20
Expresso, 8 de o
PRIMEIRO CADERNO
SAÚDE Urgências O Expresso acompanhou uma equipa de cirurgia geral do Hospital de São Francisco Xavier num turno de 24h. Cinco médicas em regime non-stop
As 24 horas mais longas da semana de um médico Ordem quer fim de turnos “de alto risco” Maria João Bourbon
O
ito da manhã. Para Cláudia Branco e Helena Contente a hora marca o início de mais um dia de trabalho. Mas não para quem as espera na Sala de Trauma. Os médicos de cirurgia geral da equipa anterior chegam ao fim de mais uma jornada de 24 horas ao serviço das urgências do Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa. Um médico vai explicando, rápido e conciso, os casos que surgiram durante a noite. Parece pálido e cansado. As duas ouvem e fazem perguntas, tomando nota mental de tudo o que é dito. O turno foi passado. Chegou a vez delas. As médicas e internos da nova equipa desdobram-se em tarefas e desaparecem cada uma para seu lado. Chega uma maca à sala de trauma: mulher, muito idosa, triagem com pulseira laranja (muito urgente). A interna do 6º ano, Virgínia Araújo, está lá a recebê-la. No serviço de observação, a chefe de equipa, Cláudia, vê um doente com obstrução intestinal. Cláudia Santos (4º ano de internato) está no balcão de atendimento da cirurgia. Helena sobe à enfermaria e Ana Monteiro vai saltitando por várias zonas. Ao longo da manhã vão trocando de postos. Na pequena cirurgia as pessoas são suturadas umas atrás das outras. Um biombo no meio da sala separa os vários incidentes. Eduardo, interno do ano comum, e Mariana, estagiária, estão sozinhos, mas não por sua conta: ao longo da manhã as médicas Cláudia, Helena e Ana passam para dar orientações. “Normalmente os internos e assistentes fazem a maior parte do trabalho ao nível do trauma e pequena cirurgia. Eu tenho um papel de coordenação e orientação”, explica a chefe de equipa. A grande atração naquela manhã é um pé diabético. Exposição óssea, fratura óssea, osteomielite. O pé tem muito mau aspeto. “Abram as portas, o cheiro já não se aguenta”, pede Eduardo. A médica Cláudia ralha com o senhor José, que não cumpre a medicação para a diabetes há anos. Esta é apenas uma de várias vezes em que esteve nas urgências do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, que integra o São Francisco,
A REPOSIÇÃO DAS HORAS EXTRAORDINÁRIAS, PAGAS A 50% PELO ESTADO, É UM DOS PONTOS VITAIS NO DEBATE EM TORNO DAS URGÊNCIAS DE 24H EM PORTUGAL
hospital que atende, em média, 431 pessoas por dia nas urgências. Tem aquilo que se chama neuropatia periférica causada por vasculite, um dos efeitos possíveis da diabetes, e recusa-se a ser internado. “Não tem sensibilidade nas extremidades, não sente a dor causada pela inflamação nos vasos sanguíneos e por isso não se cuida. Dois dedos não têm viabilidade — e o resultado final será a amputação pela perna.”
De alto risco e mal remunerada Não há horas certas na urgência. Um momento de calma pode ser cortado, no segundo seguinte, por uma grande
agitação. Passa do meio dia. Sem aviso prévio, a morte bate à porta. Médicos e enfermeiros acorrem à sala de reanimação. “Mulher, 98 anos, caiu em casa no domingo. Os familiares não a trouxeram logo para aqui, queria morrer em casa. Tem o coração a bater, hipotensão, bradipneia”, explicam os médicos do INEM. “Nível três na escala de Glasgow.” Os olhos de alguns arregalam-se. Referem-se à escala neurológica para medir o nível de consciência, que vai de três a 15. “Esta senhora vai morrer”, percebe Helena. “Não há nada a fazer.” “Aqui entram as decisões difíceis”, explica Cláudia Branco. “Uma doente desta idade, neste estado, à partida não será para enviar para os cuidados intensivos.” Fica momentaneamente em silêncio. “Pode ter sangue na cabeça, por isso pedimos uma TAC.” Apesar dos incidentes, a manhã está a ser calma para a equipa de cirurgia geral. “Foi pior na semana passada, mal houve tempo para nos sentarmos. À noite fomos para o bloco e só saímos às 6h da manhã”, contam no caminho para o refeitório. No final do almoço a conversa cai para a dificuldade em conciliar família e profissão. “Este trabalho implica grande dedicação”, diz a chefe de equipa. “Trabalhamos muitas horas, fazemos urgências e por vezes acabamos por vir cá ao fim de semana ver um doente. Nem sempre é fácil para a família.” Ana e Helena concordam. As três têm filhos e sentem dificuldade em passar tempo com eles. Cláudia fala dos Natais a trabalhar, dos turnos, das remunerações. Põe o dedo na ferida. “Quando era interna recebia mais do
As internas Virgínia e Cláudia e as especialistas Ana, Cláudia (chefe de equipa) e Helena, depois de um turno 24h FOTO TIAGO MIRANDA
que agora, com os cortes nas horas extraordinárias.”
