Revista Educar

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Educar Edição especial | Ano 1 | nº 1 | Dezembro de 2010

O recomeço da trajetória escolar Conheça a história de João Batista (foto) e de outros operários da construção civil de João Pessoa que aprendem a ler e a escrever com o Projeto Escola Zé Peão

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ENTREVISTA

Timothy Ireland fala sobre como a Educação de Jovens e Adultos tem sido discutida internacionalmente

DESAFIO

Especialistas apontam as principais deficiências no ensino brasileiro que levam à defasagem idade-série

TECNOLOGIA

Projeto de escola pública em Ceilândia utiliza a videoarte como forma de aproximar alunos de idades diferentes



Carta da Editora

Educação para toda a vida Nesta primeira edição Educar traz um especial sobre a educação de jovens e adultos (EJA). Relatando os desafios e perspectivas da EJA atualmente, procuramos mostrar que ela abrange muito mais do que apenas a escolarização de jovens e adultos. Na entrevista desta edição, com o especialista em educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) Timothy Denis Ireland, foi mostrado que a EJA leva à noção de educação para todos e por toda a vida como forma de preparar os cidadãos para promoverem a paz, a redução da pobreza, e o desenvolvimento sustentável. Garantir que as pessoas tenham acesso à educação com qualquer idade é também um passo importante para formar cidadãos conscientes de seus direitos e deveres e preparados para serem sujeitos criadores de conhecimento. É o que apontaram os especialistas entrevistados na reportagem É preciso mudar o ensino brasileiro, que dá um panorama dos problemas do sistema educacional do país. A reportagem de capa, Construindo o futuro, sobre o projeto Zé Peão, que alfabetiza operários da construção civil na cidade de João Pessoa, na Paraíba, resume essas e outras características da EJA. É exemplo dos problemas enfrentados nesta modalidade de ensino, como a evasão e a relação com o mundo do trabalho, e também da importância da contribuição da universidade no processo de discussão do aprendizado, com uma formação inicial que inclua o ensino para jovens e adultos e uma formação continuada para construir permanentemente uma metodologia que se adapte às diferentes demandas dos alunos. Outro exemplo de projeto que inclui a vivência do estudante no processo educativo são as oficinas de transiarte realizadas por uma escola de Ceilândia, cidade satélite de Brasília (DF). Produzindo vídeos sobre o conteúdo visto em sala, alunos de diferentes idades aprenderam a trabalhar em grupo, como mostrado em Encontro de Gerações. É por crer que educar é preparar o indivíduo para o mundo, e que isso só pode ser feito com uma educação durante toda a vida, que trouxemos como tema principal desta edição especial a educação de jovens e adultos. Acreditamos que os debates sobre a EJA indicam tendências que podem ajudar a apontar o caminho para uma mudança no ensino brasileiro e mundial. Boa leitura. Mariana Niederauer

Educar Expediente Edição, textos e diagramação Mariana Niederauer Fotos Rafael Faria Mariana Niederauer Ilustrações Maurício Chades Revisão Cristina Niederauer Orientadora Márcia Marques Agradecimentos Alexandre Brito Carlos Niederauer Carmen Gatto (Secad/MEC) Coordenação do Projeto Zé Peão Equipe do Fórum EJA/DF Julieta Borges Lemes Maria de Lourdes Lima Mariana de Paula

Revista produzida como produto de conclusão do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) Tiragem: 10 exemplares Brasília, dezembro de 2010


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Sumário INDICAÇÕES 6 | Para pensar Frases e versos para refletir | Ler, ver e ouvir Indicação de livro, filme e CD 7 | Depoimento A visão de uma educadora sobre a EJA | Quadrinho Hagar - O Horrível

FACTUAIS 8 | Proibido reprovar Primeiras séries sem reprovação | Balanço Pesquisa avalia os dois mandatos do governo Lula | Internet Portal dos fóruns de EJA traz acervo digital sobre o tema 9 | Pisa Brasil fica abaixo da média em ranking internacional | Escola Aberta Comunidades frequentam escolas nas férias | Direitos humanos PNDH-3 dá mais destaque à educação

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EXPERIÊNCIAS 14 | Minas Gerais Federal realiza formação de alfabetizadores 30 | Amazonas Projeto vai alfabetizar indígenas em duas línguas

REPORTAGENS 10 | Entrevista O especialista em educação da Unesco, Timothy Ireland, fala sobre como a educação de jovens e adultos tem sido debatida no mundo 16 | Panorama Especialistas apontam as principais falhas no sistema educacional brasileiro e indicam possíveis soluções a longo prazo 20 | Capa Conheça o projeto Zé Peão, que alfabetiza operários da construção civil e é um exemplo dos desafios e perspectivas da EJA no Brasil 32 | Videoarte Projeto promove união de alunos com diferentes idades utilizando a tecnologia. A história de Seu Altino (foto) foi contada em um dos vídeos


PARA PENSAR

LER, VER E OUVIR

“O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.” Mario Quintana, A arte de ler, em Caderno H

“Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele.” Paulo Freire, em Educação como prática da liberdade

“Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho.” Graciliano Ramos, em Vidas Secas

Jardim de Haijin é mais um dos livros de haikais da escritora Alice Ruiz, poemas de origem japonesa com apenas três linhas. Nos versos do livro a autora relembra um pouco da essência do trabalho do haijin – pessoa que escreve haikai - e da inspiração que a leva a escrever. “O que me inspira é a natureza. Não a natureza humana. Mas a natureza mesmo. Plantas, bichos, vento, nuvens, sol, etc. Porque esse é o grande desafio do haikai, não falar explicitamente dos sentimentos ou sentimentos do autor, mas fotografar a natureza em palavras. Sem aparecer na foto”, contou a autora em entrevista por e-mail à Educar. Filme A voz do coração (Les Choristes) Diretor: Christophe Barratier Playarte, França, 2004 O longa francês A Voz do Coração conta a história de um zelador que vai trabalhar num internato no interior da França e utiliza seus conhecimentos musicais para transformar a vida de alunos desiludidos e mal educados. Clémente Mathieu (Gérard Jugnot) ensina os meninos a cantarem e forma um belo coral. Sem querer, ele descobre um grande talento, o aluno Pierre Morhange (Jacques Perrin). Mesmo sob a coordenação de um diretor opressivo e pouco solidário à experiência do coral, os alunos dedicam-se à música de tal forma que até o comportamento nas outras aulas melhora. CD Música de Brinquedo Artista: Pato Fu Rotomusic, 2010

“O analfabetismo é um dos sintomas mais antigos da falta de cidadania. Compromete em vários aspectos a liberdade de um indivíduo.” Gilberto Dimenstein, em Cidadão de papel

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Livro Jardim de Haijin Autora: Alice Ruiz S. Editora Iluminiras, 2010

O último CD lançado pela banda Pato Fu mostra como até na música é possível inventar novos métodos de criação. Música de brinquedo, como o nome indica, foi gravado apenas com sons produzidos por instrumentos de brinquedo. A ideia surgiu em 1996 com o disco onde a Turma do Charlie Brown tocava Beatles, também com instrumentos de brinquedo. Já as músicas escolhidas não são infantis. São 12 faixas que incluem sucessos como “Love Me Tender”, de Elvis Presley, “Sonífera Ilha”, do Titãs, “Live and Let Die”, de Paul McCartney, e “Primavera (Vai Chuva)”, que fez sucesso na voz de Tim Maia.


