algumas peregrinas passadas sobre a ponte. Num momento estamos na ma rgem capixaba do rio Preto; no momento seguin te, eis-nos em terra alheia, nos rincões mi neiros. Viramos imigrantes. Tudo isso sem depender de passaporte, sem pagar pedá gio, sem pedir licença ao bispo. A sexta razão? A sexta razão, nesta apo logia de motivos, é a divisa que a ferrovia deixou na rua da velha Divisa. A ferrovia, e a estação do trem que ali estacionava a ca minho de Carangola, não existem mais. Mas o traço dessa existência sobrevive na sepa ração entre as antigas casas do tempo da fer rovia e as casas novas, edificadas do outro lado da rua após a remoção dos trilhos e da estação. Concordo que se trata de curiosida de local muito específica, para ser aprecia da apenas pelos que têm senso histórico como eu. Mas, neste caso, é deleite soberbo. A sétima razão para se conhecer o lugar é se estar próximo ao Caparaó onde avulta o pico da Bandeira E apesar de não se descortinar dali o monumentoso pico, sabê lo perto, um pouco ao norte, talvez a noro82
este, dá à alma inefável prazer geográfico. Experimentem. A oitava razão deve-se a Paula, à adoles cente que, como passarinho esvoaçante, faz o tipo popular de Dores, estendendo a mão aos que chegam, num gesto de recepção, eu sou Paula, você quem é? Privar da hospitalidade da gente local e reencontrar Marcos Tavares, o generoso e nobre Marcos Tavares que nidificou em Do res do Rio Preto, onde se fez fiscal da fazen da estadual, constitui a nona razão de uma ida até lá. E sabem de uma coisa? O erário estadual não merece Marcos Tavares. É bom demais para o erário e está sendo ruim para as letras capixabas. Finalmente a décima razão para se conhe cer Dores do Rio Preto é se poder dizer de pois, ufano da vida: eu já estive em Dores do Rio Preto. E você 7
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A Cidade Invisível
Podem
dizer que é pastiche, mas não
resisto - vai esta crônica um pouco à Ítalo Calvino, em suas cidades invisíveis. Chegava-se a Airotiv, cidade-peixe, atra vés do mar. Um fartum piscoso dominava os ares e grudava-se nas pedras das vielas e nos muros das casas. O sol agudo tornava líquido o grude, que escorria pelas paredes como suor grosso. Quando batiam as chuvas, as águas des ciam vertiginosas pelas estreitas ladeiras mas não livravam a cidade do cheiro azedo de peixe. O banho das águas parecia acentuar o ranço de Airotiv e a cidade podia ser pres sentida a milhas de distância. O bafio viajava no vento. Em lugares onde nunca se tinha ouvido falar de Airotiv 85
sabia-se exatamente onde ela ficava. Basta va erguer o nariz e cheirar o ar. Muitos evitavam conhecê-la devido ao cheiro inóspito. Outros vinham atraídos por essa particularidade, que nenhuma outra cidade tinha. Mal chegavam, Airotiv reservava-lhes uma surpresa. Dentro da particularidade que a distinguia, uma segunda particulari dade se impunha: a cidade-peixe se dividia em duas cidades-peixes. Mas essas partes não estavam desligadas entre si como corpos independentes. Elas permaneciam inseparáveis, xifópagas. A existência de uma dependia da existência da outra e as duas completavam uma só urbe, sendo a separação entre elas o que melhor integrava Airotiv em Airotiv. As diferenças, no entanto, eram notáveis. Uma parte de Airotiv era verde, a outra azul. Assim, verde ou azul, em cada parte, eram as casas e as igrejas, a indumentária das pes soas e a epiderme delas, ou a própria men talidade dos seus habitantes. Conforme o lado em que vivessem, os moradores tinham 86
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sangue verde ou sangue azul e, quem não fosse verde ou não fosse azul, simplesmente não existia em Airotiv. Porque, diga-se agora ao visitante de pas sagem, o azul e o verde eram as cores sím bolos das duas facções rivais em que a cida de se cindia, num antagonismo feroz e sa grado. Moças de epiderme azul, por exem plo, casavam-se sempre com rapazes da sua cor, o mesmo acontecendo com as moças de pele verde. Nenhuma Julieta azul ousaria soltar as tranças para um Romeu de cabelos verdes, facilitando-lhe o acesso ao balcão com grades pintadas de azulão. Preferiam manter-se castas a violarem, em matrimônio espúrio, a cor do sangue e da pele e a virgin dade do mesmo tom. A única inversão de cores dava-se no calçado das mulheres as de epiderme azul acalcanhavam chinelas verdes e as de pele verde, chinelas azuis. Uma forma simbólica e provocativa de pisotearem as cores adversárias. Antes, porém, a cidade não era assim. \"ista da baía de águas lisas e quietas, Airoti\· 87
reluzia sua alvura de cal nas luzes oblíquas da tarde. Dava vontade de colhê-la na pal ma da mão como biscuí de porcelana pura. O dia da grande mudança ocorreu debai xo de muita chuva, quando o guardião do templo, que se tornou verde, proibiu a pro cissão de São Benedito. Queria poupar a imagem do santo do aguacéu diluviano. Ora, o povo de Airotiv, ainda sem divi são e sem divisas, adorava São Benedito e adorava fazer a procissão de São Benedito. Proibi-la foi um erro trágico. Na calada da noite, al g uns fiéis inconformados raptaram o santo e o entronizaram no lado oposto da cidade, no altivo templo entre palmeiras, que começou aí a ficar azul. Ali cobriram São Benedito de honras e delicadezas, a contragosto dos mo radores que viviam em torno da igreja ver de. Desde então, cada parte de Airotiv deu se a disputar feramente a posse do santo por extremada devoção a ele. Em clima de dissenção, um lado apeli dou o outro de peroá, peixe reles, do lombo azul. O ofendido devolveu a provocação no 88
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epíteto de caramuru, reles peixe, do lombo verde. Airotiv passou a tresandar a peixe, entre o verde e o azul. Nisso residia a essên cia da cidade. Informe-se, todavia, que as desavenças entre peroás e caramurus nunca descambaram para a vermelhidão do san gue derramado, talvez devido à excelsa pro teção de São Benedito. O tempo, com sua boca negra, engoliu as beneditinas querelas dos habitantes de Airotiv. Hoje, quem chega à cidade não sen te mais o cheiro de peroás e de caramurus. O máximo que consegue é saborear um peroá frito à beira-mar, porque, pelo que sei, caramuru não existe sequer para tira-gosto.
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Dança Ritual do Fogo
Três eram os auditórios para a serventia da casa: o do Colégio Estadual, o da Escola Normal e o do Centro de Saúde. O do Estadual, hoje prédio da Fafi, tinha a perturbálo os bondes da avenida Capixaba; o da Escola Normal, ao lado do Palácio, nem sempre estava disponível por causa das aulas que nele se davam. Sobrou o do Centro de Saúde porque dois outros, a mais, o do Colégio do Carmo e o da Escola Técnica de Vitória, não eram usualmente empregados. O primeiro, conventual, ficava enfurnado no Carmo; o da Escola Técnica tinha domicílio em Jucutuquara, considerado fora de mão. O curso de etnografia e folclore que Luís da Câmara Cascudo veio dar em Vitória, pelos anos cinquenta, a convite da Comis 91
são Espírito-Santense de Folclore, realizouse no Centro de Saúde, no Parque Moscoso. Seu auditório, discreto mas acolhedor, dispensava microfone, deixando os conferencistas mais achegados à seleta plateia. E uma plateia seletíssima compareceu para ouvir Câmara Cascudo. Quem quiser saber quem foi Luís da Câmara Cascudo folheie o Dicionário do Fol clore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo. Quem quiser se aprofundar no conhecimento do autor vá em frente, lendo Anúbis e a Geografia dos Mitos Brasileiros. Aí já terá feito o mestrado em Cascudo. Para o doutorado recomenda-se a leitura de Jangada, Rede de Dormir, Geografia do Brasil Holandês, Cinco Livros do Povo, Superstições e Costumes, o notável História da Alimentação no Brasil e o mais que forma sua basta (com "b" mesmo) bibliografia. Já dá para comprovar que Cascudo foi o maior folclorista do Brasil. Pois tínhamos, no Centro de Saúde, Câ mara Cascudo ao vivo, com sua cultura ma jestosa, fala fluente e pictórica, os olhos claros e alerta de verdadeiro animal folclórico. 92 {ó
Abrindo o curso - série de apenas três palestras - o secretário da Comissão Espírito-Santense de Folclore e mestre do Guilherme Santos folclore capixaba, Neves, fez a apresentação do amigo, em estilo escorreito e merecido tom elogioso. Cascudo agradeceu fraterno, historiativo. Lembrou caso que se deu com o avô, quando pôs à venda, no interior do Rio Grande do Norte, sua magnífica fazenda. Depois de percorrê-la a cavalo com o interessado na compra ouviu dele tão efusivos elogios à terra que mudou de ideia, dizendo: - Eu não sabia que minha fazenda era tudo isso. E Cascudo arrematou que também ele não imaginava que fosse tudo aquilo que o vibrante apresentador falara a seu respeito. Dito o quê, mergulhou no tema da palestra tecida de improviso, a linguagem expressiva, o gesto coreográfico, o auditório suspenso na palma da mão, empolgado. Cenário seguinte, noite seguinte. Recin to repleto. Relógio em dose: oito horas, oito e quinze, oito e meia, nove horas - nada de 93
Câmara Cascudo. Tomada aberta do auditório: inquietação e ansiedade. Close no secretário da Comissão EspíritoSantense de Folclore: ansiedade e inquietação ao quadrado. Seu último contato com Cascudo fora à tarde quando o havia deixado na companhia de Paulo Veloso em começo de bela amizade. Às nove e dez, burburinho no recinto. Alívio. Mais do que alívio, alivio. Paulo Veloso aparece trazendo o esperado orador. Vinham, confrades, diretamente do bar Sagres. Cascudo mostrava o semblante ani mado, os olhos afogueados, num belo e folclórico porre. O tema da noite era a dança de roda do índio, mímica, ritual, sagrada, com panca das de pé e canto. Cascudo falava e batia o pé, mas a fluência não repetia a da véspera, a oratória ressentia-se de sortilégio, as pala vras iam e vinham como a dança de roda, sem sair do lugar. Diga-se agora, para a perfeita visualização da cena, que Cascudo estava na frente da mesa, sobre um estrado da altura 94
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de um degrau provocando o suspense no auditório. Não pela dança sagrada dos índi os mas devido à posição do orador cujo pé, volta e meia, escapulia do estrado e descia para o assoalho. Descia Cascudo e logo retornava ao estrado e à roda de índios, o corpo outra vez em perigo, o pé na beira do estrado, uma nova descida, os olhos afogueados, a fala sem brilho, a palestra em circunlóquio, os índios na roda, Cascudo no meio. A dança, ritual e mímica, não durou mais do que vinte minutos, sendo terminada por Renato Pacheco a pedido de Cascudo. Não houve vexame, não houve escândalo, afron ta não houve, os aplausos foram generosos, tratava-se de seleto auditório, tratava-se de Luís da Câmara Cascudo. Encerrada a sessão, o orador recebeu de Paulo Veloso, no fundo da sala, o abraço demorado da amizade nascente, no calor afetivo que vinha do Sagres.
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Renato Pacheco e Câmara Cascudo. Foto Guilherme Santos Neves.
As Cinzas das Horas
Na feira de antiguidades procuro a
mis
sa em latim e os quadros da via crucis. Mas o que vejo, no amplo espaço improvisado da exposição, no interior do shopping, são mó veis de vários estilos, bibelôs e carnafeus, louças genuinamente inglesas pintadas à inglesa, finíssimos cristais em mudas trans parências, a cadeira de balanço com encosto de palhinha posta em vazia quietude. Em frente, urna carna de viúva expõe seu triste e inglório desamparo. Ao pé dela, a escarradeira com florões azuis e obsceno orifício central é um escárnio à parte, suge rindo verdes bronquites em arfantes madru gadas. A peça com seus florões é a deixa para que o amigo que me acompanha (na verda 97
de foi ele quem me puxou para a exposição) conte-me certa historinha antiga, sacada do prodigioso repertório de sua memória. - Dizem - relata com voz de trovão - que Jerônimo Monteiro tinha um compadre, coronelão do interior, que, quando o visita va em palácio, cuspinhava rusticamente o luzidio assoalho da sala governamental. Antes de uma dessas visitas, Jerônimo man dou colocar escarradeiras próximas ao lugar onde o amigo costumava se sentar. Ele, porém, continuou a emplastrar o verniz do assoalho com as ostras do pigarro grosso até que, não se contendo mais, esbravejou: - Olha, Jeronho, é bom você mandar tirar esses vasos do chão senão vou acabar cuspindo neles. Delicio-me com a anedota observando o grande relógio de pé, em forma de móvel, a face branca vincada de algarismos romanos, o longo pêndulo terminando em aro solar. Consulto o antiquário que me informa, repassando com judia competência a percalina dos preços, que o relógio custa
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SI
1.600 dólares. É uma pechincha, parecem dizer seus olhinhos de connoisseur, pressen tindo, pelo meu interesse, a possibilidade da venda. Se lhe fizesse outra pergunta seria capaz de me chamar de Vossa Excelência, assim mesmo, por extenso. Eu, Vossa Exce lência, estaria fazendo um ótimo negócio. Calo-me, todavia, em intimista reserva. Não valia a pena explicar que estava apenas sondando o preço porque, em minha casa materna, temos um relógio semelhante àque le, mais nobre até, que se dá ao cacoete, que se tornou familiar, de repetir as horas em toques de sacristia como querendo frisar a fuga imbarrável da areia do tempo pela por ta da varanda. Durante anos vi e ouvi meu pai, na fun ção de cabeça do casal, dar corda ao relógio com a manivelinha retirada do interior da caixa do pêndulo, como de discreto bolsinho do colete. O ritual se repetia semanalmente, sem pre que os dois contrapesos cilíndricos, visí veis através da portinhola de vidro, quase bota\·am os calcanhares no chão, descendo 99
nos cordéis paralelos atrás do pêndulo dou rado. Movia-se o pêndulo em passadas cal mas dentro da caixa de jacarandá, fluíam os contrapesos imperceptivelmente nas linhas das horas. Envelhecíamos em família. Para dar corda ao relógio era preciso gen tileza e apreço para não desfazer o ponto de equilíbrio das caixas que o formavam, a do mostrador, a do pêndulo longilíneo e a da base. Quando o conjunto se desentrosava, o relógio parava, sensível. O retorno à posi ção anterior era complicado, exigia gestos meticulosos, tenta tivas sucessivas. Fazia-se necessário que meu pai, com paciência de relojoeiro, reaprumasse o grande móvel em seu corpo de três peças, o ouvido colado à caixa do pêndulo para melhor captar o mo vimento da terra em torno do sol. Vendo-o abraçado e de rosto colado ao corpo enorme, quase o dobro do seu, tinha a irônica impressão de que estava prestes a assistir, em plena sala, a uma dança ao som de tique-taques.