Na urgência coexistem dois tempos distintos. O tempo dos médicos e o dos familiares. Os médicos têm muitas doenças a analisar, pessoas a tratar, decisões a tomar. Os familiares esperam, e às vezes desesperam, a ver as horas passar. Não há lugar nenhum num hospital onde essa diferença se acentue mais que no bloco operatório. No bloco parece que o tempo para, fica em suspenso. É o médico e o doente, frente a frente. “Nem damos pelo tempo passar”, reconhece Cláudia Branco.
Uma realidade diferente de quem fica do lado de fora, à espera, sem saber o que está a acontecer. Nesta quinta-feira, 29, a equipa de cirurgia foi três vezes ao bloco. “As catacumbas”, como lhe chamam. Às 16h, Helena e Cláudia descem, deixando o resto da equipa na urgência. Vestem roupa apropriada, touca, máscara. São chamadas para a sala A. Desinfetam as mãos, põem luvas e estão prontas a atuar. Naquela marquesa, adormecida, está Nair. O medo que sentia minutos antes já foi anestesiado pelos médicos. Lado a lado, Helena e Cláudia — que trabalham juntas há cerca de 20 anos — fazem três furinhos na barriga da jovem. Por um deles introduzem uma minicâmara. À
NÚMERO DE HORAS TRABALHADAS
EVOLUÇÃO DE ATENDIMENTOS URGENTES
Descida às catacumbas
Os médicos ao serviço do SNS PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
NÚMERO DE MÉDICOS NO SNS
Número de horas
2889
MÉDICOS
INTERNOS
(em formação para tirar a especialidade)
2750
24.151 2500
17.299 6852
TOTAIS 24.857 25.107 17.858
16.850
6999
8257
FONTE: ACSS-SICA
2013
2014
2012
2013
2014
43.744
EXTRAS 47.919
6118
48.948 6000
25.401 16.817 8584
2250 2012
NORMAIS
2015
5670 2012
5314 2013
4812 2014
5500 2012
2013
2014
2015
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Expresso, 8 de o
PRIMEIRO CADERNO
SAÚDE Urgências O Expresso acompanhou uma equipa de cirurgia geral do Hospital de São Francisco Xavier num turno de 24h. Cinco médicas em regime non-stop
As 24 horas mais longas da semana de um médico Ordem quer fim de turnos “de alto risco” Maria João Bourbon
O
ito da manhã. Para Cláudia Branco e Helena Contente a hora marca o início de mais um dia de trabalho. Mas não para quem as espera na Sala de Trauma. Os médicos de cirurgia geral da equipa anterior chegam ao fim de mais uma jornada de 24 horas ao serviço das urgências do Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa. Um médico vai explicando, rápido e conciso, os casos que surgiram durante a noite. Parece pálido e cansado. As duas ouvem e fazem perguntas, tomando nota mental de tudo o que é dito. O turno foi passado. Chegou a vez delas. As médicas e internos da nova equipa desdobram-se em tarefas e desaparecem cada uma para seu lado. Chega uma maca à sala de trauma: mulher, muito idosa, triagem com pulseira laranja (muito urgente). A interna do 6º ano, Virgínia Araújo, está lá a recebê-la. No serviço de observação, a chefe de equipa, Cláudia, vê um doente com obstrução intestinal. Cláudia Santos (4º ano de internato) está no balcão de atendimento da cirurgia. Helena sobe à enfermaria e Ana Monteiro vai saltitando por várias zonas. Ao longo da manhã vão trocando de postos. Na pequena cirurgia as pessoas são suturadas umas atrás das outras. Um biombo no meio da sala separa os vários incidentes. Eduardo, interno do ano comum, e Mariana, estagiária, estão sozinhos, mas não por sua conta: ao longo da manhã as médicas Cláudia, Helena e Ana passam para dar orientações. “Normalmente os internos e assistentes fazem