DEPOIMENTO ROSE CAROL ANDRÉ DA SILVA Foto: Mariana Niederauer

Carol é professora da Casa da Arte de Educar, no Rio de Janeiro, onde trabalha a metodologia da mandala com os alunos da EJA

“Eu não troco a EJA (educação de jovens e adultos) por nada. A EJA é uma experiência muito rica, é uma troca que você vai levar para o resto da sua vida. Você vê que tudo aquilo que você sabe, até em questão acadêmica, é tão pequeno mediante ao que essas pessoas sabem. É sentimento, é corpo, é alma, é espírito, é muito além. Elas te recebem, elas te acolhem, de uma forma que é inexplicável. Você passar e ver que a Joana conseguiu completar

o segundo grau e está na faculdade... Tenho casos assim, de alunos meus que estão na faculdade ou outros que concluíram a faculdade. Aí eu olho para trás e falo ‘nossa, eu comecei aqui com 16 anos e já consegui isso tudo!’ A gente às vezes não tem noção do que a gente já contribuiu. E é muito gratificante. Nem tudo está perdido, né? A grande realidade é essa. Se eu puder continuar fazendo, fazendo, fazendo, eu sei que um dia a coisa se completa.”

© 1981 King Features Syndicate. Inc World rights reserved

QUADRINHOS HAGAR - O HORRÍVEL

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FACTUAIS NOTÍCIAS SOBRE EDUCAÇÃO Foto: reprodução Internet

Foto: reprodução Internet

As três primeiras séries do ensino fundamental passarão a compor um bloco educacional

Proibido reprovar

O Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou na terça-feira (14/12) resolução que determina que os três primeiros anos do ensino fundamental sejam cursados sem que haja reprovação dos alunos. A Câmara de Educação Básica (CEB) do conselho definiu no artigo 30 da resolução que os três anos iniciais do ensino fundamental devem assegurar a continuidade da aprendizagem, tendo em vista a complexidade do processo de alfabetização e os prejuízos que a repetência pode causar ao aluno. As escolas mantém a autonomia para optar pelo regime seriado mas “será necessário considerar os três anos iniciais do ensino fundamental como um bloco pedagógico ou um ciclo sequencial não passível de interrupção”. A resolução nº 7 está disponível no site do Ministério da Educação (MEC), www.portal.mec.gov.br.

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Os fóruns de educação de jovens e adultos (EJA) do Brasil possuem portais com as últimas informações e eventos da EJA no país. No endereço eletrônico forumeja.org.br é possível ter acesso ao portal Fórum EJA Brasil ou aos portais dos estados e do Distrito Federal (foto). Cada portal possui um vasto acervo digital, que inclui livros, documentos, vídeos, gráficos, imagens e muito mais. Também são diponibilizadas informações sobre os principais eventos da área como os encontros nacional e os regionais de educação de jovens e adultos, Eneja e Ereja, respectivamente. Foto: reprodução Internet

Balanço do governo Lula

O site Observatório da Educação produziu um balanço sobre a educação durante os dois mandatos do governo Lula. O estudo conclui que a educação de jovens e adultos (EJA) teve avanços inexpressivos nesse período, mesmo com o aumento do investimento e a criação de grandes programas na área. Além disso, o estudo aponta que os indicadores da educação avançaram, mas em ritmo muito lento. A média de anos de estudos da população com mais de 15 anos aumentou, assim como o acesso à educação infantil, mas a taxa de jovens de 18 a 24 anos que está fora da escola cresceu. Você pode acessar o balanço completo pelo endereço eletrônico www.acaoeducativa.org.

Internet

Indicadores da educação avançaram em ritmo lento durante os dois mandatos do governo Lula


Pisa

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou este mês os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês). A avaliação, que aponta o desempenho dos países em literatura, matemática e em ciência, mostra que o Brasil está em um patamar considerado abaixo da média, com os três índices inferiores a 488 pontos, ocupando a 53ª posição em um ranking com 65 países. O Chile é o país da América Latina com a melhor colocação, ficou com o 44º lugar. A China alcançou as melhores pontuações e está no primeiro lugar do ranking. Confira no gráfico ao lado a comparação entre as pontuações alcançadas por Brasil e China na pesquisa internacional.

Dados da OCDE

Desepenhos de China e Brasil no Pisa CHINA CHINA CHINA BRASIL

556

pontos

412

pontos

Leitura média internacional: 492 pontos

BRASIL

BRASIL

600

pontos

386

pontos

Matemática média internacional: 496 pontos

575

pontos

405

pontos

Ciência média internacional: 501 pontos Foto: Diego Arelano/Tecendo o Amanhã

Escola Aberta

Pensado para aproximar a comunidade da escola, o programa Escola Aberta recebe nessas férias escolares cerca de 400 mil pessoas nas 2.283 escolas públicas atendidas. Desde 2006 o programa do Ministério da Educação (MEC) desenvolvido em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e universidades públicas recebe alunos, pais e educadores nas escolas de suas comunidades. Nas áreas de esporte e lazer das escolas são oferecidas nos finais de semana oficinas e atividades de formação para o trabalho, cultura e arte e acompanhamento pedagógico. Em 2010 foram investidos R$ 43,9 milhões no programa. Um dos principais resultados positivos do programa foi a redução da violência nas escolas onde atua.

Direitos humanos

Foto: arquivo Setec/MEC

A capoeira é uma das práticas esportivas oferecidas nos finais de semana pelo programa Escola Aberta

O site Tecendo o Amanhã é um espaço de discussão dos direitos humanos. Algumas das matérias publicadas falam sobre o novo Programa Nacional dos Direitos Humanos, o PNDH-3. A terceira versão do programa dá mais ênfase à educação. Além de ter um eixo dedicado somente a este tema, ele está presente em todo o texto, como na parte de direito à memória e à verdade, que inclui a investigação de violação dos direitos humanos no período ditatorial. Para ler mais acesse tecendooamanha.com.br.