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s;
Hoje a dança se tornou um sonho e quem dá corda ao relógio é minha mãe. Mais bai xa do que meu pai, extrema-se em sua fragilidade octogenária para não tirar o relógio do eixo da precisão quando realimenta, com a pequena manivela, as molas do tempo. Reconsidero então a tabela dos preços folheada pelo antiquário com dedos de percalina. Tenho vontade de lhe dizer, ao deixar a feira: - 1.600 dólares é pouco, vale muito mais. Vale as cinzas das horas que já marcou.
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Memória Sob Medida
Em 1910, os poetas do Brasil eram sim bolistas, os romancistas, nem tanto, as escri toras menos ainda. Júlia Lopes de Almeida, escritora, veio a Vitória em 1910, na era Jerônimo Monteiro. Embarcou no trem da Leopoldina, no Rio de Janeiro, metida no guarda-pó bege e senhoril, e s e mandou para o Espírito Santo trazendo, no baú de viagem, vestidos longos, chapéus de plumas e de abas largas e a sombrinha de rendilhados. Teria a escritora estado no palácio do gover no, na Casa Verde, no Hotel Vitória ? Con sulto fotos da época e componho um jogo de suposições. Bem-me-quer, mal-me-quer. O Hotel Victoria ficava no n>! 20 da rua do Comércio. Intitulava-se pensão familiar 103
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e D & R Paoliello, os proprietários, garanti am ótima cozinha italiana, francesa e brasi leira. Não era para D.Júlia desprezar e o ho tel tinha fachadinha atraente e restaurante térreo. Teria a romancista deixado sua assi natura em letra caligráfica no grande livro de hóspedes? Passo à segunda pétala esmaecida. A grande Alfaiataria Resemini, de Resemini & Leone, especializada em roupas masculinas, ocupava prédio de esquina, no centro de Vi tória. O nome RESEMif\:I, garrafal, colava-se ao balcão de grades trabalhadas acima das portas da loja. Pelas portas passavam res peitáveis senhores de Vitória, trajando ter nos escuros, coletes, colarinhos duros, gra vatas emborboletadas, chapéus de feltro ou de palhinha, para encomendar novas fatiotas sob medida. A grande alfaiataria, correspondente de Carla Pareto e Cia., Agentes de Nápoles, ti nha imponentes armários com portas de vi dro e prateleiras para peças de casimira in glesa. Sobre duas cadeiras de assento de palhinha, logo à entrada, mais peças sobre104
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postas, perto do manequim com o paletó em fase de prova. Ao fundo, oficiais pedalavam máquinas de costura. Mais ao fundo, além da divisória de jacarandá, tinha domicílio a administração da casa. Do teto forrado de frisos pendiam lâmpadas ovoides, sob aba jures de latão branco. A luz elétrica, progres so recente da era Jerônimo Monteiro, não podia faltar à Grande Alfaiataria, digna re presentante do Banco de Nápoles em Vitó ria. Teria estado na Resemini a escritora sim bolista, mas nem tanto? Claro que não. Sua presença, neste ambiente masculino, pega ria mal. A rua da Alfândega - o nome, de origem árabe, sugere o tinir de moedas - era a arté ria mor do comércio de Vitória. A Flor de Maio, de Mametalla & Irmão, estava no n'"' 3. Era casa especializada - e aqui lhes digo que o tempo não passou na Flor de Maio em fazendas, armarinhos, roupas, perfuma rias, chapéus de sol e de cabeça, a preços razoáveis. A diferença da Flor de ontem para a Flor de hoje, na Praça Oito, é que os cha péus de sol passaram a guarda-chuvas, por105
que os de cabeça creio que ainda lá estão intactos. Do teto, mostrando que Mametalla & Irmão desconfiavam da luz elétrica que Jerônimo puxou de Duas Bocas, descia belo exemplar de lampião com pingentes de cris tal. Que compras teria feito na Flor de Maio nossa escritora visitante? No número 5 da mesma rua é que, sem dúvida, nada comprou. Tratava-se do esta belecimento de botinas, arreios, couros, ar tigos para viajantes, vendidos a varejo e ata cado, de José Padrenosso. O que iria fazer neste local Júlia Lopes de Almeida com suas plumas e a sombrinha rendilhada? Também não deve ter estado na oficina a vapor, de carpintaria, marcenaria, ferraria e serralheria, de Domingos Gomes Monteiro, nº 14. Sua figura de matrona elegante não se ajustaria ao ambiente da oficina de graxas e de pó de serra, onde se destacava a máqui na a vapor com jeito de locomotiva. A casa do Queima situava-se no 19 da rua da Alfândega. Duas portas, sobradinho es treito. Amorim & Cia anunciavam comple to sortimento de fazendas, modas, roupas, 106
ss
chapéus de sol e de cabeça (novamente eles), calçados e outros muitos artigos. No fundo da loja o aviso: venda exclusivamente a di nheiro, sem crase no a. Aplausos a Amorim & Cia. pela correção da linguagem e boa sor te nos seus negócios à vista. Mas D. Júlia deve ter passado ao largo, afugentada tal vez pela presença dos clientes masculinos, sentados à vontade no interior da loja, e pela visão das bengalas ensarilhadas à entrada, amarradas com barbantes. Lugar de homens, deve ter concluído, e seguiu adiante, emplumada e simbolista. Abreu e Silva, n" 23, dizia-se Casa Popu lar. Despertava atenção pela seguinte parti cularidade: das três portas, urna era inteira mente ocupada pela vitrine, expondo bolsas, cintos femininos, luvas, bonecas e, principal mente, vários modelos de leques para tépi dos abanos de pescoço nos dias encalorados do verão. Comprou ali D. Júlia sua ventarola de rendas e de cheiro ? Na pétala seguinte, neste bem-me-quer de fotos antigas e suposições vazias, vejo o Pan Americano de Rufino Antonio 107
d' Azevedo, oferecendo variedade de objetos de phantazia para presentes. A essas fantasias, no entanto, misturam-se ferragens, tintas a óleo, vernizes, vidraças e claraboias que estão longe de interessar a Júlia Lopes de Almeida na viagem de recreio por Vitória. Mais natural seria que atravessasse a rua para comprar sais aromáticos na Pharmacia Aguirre, na esquina oposta, nQ 33 da rua da Alfândega, 34 da Duque de Caxias. A farmácia ficava no prédio com balcões gradeados tendo, na janela central, mastro de bandeira e escudo de consulado. Pela foto, transmite idoneidade e inspira confiança, as meias portinholas de ferro abrindo-se para o acesso dos clientes. Dá vontade de ficar doente só para ir até lá. O Pan Americano e a Farmácia Aguirre assistiram à rua da Alfândega ceder lugar à avenida Jerônimo Monteiro e viram o apa recimento da Praça Oito. Mas não é hora para falar disso a Júlia Lopes de Almeida. Quando este tempo chegar a escritora já es tará pronta para virar verbete em compên dio de literatura. De sua passagem por Vitó108
ria talvez um dia se recuperem seus rastros de flocos em pรกginas sob medida, como sob medida se faziam os ternos na Resemini, onde a escritora nunca esteve.
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À Sombra das Brancas Nuvens de Maio
Não se mexe impunemente com o es crivão da frota. Digo melhor, em frase im perativa, de funesta profecia: não se mexa impunemente com o escrivão da frota. No entanto, nossos editores (meu e dos leitores de Você), mexeram. De chofre, sem aviso preventivo, sem pedido de licença, deslocaram da popa para a proa da caravela a cabine do escrivão. De um número para o outro da revista, à sombra das brancas nuvens de maio, realizaram a manobra de convés. Até parece que a revista deixou de navegar em maio só para que a mudança fosse feita, em porto seguro e ao abrigo dos ventos. 111
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De sorte que, quando me fui ler - escri tor que se ama se lê em primeiro lugar - no camarote habitual do castelo da popa onde já tinha rede pendurada em ganchos rangedores, eis que não me deparo mais ali. Sumira. Não escondo o susto que levei não me vendo no espelho, narcíseo. Foi tão forte e tamanho que invoquei o bruxo especular pedindo, rogando, diga, espelho meu, onde me puseram neste barco ou diga se, por cas tigo atroz, lançaram-me ao mar os editores, sem direito à prancha dos condenados. O silêncio do bruxo especular obrigou me a folhear nervosamente as páginas da re vista, de trás para diante. Deixando o Hermógenes de lado, passo aos saltos e empurrões pela marujada cos tumeira: o Gualberto, o Chaudanne, o pró prio Reinaldo, um dos editores, a Bernadette, o Francisco Aurélio, para me reencontrar, fi nalmente, em cabine noviça, ornada com escudinho de caravela na entrada e timãozinho de cinco pontas no canto do assoalho. 112
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Ora, pois, aqui me instalaram e com ca prichos. Ilustraram-me com redondeias a nanquim embora tais ilustrações me levas sem a recordar o episódio que contava Pau lo Veloso, e que já reproduzi na história de outra nau, do capitão do paquete que fazia viagens de cabotagem entre Vitória e São Mateus tendo dois chifres na portinhola do camarim. E quando algum curioso pergun tava ao velho lobo do mar sobre o significa do daqueles símbolos, respondia, instrutivo: - Um é meu, o outro de quem se casar com moça de São Mateus. Ao contrário dos cornos do capitão, que lhe davam insatisfação, os adornos postos na cabine do escrivão da frota tinham o pro pósito de garantir, com afagos à minha vai dade, a alte ração feita pelos meus atiladíssirnos editores. Enfeitavam-me a empada com duas redondas azeitonas para que eu não reclamasse e me sentisse com pensado, de uma felicidade inaugural, com as novas instalações. Maquiavélicos sois, pensei, cuspindo ao mar os dois caroços oli vais que já me amargavam o paladar. 113 91
Mesmo a contragosto, estava para dar o assunto por encerrado, conformando-me ao novo domicílio, se, logo a seguir - lembrem se de que eu corria a revista de trás para fren te - não tivesse posto os olhos na página de abertura, dita Começo de Conversa, onde en tra a palavra dos editores, solene e explicativa. E ali leio com todos os esses e erres, e muito rapapé, exatamente isto:" note o leitor que deslocamos o Escrivão da Frota para o nobre espaço antes ocupado pela crô nica de Roberto Mazzini ". Senti a bofetada, tremeram-me as pernas, o bruxo riu de mim dentro do espelho. Quer dizer, senhores editores, que o espaço ocu pado pelo Mazzini é que é o nobre e o anti go lugar do escrivão da frota é de plebeu? Que medida é esta que distingue a popa da proa na mesma embarcação? Ou seremos todos navegantes de uma nau de insensatos7 Não vou chegar ao ponto de dizer, estomagado e rude, que ou Mazzini ou Luís de Almeida, até porque ele já baixou de bor do, devendo andar por aí num escaler sem
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remos e sem rumo, a vela estropiada. Mas digo e requeiro, incisivo: devolvam-me à popa porque, na nobre proa, estou começan do a ficar enjoado e, enjoado, não respondo pelo aprume das próxímas crônicas de via gem.