a maior parte do trabalho ao nível do trauma e pequena cirurgia. Eu tenho um papel de coordenação e orientação”, explica a chefe de equipa. A grande atração naquela manhã é um pé diabético. Exposição óssea, fratura óssea, osteomielite. O pé tem muito mau aspeto. “Abram as portas, o cheiro já não se aguenta”, pede Eduardo. A médica Cláudia ralha com o senhor José, que não cumpre a medicação para a diabetes há anos. Esta é apenas uma de várias vezes em que esteve nas urgências do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, que integra o São Francisco,
A REPOSIÇÃO DAS HORAS EXTRAORDINÁRIAS, PAGAS A 50% PELO ESTADO, É UM DOS PONTOS VITAIS NO DEBATE EM TORNO DAS URGÊNCIAS DE 24H EM PORTUGAL
hospital que atende, em média, 431 pessoas por dia nas urgências. Tem aquilo que se chama neuropatia periférica causada por vasculite, um dos efeitos possíveis da diabetes, e recusa-se a ser internado. “Não tem sensibilidade nas extremidades, não sente a dor causada pela inflamação nos vasos sanguíneos e por isso não se cuida. Dois dedos não têm viabilidade — e o resultado final será a amputação pela perna.”
De alto risco e mal remunerada Não há horas certas na urgência. Um momento de calma pode ser cortado, no segundo seguinte, por uma grande
agitação. Passa do meio dia. Sem aviso prévio, a morte bate à porta. Médicos e enfermeiros acorrem à sala de reanimação. “Mulher, 98 anos, caiu em casa no domingo. Os familiares não a trouxeram logo para aqui, queria morrer em casa. Tem o coração a bater, hipotensão, bradipneia”, explicam os médicos do INEM. “Nível três na escala de Glasgow.” Os olhos de alguns arregalam-se. Referem-se à escala neurológica para medir o nível de consciência, que vai de três a 15. “Esta senhora vai morrer”, percebe Helena. “Não há nada a fazer.” “Aqui entram as decisões difíceis”, explica Cláudia Branco. “Uma doente desta idade, neste estado, à partida não será para enviar para os cuidados intensivos.” Fica momentaneamente em silêncio. “Pode ter sangue na cabeça, por isso pedimos uma TAC.” Apesar dos incidentes, a manhã está a ser calma para a equipa de cirurgia geral. “Foi pior na semana passada, mal houve tempo para nos sentarmos. À noite fomos para o bloco e só saímos às 6h da manhã”, contam no caminho para o refeitório. No final do almoço a conversa cai para a dificuldade em conciliar família e profissão. “Este trabalho implica grande dedicação”, diz a chefe de equipa. “Trabalhamos muitas horas, fazemos urgências e por vezes acabamos por vir cá ao fim de semana ver um doente. Nem sempre é fácil para a família.” Ana e Helena concordam. As três têm filhos e sentem dificuldade em passar tempo com eles. Cláudia fala dos Natais a trabalhar, dos turnos, das remunerações. Põe o dedo na ferida. “Quando era interna recebia mais do
As internas Virgínia e Cláudia e as especialistas Ana, Cláudia (chefe de equipa) e Helena, depois de um turno 24h FOTO TIAGO MIRANDA
que agora, com os cortes nas horas extraordinárias.”
Na urgência coexistem dois tempos distintos. O tempo dos médicos e o dos familiares. Os médicos têm muitas doenças a analisar, pessoas a tratar, decisões a tomar. Os familiares esperam, e às vezes desesperam, a ver as horas passar. Não há lugar nenhum num hospital onde essa diferença se acentue mais que no bloco operatório. No bloco parece que o tempo para, fica em suspenso. É o médico e o doente, frente a frente. “Nem damos pelo tempo passar”, reconhece Cláudia Branco.