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ENTREVISTATIMOTHY IRELAND

Educação de Jovens e Adultos no mundo Desde a sua criação, em 1949, a Conferência Internacional de Educação de Adultos (Confintea), já apontava que a educação poderia ser o caminho a se seguir para promover a união dos povos e a paz mundial. Na quinta edição do evento, realizada em 1997 em Hamburgo, na Alemanha, esses propósitos ficaram mais claros e foram reforçados pelas noções norteadoras do trabalho da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), responsável pelo evento, de que a educação é capaz de promover a democracia, a paz e os direitos humanos, e o respeito pela diversidade. Em entrevista

Como a EJA tem sido discutida internacionalmente? TIMOTHY IRELAND | Existem várias formas mais pontuais, mas as mais constantes têm sido as Confinteas, embora só ocorram de década em década. Há pessoas que dizem que é um espaço muito grande entre um evento e outro, mas termina sendo a conferência que tem mais peso em termos de produção de orientações. Acho difícil falar em políticas internacionais, mas as Confinteas têm estabelecido diretrizes e orientações importantes para a educação de jovens e adultos para a década seguinte. O que a gente sempre diz é que a Confintea não é só uma conferência, é um processo. Há todo um processo de preparação que começa uns dois ou três anos antes em termos de mobilizações nacionais, regionais, preparação de documentos e elaboração de relatórios internacionais. Todos os estados membros da Unesco são oficialmente obrigados a preparar um relatório nacional, depois se fazem relatórios regionais, e depois um documento final da conferência. Acho

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à Educar o especialista em educação da organização Timothy Denis Ireland falou sobre a importância dessas conferências, realizadas a cada 12 anos, e de como a EJA é tratada em outros países. Também ressaltou a importância de o Brasil ter sediado o encontro no ano passado, na VI Confintea, realizada em Belém (PA). Sua trajetória de trabalho com a educação de adultos teve início na década de 1970, na Universidade de Manchester, na Inglaterra. Desde 1979 Timothy mora no Brasil, onde continuou dedicando a carreira aos estudos na área. Atualmente, também é professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

que os mais marcantes têm sido o da V Confintea (Hamburgo, 1997), e depois o de 2009 (VI Confintea, Belém). Em 1997, a declaração de Hamburgo foi um documento que teve muito impacto. O que se questiona é que ele é um documento mais de ordem, com principios mais filosóficos, mais inspiracional, mas que não estabeleceu métodos e mecanismos para monitorar os compromissos assumidos. Entre Hamburgo e Belém, o que aconteceu é que não havia como medir o que tinha sido feito ou não. Então, toda a tentativa em Belém era de fazer um documento mais operacional, de estabelecer indicadores ou apontar eixos que são fundamentais para a educação de jovens e adultos, como ainda é a alfabetização, a questão de financiamento, participação, formação, etc, e de estabelecer indicadores de como acompanhar o andamento dos países no sentido de cumprir o que é combinado.

O que impediu que a V Confintea rendesse mais ações concretas?

TIMOTHY | Em Hamburgo houve um processo de preparação muito intenso, envolvendo governos, sociedade civil e os documentos produzidos. E, além do documento final de Hamburgo, produziu-se uma série de documentos sobre a conferência em si. Foi muito rico em termos de discussão. Só comparando, depois da Confintea em Belém a Unesco preparou um grupo que vai assessorá-la sobre esse processo de avaliação da Confintea. Acho que depois de Hamburgo a Unesco falhou em não ter um grupo que cobrasse uma ação mais efetiva. É preciso lembrar que as Confinteas são conferências em nível dois da Unesco (intergovernamentais). Os documentos finais são assinados, mas não são convenções. A convenção pode ser cobrada juridicamente. Os documentos finais das Confinteas não têm esse poder. Há uma linha de pensamento de que deveríamos ter uma conferência em que se estabeleça uma convenção sobre educação e aprendizado ao longo da vida, para poder cobrar com mais força dos governos.


Foto: Mariana Niederauer

Foi mais ou menos isso o que foi feito em Belém? TIMOTHY | O marco de ação de Belém tem sido criticado porque é um documento muito mais operacional, não é um documento que inspira tanto a leitura. É mais seco e aponta para as áreas que são consideradas fundamentais para a EJA. E ele instaura a retórica para a ação. A gente precisava passar desse momento de discurso para uma ação muito mais concreta. Então, o próprio modelo do marco de ação de Belém é mais pragmático.

Um documento foi criticado por ser muito filosófico e o outro por ser muito pragmático. O senhor acha que a junção dos dois terá um bom resultado? TIMOTHY | Eu acho que os dois documentos precisam ser lidos juntos. Porque Hamburgo estabelece muito mais princípios filosóficos, toda a compreensão da educação de adultos na perspectiva de aprendizagem ao longo da vida. E o de Belém é um complemento no sentido de, a partir de Hamburgo, ‘como colocar isso

para funcionar?’ Eles são dois lados de uma mesma moeda e devem ser vistos nesse sentido.

Qual foi a importância para o Brasil de sediar um encontro desse porte? TIMOTHY | Sem dúvidas, foi de grande importância, mas a importância política não foi suficiente. Por exemplo, o fato de o presidente não ter ido nem para a abertura, nem para o encerramento, eu acho que foi uma perda imensa. Porque se o presidente tivesse estado presente, em termos internacionais teria tido um impacto fundamental, já que ele tem prestígio internacional e é uma área em que ele falaria com propriedade. Eu acho que com ele falando sobre educação de adultos, o mundo teria escutado com muito mais atenção e também teria chamado os meios de comunicação. Uma das fraquezas, infelizmente, da Confintea é que não foi notícia. Tinha reportagens na região de Belém, nos jornais locais, regionais, mas não houve matérias nos jornais principais, nem nos canais de televisão princi-

pais. Foi um evento importante, mas, hoje em dia, se não acontece nos meios de comunicação, termina tendo um impacto muito menor. E não aconteceu nos meios de comunicação. Mas, mesmo assim, para a EJA no Brasil foi um momento importante. Esperávamos que para a América Latina seria mais importante, porque seria um momento para a América Latina ter uma participação bem maior e, no fundo, não foi. O Uruguai, por exemplo, fez uma mobilização muito grande, mas outros países fizeram muito pouco. E na própria conferência quem teve uma participação grande foram os países africanos. Foi importante para o mundo em desenvolvimento fazer a conferência em um país também em desenvolvimento, porque as pessoas se sentiam mais à vontade.