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Balanço ao Embalo do Mavé-dici
Quando
a infância era folclórica a
do mavé-dici abria brincadeira chances de trabalho para quem quisesse ser alguém na vida. De um lado ficava a menina rica e sem filhos. Do outro à sua frente, a mãe pobre e, honrando o figurino, com filhos em penca. A família pobre, de mãos dadas, indo em ala 1 aberta ao encontro àa menina rica, cantava em coro : Eu sou pobre, pobre, pobre / de mavé, mavé-dici. Ao que respondia a rica, em movimento contrário: Eu sou rica, rica, rica / de mavé, mavé-dici. A brincadeira consistia, neste vaivém, na transferência dos filhos da pobreza para o lado da riqueza desde que a dona rica ofere117
cesse à mãe pobre, pelos filhos desta, ofícios que conviessem a cada membro da prole desvalida. Fui, muitas vezes, cedido por minha mãe, sem dó nem piedade, e ainda em alegre cantoria, pelos ofícios que me seduziam. Para ser médico, engenheiro, bombeiro, con dutor de bonde, deixei a barra da saia ma terna e caí no mundo. Mas não me lembro de ter sido dado pelo ofício de escritor. Se fui, certamente não me propuseram ser cro nista. Nas nossas cabeças revoltas não cabia a larga distância que há entre cronistas, ro mancistas e poetas. Ou se era escritor, de futuro garantido, ou se virava marinheiro ou varredor de rua. Na onda do mavé, mavé, não sobrava tempo para maiores sondagens vocacionais, detalhes de profissões. Era pe gar ou largar, que a pobreza é triste. De for ma que se. topava ou não se topava a pro posta da rica ofertante, e se ia em frente com o mavé-dici. Quando a revista Você começou a circu lar, faz dois anos, deram-me o ofício de cro nista. Não no primeiro número, mas no se118
gundo. Ofício e cargo: escrivão da frota. Ain da bem que não se tratava de cargo vitalí cio, cartório de um só escriba. É da regra da revista que seus Peros Vaz de Caminha se alternem na popa da caravela, sempre que possível. Graças ao quê, tenho sido rendido no posto, vez que outra. De minha parte, pelo mar de longo des ses dois anos, fiz o que pude para dar o meu recado ao rei. Naveguei entre balsedos e gaivotas espichando a vista para vislumbrar o topete azul dos montes pascalinos, à cata de perdidos eldorados. Plantei a minha vi nha sem saber se a terra dava uvas. E até hoje ignoro se delas extraí o transparente vinho branco, o espesso tinto, ou a chocha groselha. Rei nenhum dignou-se mandar-me de volta uma caravela com a resposta. Cons tantemente me pergunto se escrever é preci so, se fazer crônica é necessário. A crônica do escrivão da frota, na revista Você, parte de uma exigência dos editores a de contar um caso, de conter uma reminis cência, ser um episódio memorial. Nem sem pre segui à risca o modelo do manequim e 119
andei escapando, com a tolerância dos edi tores, da forma rígida da armadura. Dou-me a um balanço em retrospectiva. Enquanto Luiz Borges servia vinho em bandejas prateadas chutei para fora o pênalti de Marmorato, na Livraria A Edição, com parecendo no número 2. Fundei com Rena to Pacheco e Olegário Wanguestel um clube de montanhismo que, na verdade, na ver dade, nunca montanhou; vi do alto do Mes tre Álvaro parte do mapa do Espírito Santo; assisti Sacadura Cabral e Gago Coutinho amerrissarem em Vitória na visão da madru gada; revivi o Cine Trianon na companhia de meu pai, ficando cara a cara com as pe numbras de O Terceiro Homem; saudei Ma ria Tomba-Homem, reinando na Ilha do Príncipe; voltei ao Politeama no tempo das diligências; estendi manjubas ao sol entre os quitungos de Manguinhos; fiz o quebra-que bra em Vitória quando o Baependi foi a pi que; vi pelos olhos de Ivo o zepelim chegar de mansinho; merendei mexerica e pão com queijo no pé rupestre do Demo; juntei Vitó ria a Lisboa numa galeria de arte; participei 120 liJO
da oficina literária que teve por tema a crô nica e uma nuca de mulher por temática; vesti o azul e o verde de peroás e caramurus, dois peixes que se estranhavam sob a barba de São Benedito; dancei com Câmara Cascudo a dança de roda dos índios, a cara cheia de caju-amigo; revolvi as cinzas das horas no relógio a que meu pai dava corda; andei pela rua da Alfândega com Júlia Lopes de Almeida, na era Jerônimo Monteiro; la vrei meu formal p rotesto quando transferi ram da popa à proa a cabine do escrivão da frota, à sombra das brancas nuvens de maio. Podia ter sido médico, engenheiro, bom beiro, até dentista. Aceitei ser cronista, o ofí cio que me deram e pelo qual entrei nas pá ginas de Você, onde me fizeram cronista ho norário com muita honra e honorários pa gos em livros. Se dependesse disso para vi ver estaria ainda cantando, se a voz não ti vesse envelhecido, que sou pobre, pobre, pobre, de mavé, mavé-dici.
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Vilão Farto do Capitão dos Sonhos
Em sã consciência a vila não poderia ter sido fundada onde foi, espremida entre o mar e a montanha. Em sã consciência hou ve até quem dissesse que ela, armada em penedia e cercada de água, tornou-se habi tável por arte. De minha parte prefiro crer que a vila, com seu pelourinho e suas insígnias, nasceu das estrelas de uma consciência insana. Quando fundou a vila de Nossa Senhora da Vitória, no morro, à margem do braço contido de mar, o governador ainda não ti nha sido excomungado do bispo. Ainda não lhe tinha caído como um cutelo a condena ção terrível devido ao hábito de beber fumo. 123
Mas não se pode garantir que já então o governador não desse lá as suas puxadinhas, tragando a fumaça morna das ervas pela goela ávida e expelindo-a pelas ventas fora, à maneira indígena. Que erva era essa, daninha e maldita, que arrancou o esconjuro do bispo, não ouso di zer-lhe o nome. Mas era erva para deixar o governador enroscado num odor forte e vivo, tresandando a mato queimado ainda verde, o olhar opaco e ensimesmado como se as dilatadas pupilas contemplassem um novo eldorado explodindo em diamantes dentro do crânio. Para o bispo a nuvem tresandante chei rava a enxofre e tinha parte com o demo. Para o governador, o fumo sorvido em goladas tornara-se a própria razão de viver. Excomungado foi. Se o governador soprava o fumo pelas ventas fora em lufadas livres e espessas ou desenhando arabescos no ar, não conta a len da, nem registra a história. Ambas, porém, são unânimes em declarar que a desdita do governador foi tamanha, diante da episco124
pal excomunhão, que de desgosto se lhe aba teu o ânimo e muito padeceu sua alma. Dizem até que de corpo e feição envelhe ceu a olhos vistos, fosse pela excomunhão, fosse pela proibição que de acréscimo sapecou-lhe o prelado, tolhendo-o de se as sentar, na Bahia, em cadeira de espaldar, privilégio supremo de autoridades coloniais. Mas já que excomungado estava - irre mediavelmente perdido para o céu, irreme diavelmente reservado para o inferno mais fortemente tragou e baforou ventas afora. Navegar era preciso. E o fundador da vila de Nossa Senhora da Vitória foi um navegador contumaz. Tanto que acabou adestrado em duas diferentes formas de marinharia: uma, a navegação dos verdes mares da costa brasílica, litoral acima, litorai a baixo, ao sopro dos ventos alísios, na alternância dos paralelos ao norte do Espírito Santo; outra, a navegação nos mares dourados da mente sob a cálida efusão da erva em brasa, nos embalos do fumo. A primeira forma aprendeu-a mancebo, soldado a serviço do rei de Portugal, nos 125 f<l./
mares lusitanos e antilusitanos. A segunda, veio aprendê-la, veterano guerreiro, com os índios do Brasil. Tendo contra eles levanta do a incandescência das armas, graças a eles submeteu-se à incandescência dos delírios. A primeira forma de navegação era ma rítima e líquida. Nela o governador se fez nauta de oceanos desdobrados e anchos. A segunda era onírica e vaporosa. Nela o go vernador se fez navegante do imaginário, o corpo em terra, a cabeça no desvario dos sonhos. Nauta dos oceanos mostrou-se um homem de ação, fazendo da aventura seu roteiro de vida. Navegante do imaginário trocou a ação pela contemplação, a aventu ra pelo devaneio, inebriado pela alquimia alucinógena das fumaças. Na primeira forma de marinhar usava o astrolábio para fixar a certeza dos rumos ; na segunda flutuava na via láctea das alucinações. Capitão dos sonhos, este senhor Vasco Fernandes, que via serras de cristal nas pupilas dilatadas. Aqui me indago: mais do que a própria capitania que lhe doara el-rei não teria sido 126
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a vila de Nossa Senhora da Vitória o verdadeiro vilão-farto do excomungado, cuja fartura s ó ele era capaz de enxergar no alumbramento do fumo que lhe toldava a sã consciência? Quando fundou a vila na colina rente ao mar, contida entre a ilha e o continente, estaria sóbrio ou teria a lucidez rarefeita num delíquio estelar? A possibilidade do transe é que me leva a crer que a vila, habitável por arte, armada em penedia, cercada de água, foi fundada numa crise de estrelas.
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A Duras Pedras
Naquele tempo as ruas de Vitória eram calçadas a paralelepípedos. O paralelepípe do, como todos sabem, é um bloco de pedra em forma de paralelepípedo embora nem todos os blocos tivessem exatamente esta forma. Havia os grandes, os médios (que eram maioria) e alguns menores - é bom di zer menorinhos - que mais semelhavam cu bos. Estes, quando assentados nas ruas, de tão menores, destoavam dos demais, cha mando atenção como filhos caçulas das pe dreiras, postos no chão entre seus irmãos, de tamanho maior. Naquele tempo tiravam-se os paralelepí pedos manualmente das pedreiras; ou me lhor, das lascas das pedreiras, que as dina-
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mites abriam em lajes. Primeiro, o cavou queiro fazia uma fiada de furinhos na en costa da pedreira, a martelo e ponteira de ferro. Vez por outra, com uma canequinha de latão, atirava dentro do furo, que estava preparando, um pouco d'água para refrescálo. Ao contato com a água a pedra chiava como bicho ferido. Depois, com dedos destros e muito jeito, introduzia as bananas de dinamite nos buracos, quando não pocava a pedra a fogacho mesmo. Antes, porém, de acender o pavio, era mister interromper o trânsito próximo à pedreira (a do Saldanha era uma delas) com a bandeirola vermelha, que sinalizava perigo. Só aí explodia a crosta pondo o corisco de fogo no pavio. A chuva de pedras caía em fonte, enquanto a asa da pedreira se despregava do resto do corpo de granito. Feito isto, era sentar diante da pedra las cada e, à pedra lascada, entregar-se a decompô-la em paralelepípedos, na munhe ca. Para marcar o campo desse artesanato rupestre, o quebrador de pedras valia-se de um retângulo de latão, geralmente enferru130 /OS
jado - o quadro - que delimitava as ponteiradas. Os tais blocos menorinhos, su pra referidos, eram as sobras das lajes, as sim penso eu com meu atilado intelectualismo. Mas como este esclareci mento nunca procurei, também pode ser que eu esteja enganado. Na verdade, de pedra, a doutrina que sei, é que nela, que é dura, bate a água mole até que fura. Quando, finalmente, depois de muito martelar diário sob sol ou chuva, produzia se uma grandepilha de paralelepípedos, vi nha a caçamba da prefeitura e os levava para a rua a ser calçada. Esta já estava de leito preparado para receber o calçamento. A ca çamba chegava e despejava os blocos carroceria abaixo numa estrondosa cachoei ra de pedras rolantes. No chão, o calceteiro estendia a linha pre sa pelas extremidades em dois pregos, mar cando o alinhamento dos paralelepípedos a serem assentados. Cada paralelepípedo era colocado à mão, na camada grossa de areia espalhada previamente sobre a rua, parale lepípedo a paralelepípedo emparelha131
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damente. Quem quiser ter a ideia fiel deste trabalho basta juntar esta última frase numa palavra só: paralelepípedoaparalelepípedo emparelhadamente. A ferramenta usada para o serviço, que se fazia curvado, tinha, numa ponta, a pá, com que o calceteiro revolvia a areia; na ou tra, uma cabeça de martelo. Com a cabeça do martelete ele dava, no cocuruto de cada paralelepípedo, umas porradinhas estriden tes para que eles jamais pensassem em sair dali, exceto a poder de picaretas. Mas, como seguro morreu de velho, vinha em seguida o carro que mais parecia uma locomotiva, com seu grosso rolo compressor para passar e repassar sobre os paralelepípedos, compactando-os compactadinhos na rua concluída. Nem sopro do Diabo os retirava mais, e a rua ficava um capricho de feitura, dando-se o luxo de ter lombada para que a á gu a das chuvas, que não quisesse se infiltrar através da areia entre os paralelepípedos, chegasse ao meio-fio, entrasse nos bueiros e ganhasse o mar, que é para onde deve ir a água das chU\·as que caem nas cidades. 132 li,'
r
Assim, a duras pedras, calçavam-se as ruas da cidade antiga. Por que este assunto me veio à baila? A resposta está nas fotos de Mazzei reproduzidas nesta edição, com ruas de paralelepípedos onde passavam honoráveis Citroens ao lado de carroças pu xadas a burro.
" Pavimentação da avenida Vitória, anos 1940. Acervo Arquivo Geral da Prefeitura de Vitória.
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11 I
A Foto da Capa
Somos todos, novo se antigos, cavaleiros
da távola redonda, graduados por estrelas de diferentes gerações. É uma távola com tampo de vidro onde pousam xicrinhas de café e as últimas novidades literárias, insulares e peninsulares, na livraria Logos. Grijó, o jovem, ergue o livro Escritos de Vitória - Cinemas, tendo na capa a foto do cine Glória vis-à-vis com o extinto Banco Hypothecario e Agrícola do Estado de Minas Geraes, e indaga - Onde está o café Avenida? A pergunta provoca um frisson de nos
talgia na espinha dos tavoleiros antigos e quem, por eles, antecipa a resposta é o João Bonino: 135 li}
- Você está no café Avenida. Com efeito, a foto, tirada pelo Paes em 1936, não deixa dúvidas: todos nós - ou apenas nosotros, os tavoleiros mais graduados, pluralizados numa expressão de bolero - nosotros estamos realmente no café Avenida, no ponto de vista da foto. Era quase como se o Paes, de palito ainda nos dentes, a xicrinha de café esvaziada sobre a mesinha do Avenida, nela tivesse apoiado os cotovelos e clicado dalio seu preto-e-branco do centro de Vitória. Dava até para ver, em primeiro plano, o beiço da calçada do Avenida antes do tapetão de paralelepípedos que se embrenhampe a Jerônimo Monteiro, em direção à praça Oito. Alguns detalhes miúdos chamam a atenção, e digo miúdos apenas no tamanho: raros transeuntes, todos homens, de chapéus e ternos brancos ou escuros; os fordes de bigode com capota de lona negra estacionados ao lado do Hypothecario, na praça da Independência (Costa Pereira), comprovando a antiguidade daquele ponto de táxi (perdão, ponto de carros de praça); o solitário 136
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sinal de trânsito, que ninguém ousaria cha mar de semáforo com medo de ser expulso da cidade, em frente ao Glória, certamente apagado para poupar energia porque o trân sito era nenhum; as paralelas dos bondes vazando a Jerônimo Monteiro, rente aos pos tes no meio da rua com suas luminárias bo judas ou volteando rumo à Costa Pereira para dar passagem ao bonde circular que, entretanto, não aparece na foto, uma pena. Alguns detalhes graúdos, e falo graúdos também só no tamanho: o primeiro deles, o Glória com seu ar de mamute e seu boné planetário de enigmática utilidade. Tento a olho nu ler o título do filme no letreiro garrafal mas nem com a lupa consigo. Enfraqueceume a vista ou foram as lupas que perderam a potência? Mais detalhes. O Ba nco Hypothecario está na esquina oposta com seu estilo neo-clássico e o bico chanfrado, abrindo-se em janelas para os ventos da tarde. Ainda é cedo para eu ir lá e levantar meu primeiro papagaio, tornando me devedor urbano de um banco rural. 137 I /./
Estamos apenas em 1936, tenho três anos de idade e ouço, vindo do berço que a mão materna beija e balança, os vagidos do irmão João Luís que acaba de nascer - Tito Lívio, o gerente, que me aguarde até os anos cinquenta. Passa rápido. Na outra esquina, diante do Glória, apa rece a barriga branca do sobradinho de dois andares onde funcio nou a Western Telegraph Company. É onde está hoje o edi fício Martinho de Freitas, um prédio que sem querer ofender o Taneco - tem cara de Vila Rubim. Foi naquele sobradinho, nas garras de aço do torquemada Ataliba Cabral, que sofri minha primeira extração de dentes, deixan do-me a bochecha inchada durante uma se mana e, para o resto da vida, a ojeriza a dentista. Ali também, no térreo antes ocupado pela Western, meu pai, que um dia foi pa deiro, ou melhor, dono de padaria, abriu, na década de quarenta, o depósito da Padaria Electrica para conquistar o mercado consu midor do centro da cidade, como diria Ivan Borgo, um dos tavoleiros da mesa de vidro. 138
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O pão era transportado até o depósito num triciclo a motor, com bagageiro dianteiro, azul-brilhante. A padaria ficava na rua Misael Pena ou da Santa Casa, em baixo da casa do meu avô paterno que, além de um dos seus sócios, era principalmente médico, como meu pai era principalmente professor. Entregue a dois profissionais liberais, a padaria não se fez longeva, apesar de ter servido bravamente para alimentar de pão grátis duas gerações da família. Bastava fazer a encomenda do sagrado alimento pelo telefone de parede com gancho lateral, auscultador em forma de sino e fone de focinho. O número, que tinha de ser pedido à telefonista, era 382. Só isto e estava assegurado o pão nosso de to das as manhãs e do lanche da tarde de todos os dias. Alô, 382, por favor. A família cres cia panificada e feliz. Hoje, as távolas redondas são literárias, os telefones são celulares. Talvez, se houves se um deles à mão, pudéssemos ouvir a se guinte chamada:
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-Alô, é do café Avenida? É o João Bonino quem fala, estamos em 1994, o século está prestes a virar a quilometragem, somos os cavaleiros da távola de vidro e Grijó, o Jo vem, quer saber onde está o café Avenida. O que devo dizer a ele7
Teatro Glória. Foto Isauro Rodrigues.