Uma realidade diferente de quem fica do lado de fora, à espera, sem saber o que está a acontecer. Nesta quinta-feira, 29, a equipa de cirurgia foi três vezes ao bloco. “As catacumbas”, como lhe chamam. Às 16h, Helena e Cláudia descem, deixando o resto da equipa na urgência. Vestem roupa apropriada, touca, máscara. São chamadas para a sala A. Desinfetam as mãos, põem luvas e estão prontas a atuar. Naquela marquesa, adormecida, está Nair. O medo que sentia minutos antes já foi anestesiado pelos médicos. Lado a lado, Helena e Cláudia — que trabalham juntas há cerca de 20 anos — fazem três furinhos na barriga da jovem. Por um deles introduzem uma minicâmara. À
NÚMERO DE HORAS TRABALHADAS
EVOLUÇÃO DE ATENDIMENTOS URGENTES
Descida às catacumbas
Os médicos ao serviço do SNS PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
NÚMERO DE MÉDICOS NO SNS
Número de horas
2889
MÉDICOS
INTERNOS
(em formação para tirar a especialidade)
2750
24.151 2500
17.299 6852
TOTAIS 24.857 25.107 17.858
16.850
6999
8257
FONTE: ACSS-SICA
2013
2014
2012
2013
2014
43.744
EXTRAS 47.919
6118
48.948 6000
25.401 16.817 8584
2250 2012
NORMAIS
2015
5670 2012
5314 2013
4812 2014
5500 2012
2013
2014
2015
outubro de 2016
sua frente têm dois monitores que mostram os órgãos da doente: “É como num filme.” Servem-se da laparoscopia, um procedimento cirúrgico pouco invasivo, para ver e seccionar as gorduras que provocam aquela torção no intestino. A cirurgia termina. “Chamo a ortopedia?”, pergunta um médico. Mas a ortopedia prefere esperar pelo dia seguinte. Já são quase 20h e não há urgências de ortopedia a partir de agora. “Só está a Isabel Rosa e um ‘tarefeiro’. Ela não quer deixar o ‘tarefeiro’ sozinho na enfermaria”, explica um médico. Os anestesistas dedicam-se então a mais duas operações da equipa de cirurgia geral. O cansaço vai espreitando à medida que o dia avança, ainda que todos procurem manter a mesma dedicação e profissionalismo. No bloco, nota-se por vezes alguma inquietação na voz de médicos ou enfermeiros, quando algum pormenor não está bem (“estou a fazer a cirurgia às escuras!”) ou atrasa o procedimento (“vamos lá a despachar, doutora!”). “Tem de nos dar um desconto”, avisava horas antes um anestesiologista. “Às vezes passamos aqui tantas horas que andamos a bater com a cabeça uns nos outros. Estamos tão cansados... São muitas horas sem ver a luz do dia. Em 2013 éramos mais dez na anestesia.” “O trabalho nas urgências é um inferno de alto risco e o Estado paga mal”, realça o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva. Por esse motivo, “os hospitais têm dificuldade em escalar os mais velhos para as urgências”, que
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recusam trabalhar mais horas do que as que estão estipuladas na lei, ou pedem para serem excluídos das urgências noturnas (a partir dos 50 anos) e diurnas (55 anos). “Por isso, os hospitais esmagam os internos, e os médicos disponíveis, com noites, fins de semana e 24 horas”, com tudo o que isso implica: “Pior formação para os internos e um risco enorme para médicos e doentes.” Assim, a Ordem aprovou um regulamento, em vigor desde dia 1 deste mês (já depois desta reportagem), que proíbe os internos de trabalharem mais de 12 horas de seguidas e de 58h semanais. A decisão já obrigou o hospital Amadora-Sintra a desviar os casos menos urgentes de ginecologia e obstetrícia para o São Francisco Xavier, pelo menos até ao final do mês. Embora critique as administrações hospitalares, o bastonário reconhece que “estão desesperadas”. “O grande responsável é o Estado, que não contrata nem investe no SNS.” E rejeita a ideia de que não existem médicos para as necessidades dos hospitais. “Não há falta de médicos, há falta de horas de trabalho médico. Se fosse reposto o pagamento das horas extra, não haveria falhas nas urgências.” A reposição das horas extra, pagas a 50%, é ponto vital no debate em torno das urgências em Portugal. O presidente do Sindicato Independente dos Médicos, Roque da Cunha, aponta o dedo ao Ministério da Saúde (MS), “que prefere recorrer a ‘tarefeiros’ de empresas de prestação de serviços, pagos a €50/h”, enquanto os
médicos do SNS recebem entre €5,94/h e €8,73/h (aos domingos, feriados e dias de descanso, em horário diurno). Questionado pelo Expresso, o MS garante que está a trabalhar com a Ordem e sindicatos para “avaliar alternativas e soluções, no âmbito da gestão dos recursos humanos nos serviços de urgência”.