Qual a principal diferença em termos de educação entre os países que participam da Confintea? TIMOTHY | No fundo você termina tendo dois blocos de entendimento sobre EJA: o mundo industrializado, supos-

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tamente mais desenvolvido, e o mundo dos países emergentes e em desenvolvimento. Acho que nos países mais avançados o entendimento e a prática de EJA está muito mais voltada para uma visão, eu diria, mais instrumental, muito mais ligada à questão da qualificação, da requalificação, da formação, e também há experiências mais interessantes no sentido de aprendizagem ao longo da vida. Nos países ainda em desenvolvimento a EJA, por mais que se tente abrir as fronteiras, está, por questões óbvias, mais voltada para a escolarização e para a alfabetização, que é uma parte da escolarização. Nesses países, ainda há índices expressivos de analfabetismo, infelizmente, e, talvez muito mais preocupante que isso, são os índices de analfabetismo funcional. Por exemplo, no Brasil o analfabetismo está em torno de 9,7%, são 14 milhões de pessoas. Se você somar quem não terminou as primeiras séries do ensino fundamental chega a 30 milhões de pessoas, e se somar todos que não concluiram o ensino fundamental são mais de 60 milhões, que é quase a metade da população acima de 15 anos. E esse é só o exemplo do Brasil. Em outros países o índice talvez não seja tão alto, mas a questão da escolarização se impõe como fundamental, não há como escapar.

Na sua opinião, qual país acançou melhores resultados na EJA? TIMOTHY | Em termos históricos os países nórdicos, como Dinamarca, Suécia e Noruega, sempre têm investido em educação de jovens e adultos, no que chamam de Folk High Schools. Eles têm essa visão da importância da educação de adultos para a criação de uma nação. Não é uma coisa de luxo, faz parte da própria identidade da nação e da noção de que isso contribui para a formação do cidadão. Na comunidade europeia tem se falado sobre a importância de fazer uma comunidade mais competitiva, voltada para a formação, e os países nórdicos não dão essa conotação econômica, é uma visão mais humanista. No mundo em desenvolvimento há muitos

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Não dá para comparar as populações da Índia e da China com as da França ou da Alemanha. Nesses países todos os desafios são multiplicados por cem, e o processo de desenvolvimento começou recentemente, assim como o processo de crescimento econômico.

exemplos também. A Coreia do Sul tem avançado e investido muito. A Tailândia também tem avançado. Na América Latina vários países têm feito esforços históricos, como Cuba, que logo depois da revolução teve todo um pensamento primeiro em alfabetização e depois em oferecer educação para toda a população. Mais recentemente houve um investimento, com o apoio de Cuba, na Venezuela, Bolívia e Equador. E o Brasil, desde o início do governo Lula, também tem entendido a importância da educação de jovens e adultos. Ainda se espera muito mais, mas eu acho que o Brasil tem sido visto como um país, não moderno, mas que é um bom exemplo para outros países em situação similar.

Por outro lado, qual o país que ainda precisa percorrer um longo caminho até chegar a um nível satisfatório? TIMOTHY | Os países africanos, não to-

dos. Têm muitos países que por falta de recursos ainda não tem, não só a educação de jovens e adultos, a educação em geral. A Unesco tem uma iniciativa que se chama Life (Literacy Initiative for Empowerment), para apoiar os países que têm ou mais de 3 milhões de analfabetos ou acima de 50% da população de analfabetos. Então países do E-9 (os mais populosos do hemisfério sul: Bangladesh, Brasil, China, Egito, Índia, Indonésia, México, Nigéria e Paquistão) têm ainda um grande nível de analfabetismo.

A falta de financiamento ainda é um problema para esses países? TIMOTHY | Acho que mais para os países africanos. Nos países emergentes, como Índia, China e Brasil, a questão não é muito financeira, embora o tamanho do problema seja imenso. Porque não dá para comparar as populações da Índia e da China com as populações da França ou da Alemanha. Nesses países todos os desafios são multiplicados por cem, e o processo de desenvolvimento começou recentemente, assim como o processo de crescimento econômico. Os países emergentes começam a emerger nos últimos dez anos. O Brasil, por exemplo, tem investido recentemente muito dinheiro em educação em geral e, ainda não suficientemente, mas mais, em educação de adultos. Em alguns países é realmente uma questão financeira, em outros países o problema é mais o tamanho e as questões metodológicas.

Os problemas enfrentados pela EJA aqui no Brasil são os mesmos enfrentados lá fora, como a questão de gênero, a desmotivação dos alunos devido ao cansaço e a idade avançada? TIMOTHY | São. No Brasil a questão de gênero não é uma questão, quando se olha para as estatísticas do analfabetismo é mais ou menos igual, enquanto que, nos países africanos e na Índia, o acesso à mulher é um problema muito mais evidente. Agora, a questão de evasão, idade, a questão rural, são variáveis que têm o mesmo peso em quase todos os países. Há problemas


que são exógenos e problemas que são endógenos, que são problemas de ordem pedagógica. Em muitos casos a forma como a educação de jovens e adultos é desenvolvida é muito chata. As pessoas podem ter o problema do cansaço, de a escola não ficar perto de casa e os horários não serem convenientes, mas o que também pesa muito é quando elas vão para escola e é uma escola que não atrai. Elas não conseguem fazer a ligação entre o que aprendem na sala de aula e o que fazem na vida fora da escola. Isso tem que ser reconhecido também como um elemento importante.

O que, na visão do senhor e na da Unesco, a educação pode acrescentar em termos de mudanças globais? TIMOTHY | Primeiro, o básico é que a educação é um direito, não há necessidade nenhuma de dar outras justificativas. E todas as evidências têm mostrado a importância da educação para o pleno desenvolvimento da pessoa. A pessoa tem o direito de se desenvolver plenamente como ser humano. Mas também é reconhecido que a educação de adultos é fundamental para o desenvolvimento sócioeconômico com justiça. E há também a questão do desenvolvimento sustentável. Não há como mudar as formas de desenvolvimento e as formas de consumo. Vou colocar de uma forma positiva: mudar isso é um processo educativo. As pessoas precisam ser informadas sobre os impactos negativos dos atuais padrões e parâmetros de desenvolvimento do nosso planeta. A educação de jovens e adultos tem esse papel fundamental de educar as pessoas para um desenvolvimento mais sustentável. E tem a relação com as metas do milênio e com a pobreza. Infelizmente as metas do milênio não fazem referência específica a educação de adultos, mas todos reconhecem que não há como vencer a pobreza sem investir nela também. Muitos problemas voltados para a probreza, para a saúde, etc, tem como elemento muito forte a educação. A Unesco entende que eles não serão resolvidos sem investimentos na educação.

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As pessoas precisam ser informadas sobre os impactos negativos dos atuais padrões de desenvolvimento do nosso planeta. A educação de jovens e adultos tem esse papel fundamental de educar as pessoas para um desenvolvimento mais sustentável.

Aí entra também a questão da educação ao longo da vida, não? TIMOTHY | É. Eu acho que a aprendiza-

gem faz parte do próprio ser humano. A gente não vive sem aprender. Todo o processo de vivência é um processo de aprendizagem. Você tem os estímulos positivos e negativos e todo dia você está mudando por causa de como as coisas têm impacto sobre você. É importante reconhecer que esse processo é natural ao ser humano e que em certos momentos ele precisa ser mais organizado que outros. Ainda se considera que é bom investir no período em que o ser humano é mais jovem, ou quando criança, justamente nesta fase de aprendizagem mais formal. Mas com a aceleração dos processos de mudança não há como você preparar as pessoas da forma como antes se pensava: colocar a criança na escola com seis anos e ver se até os 18, com um pouco de sorte, com ensino superior completo, ela estará pronta

para o resto da vida. Hoje em dia, a velocidade com que se vai avançando em termos de conhecimento é espantosa. Então, as pessoas vão sempre ter que se atualizar, que continuar aprendendo, inclusive, de uma forma um pouco mais organizada do que o processo natural.