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Meu Nome Não é Arthur Gordon Pym
À
amiga, leitora de Você, que me na esquina sobre a identidade gou inda secreta de Luís de Almeida, respondo que meu nome não é Arthur Gordon Pym, não nasci em Nantucket, onde meu pai nunca esteve, nem foi, portanto, um conceituado comerciante, fornecedor da Marinha. Meu nome é Enéias7 Também não. Menos ainda Edgar Allan Poe, Leopold Bloom, Quincas Borba ou Javert. Diante destas exclusões crescem as probabilidades de que eu me chame Antônio, Torquato, Ricardo, Vespasiano, Tito, Domiciano, Virgulino. Virgulino era o nome de Lampião Virgulino Ferreira, se não me engano - e ain141 /IS
da ouço, vinda da névoa distante de uma cadeira de balanço, a toada Lamp, Lamp, Lamp,/ lamparina, lampião, / Quem tiver mu lher bonita/ Não a mostre a Lampião, cantada aos meus ouvidos como canção de ninar. Mas também não me chamo Lampião. Quantas outras possibilidades de nomes me sobram? Quantos nomes haverá para os humanos? A lista é farta e se fosse percorrê la à cata da minha identidade de cronista seria preferível parar por aqui para não me tornar um chato. Há porém uma questão nova que agora me surge. É a de saber até onde sou um hu mano. Trata-se de questão fundamental para que possa tentar responder à amiga indagadora. Pois para que eu tenha um nome é preciso que eu seja uma criatura de carne e osso, de esqueleto, epiderme, pelos nos lugares certos, vasos capilares pulsantes, nervos, sobretudo nervos e neurônios. Caso contrário, a falta de substância humana pré existiria à necessidade de que eu tivesse uma identidade pessoal. Pra que a identidade se não sou nada 1 142
I /')
Recuso-me, porém, a aceitar meu niilismo. Se estou sendo capaz de articular este intrincado jogo de perguntas, embora até agora sem vislumbre de resposta, é por que sou de fato alguém. O alguém que pro vocou a curiosidade da amiga da esquina. Alguém que escreve, que raciocina, que pen sa. E, se penso, logo existo, como demonstra a frase logotípica de Descartes provando minha condição humana. Sou, portanto, al guém, e me reconheço feliz cutucando-me, coçando-me, assoviando, pensando, escre vendo. É isto? Ledo engano, dileta amiga. Uma coisa é pensar e, pensando, se sentir vivo e meditabundo. Outra, bem diferente, é pen sar escrevendo. Na primeira hipótese a verdade cartesiana é plena, redonda, axiomática. Quem pensa, existe. No segundo caso, po rém, ela não tem aplicação. Ou melhor, sua aplicação se dá com a negativa imperando na enunciação da verdade, a frase podendo ser subvertida nestes termos decisivos: se escre\·o, não existo. Absurdo? Absolutamen143 J ''
te. Acompanhe-me, amiga leitora, o raciocí nio estribado nos teóricos da narrativa. Quem se dá ao ofício de escrever, dizem eles, narra alguma coisa a alguém, que o verbo narrar é transitivo e pede complemen to. Um complemento atento e receptivo que, para maior comodidade deve estar sentado em cadeira de balanço ou naquelas espre guiçadeiras tranquilíssimas de convés de navio, nos cruzeiros turísticos. Mas, pelo próprio ato de narrar, ou seja, de escrever, quem escreve se volatiliza, vira narrador, uma voz que cochicha no ouvido de quem lê - são os teóricos que dizem. Assim a narrativa de um certo Arthur Gordon Pym não é a narrativa de um certo Arthur Gordon Pym, tampouco a de um se nhor habitualmente vestido de preto chama do Edgar Allan Poe, porque, não sendo Gordon Pym ele próprio, senão uma voz que fala em surdina, não poderia esta voz ser também Allan Poe. Nem por isto reduziram se a pó Arthur Gordon Pym e Edgar Allan Poe. A narrativa do primeiro, que, confor me se diz, foi editada pelo segundo, sobre144
Ili
vive, íntegra e perfeita, soprada ou não do além, nos ouvidos de quem a ouça. Veja, lei tora curiosa, até onde nos leva a teoria da narrativa. Mas não paremos aqui nesta labiríntica busca de um deslustrado cronista. Avancernos na escala da curiosidade. Corno deve se comportar a interessante teoria da voz aplicada ao campo da poesia? Já Bocage não sou, disse, contrito, Manoel Maria Barbosa du. Ao dizê-lo, inspirado pela estrela azul da conversão, deixou instantanearnente de ser o Bocage estroina de anedotário para se transformar em outro ente, redimido e espiritualizado. Um novo Bocage? Não, minha cara amiga. Pela teoria da voz, Bocage tornou-se apenas uma voz dizendo o seu soneto de contrição. Como pessoa o Bocage convertido nunca chegou a existir porque seu propósito de mudança de vida se despersonalizou no caminho luminoso da conversão, mal ele grafou a frase famosa. Quem sabe se não foi por isto que Manoel Maria Barbosa du Bocage continuou a ser, na lembrança das 145
g entes, o velho Bocag e das anedotas esca brosas7 Depois de tão longa digressão, minha cara leitora que me interrogou na esquina, é hora de juntar as pistas - ou ecos? - do que bra-cabeça e de chegar à solução do peque no mistério que nos está ocupando, a identi dade de Luís de Almeida. Que, como já lhe deve ter estalado no espírito vivaz, não deve ser procurada numa pessoa ou em um nome, mas sim numa voz. Voz muito sua conheci da que lhe sussurrou ao ouvido, o tempo todo, o texto desta crônica. Ou seja - Luís de Almeida é você, leitora curiosa. Elementar?
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Torrão Natal
O capixaba Luís de Almeida ama com fé e orgulho a terra em que nasceu. Olha que céu (de Vitória), que mar (de Manguinhos), que rios (o Cricaré e o Jucu), que florestas (da Aracruz Celulose) e conclui, ufano como quem conhece bem o terreiro em que vive aqui a natureza perpetuamente em festa. Tanta exaltação pelo torrão natal faz de Luís de Almeida um capixaba da gema, for jado no mais genuíno plasma espírito santense. E faz com que ele tenha se sentido a vida toda um privilegiado, nascendo onde nasceu. Para Luís de Almeida o mundo todo, Londres, Copenhague, Bagdá, Macondo, o cinturão equatoriano e as calotas polares, tudo não passa de quintal do seu rincão de 147
origem. Estão ou além do rio Itaúnas ou abai xo do Itabapoana, o que significa que pos suem difusas longitudes e latitudes, a leste e a oeste de um indefinido Greenwich. São áreas descartáveis das cartas geográficas. Os óculos de Pangloss deste capixaba da gema, que lhe permitem esta visão pessoal da sua terra, têm lentes de duas cores, uma azul, outra rosa. São as cores da bandeira do seu estado natal, as duas mais belas cores que seus olhos logram distinguir. Através da lente azul, ele contempla, enlevado, a serra do mestre Álvaro, o pico da Bandeira, o monte Agá, a pedra Azul, cuja cor a lente do mesmo tom ajuda a acentuar. Ela lhe possi bilita ver ainda traços de suave anil nas águas que despencam da cachoeira da Fu maça ou faz sobressair o matiz negro azulado das penas dos beija-flores. Já através da lente rosa dos seus óculos, o capixaba da gema se deslumbra com o roxo da terra que produz o saboroso café do Es pírito Santo, se empo lga com o tom ferruginoso dos vagões que transportam o minério dos arrasados itabiras para a expor148
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tação pelo porto de Tubarão, queda-se, em basbacado, diante do pôr-do-sol de Cola tina, o terceiro mais belo do mundo. Da bandeira do seu estado o nosso Luís de Almeida sofre também uma segunda fortíssima influência : ele trabalha e confia. Trabalha como se tudo dependesse dele e confia como se tudo dependesse de Deus. É assim um crédulo na mais etimológica acepção da palavra. E crédulo de nascença. A tanto vai a sua credulidade que ele admite que se possa ir a todos os lugares do mundo - ou até não se ir - mas viver mesmo só em Vitória, na delíci a de ilha que é Vitória.E esta credulidade é tamanha, vejam vocês, que Luís de Almeida crê piamente que existiu outrora uma tribo selvática e insular que deu à delícia de ilha o nome de Ilha do Mel. Guananira era como a chamavam os selvagens de beira-mar, que levavam a vida que pediram a Tupã, alimentando-se de pei xes, lagostas, caranguejos, e procriando curumins. Chamavam mas não escreviam porque eram tempos agráficos aqueles e o máximo a que tinham evoluído os 149 126
guananirenses, em matéria de expressar em esgrafitos o que lhes ia na mente, foi gravar o desenho de colmeias nas longas folhas dos gravatás para significar o nome de sua terra paradisíaca. A credulice de Luís de Almeida, em relação à terra natal, não para nesses prolegômenos de história, ou melhor, de préhistória. Sem nunca ter visto uma sueca de perto, daquele jeito que uma verdadeira sueca merece ser vista, ele acha que a mulher capixaba é a mais linda do mundo; sem le var em conta centenas de estâncias hidrominerais espalhadas pelos quatro can tos do globo, ele apregoa que cidade-saúde é Guarapari; sem sair procurando de lupa em punho o exotismo misterioso de vilarejos e metrópoles, gargalha orgulhosamente que Cachoeiro de Itapemirim é a capital secreta do mundo, berço de sumidades. Moqueca, por exemplo, diz Luís de Almeida de boca cheia, só capixaba, o resto é peixada. Luís de Almeida chega a jurar - confis são das confissões - que Domingos Martins 150
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foi o maior herói capixaba, mártir da inde pendência duplamente injustiçado, uma porque foi executado como infame, outra, por não lhe terem permitido acabar a frase terminal. Mas não fica aí. Fã de Maria Ortiz, a quem considera símbolo da mulher capixaba, Luís de Almeida tem a plena con vicção de que, se não fosse o tacho de água fervente que ela despejou sobre os holande ses, hoje o Espírito Santo seria um enclave batavo ao sul da Bahia tendo o luteranismo como religião oficial e onde não teriam vez o ticumbi, as bandas de congo e os orixás, que tristeza. Querem saber de mais? Pois lhes digo baixinho: Luís de Almeida crê também, este nosso crédulo capixaba, que é de Anchieta a tíbia que está no museu de Anchieta, que é absolutamente verdadeira a lenda do frade e da freira, que anjos guerreiros baixaram em revoada bélica para defender o conven to da Penha do saque dos corsários flamengos. Vou além, abro a alma. Sem medo de co rar digo que Luís de Almeida acredita que 151 l:!S
Deus é brasileiro e que nasceu no Espírito Santo, numa tosca manjedoura armada onde está hoje a capela de Santa Luzia, o que fez com que Vitória, a ilha do Mel, a doce Guananira dos índios selváticos, se tornasse conhecida com o nome de cidade presépio. Senhor deste credo, tesouro de ternas convicções, nosso protacronista vive feliz como descendente direto dos primitivos tupiniquins. É esta pureza de sentimentos que lhe permite, nas noites de céu límpido e profundo, admirar a estrela que se intromete entre as de maior magnitude que formam o Cruzeiro do Sul e que representa o estado do Espírito Santo na esfera azul celeste da bandeira nacional. E basta que a noite baixe pachorrenta e a discreta estrelinha apareça para que Luís de Almeida, a mão patrioticamente pousada sobre o peito, solte a voz e cante com entusiasmo infantil o verso inicial do hino do seu torrão natal - surge ao longe a estrela intrometida...
Foto Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2015.