As últimas horas A terceira descida às “catacumbas” termina já passa da 1h. “A partir de agora é que vai custar”, admite a interna Cláudia. São 2h da manhã quando chegamos à sala de médicos, no piso das urgências. Há pouco movimento. “Não me lembro de ver uma urgência sem macas no corredor à noite.” As internas atendem um rapaz ferido por um cão pitbull e depois, sem nada mais a registar, vão as cinco dormir. São quase 4h30. Três horas depois Helena é acordada, para ir ver uma hérnia encarcerada. “Bom dia”, diz com uma voz surpreendentemente fresca para quem esteve a trabalhar quase 24 horas. Já não regressa à cama: “Isto agora já não para”. Chegam doentes à sala de trauma, aparece a nova equipa de cirurgia. Antes de subirem para a enfermaria na 25ª hora, passam o turno. Os papéis invertem-se: agora são elas que estão pálidas e com olheiras. Mal acabam de falar, alguém diz: “Há um politraumatizado na sala de reanimação.” Correm todos nessa direção. O dia está só a recomeçar. mjbourbon@expresso.impresa.pt
LÍDIA FERREIRA, HOSPITAL CENTRAL DO FUNCHAL
“Quem segura as minhas mãos?” “Ser médica é como um casamento. Com dias bons e dias péssimos. As urgências já não têm dias bons, apenas trabalho e mais trabalho. Sou cirurgiã. Trabalho 8h, 12h, 24h e às vezes mais. Se um dia eu errar, quem segura as minhas mãos? Tenho um seguro que apenas dá para que o advogado suba as escadas do tribunal. E já passei pela situação de, por estar cansada, ter que fazer das tripas coração para não prejudicar o doente. Tinha acabado de chefiar uma urgência caótica, já era 1h ou 2h da manhã, e chegou um doente sobre o qual era muito difícil tomar uma decisão: a cirurgia matava-o, não fazer nada dava-lhe o mesmo fim. Estava tão cansada que não sabia o que fazer. Ausentei-me um pouco para decidir. Questionava-me: até que ponto acho que não devo realizar a cirurgia pelo facto de estar cansada? Estava num tal ponto de exaustão que não conseguia decidir. Resolvi esperar pela colega que me vinha substituir para tomar uma decisão. E ela ajudou-me a fazê-lo: não avançámos com a cirurgia.”
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EDSON OLIVEIRA, CONSELHO NACIONAL DO MÉDICO INTERNO
12 urgências num só mês “É rara a semana em que não receba, como coordenador nacional do CNIM, uma queixa de um interno contra um hospital ou um serviço. Um dos riscos destes turnos de 24 horas é o burnout dos médicos. Só nos últimos dois anos já soube de três casos de internos que se suicidaram, por não aguentarem a pressão, que é enorme. As pessoas descompensam, especialmente as psicologicamente mais frágeis. Recordo-me de uma interna que trabalhava numa especialidade cirúrgica de um hospital do nosso país, que prefiro não nomear. Escreveu-me a dizer que durante um dos meses de verão estava escalada para as urgências 12 vezes. Entre turnos de 24 horas, urgências internas e prevenções, trabalhava nestes turnos praticamente dia sim, dia não. Extenuada, estava a pensar desistir de tudo, procurar outra profissão. ‘Isto não é ser médica, mais pareço a trabalhadora de uma fábrica. Mas os doentes não são objetos’, dizia. A situação acabaria por ser regularizada pela Ordem dos Médicos.”