Que tipo de apoio a Unesco dá para os países na área da EJA? TIMOTHY | O principal é uma orientação geral, com a ideia de educação para todos. E a educação para todos não é educação para todas as crianças. É para todas as crianças, jovens, adultos e idosos. Estabelecer isso como horizonte para todos os países é fundamental. A função da Unesco é muito mais de estabelecer grandes princípios, orientações e metas que são importantes para os países pautarem as suas próprias políticas. Por exemplo, estabelecer as metas de educação para todos até 2015, definir como isso é monitorado e publicado, e todo ano ter uma comparação de como um país está em relação a outro, ajuda bastante a incentivar os países a investir mais, a pensar mais sobre educação. O Life, por exemplo, é uma iniciativa que não aporta muito recurso financeiro, porque a Unesco não tem muitos recursos. O que ela tem a oferecer é mais um apoio técnico, no sentido de ajudar os países a pensar sobre as suas políticas.•

Saiba mais

O site do Instituto de Educação ao Longo da Vida da Unesco (UIL na sigla em inglês) disponibiliza todos os documentos da VI Confintea, realizada no ano passado na cidade de Belém. Para conferir acesse uil.unesco.org.

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EXPERIÊNCIA MINAS GERAIS

Saiba como a federal de Minas Gerais forma alfabetizadores para educar cidadãos conscientes Luiz Olavo Fonseca Ferreira*

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m dezembro de 2009 o Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi convidado a coordenar a formação de um projeto de alfabetização no estado de Minas Gerais. Essa formação era para educadores que atuam em um programa que atende à alfabetização, para mais de duzentas cidades do norte, nordeste e centro do estado. Quando a coordenação do núcleo reuniu um grupo de formadores interessados em participar dessa tarefa, percebemos que estávamos diante de um grande desafio. Naquele momento, pensamos nas dificuldades das mais variadas ordens, lembrando que os educadores trabalham na zona urbana e na zona rural, e, em grande parte, em uma região do estado que é marcada pela precariedade, falta de materiais e suportes pedagógicos, mas, por outro lado, possui uma imensa diversidade cultural. Dessa maneira, a formação desses educadores deveria contemplar um planejamento que atendesse à diversidade de demandas e condições dos educadores para a prática docente, contribuindo para a melhoria do trabalho em sala de aula, estimulando a busca, apresentando possibilidades, incentivando a prática de planejar e, sobretudo, que valorizasse os conhecimentos dos alunos, fazendo com que a docência se constituísse em um momento de prazer. Essa formação foi construída por um grupo composto por estudantes de graduação, estudantes de pós-graduação, militantes de movimentos do campo, alfabetizadores, educadores de EJA e integrantes de Fóruns de EJA. Eles se reuniram, periodicamente, para discutir os desafios desse campo educacional e para dialogar, a partir das experiências e formação de cada um deles, acerca da construção do material e das metodologias a serem empregadas.

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Com relação à metodologia e os instrumentos utilizados pela equipe, partindo de um documento inicial que apontava os objetivos da formação, e pensando que faríamos a formação dos multiplicadores, vimos a necessidade de que o nosso foco fosse o alfabetizando. Várias discussões foram feitas, incluindo na proposta temáticas pertinentes àqueles sujeitos, tais como a EJA, a educação do/no campo, a alfabetização e o letramento. Depois relacionamos os assuntos mais importantes a serem abordados com a realidade local e o lugar onde eles moravam, para definir que deveríamos utilizar instrumentos variados, proporcionando ao alfabetizador criar os próprios materiais. O programa do governo federal para o qual a equipe iria formar os alfabetizadores era o Brasil Alfabetizado, que acontece nos municípios através de parcerias com o Ministério da Educação (MEC) e com o financiamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Em Minas Gerais, o governo estadual aderiu ao PBA através da Secretaria de Estado Extraordinária Para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri e do Norte de Minas (SEDVAN), por meio do Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais (Idene), e recebeu o nome de Cidadão Nota Dez (CND). O trabalho iniciou em janeiro de 2010, com o planejamento das ações, pensando a formação inicial e continuada das pessoas que ocupavam as funções de articuladores territoriais e de coordenadores municipais, dentro da estrutura do CND, visando prepará-los para realizarem as formações de coordenadores de turma e de alfabetizadores. Durante o curso, durante vários momentos, o envolvimento era total e os resultados eram muito interessantes e proveitosos. Como exemplo, posso citar uma atividade, cujo objetivo era de que os grupos deveriam apresentar para o restante dos participantes a cultura das cidades onde eles trabalhavam, através de roupas, músicas, comida, dentre outros, para que todos percebessem a diversidade contida naquele coletivo. O que vimos na apresentação final, foi algo de encantar e de se guardar na lembrança. Do mês de abril até o mês de setembro fizemos visitas aos locais de funcionamento das turmas, tanto na zona urbana quanto na zona rural. Durante essas visitas foram feitas entrevistas, aplicação de questionários, filmagem de depoimentos, fotografias das aulas, conversas com educandos, educadores, secretários de educação, além de observações e intervenções nas práticas pedagógicas. Lógico que encontramos nessas viagens situações bem diversas, as quais nos chamaram a atenção pelos mais variados fatores. Quando da visita à cidade de Palmópolis, no Vale do Jequitinhonha, - considerada pela Fundação João Pinheiro, em pesquisa publicada em abril de 2010, como a segunda pior cidade para se viver no estado de Minas Gerais - estava acontecendo a formação dos coordenadores de turma, que são os responsáveis pela formação e pelo acompanhamento do trabalho dos alfabeti-