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Blue Moon e Lobisomem
Vamos por partes: sei que esta página é
reservada a crônica do escrivão da frota e que o que tenho a dizer melhor estaria enfarpelado num conto. Mas exatamente porque não disponho de outro cômodo, a não ser esta quitinete sem banheiro, o jeito foi enfiar, no espremido espaço desta cabi ne, o que pretendo narrar. E crer que passe por crônica o que podia ser conto (crônica não é tudo que o autor diz que é crônica, ou esta é a definição de conto?), sem que meus poucos leitores venham a reclamar aos edi tores da revista. Isto posto, entremos no as sunto. Estávamos na carna red onda do motel, transpirá\·arnos eu mais do que ela - no 153 -' 1-'·
esforço vão de terminar bem o que começamos cheios de disposição e esperança. Apesar, porém, do meu aflitivo empenho, toda ela, seu ser inteiro, dentro e fora, mantinhase intangível em sua essência cósmica de mulher, sem um arrepio de pele, sem um estremeção de prazer, sem um ai gemido ou um ui chorado, nada que prenunciasse sequer o simulacro de um delíquio piedoso. Piedoso para o meu desesperado esforço, bem entendido. Vendo a inutilidade do meu afã, o evanescer infrutífero das minhas já escassas energias, desmontei. Literalmente. Rolando para o lado, esvaindo-me em suor, proferi a única frase então proferível: - Não dá. Desculpe-me, querida (eu ainda pedia desculpa), mas não dá. Sem traumas e sem ressentimentos, cheguei ao limite das minhas pobres forças. Talvez outro dia, quem sabe .. Desanimada e triste, ela deu um melancólico suspiro sob as pálpebras semi-cerradas e trêmulas, como se não estivessem ligadas à imobilidade do seu corpo nu, e começou a chorar de mansinho, um choro miúdo e de154
!SI
samparado. Enquanto as lágrimas escorriam pela face em direção a o travesseiro amarfanhado, falou, num pio de voz: - A culpa é só minha. Tudo porque te nho fixação em lobisomem. Vivo desejando ser violentada por lobisomem, de preferên cia ao som de Blue Moon. Pode? Pensei não ter ouvido bem. - Você disse lobisomem? - Disse. Não tem mulher que tem obsessão por cavalo, chicote de trancinhas, sunguinhas prateadas? A minha é por lobisomem, daqueles de dentes pontiagudos, lín gua rubra e fauce negra. Por isto não gozei. Por isto não tenho gozado há muito, muito tempo, oh, há quanto tempo. E sempre que tento termina assim, em bruta frustração e lágrimas. Pronto, desabafei. Ficou mais aliviado? Na verdade, eu ficava mais aliviado, embora inteiramente surpreso. Sentindo-me condoído da sina da minha amiga, perguntei - Por que você não procura um analista? - Já procurei. Mas os poucos que consul-
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tei acabam querendo me trazer para a cama. Isto é ético ? Disse-lhe que não só não era ético como admitia até denúncia ao Conselho de Medi cina. Às vezes eles costumam levar o caso pra frente - acrescentei. E, ao dizer-lhe isto, já estava querendo encaminhá-la a alguém competente e sério. - Olha, eu tenho um amigo que é hipno analista. Culto, fino, decente, senhor de co mandos hipnóticos infalíveis. Quer que eu faça um bilhete de apresentação ? Quis. O coração cheio de festa, quis. Ao lhe entregar o bilhete, reforcei-lhe a expec tativa: - Dentro de dois meses você será outra mulher. Me telefone e vamos comemorar, desfazer a má impressão deste malsinado encontro (foi malsinado mesmo que eu dis se). Combinado? Combinamos. Não foram dois meses, mas três. Telefo nou-me, animadíssima, e foi logo dizendo, cheia de risos: - Sabe, seu amigo é mesmo bom. Sinto156
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me outra, renovada. Renovada não, redescoberta. Quer ter a prova? Aliás - fri sou - eu preciso ter a prova, preciso muito. - Ao som de Blue Moon? - perguntei, irônico. - Isto são águas passadas ... - me devol veu, parecendo feliz. Antevi seu corpo escultural, suas pernas firmes e sensuais, a pele macia, o hálito quen te, os cabelos Mademoiselle, aquele olhar de miopia que já era um começo de orgasmo. Claro que aceitei tirar a prova dos nove. Juntos, tratei-a com dedos de chinês que toca em biscuí à procura de ressonâncias de cristal. Avancei meticulosamente, controlan do ousadias, evitando precipitações. Não queria me arriscar outra vez a cair da mon taria. Quando o momento pareceu maduro, cavalguei-a como mocinho de faroeste ento ando oh Suzana, em desolados alabames. Mas apesar das minhas esporas de velu do, apesar da proclamada competência do meu amigo hipno-analista e de seus coman dos hipnóticos, apesar de toda a boa dispo157 1 ;J
sição que ela, ardorosa, se impôs em busca da cura, foi preciso que, atendendo a seus loucos apelos, eu uivasse como um lobo para que seu êxtase se consumasse. Minha sofri da amiga não estava ainda completamente curada. Mas melhorara bastante.
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Crônica em Que se Fala de Atravessadores, Desolações e Alabamas
Todo
atravessador é um intrometido.
Pou-co importa seja intrometido nas grandes negociatas ou atravessador de textos. Os primeiros agem movidos pela ganância. Os segundos, pela presunção corrigem errado o que consideram certo ou consideram errado o que foi corretamente corrigido. São imperdoáveis pecados. Por isto na minha opinião, todo atravessador devia usar sambenito ou roupa semelhante que o expusesse à execração pública. Quando nada um símbolo de fácil identificação, pregável no peito como a estrela amarela dos judeus. Mas, como são tantos os atravessadores neste 159 156
país, acho que os não identificados com a marca execrável é que seriam os verdadei ros discriminados. Ou seja, tudo ficaria no mesmo, todo o poder, como agora, empolgado pelos atravessadores. Que estão em toda parte, infiltrados nas mais impensáveis atividades laborativas ou elaborativas. Eu mesmo tive a prova disso, nas páginas de Você. Tudo começou quando estava escreven do a crônica Blue Moon e Lobisomem, publicada no número de junho da revista. Navegava eu, de velas pandas, na altura do penúltimo parágrafo, embalado em fluência de que às vezes (nem sempre) me vejo to mado e que até me surpreende, quando me bateu em cheio a expressão, encaixadinha e preciosa, joia encastoada na corrente do pensamento: alabamas, desolados alabamas. Ao me preparar para escrevê-la, porém, um sinal de alerta, com assovio e tudo, piscou vermelho dentro do meu cérebro. Epa, me disse, escrupuloso. Esta palavrinha não é minha, ela pertence ao meu amigo Ivan Borgo que a escreveu outro dia para o pre160
1ST
âmbulo, batizado de Prelúdio, do livro Mu lheres - Diversa Caligrafia Eu havia lido o texto rapidamente, na Livraria Logos, onde a ideia da obra nasceu, e achava que meu subconsciente me devolvia o termo surrupiado do bolso do amigo, num gesto de prestidigitação indecoroso. Freei nas quatro rodas. E, já que freei, e pus a bola em cima da marca, façamos uma paradinha à la Pelé para uma batida de pênalti, que é azado o momento. O livro Mulheres - Diversa Caligrafia, dei xem que o diga, é uma coletânea de contos sobre mulheres, escritos por sete autores capixabas (entre eles, mim), que foi projetado para ser erótico, mas cuja carga de erotismo (sossegue a tradicional família capixaba, se é que isto ainda existe) saiu aos autores aquém de suas programadas disposições e iniciais expectativas. No projeto, um dó de peito erótico, fradesco e dom-juânico; no papel, um fá-sol-lá-si menos ousado, de tonsura comedida, mas - ponhamos a azeitona que a empada merece - com suas virtuosidades. E nãofalode mim, entre eles. 161 !SS
Pois é este livro que tem, no estandarte da proa, a introdução de Ivan Borgo, aplai nando o terreno, recebendo os convidados na entrada, dizendo o que é que o leitor terá pela frente, o que pode esperar da diversa caligrafia sobre as mulheres dos contos. Fei to o gol, voltemos ao ponto em que demos a paradinha. Foi nesse saguão de recepção, natural mente ornado de festivas bandeirolas e ren dadas sanefas, que eu jurava ter visto a ex pressão alabama, que me veio ceruleamente como anjo de madeixas louras e mimosas coxas (estarei me teimando pedófilo?) para ter assento no penúltimo parágrafo da crô nica sobre a lua melancólica e o lobisomem azul - ou vice-versa. E veio à feição, tão à feição e figurativa que confesso ter sentido pelo amigo, que me precedera no seu uso, certo ressentimento literário, este tipo de irritação que entre amigos é permitido sem que esculhambe a inteireza de uma longa amizade. Mas, que fazer 7 O jeito foi mudar a expressão por outra que lhe ficasse à altu ra ou meia-altura, evitando ao máximo des162
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colorir a frase onde se encaixava, mas res peitando o direito de usucapião do amigo. E foi o que fiz, com alguma mágoa. Mas, na primeira oportunidade em que estive com Ivan, já que não tinha cópia do texto de introdução ao livro por ele preludiado, perguntei-lhe francamente se tinha usado a expressão alabama na apresentação dos contistas capixabas e suas diversificadas mulheres. Ele me olhou meio surpreso da pergunta, mais surpreso ainda da minha dúvida, e respondeu com um não categórico e redentor. Não7 Não mesmo? Então a palavrinha é minha, sou dela senhor e dono, posso dela me reapossar impunemente, reintroduzi-la na crônica onde o meu escrúpulo a impedira de ter vez7 Pode - disse-me o amigo. E rimos juntos, ele por me ter dado a alforria para o uso da expressão que nunca fizera parte do seu patrimônio literário e eu por ter recuperado o que sempre fora meu por direito de criação, franco de sisa ou de qualquer outro tributo. 163
Preparei-me, então, para fazer a alteração da frase que, por motivos imaginários, mudara antes. Como a crônica estava em fase de digitação, armei o bote para matar o assunto no momento da revisão, a que teria acesso por intermédio de um dos editores da revista. Chegada a hora, a alteração foi feita com tinta vermelha, para ficar sanguineamente visível e para que não pairassem dúvidas sobre como deveria figurar a frase na forma final, recuperada em toda a plenitude de sua força expressional: "Quando o momento pareceu maduro, cavalguei-a como mocinho de faroeste entoando oh Suzana, em desola dos alabamas". Não sei se gostaram da imagem, mas a mim, autoria à parte, pareceu um achado aqueles desolados alabamas, bem casadinhos com o oh Susana, da canção do velho oeste. A expressão me fazia ouvir os cascos do cavalo batendo no solo duro e po eirento das pradarias ondulantes ou ecoan do entre os barrancos a pique dos grandes despenhadeiros.
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Além da frase ficar gravada ao rubro, à margem do texto revisado, narrei ao editor o modo como me reinvesti no uso do termo alabama que por pouco saíra da crônica. Dei de tudo boa conta em minúcias informati vas. Repeti até o não, categórico e redentor, que ouvi de quem eu pensara ser o pai da criança, quando o filho era verdadeiramen te meu, chorava nos meus braços um choro filial que me afagava o ego. Repito: dei de tudo boa conta ao editor, que me dera vista da crônica no momento da revisão. Depois disso, posto meu intelecto em coxim de felicidade, bem calharia a tanta satisfação um caloroso cálice de vinho do Porto, se vinho do Porto fosse a bebida do meu agrado. Ai de mim, porém, vinho do Porto. Lá diz o povo que o homem põe e Deus dispõe. Pois cumpriu-se o adágio. Publicada a crônica, quando vou lê-la, o castigo à mi nha vaidade veio a cavalo, diria até que ao som de oh Susana. Ao invés dos desolados alabamas, meus dignos editores brindaram me com esta coisa sem nome e sem sentido 165 !./:!
desolados alabames - que só pode ter saído da lavra de algum atravessador de texto. A-LA-BA-MES. Que coisa és? Por isso peço, sambenito neles!