Ilustração: Maurício Chades

zadores. A cidade é pequena, o trabalho se restringe ao funcionalismo público e às poucas vagas no comércio local. Pequenas plantações se constituem, basicamente, no meio de sobrevivência das pessoas, que plantam para o próprio consumo. Em Palmópolis, o CND é desenvolvido em parceria com a Casa do Artesão, que é uma associação que reúne algumas mulheres que mantém viva a cultura de fazer artesanato em argila. É na sede da Casa do Artesão que as artesãs trabalham, e que, também, foi o local onde aconteceu a formação. Quando desenvolvemos algumas dinâmicas previstas no planejamento, de maneira bem natural, os cursistas traziam, recorrentemente, músicas, histórias, vivências e experiências da região, o que colaborou muito para que pudéssemos discutir e construir o planejamento para os alfabetizandos. Chamou a atenção, ainda, os relatos dos coordenadores de turmas sobre cada uma das comunidades em que trabalhavam. Percebi que eram lugares mais pobres do que a cidade de Palmópolis, mas a alegria e o prazer de aprender era uma marca daquele lugar, e tudo que faziam trazia as marcas dos espaços onde aprendiam. A partir das idas a campo, o grupo de formadores da UFMG se fortaleceu muito enquanto equipe de trabalho. A união e a transparência se tornaram eixos de condução do trabalho. As discussões feitas após cada viagem serviam para que soubéssemos dos desafios e dificuldades que cada um encontrou e para a troca de experiências entre nós. Além dessa reunião após as visitas, também nos reuníamos na semana anterior à próxima visita para podermos debater e construir o planejamento, com o objetivo de falarmos a mesma linguagem. Como etapa final dessa empreitada, está prevista a entrega de um material permanente, que é um livro e um DVD, que conterão grande parte do conteúdo da formação inicial, imagens, filmagens e depoimentos, além de artigos produzidos pela equipe contemplando várias temáticas observadas durante a formação. Ressalto que o espírito de cordialidade e de trabalho coletivo foram os eixos que mantiveram todo o grupo coeso e unido até esse momento, demonstrando que pessoas que buscam os mesmos objetivos, mesmo pensando diferente, são capazes de terem êxito em sua proposta de trabalho de formação de educadores de EJA. Os princípios que nortearam e sustentaram o trabalho com o Cidadão Nota Dez, tais como o trabalho coletivo, o acompanhamento constante e registro das atividades, bem como as reuniões de avaliação e de planejamento durante todo o processo, se mostraram de grande valia para o resultado positivo por nós alcançado, e têm grande possibilidade de serem utilizados em qualquer parte do nosso país, na busca do aumento da taxa de alfabetismo do povo brasileiro. • * Olavo Ferreira é doutorando em Educação pela UFMG e educador da EJA na Rede Municipal de Belo Horizonte

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É preciso mudar o ensino brasileiro Mariana Niederauer

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Constituição Federal determina que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família. Mas simplesmente erguer escolas, sem entender as demandas do aluno que a frequenta, não é suficiente. Aumentar a oferta pode ser a saída mais óbvia, só que não garante que os alunos vão manter-se na sala aula, nem que eles vão conseguir acompanhar o ritmo com que o conteúdo é ministrado. Ao evadirem ou não conseguirem passar de ano, esses alunos entram para o grupo de estudantes que não

cursam a série adequada para a sua idade, a chamada distorção idadesérie. É isso que mais tarde fará com que esse aluno vá para a educação de jovens e adultos (EJA). Com a obrigatoriedade do ensino dos 6 aos 14 anos de idade, o país chegou muito perto da universalização da oferta do ensino fundamental. Em 2009, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a taxa da escolarização das pessoas nessa faixa etária foi de 98%. Quando observada a mesma taxa para o grupo de pessoas com 15 a 17 anos, porém, ela cai para 85,2%. Dos 18 aos 24 anos o indíce fica em 30,3%.

A Educar ouviu três especialistas para tentar entender porque a universalização da oferta de vagas no ensino fundamental não reflete na qualidade do ensino e quais são as prováveis causas da distorção idade-série. Para o coordenador geral da Ação Educativa, Sérgio Haddad, o principal problema é que enquanto não houver democracia social também não haverá democracia educacional. Para ele, entendendo a educação como um direito humano, é possível chegar ao ponto em que um direito não violará o outro e eles poderão ser usufruídos em todas as suas dimensões e com qualidade. Os indicadores que Foto: Mariana Niederauer

Cerca de um quinto da população brasileira com 15 anos ou mais de idade tem menos de 4 anos de estudo

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Especialistas falam sobre os principais problemas no sistema educacional brasileiro que levam à defasagem idadesérie nas escolas e apontam possíveis soluções a longo prazo medem a educação do país mostram claramente que a exclusão social ainda é um fator predominante no acesso à educação. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que analisou os dados da PNAD aponta que na população branca com 15 anos ou mais de idade a taxa de analfabetismo é de 5,9%, enquanto que entre os negros o índice sobe para 13,4%. A mesma discrepância aparece na comparação entre os dados de uma região mais rica que é o Sul do país, onde a taxa de analfabetismo é de 5,5%, e uma região mais pobre, como o Nordeste, onde essa taxa chega a 18,7%. Haddad acredita que essa desigualdade acaba por promover a baixa escolarização da população. “É um ciclo de multiplicação da pobreza. Para a educação conseguir ser um forte instrumento de mudança, você teria que fazer justamente o inverso, oferecer mais para aqueles que têm menos. E, hoje em dia, não é isso que ocorre. Para os mais pobres você tem uma educação de pior qualidade, por isso que você tem uma reprodução da pobreza”, explica. QUALIDADE DO ENSINO | Não é possível apontar um só fator para explicar a má qualidade do ensino no Brasil e também não há como encontrar no curto prazo a solução para todos os problemas. É por isso que pensar políticas públicas que realmente funcionem é tão difícil no âmbito educacional. Para o diretor de Políticas da Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/ MEC), Jorge Teles, criar o tipo de

política pública que promoverá a mudança necessária no sistema educacional brasileiro depende de repensar a forma como os alunos estão sendo educados e de adequá-la à nova realidade vivida atualmente, onde esse mesmo aluno está inserido na chamada sociedade do conhecimento. Antes, saber qual eram as partes do corpo humano só era possível por meio de livros que rapidamente ficavam desatualizados. No entanto, com a chegada das novas tecnologias ficou muito mais fácil ter acesso a essas e muitas outras informações e o papel da escola passa a ser outro. “É preciso repensar o lugar da escola nesse novo processo educativo, repensar essas responsabilidades. Que formar compete à escola? Que formar compete à familia? Que formar compete aos grupos?”, questiona Jorge Teles. Ele acredita que essa nova onda informacional está fazendo com que seja resgatada uma visão que por muito tempo ficou submersa nas discussões sobre a educação, a de formação integral do sujeito. “Você não precisa tanto ter a informação, você precisa aprender a gerir a informação, transformar aquela informação em conhecimento e fazer um diálogo desse novo conhecimento com a vida. E acho que é esse o novo sentido da educação que as pessoas estão discutindo muito fortemente e que vai ser a tônica na próxima década, uma formação integral do indivíduo. E para formar integralmente o individuo você resgata certas áreas que foram separadas”, opina. Nesse sentido, cai por terra a ilusão, que se assemelha ao modelo fordista de produção, de que as áreas