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O Coração da Matéria
Bate ao meu lado, há mais de quarenta anos, um nobre coração de mulher. Pois é este coração - chamemo-lo T - que me cumpre levar a São Paulo para receber três pontes de safena. O diagnóstico salta como serpente da penumbra das chapas, dado por quem sabe ler a linguagem fria das sombras. A cirurgia inadiável é uma sentença de vida, vida que pulsa milagrosamente em tênues capilaridades, sustentando-se numa teia de sangue. Um abalo mais forte pode pôr a perder o rendilhado sanguíneo, em suspenso equilíbrio. Prontamente edifica-se em torno de T uma catedral de cuidados. ,Nada de esforço, repouso absoluto Pisa-se em ovos. Se ainda ontem T dirigia automóvel e cortava com o 167 /.li
tesourão pesado as gramíneas do jardim, era porque não havia aparecido no espelho das radiografias a imagem emboscada da morte. Agora vive-se o signo da expectativa, a era dos monocordis e adalats. Lança-se, em paralelo, uma rede de contatos e providências para acelerar a internação. É preciso definir-se a equipe cirúrgica na Beneficência Portuguesa, reservar a vaga da paciente no mapa das cirurgias - é assim que se diz. Parentes e amigos entram com o conforto das palavras propiciatórias - tudo vai dar certo. Orações trazem o conforto da esperança e da fé. Conhecidos que já pas saram pelo mesmo transe fornecem dicas preciosas, exoperados transmitem tran quilidade com o abono da cicatriz que exibem no peito. Tudo vai dar certo, mas é o coração de T que será exposto ao vivo à competência da técnica cirúrgica, num momento de intransferível solidão. Uma questão antepõe-se à \'iagem: é a viagem em si mesma, o modo apropriado de
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fazê-la_ Suportará o nobre coração um vá cuo brusco em pleno voo, num simples avião de carreira, ou é prudente que se contrate maca voadora, uma UTI do ar, para fazer o seu transporte a São Paulo? Ouvido o médi co, arca-se com a decisão: o nobre coração subirá devagarinho, pé-ante-pé, a escada estreita de uma aeronave comum, na prio ridade do embarque assegurado a crianças, grávidas e enfermos_ Deste modo chegará a destino para ser operado por cirurgião de renome pois faz parte do jogo, nesta hora conturbada, que se entregue o coração sob ameaça ao melhor cirurgião na matéria_ À espera do dia, surge no hospital um elemento a mais de tensão_ Mercês, a assis tente social, me convoca para avisar que devo conseguir doadores de sangue. Expli co-lhe que sou um estrangeiro semi-desvai rado na desvairada pauliceia e peço-lhe mercê para o meu caso. Intransigente, ela sugere que eu procure doadores na agência local do Banestes, onde crê que deverei me recer a solidariedade de p o ssíveis conterrâneos_ Lembro-lhe que é sexta-feira, 169 /.16
16:00 horas. Mas Mercês cumpre à risca sua ávida missão de legionária de Drácula: - Com um pouco de boa vontade o se nhor consegue. Pergunto por perguntar quantos seriam esses doadores. - Vinte - me responde ela, inabalável. Tenho ímpetos de dizer que só se fretar dois times de futebol em Vitória, mas me calo, cauteloso. Pelas preciosas dicas recebi das antes da viagem fiquei sabendo que a falta de doadores não impediria a cirurgia. Que, por sinal, correu bem, sem que eu re corresse ao Banestes para um empréstimo de plasma. No dia em que vou visitar T na UTI, um bem-te-vi solta seu pio agudo, matinal e so letrado, em alguma antena de televisão, sob o plúmbeo céu paulistano. Logo, porém, sou eu que me vejo caminhando pelo extenso corredor da GTI, enfiado no avental verde de mangas longas. Avanço contidamente, la deado por leitos onde estão pacientes liga dos a tubos, fios e sondas como fantoches desarticulados e inertes. A passarela é pia170
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na, mas tenho a impressão de que estou des cendo para o âmago da terra, para o coração da matéria. O casulo onde desemboco é amplo, com leitos próximos entre si. Ali a orquestração dos grilos monitorados é mais intensa, a ofegância das respirações mais forte. Há um lavatório onde desinfeto as mãos com sabão líquido enquanto penso nos sapatos que cal ço, infectados do negro e sujo asfalto das ruas. Testá recostada no leito incômodo, o cor po nu e depilado dentro do avental que se abre por inteiro, também espetada por agu lhas, escrava de tubos e fios. Está cansada, mas salva, e me mostra, quase pedindo des culpa, a costura do esterno que foi aberto a dentes de serra para a inversão das costelas, e a cicatriz roxa e espessa que desce pela perna, vale de ·onde foi extraída a safena salvadora. Não há muito o que dizer. No leito vizinho, vejo um senhor gordo e sedado, cujos pés despontam fora do lençol com as unhas pintadas. Custo a entender que se trata de uma mulher, que nas UTis as pes171 /JS
soas são assexuadas e estão num campo de ressuscitação para readquirirem o direito à decência e à vida. Pergunto a T como sabe se é dia ou noite e ela indica a luz que se filtra através da báscula de vidro, no alto do casulo sempre iluminado com lâmpadas fluorescentes, pela qual não vaza, evidentemente, o canto mati nal dos bem-te-vis. Saiamos deste ambiente opressivo. Estamos agora no quarto que nos coube gra ças a providencial convênio. Sou o acompa nhante de T mas a tensão dos últimos dias deve ter macerado a minha estampa, dan do-lhe um aspecto enfermiço. Enquanto a verdadeira paciente caminha no corredor do hospital, leio A Mecânica das Águas, de Doctorovv·, na poltrona disponível, enfiado num training folgado. A auxiliar de enfer magem entra no quarto e não percebe quem sou. Pergunta solícita: - Então, dona T, como a senhora está passando? Esclareço o engano e deixo-a desconcertada. Pouco depois, outra auxiliar chega com a bandeja
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de injeção, e, samaritana, investe decidida: - Mais uma injeçãozinha, dona T... Quando ela sai, sem graça, recordo a mulher gorda da UTI, e resolvo tirar as meias para deixar à mostra as unhas agressivas e identificadoras, precavendome contra outras confusões. Parece que dá certo o estratagema. Prossigo Doctorow. O retorno a Vitória, depois da alta, cer cou-se dos mesmos c uidados da ida. Após o pouso, ajudo Ta desc er a esc adinha do avião, pé-ante-pé, tão devagar quando subira duas semanas atrás. Descemos vendo o neto de quatro anos acenar da varanda do aeroporto. Tenho vontade de imitar João Paulo II e beijar o chão de Vitória, numa curvatura solene.
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O Pássaro Nupcial
Qiem já viu de perto o pássaro nupcial
sabe quão lácteo e formoso ele é. Suas asas terminam em buquê e a cauda, geralmente longa, derrama-se pelo chão como espuma na praia. O pássaro nupcial não voa, anda. Anda pausadamente parecendo caminhar sobre um fio de luz. Ele tem um jeito pró prio, que os outros pássaros não conseguem imitar, de passar no meio das pessoas, de atrair-lhes o olhar, de exibir-se com a elegância das aves, a face discretamente coberta pelo véu finíssimo que lhe acentua a sedução. Sabe-se admirado e aceita a admiração como preito que lhe é devido. O pássaro nupcial caminha num halo lactescente e virginal que lhe dá garbo e no-breza. Deste modo, ninguém consegue ficarlhe indiferente. Sobretudo os homens. 175
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Entretanto, ornitólogo nenhum, que eu saiba, ocupou-se em estudar essa luminosidade sutil. Na verdade, ornitólogo nenhum preocupouse com o pássaro nupcial. Vejam o Augusto Ruschi, por exemplo, sempre tão atento às coisas da natureza, aos bichos e às árvores. Ruschi pesquisou a fundo, como só ele sabia fazer, morcegos e beija-flores. Mas, sobre o pássaro nupcial, nem uma palavra, nem uma linha, a menor referência sequer. Como foi distraído o nosso Ruschi com o pássaro nupcial. Se Ruschi tivesse estudado esta avis rara de nossa fauna muitos mistérios a seu res peito talvez estivessem desfeitos. Talvez hoje se soubesse por que ele é um pássaro sem pio e sem canto que compensa sua mudez com a beleza da plumagem acetinada. Sabe-se que muitos caçadores tentaram, em vão, ouvir a voz dessa ave resplandescente e calada. Mas o pássaro nupcial ama o silêncio e passa pela vida quietamente. É passagem fugaz, que dura os acordes da Ave Maria de Gounod. Enquanto vibram os acordes os olhos do pássaro nupcial luzem estelares. Pode ser que 176 15'!
neste brilho se encerre a senha para ex plicar a efêmera vida do pássaro nupcial e o silêncio de sua voz inaudível. Apesar de silencioso o pássaro não é ave solitária. Ele é visto sempre acompanhado, sempre cercado de acólitos, cortejado por pajens extremosos que o cobrem de esmeros e de mimos. E onde quer que passe exala o perfume edulcorado que convida ao acasalamento e assegura a multiplicação da espécie. Graças ao quê perpetua-se a estirpe dos pássaros nupciais na face da terra. Pois quando o pássaro nupcial me apareceu eu estava sozinho. Já tinha sido avisado de que ele viria, naquele sábado, a caminho da igreja. Meu ofício seria o de recebêlo em minha casa com a hospitalidade de um árabe, de abrir-lhe a tenda e dizer-lhe, seja bem vindo, pássaro nupcial, a casa é sua. Esperava-se, em suma, que eu lhe satisfizesse os desejos, abandonando, temporariamente, meu atávico embaraço para lidar com pássaros de qualquer espécie. Foi, portanto, com estudada boa vontade que abri o portão quando a campainha tocou. O pássaro nupcial saltou magnífico de dentro do automóvel negro, deixando en177
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trever os bem calçados pezinhos em sapatos que pareciam de cristal. Vinha cercado pela trupe de acólitos, todos muito ativos e falantes no competente exercício da impecável acolitagem à noiva reluzente. Ali estavam diante de mim agitando a rua onde moro representantes do sexo masculi no e feminino e do terceiro sexo, portando máquinas fotográficas e filmadora, provo cando um grande alarido vespertino que me deixava encabulado perante os vizinhos. Num relance pude identificar o câmera-man, o fotógrafo, a diretora de arte, o maquiador espevitado e a amiga da minha mulher que havia sugerido nossa casa como décor das fotografias do álbum da noiva. - Por favor, entrem, entrem - disse Luís de Almeida ansioso, querendo evitar a curi osidade da vizinhança. - Fiquem à vontade - gaguejou. Entra-ram em bloco, o pássaro nupcial segurando na mão a cauda lunar, o bando agitadíssimo ao seu redor. Mal entraram já foram estabelecendo as locações para as fotografias e filmagens, junto do piano, sob o candelabro da sala (que deveria ficar aceso), ao lado da buganvília florida, no coqueirinho do jardim, olha, gente, que divino, disse o ma178 1.-;1
quiador espevitado ensaiando uma pose entre os troncos abertos em V. Parecia até que conheciam de cor o mapa da casa. Era como se Luís de Almeida não estivesse canhestramente por perto, apenas lhes tives se aberto beduínamente sua tenda pacata e pedido licença para ir comprar o pão da tar de na padaria da esquina. Minha função, porém, era assumir o pa pel de mordomo, recomendações protocolares me tinham sido passadas neste sentido. Assumi a função britanicamente. E passei a fazer tudo o que a diretora de arte mandou. Preparei a banqueta do piano para que a noiva bancasse a pianista; acendi luzes que precisavam ser acesas, apaguei outras que tinham de ser apagadas; removi cadeiras, corri cortinas, escondi o velocípede do neto que agredia com sua velocipídica figura o cenário fotográfico, sumi com as sandálias havaia-nas esquecidas ao pé da buganvília roxa. Tudo isto de luvas brancas e libré, profissionalíssimo como reza a cartilha da corporação dos mordomos. Quando o pássaro nupcial partiu, a dire tora de arte me premiou com a promessa de despedida: 179
- Depois a gente manda as fotos para o senhor ver, seu Luís. Seu Luís esteve para dizer mande-mas em estilo e sotaque de mordomo, mas preferiu fechar o portão e entrar rapidinho. Foi quando comecei a apagar a casa fee ricamente iluminada que me dei conta de que não havia escutado um pio sequer do pássaro nupcial. Em silêncio chegou, em silêncio se foi com seu halo lactescente, deixando, porém, nas minhas narinas, o perfume edulcorado do seu eflúvio virginal, responsável pela perpetuação da espécie na face da terra.
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No Alto Pongal
Estamos, eu e o meu amigo de muitas
pesquisas históricas, nas terras do rio Pongal, no município de Anchieta. De gravador em punho queremos gravar depoimentos de antigos moradores do lug ar, descendentes de italianos, sobre o distrito do Alto Pongal. Acabamos de passar pela estrada asfal tada que de Anchieta leva até lá, e subimos sob o sol de junho ao platô onde se ergue a igreja em honra do Sagrado Coração de Je sus, padroeiro local. Penso particularmente neste detalhe de fé - o rubro coração de Je sus emitindo raios de luz, como nos calen dários populares em que os dias se desfolham na alternância do movimento da terra, para proteger a gente devota do alto 181
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ou do baixo Pongal. Perto da sólida igreja de alvenaria, naquele ambiente rural de co linas e vales, quase me vejo tocado por urna das setas cordiais do padroeiro tutelar, fis gado em recaída católica. Agora é preciso descer pela estrada que separa as casas de antenas parabólicas, pes cando o mundo com bocas de tarrafa, por que é embaixo, onde já passamos, que estão nossos informantes. Estamos à procura do velho Boldrini e do seu vizinho João Calezani que, segundo nos disseram, guardam a me mória dos idos que nos atraem. De urna la çada só pegamos os dois amigos juntos. A gravação é feita na varandinha da casa em que somos bem recebidos. Dali, logo abaixo, paramos na casa de Adélia Lorencini Passarnani. Nosso guia e introdutor, o professor Elias Rodrigues, bate palmas diante da porta aberta, que dá tam bém para a varandola estreita, e nos vem lá de dentro, corno saindo de oculto gineceu, urna senhora de bem vividos noventa anos, simples, simpática, extrovertida É a síntese ,·i,·a da mulher italiana. a indiscuth·el senho182
ra e dona da casa que ocupa e preside com o desembaraço de quem conhece o seu senho rio em todos os seus cantos cúbicos, de quem identifica sem sustos os ruídos da casa, de quem sabe de cor a maloca dos objetos guar dados, nem precisa exibir escritura passada em cartório para a comprovação deste do mínio. Recebe-nos prazerosamente. Ri quando informamos que queremos fazer uma gra vação sobre os primitivos tempos do Pongal. Ri, mas se põe prestativa, a lembrança viva e límpida mergulhando nos dias primevos e heroicos. Sem se fazer de rogada, abre o ver bo. Veio para o Pongal menina, na compa nhia do pai, José Lorencini. "Sabe, ali onde é a igreja, era tudo terra de papai." .A. imagem desse tempo de verdores miríficos invade-lhe a lembrança. "Aqui era tudo mata, tudo mata, o senhor pensa que a gente passava, tinha picada ? Era água e lama, chac, chac, tudo água e lama. Depois que pegaram a derrubar a mata, abriram o valão, pegaram a enxugar, melhorou um pouco." 183
Pai e mãe vieram da Itália. "Mamãe tinha oito anos. Ela se lembra de tudo. A metade do navio deu doença. Botaram a bandeira lá, botaram a bandeira pra cá, aí, pararam. Ela ficou seis meses dentro do navio. Quando morria um, amarrava com saco de areia e, pune, dentro do mar". Benevente foi o porto de entrada no Espírito Santo. O pai ficou no Quarto Território. "De noite era obrigado a fazer uma barraca, a onça fazia assim (imita o gesto da mão felina), arranhava, para entrar e comer." No Pongal, a plantação de café ocupava toda a família, que trabalhava na roça de manhã à noite. "Não tinha separação homem-mulher, tudo trabalhando no cabo da enxada, apanhando café, carregando carga de café, quanta carga de café carreguei aqui (bate no ombro com pancadas firmes), Nossa Senhora da Penha! E olha, naquele tempo nós não bebia uma aspirina para remédio, naquele tempo não tinha doença não, porque tava trabalhando", diz com a exultação de uma saudável sobrevivente. Depois, rindo-se muito, acrescenta: "Só que não se to184 /óL1
mava banho não. Lavava as pernas daqui pra baixo, o braço até aqui, jantava, e ia dormir cedo. Mudava a roupa uma vez por semana - e só; ficava com ela de segunda-feira até sábado, porque se tava trabalhando." O pai dotou a propriedade de máquina de arroz e de café, de usina de água para gerar energia elétrica. " Veio um mecânico lá de Cachoeiro, um preto alto, que montou tudo. A casa de papai, por baixo da igreja, era toda iluminada lembra-se, envaidecida, a saudade umedecendo os olhos. Antes da energia elétrica a iluminação era à lamparina, "que tristeza, aquele foguinho de tarde". Pioneiro no lugar, o pai chamou vários irmãos que se instalaram nas vizinhanças, reunidos em grei, em terras compradas a Duarte Beiriz, de Iconha. O café produzido era levado para fora em tropa de burro. Para proteger o café empilhado e seco,"quantas vezes levantei de noite, às onze horas, à meia noite, ah, eles diziam, não chove não, deixa o café amontoado, muitos quilos de café. Chegava de noite, ô - chamavam - tá viran185
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do o vento sul. Levantava tudo e caía fora no terreiro, um terreiro que fazia medo de grande, para cobrir o café". No capítulo das comidas a menção à polenta aparece em primeiro lugar. Já na
entrevista anterior fora assim, a polenta servida na forma do costume, cortada com linha num tabiello. Agora ei-la de novo, de mistura com o feijão, cozinhado com carne de porco. Foi no Pongal que aprendeu a comer farinha com feijão. Recordando quando a provou pela primeira vez, diz, exclamativa:"Gostei demais." E cobra, a senhora tinha medo de cobra lanço a pergunta contando com a reação, sabendo que nos anais das famílias desses desbravadores italianos as picadas de cobra sempre destilaram veneno, pavor e morte. A resposta ainda denota arrepio: "Hein, cobra7 Minha Nossa Senhora!" E conta que"naquele morro lá, por baixo da igreja", a irmã foi mordida de cobra. O socorro foi improvisado, no desespero da salvação. Puseram a perna dela numa lata de querosene, deram alho para comer. "Ela 186 /6�'
passou mal, quase que foi embora. Olha, ela morria e vi via, morria e vivia. Quarenta dias". Foi tratada pelo "doutor de Iconha" - doutor Jair, "agora o sobrenome é que eu não lembro" - que veio a cavalo, duas horas de viagem de Iconha ao Pongal, "inda mais chovendo; chuva que Deus dava ... " Mãe de cinco filhos, "todos vivos, graças a Deus", Dona Adélia, montanhesa vitalícia e assumida, chegou no Pongal menina, cerca de 1918. No Pongal se casou, "e ainda aqui tô".