do conhecimento, como saúde, cultura e educação, são blocos totalmente separados. Teles defende que esse modelo simplista de escolarização é ainda herança do regime ditatorial, quando não era conveniente formar pessoas que tivessem capacidade de se contrapor ao sistema, e que ele é um modelo falido. “Hoje você recupera a ideia de formar indivíduos que são indivíduos críticos e a ideia de cidadania que a democracia trouxe de volta”, entende. “Isso te leva a pensar a política de educação de forma orgânica, não tem como pensar que isso aqui é EJA, isso aqui é educação infantil. Claro que cada área tem a sua temática própria, mas é preciso articular”, completa. Ele acredita que o maior desafio para a reforma da educação no Brasil é construir uma política educacional que seja um menu para o aluno, fornecendo uma flexibilizadade tal que permita que o indivíduo construa sua própria trajetória formativa. “A educação é um direito, não é uma obrigação. É uma obrigação para o Estado, mas para o sujeito é um direito subjetivo. Então, acho que a opção tem que ser do sujeito, não do sistema de ensino. O sistema de ensino tem que dar condição para quem quer fazer pós-doutorado e dar condição para quem quer ter outra trajetória.” QUALIFICAÇÃO | Na teoria a ideia de formação integral do indivíduo parece ser a melhor forma para se alcançar um ensino de qualidade e envolver mais o aluno em seu processo formativo, não só escolar, mas humano também. Só que, na prática, isso depende da qualificação do profissional

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que vai dar aula para este aluno. O professor também precisa entender essa nova dimensão do ensino e estar pronto para levá-la para a sala de aula de uma forma diferenciada e não puramente instrumental. O grande problema é que o sistema educacional brasileiro não é inadequado só para os alunos, ele o é também para os professores, que são mal pagos e por isso precisam trabalhar mais. Mal sobra tempo para planejar a aula do dia seguinte, quanto mais para dedicar à própria formação. “Quanto melhor remunerado for o professor, em menos lugares ele vai precisar trabalhar para sobreviver, e aí ele terá mais tempo livre para fazer o planejamento pedagógico, que é algo fundamental para ele ser um sujeito de construção do conhecimento e não um mero replicador do conhecimento que ele teve há cinco, 15 anos atrás, na formação dele”, relata Jorge Teles. Para que isso aconteça, além de uma melhor remuneração, ele acredita que é necessário haver uma formação permanente do educador e que esteja inserida numa política pública específica. A universidade tem papel fundamental neste sentido. Teles afirma que é preciso ter uma visão mais holística do processo educativo, e não extremamente especializada como tem sido disseminado no meio acadêmico. “O professor só vai melhorar o trabalho dele quando ele olhar para o outro, e o outro dele é o estudante. Ele tem que entender o que o aluno quer, entender essa voz sufocada do aluno dizendo que ‘esse tipo de escola não é a que eu quero’.”

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Sérgio Haddad acrescenta outra dimensão do problema da formação universitária. É que grande parte das universidades federais acolhem apenas os alunos que vieram do ensino privado e que depois vão dar aula em escolas particulares. Já os alunos que saem da rede pública dificilmente conseguem ingressar em universidades federais e fazem o curso superior em instituições privadas de má qualidade, pois é o que conseguem pagar. “Para você poder inverter isso, você tem que oferecer condições de trabalho adequadas para esse professor, dignificar a carreira do professor”, relata. O coordenador da Ação Educativa acredita também que há uma culpabilização muito grande do professor por parte do sistema, da mídia, das autoridades e do senso comum, “como se eles fossem a causa de todos os problemas da educação”. “No curto prazo, dobrar o salário dos professores não resolve o problema da qualidade. Mas isso não quer dizer que os salários não estejam ruins. Significa que há todo um processo de desqualificação do sistema, que implica na melhoria da educação do professor, que implica em melhores condições de vida para esses professores, que implica na melhoria da condição social de maneira geral, que implica em melhores infraestruturas para o trabalho da escola e do sistema. Tudo isso impacta a qualidade do ensino”, completa Haddad. JOVENS E ADULTOS | A opção dos jovens e adultos que não conseguem completar a educação básica na idade

Hoje nós temos mais de 3 milhões

de jovens de 15 a 17 anos que estão fora escola e não estão estudando na EJA e nem estão trabalhando Jorge Teles

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própria para cada série que a compõe, é continuar cursando a mesma série até passar ou ir estudar em turmas da EJA. Antes disso alguns alunos têm a opção de tentar corrigir a distorção idade-série participando de programas como o Acelera, Brasil e o Se liga, ambos criados pelo Instituto Ayrton Senna para correção do fluxo no ensino fundamental, o primeiro com foco no combate à repetência e o segundo centrado na alfabetização. Para outros vários, no entanto, a escola acaba deixando de ser uma opção. “Hoje nós temos mais de 3 milhões de jovens de 15 a 17 anos que estão fora escola e não estão estudando na EJA e nem estão trabalhando. Então, não é uma concorrência com o mercado de trabalho, é uma falência daquela versão de escola antiga, disciplinar, certinha, muito bitolada, muito engessada”, aponta Jorge Teles. Esse abandono da escola acaba gerando analfabetismo. No Brasil, 9,7% da população com 15 anos ou mais de idade é analfabeta, o que equivale a mais de 14 milhões de pessoas. O número sofreu redução em comparação com a taxa de 2004, que era de 11,5%. Programas como o Brasil Alfabetizado, criado em 2003 pelo governo federal, contribuíram para o avanço, mas não contemplam outra parte do problema, que é o analfabetismo funcional, índice que chega a 10,7% atualmente. Isso quer dizer que cerca de 20% da população brasileira com 15 anos ou mais de idade têm menos de quatro anos de estudo. POLÍTICA COMPENSATÓRIA | Por muito tempo a EJA foi tratada como política compensatória. Acreditava-se que aos poucos o próprio sistema daria conta de eliminar a distorção idade-série. Tanto é que o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso vetou a parte do Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) destinada à EJA. Já o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica Pública e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) inclui recursos destinados a


Foto: Mariana Niederauer

esta modalidade de ensino, mas isso ajudou muito pouco na melhora da oferta da EJA pelo país. Uma das dificuldades enfrentadas é a de convencer estados e municípios de que é importante abrir vagas nas escolas para jovens e adultos e estimular as pessoas a se matricularem na EJA. Por causa do regime federativo, não depende só do governo federal incentivar políticas na área e liberar o dinheiro a ser investido, pois os governos estaduais e municipais têm independência administrativa. Sem uma oferta de ensino de qualidade, esses jovens e adultos acabam novamente desestimulados. “As pessoas vão para a escola (na EJA) porque estão afim. Grande parte das pessoas tem o maior orgulho de estar estudando, justamente porque não tiveram a oportunidade, é um momento de volta. Se você desestimula isso, se você não oferece um ensino de qualidade, as pessoas vão perdendo a empatia, a vontade, porque têm que fazer um esforço muito maior”, explica Haddad. AFETIVIDADE | Para dar conta dessas peculiaridades da EJA e das falhas no sistema educacional brasileiro o professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE/UnB) Renato Hilário Reis fala da importância da afetividade na formação do sujeito. Para ele, que trás a experiência de um projeto de alfabetização de adultos no Paranoá, cidade satélite de Brasília (DF), a escola tem que ir além do modelo que habita o imaginário popular, de que ela serve apenas para ensinar matemática, português e outras disciplinas. “O aluno pode aprender muito português, muita matemática, muita geografia, muita história. Ele pode até com isso conseguir um emprego, ou melhorar no emprego. Mas se ele não aprendeu a desenvolver uma iniciativa subjetiva, individual e coletiva, de participação na melhoria da condição de vida da sua comunidade, nós teremos fracassado.” Para ele, é esse o principal motivo de fracasso da educação no Brasil desde que ela teve início. “Isso não é falta de nós termos referenciais dife-