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Ao Passar da Barca
Somos quatro passageiros a bordo para a
travessia da baía de Vitória. Quatro, não, cinco, porque na última hora entrou mais um, que viríamos a saber depois ser catraieiro como seu João Santana do Nasci mento, o dono do barco. O nome do carona? Ademir Alvarenga. O dia era sábado e, porque era sábado, ali estávamos, este escrivão relator, Renato Pacheco, Humberto Capai, de máquina fo tográfica devidamente engatilhada, e Pedro J. Nunes, que nos sugerira o nome de seu João Santana para a entrevista Pedro J.Nunes sabe das coisas. Constan temente atravessa a baía para ir a Paul, por obrigação do ofício. Ninguém melhor do que 189 /r:,J
ele, portanto, para nos dizer a quem ouvir para o trabalho que a Secretaria Municipal de Cultura nos encomendou, a mim, Renato e Capai, sobre os catraieiros de Vitória. Mas é preciso dar detalhes, pois são os detalhes que dão legitimidade aos relatos. Que era sábado já disse, o que predispunha o espírito a extravagâncias. Um sábado de julho, em manhã radiosa, o sol despejando a luminosidade puríssima com que, no inver no, imerge Vitória em auréola de santo, e faz Capai rir à toa. Dava para fotografar até den tro do cone de sombra que os edifícios da Beira Mar projetavam sobre a baía. Era, pois, um dia de luz sacrossanta em que deveria ser proibido morrer, se Jeová fosse menos carrancudo do que sói ser e conhecesse os versos do poeta, nunca morrer num dia as sim, de sol assim. E Capai rindo à toa. Tranquilas e límpidas estavam as águas da baía. Foi límpidas mesmo que escre\"i, não estranhem a palavra os que conhecem aque las águas, pensando na sórdida poluição que nelas impera. Reconheço a procedência da estranheza mas conservo a expressão, se não no sentido de transparentes, pelo menos no de polidas. 190
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Porque as águas da baía estavam, realmente, em odalisca languidez de maré vazante, dispersando-se canal afora em direção a Portugal sem o menor entusiasmo, sem botar aplicação nesta dispersão. A maré molengava modorrenta no remanso da indecisão, relutando em partir, fingindo que ia, mas não ia. E enquanto não se decidia, dava passagem, em sua polida superfície, aos passageiros do bote conduzido por seu João. João Santana tem 72 anos e, há trinta e três, é catraieiro. Faz e refaz no braço o trajeto Vitória-Paul. É um homem magro e rijo, expescador de manjubas em Jacaraípe, onde nasceu e puxou muita rede de arrasto. Vive hoje satisfeito com a profissão de catraieiro graças à qual educou a familia de seis filhos, "duas meninas e quatro homens, todos adultos". E, graças à qual, tem no peito, conforme diz e demonstra, um coração de menino, que pulsa cadenciado no ritmo das batidas do remo de encontro às pesadas águas do mar. João Santana rema com pausada dispo sição e ereta elegância, nem parece sentir o peso que carrega nos punhos. É também um 191 /66
proseur. Discorre com bom humor sobre a vida no porto, relatando fatos que testemunhou e que formam seu capital de recordações. No tempo dos bondes, quando não ha via ônibus, mais de oitenta companheiros trabalhavam na baía por conta própria - diz ele. E havia serviço para todos, apesar da concorrência das duas lanchas da Central Brasileira, a Elizabeth e a Santa Cecília, que transportavam passageiros entre Vitória e Paul. "Na hora do almoço, dava muita gente, o pessoal que morava aqui deste lado (indica o cais de Paul), acredite, ia trabalhar (em Vitória), e voltava nos botes". Nos dias de chuva as pessoas atravessavam em pé, de guarda-chuva aberto. E ainda vinha gente de fora que contratava a travessia até a prainha do Convento da Penha, ou turistas querendo uma voltinha pela baía como se fosse canal veneziano, sem se falar do transporte de verduras, frutas e galinhas, feito para o mercado da Vila Rubim, como outrora se fizera para o mercado da Capixaba, antes deste ser afastado do mar pelo aterro da Esplanada. 192
ló,
No 7 de setembro e no carnaval, os pi ques de passageiros, indo e vindo pela baía, não davam descanso. Quando funcionava a estação Pedro Nolasco, em Argolas, uma verdadeira linha de catraieiros monopoliza va o atendimento dos que viajavam de trem. Em Santo Antônio também havia catraieiros fazendo a passagem para o lado de lá. Todos eram obrigados a trabalhar unifor mizados, calça de mescla azul, camisa e caxangá, que era o boné branco de marinhei ro. Hoje mudou muito - lembra-se sem má goas - os botes acabaram, os velhos compa nheiros foram morrendo, sobrevivem ape nas quatro. Seu João é um dos que continu am remando. O outro é o Raimundo, que mora na Ilha das Flores, que foi reduto de quase todos eles. O nome destes velhos companheiros 7 Antônio Jau, Antônio Duarte, Bonésio, Cris tóvão, Almiro, João Machado ... O nome dos botes 7 Tinha o Tango, o Vasco da Gama, o Belém, o Damasco, o Siio Jorge. No maior de les cabiam doze passageiros Muitos eram atapetados nos assentos para o conforto dos fregueses. Um luxo. 193 ló,>
Os botes de seu João foram três: primei ro o Monte Sinai, depois o Montevidéu e agora o A Jato, que é seu há mais de vinte anos, feito de jequitibá-rosa, com capacidade folgada para transportar até seis pessoas. Já pegou incêndio nas águas da baía, as chamas crescendo a mais de dois metros de altura, os reparos do bote pagos com o dinheiro da indenização da Docenave. Quando nos aproximávamos do cais de Paul para o desembarque do Ademir Alvarenga, seu João retarda o acostamento deixando prudentemente passar as marolas provocadas pela lancha da praticagem do Porto, que cruza por perto em alta velocida de. E explica, conhecedor do ofício, que se atracar naquela hora as marolas" relam "o casco do barco contra" a pedra" do ancora douro. É necessário aguardar que as marolas esmoreçam. No retorno a Vitória, enquanto Humberto Capai de máquina colada ao olho não perde tempo se desdobrando em flagrantes, seu João brinda-nos com uma informação preci194
osa: antes de ser catraieiro trabalhou pegan do zepelim em Goiabeiras. Façam uma pau sa senhoras e senhores, e ponham tento no que ele disse : pegando zepelim. O zepelim vinha vindo com sua pose de peixe voador, navegando baixinho contra o vento, e então jogava os cabos para a turma de uns vinte homens, seu João entre eles, cuja função era puxar os rabichos pendentes para que o grande cetáceo pousasse a carlinga no chão, onde ficava preso nos blocos de cimen to que lhe serviam de âncora. Mais tarde, na hora da partida, bastava soltar as amarras que o zepelim subia macio, cheio de gás e empáfia, ganhando altura, portento silenci oso e reluzente que parecia subir levado pelo \·ento, nem precisava soprar. Seu João não fez a comparação mas é cla ro que quando era pescador de arrasto em Jacaraípe, nunca jamais pegou um peixe como aquele. Pois o que acima está e contei ... me disse o barqueiro.
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Os Olhos de Marianita
Pretos
que nem carvão eram os olhos
de Marianita, disto sabia o menino e, como ele, os meninos da cidade antiga onde, na canção das cirandas, por todas as partes, em todos os bairros, apregoava-se o negrume dos olhos de Marianita, que fim levaram es ses olhos, Deus meu, onde se escondem hoje, oh Nossa Senhora das Nostalgias, os olhos de ébano de Marianita nunca mais vistos, nunca mais ouvidos pelo menino na cidade que deixou de ser antiga e se perdeu em gradativas perdas, a canção das cirandas foi uma dessas perdas levando para lugares in certos e não sabidos os olhos acarvoados de Marianita que enfeitavam as rondas infan tis nas ruas de simétricos paralelepípedos 197
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quando o dia se recolhia no ventre da noite, um pouco antes ou um pouco depois da hora eucarística do ângelus, na cidade antiga de casas térreas e sobrados recatados que parecia tão senhora de si, tão irre tocável, tão indestrutível e eterna em sua circular geogra fia de ilha tendo, a leste, a praia do Barracão e o oceano e, a ocidente, a curva de Caratoíra e um veio do mesmo oceano espremido entre os rebordos da ilha e do continente imediato, mais semelhando rio do que língua de mar represado em goela de terra, sobre esses li mites, sobre esse leste e esse oeste insulares perpassavam, como libélulas sonoras tangidas pelo vento menestrel, as letras e as sílabas da canção de Marianita, a que tinha olhos de tição, entoada pelas vozes das me ninas no gira-gira das cirandas girassóis, ai sim, Marianita sim, ai não, Marianita não, nesses versos br'ejeiros insinuava-se uma bre jeira malícia inalcançada pela candura das meninas canoras, fugidia à percepção do menino pela simples razão de ser ainda me nino, de ainda lhe serem fugidios os peca dos da vida, os sete, os capitais, e os de acrés198 /
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cimo, venais e venéreos, são, portanto, lim pos os olhos e os ouvidos do menino, des providos da adulta ciência para saber o que havia na esquivança daquele sim e daquele não, ai sim, Marianita sim, ai não, Marianita não, a ecumênica esquivança do sim e do não de todas as Marias Anitas do mundo, o doce prometer e o amargo negar, o vislumbre do aceno e a certeza do equívoco, a promessa da gala e o desencanto da evasiva, um dar-de-si e um não-se-dar-de-si, ai de ti, menino, foge, foge dos olhos negros de Marianita que, no entan to, vão te seguir pela vida afora no sopro do vento menestrel, o que .transporta como fan tasma os musgos da saudade, os olhos de Marianita escondem um feitiço temperado de sal e de vendavais, de golfões de areia e de encapeladas vagas, porque são olhos pe regrinos que cruzaram desertos e deslizaram sobre mares até serem cravados na penínsu la Ibérica onde se misturaram no sangue das cimitarras e no sangue das donzelas, fazen do-se lusitanos sem que lhes esmaecesse a inapagável centelha mourisca no âmago dos carvões luzidios e redondos, os olhos orien199
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tais de Marianita, seus olhos de alcova, foge, oh menino, foge dessas esferas abissais e sarracenas, nelas sobrevivem meias luas ára bes de pontiagudos cornos, nelas sobrepaira a imagem das caravelas que nos trouxeram esses olhos de Portugal até as ruas da cida de antiga velejando o Mar Oceano quando ele ainda era Tenebroso, ele próprio um in comensurável olho líquido de verdes e azuis tonalidades, com negrume de pélagos como o dos olhos de carvão de Marianita, canta dos no redemoinho das cirandas alegres, nas ondas das rondas das meninas cirândulas que, frescas e vestais, apregoavam o pretume dos olhos de Marianita junto com o sim e o não de Marianita, o dar-de-si e o não-se-dar de Marianita, nas rodas girassóis que rodo piavam nas ruas de simétricos paralelepípe dos, quando o dia amaina,·a e soava a hora eucarística do ângelus, ai sim, Marianita sim, ai não, Marianita não, nas tardes vadias e temas da cidade antiga.
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As Chamas do Padre Poeta
No começo do século XIX o Espírito San
to ainda era verde. A mata espessa descia da capitania de Minas Gerais até o litoral capixaba. No sertão grosso, cuja travessia fora proibida no século anterior para proteção do ouro extraído dos rios mineiros, bugres hostis, que matavam animais a dentadas, deslizavam como sombras, misturados às árvores. Sem ímpeto desbravador, a minguada população do Espírito Santo vivia com os pés na praia e a cabeça na brisa do mar, evitando o sertão. No vale do rio Doce esplendia a floresta ancestral e magnífica. Deus e o Diabo habitavam a terra luxuriosa tolerando-se na rivalidade complacente do compadrio. 201
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O padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, filho dos trópicos, filho do Espírito Santo, sabia disto e acendia uma vela a Deus e ou tra ao Diabo. Entre ambas as chamas exer ceu seu sacerdócio à brasileira, provando com gosto "as exuberâncias pagãs da terra", dando asas ao seu "espírito irrequieto até o arrebatamento." Palavras de Afonso Cláu dio. Filho natural do padre Manoel Pinto Ri beiro, o que significa ter nascido com o pe cado original em duplicata, Marcelino foi feito sacerdote pela vontade do pai, que lhe deu nome, exemplo e futuro garantido. Além da certeza da boa instrução, a carreira sa cerdotal constituía, na colônia ignara, tram polim para a ascensão social e política. A decisão pragmática do pai iria selar o destino do filho ainda que, dentro da bati na, Marcelino fosse carne e nervos. O padre poeta chamou-o "pai impiedoso", em versos dirigidos a uma de suas musas, pois teveas diversas. Falamos do pai e do seu pátrio poder. Fa lemos agora da mãe, com a devida licença. 202 /{ó
Da mãe que o pariu - e o pariu certamen te mestiço, em 1788-pouco ou nada se sabe. Com a devida licença, repito, e a se dar cré dito à crença popular, a mãe deve ter virado mula sem cabeça depois de legar ao filho o temperamento fogoso que o fez femeeiro. Este temperamento Marcino - nome po ético do padre -vazou corajosamente para sua poesia amorosa. E bota coragem nisso em tempos primevos e num ambiente social limitado e rústico. Veja-se a vila de Nossa Senhora da Vitó ria, edificada em ilha, onde temos o padre Marcelino Duarte, em 1817. A vila, em pose de cartão-postal, mostra se risonha e franca, vistosa em sua brancura de cal, bem assentada nos limites possíveis entre encostas verdejantes e as águas man sas do mar. Nela amontoam-se casas de ja nelas envidraçadas, fortes, igrejas, trapiches e cais. Suas ruas, no entanto, são estreitas, sem praças nem passeios públicos, e nela inexistem hospedarias. A chegada de um estranho açula a curiosidade geral; se che203
gam dois, arma-se um rebuliço que só perde para o grande ajuntamento popular que pro voca o aparecimento de burros, animais ra ros na ilha. O alimento trivial da terra é o feijão com peixe e farinha de mandioca. O boi, abatido duas vezes na semana, é consumido mode radamente, ficando o couro esticado no va ral para curtir ao sol, em meio ao moscaréu ruidoso. Ao curtume, a céu aberto, chama se, por isso, Pelames. Nas roças da vila planta-se e colhe-se, regulando-se o serviço das lavouras pelo almanaque das luas. Empregam-se enxadas e ancinhos e, se faltam ambos, mãos à terra. Picadas de cobras se curam com mezinhas, sumo de limão e pólvora. É tiro certo. Os fortes da vila são tantos, para o tama nho dela - São João, São Diogo, São Maurí cio, Carmo - que só de vê-los correm arrepi os de medo na espinha, apesar de terem a pólvora úmida e os canhões silenciosos As igrejas da vila são tantas, para a mo déstia dela - São Tiago, Misericórdia, São Gonçalo, São Francisco, Santa Luzia, rviatriz, 204
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Carmo, Nossa Senhora da Conceição, Rosá rio - que só de contemplá-ias purifica-se a alma em e nievos de fé. Na verdade, guarnecida para a guerra a vila de Nossa Senhora da Vitória vive em paz celestial. Uma gravura de 1805 faz referência par ticular ao seu porto declarando-o "belo e abrigado dos ventos". O seu comércio exportativo consiste em açúcar, aguardente, algodão em rama e manufaturado, madeira, arroz, milho, feijão. Era a produção da terra onde o café ainda não dera a graça de seus frágeis pêndulos. Os gêneros e mercadorias desse comér cio exportativo saíam por muitos embarca douros e cais - das Colunas, dos Padres, do Azambuja, do Batalha, do Santíssimo, das Lanchas, Cais Grande - onde o arroto das águas, batendo no tabuado, embalava as ses tas dos negros-estivas. Já chama a atenção, naquela época, a escadaria entre palmeiras, diante do palácio do governo, antigo colégio dos jesuítas. No extremo o p o sto da vila, a ladeira de Pernambuco dava acesso ao "lugar chama205
do Capixaba". Ali, fonte famosa jorrava as águas da mataria próxima. Marcelino1 em versos de 1850, mencionou-a, evocativo1 jun tamente com a fonte da Lapa, gabando-lhes a pureza das águas,"o santo licor das duas fontes/ que a natureza formou e inda con serva." Mas, e o povo, por que não aparece povo nesse cartão-postal risonho e franco? Não aparece porque era ralo mesmo. Saint-Hilaire, que visitou Vitória em 1818, cita apenas 4.245 habitantes. Teria contado nos dedos ou deduzido o número pelos fogos (ou seja, casas) da vila? No dedo, porém, podiam-se apontar os dois juízes ordinários e o de órfãos; este ou aquele mestre de ler e contar para o gasto das letras e dos números; o cirurgião, o rábula e o boticário ou ainda o ferreiro dentista que um dia dava na ferradura, ou tro na dentadura. Quem ousasse o desafio apontasse por fim o déspota governador, Francisco Alberto Rubim, capitão de mar-e guerra, ancorado na terra desde 1812.
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Vista está a vila de Nossa Senhora da Vitória quando dela partiu o padre Marcelino Duarte em 1817. Concedo que, nessa descrição, salpiquei-lhe suaves ironias. Nada, entretanto, que distorcesse o modelo real. Marcelino Pinto Ribeiro Duarte amou de amor sempiterno essa vila a que chamou poeticamente de "ninho carinho so", doce ninho de amadas, de mulheres especiais com nomes arcádicos Marílias Francinas, Análias, possivelmente descobertas com olho de padre-mestre através das treliças dos confessionários. Com elas deleitou-se, devido a elas purgou penas. Os amores a Anália custaram-lhe um ano de desterro em Itacibá. Foi determinação de Rubim que, guardião dos bons costumes e da ordem pública, não admitia as derrapadas amorosas de Marcino. Este jamais perdoou ao tirano, cujas arbitrariedades - e foram tantas - foi denunciar à corte. Agia em causa própria, mas não mentia. 207
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A ida à metrópole é o tema do longo po ema Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 181 7. Se o padre teve ou não força para remover da capitania o todo-poderoso governador, não está muito claro. Afinal, Rubim era bem cotado na administração portuguesa desfrutando do respeito e da proteção nepótica do tio, o intendente Paulo Fernandes Viana. Além disso, pontificara como administrador notável ao rasgar, sertão adentro, a estrada que pôs o litoral do Espírito Santo em ligação direta com Vila Rica. Seja como for, o capitão de mare-guerra acabou removido para o Ceará, em 1819. Marcelino Duarte pôde então voltar ao ninho carinhoso, recomeçando a amar e poetar com mais desembaraço entre uma vela a Deus e outra ao Diabo.
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Nascido em Vitória, Estado do Espírito Santo, em 24 de setembro de 1933, filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Graduado em Direito (Faculdade do Espírito Santo, 1957), habilitado pelo MEC como professor de História de 1º e 2º graus em 1954 e licenciado e História (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Espírito Santo, 1964). Como professor atuou nas seguintes instituições: Escola de Aprendizes Marinhei-ros do Espírito Santo (1961 a 1963), Colégio Estadual do Espírito Santo (1960 a 1964), Colégio Americano (Vitória, 1960), Escola Técnica Federal do Espírito Santo atual IFES, Universidade Federal do Espírito Santo (Departamento de História onde lecionou História do Espírito Santo durante 26 anos).
Membro das seguintes entidades: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Cultural-ES – Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo e da Comissão Espírito-santense de Folclore. Principais atividades: magistério, pesquisa his-tórica e folclórica, publicação de ficção e de textos das áreas de História e Folclores do Espírito Santo. Algumas obras Publicadas (literatura): A Nau Decapitada (romance, Vitória, 1982), As Chamas na Missa (romance, Rio, 1986), Torre do Delírio (contos, Vitória, 1992), Passeio pelo Centro de Vitória na Companhia de Rubem Braga (crônica, Vitória, 1992), Escrivão da Frota (crônicas, Vitória, 1997), Crônicas da Insólita Fortuna (crônicas históricas, Vitória, 1998), O Templo e a Forca (romance, Vitória, 1999), O Capitão do Fim (romance, Vitória, 2001), Cidadilha – Crônica Inverossímil da Cidade Inexistente (Vitória, 2008), Memória das Cinzas (Vitória, 2009), Tertulianas, de Tertuliano (série de textos publicados no site Tertúlia Capixaba). Obras infantis: História de Barbagato (Vitória, 1996), Tião Sabará (em parceria com Renato Pacheco, S. Paulo, 1999), Eu Estava na Armada de Cabral (romance paradidático, Vitória, 2004), Eu Estava no Começo do Brasil (Vitória, 2007), Crinquinim e D.Pedro II em Nova Almeida (Serra, 2008).
Obras didáticas: Espírito Santo, Minha Terra, Minha Gente (parceria com Renato Pacheco e Léa Brígida, Sedu, Vitória, 1986), Ecoporanga, Resgate da Memória de um Povo (parceria com Renato Pacheco, Vitória, 1992), História, Geografia e Organização Social e Política do Município de Anchieta (Vitória, 1995): em parceria com Renato Pacheco e Léa Brígida: Espírito Santo: Nossa História, Nossa Gente (Vitória, 1997), Nosso Estado o Espírito Santo (Curitiba, 2001), Cariacica: Nosso Município (2002), Vila Velha: Nosso Município (Vitória, 2002), Aracruz: Nosso Município (Serra, 2004); em parceria com Lea Brígida de Alvarenga Rosa; Serra: Nosso Município (Serra, 2007), Viana: Nosso Município (Serra, 2008), Piúma: Nosso Município (Serra 2010), São Gabriel da Palha: Nosso Município (2011), Anchieta: Nosso Município (2011), Presença africana no Brasil e no Espírito Santo (Vitória, 2008). Obras de Estudos e Pesquisa Histórica: Insurreição do Queimado, Episódio da História da Província do Espírito Santo, de Afonso Cláudio, (introdução e notas, Vitória, 1979), Viagem à Província do Espírito Santo, de Auguste-François Biard (estudo introdutório, 1988), De Viva Voz, depoimento de Carlos Lindenberg (introdução e notas, Vitória, 1989), Espírito Santo:
Impressões (em parceria, São Paulo, 1991), Espírito Santo, Brasil (em parceria, S.Paulo, Xerox do Brasil, 1994), Vila Velha da Senhora da Penha (em parceria com Renato Pacheco e Reinaldo Santos Neves, S. Paulo, Chocolates Garoto, 1997), A Casa Edificada – O Programa de Cooperativas Habitacionais no Espírito Santo e sua ação na expansão urbana da Grande Vitória (Belo Horizonte, 1998), A Doação da Ilha de Vitória (Vol. 1, Coleção Memórias da Ilha de Vitória, Vitória, 2002), O Espírito Santo em princípios do século XIX – Apontamentos das visitas pastorais de D. José Caetano da Silva Coutinho em 1812 e 1819 (estudo introdutório, Vitória, 2002), Mar de Âncoras – O Comércio Exterior no Espírito Santo (parceria com Renato Pacheco, Vitória, SINDIEX, 2003), Espírito Santo Veredas (Serra, 2010). Publicações sobre Folclore. Em parceria com Renato Pacheco: Índice do Folclore Capixaba (Vitória, 1994), Dos Comes e Bebes do Espírito Santo (São Paulo, Senac, 1997), Mão e Obra – O Artesanato do Espírito Santo (Rio, SEBRAE- ES, 2001), A Pesca da Manjuba em Manguinhos – pesquisa sobre a pesca de arrasto publicada na obra Reino Conquistado (Vitória, 2003), Torta Capixaba (fotos de Alex Krusemark, 2003), Apresentação da obra em dois volumes Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba 1944-1982, de Guilherme Santos Ne-
ves (Vitória, Cultural-ES/Petrobras, 2008), Atlas do Folclore Capixaba – As novas dimensões do folclore capixaba (apreciação introdutória, Vitória, SECULT/SEBRAE, 2009), Breviário do Folclore Capixaba (Vitória, 2010), Caleidoscópio do Folclore Capixaba (vídeo, roteiro e texto em parceria com Pedro J. Nunes, Vitória, 2010). Para o Projeto Memória Viva, da Prefeitura Municipal de Vitória sobre tradições e folclore: Catraieiros da Baía de Vitória (em parceria com Renato Pacheco, Vitória, 1995), Desfiadeiras de Siri da Ilha das Caieiras (em parceria com Renato Pacheco, Vitória, 1996), Procissão de São Benedito em Vitória (texto e pesquisa, Vitória, 1996), Festa de São Pedro na Praia do Suá (em parceria com Renato Pacheco e Léa Brígida Rocha de Alvarenga Rosa, Vitória, 1996), Os Bondes de Vitória (texto, Vitória, 1997). CD-ROM: Singular Plural – Memória Cultural Capixaba (pesquisa e texto, Vitória, Banestes, 1998). Alguns Outros Trabalhos: Guia das Praias Capixabas – História e Cultura dos municípios litorâneos do Espírito Santo (em parceria com Renato Pacheco, Vitória,ES), Calendário Cultural 1996 para a Prefeitura Municipal de Vitória (pesquisa iconográfica e texto, PMV, Vitória, 1996), Vitória e o Espírito Santo no Final dos Anos 20 (Instituto dos Advogados do Espírito Santo, Vitória, 1987), Origem da Historiografia Capixaba (in Revista de Cultura da Ufes,
maio/91, n° 2, Vitória, ES), Vasco Fernandes Coutinho (Vitória, 1961), História do Estado do Espírito Santo, de José Teixeira de Oliveira (Introdução crítica para a 3ª edição, Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Vitória, 2008), Patrimônio Etnográfico: Realidade e Memória na colonização europeia em Santa Leopoldina (palestra proferida para a SECULT em Santa Leopoldina em novembro de 2011). Teatro: Queimados (documento cênico, Vitória, 1977), O Auto do Túmulo de Anchieta (uma farsa no estilo de Gil Vicente, Vitória, 2007).