Para Sérgio Haddad, uma das medidas importantes é valorizar o profissional da educação

rentes, porque Paulo Freire vai dizer que nós temos que partir da história de vida acumulada da pessoa. E eu diria que essa história de vida acumulada da pessoa não é apenas um conhecimento cognitivo conceitual. É a dimensão da vivência afetiva, é a dimensão da vivência cultural, é a dimensão da vivência estético artística da pessoa”, opina. O grande problema que o professor vê no sistema educacional brasileiro, é que a escola está organizada em currículos que trabalham na perspectiva do “nada sei, nada sou e nada posso” ao trabalhar com o aluno em sala de aula. “Enquanto perdurar essa proposta, que é uma proposta de civilização, uma proposta de sociedade, e, como tal, uma proposta de educação e de vida, essa questão da diferenciação idade-série e sobretudo de inadequação da escola a seus alunos e suas alunas, a seus professores e suas professoras, vai permanecer. Nós temos que ir na raiz da questão”, acredita. Partindo da perspectiva de que o ser humano nunca é um ser vazio, sempre tem algum conhecimento guardado dentro de si e que ele tem o poder de promover mudanças no meio social onde vive, Renato Hilário também crê

que a escola tem a responsabilidade de desencadear o processo de transformação social. “Alguém tem que começar a caminhada”, conclui. •

Saiba mais • O professor Renato Hilário vai lançar em março de 2011pela Autores Associados o livro com o título provisório A Constituição do Ser Humano: amor - poder - saber na educação/alfabetização de jovens e adultos, resultado de sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), onde trata da dimensão da afetividade na formação do sujeito.

• Para ver mais sobre os problemas no sistema de ensino brasileiro uma boa opção é o documentário Pro dia nascer feliz, de 2006 dirigido por João Jardim. No DVD são contadas histórias de alunos de todo o país e as dificuldades que enfrentam para estudar, tanto na rede pública quanto em colégios particulares.

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Construindo o FUTURO


Voltar para a escola nunca é fácil. Se quando criança a necessidade de sustentar a família falou mais alto do que a necessidade de estudar, com o passar dos anos essa situação tende a piorar. E quando resolve voltar para a escola o operário da construção civil de João Pessoa, assim como os outros jovens e adultos do Brasil, precisa enfrentar o cansaço e uma metodologia que não funcionou da primeira vez. Os criadores do projeto Zé Peão sabiam que não podiam reduzir o cansaço do peão de obra, ou fazer com que seus salários melhorassem. Mas eles sabiam que a melhor maneira de ajudar esses operários para que, sozinhos, reivindicassem seus direitos nas empresas era por meio da educação. Texto Mariana Niederauer Fotos Rafael Faria


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uando a água para de encharcar o solo do sertão e do céu não cai mais a chuva que vai fazer a lavoura crescer, a população rural brasileira é obrigada a passar por um processo de mudança. Para conciliar a sazonalidade do campo com a das construções das grandes cidades, muitos dos peões das fazendas precisam transformar-se: viram peões de obra. Isso porque a seca que mata a plantação no sertão, acelera o ritmo das construções dos prédios nos centros urbanos, pois permite mais rapidez na construção das lajes, das paredes, e dos pilares dos edifícios. O sustento vindo do milho e do feijão, agora dá lugar ao que vem do cimento e do tijolo. Segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, quase 30 milhões de pessoas vivem nessa situação. É o equivalente a mais de duas cidades de São Paulo inteiras morando no campo. Quase metade dessas pessoas estão na região Nordeste, muitas delas migrando para os grandes centros urbanos buscando emprego. Olhando a cidade de João Pessoa (PB) dá para perceber porque os peões do sertão estão sendo tão requisitados pelo setor da construção civil local. Desde o último Censo demográfico, de 2000, a população da capital paraibana cresceu 21%. São mais de 700 mil pessoas morando na cidade. Prédios e mais prédios são erguidos, cada vez mais altos, para tentar roubar um pedacinho da vista do mar. É para erguer esses edifícios que as construtoras precisam da mão de obra dos peões que fogem da seca. Eles nuncam vão morar lá, pois seus lares ficam no sertão. Lidar com o gado e com a plantação, e não com máquinas, são as atividades que geralmente lhes dão mais prazer. Numa análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE) de 2009 sobre educação, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) concluiu que enquanto entre a população urbana brasileira o índice de analfabetismo da população com 15 anos

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ou mais de idade é de 4,4%, entre a população rural o mesmo índice é de 22,8%. É por isso que quando o trabalhador do campo chega a uma capital como João Pessoa ele não está carente só de dinheiro para sustentar a família. Ele está carente também de educação, de cidadania. Ele está carente de entender o que o mundo ao seu redor está querendo dizer com todas as letras, palavras e frases que o cercam por todos os lados. Mas a chegada aos canteiros de obra de João Pessoa pode reservar uma surpresa para os trabalhadores. Há 20 anos chegou por lá um projeto de alfabetização dos trabalhadores da construção civil, implementado pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de João Pessoa (Sintricom). É o Projeto Escola Zé Peão (PEZP), que leva a sala de aula para dentro dos canteiros de obra. MÉTODO DIFERENCIADO | Os alunos entram na sala de aula do Zé Peão acreditando que a escola é como a que eles frequentaram quando moravam no campo e tiveram que abandonar para ajudar a cuidar do roçado: o professor fala o que sabe e o aluno escuta, tentando guardar na memória tudo aquilo que lhe é despejado nos ouvidos. Mas aos poucos eles descobrem que no Zé Peão será diferente. “O ponto de partida é o saber do aluno, nunca o de chegada”, explica a coordenadora geral do projeto pelo Sintricom, Maria José Moura, a Zezinha. Eles descobrem, também, que o conhecimento já estava dentro deles. Com os sentidos abertos para o mundo, não apenas para servirem de meros depósitos do que é falado em sala de aula pelo professor, esses trabalhadores ficam prontos para serem inundados por uma enchente de conhecimentos, a deles próprios e do mundo a sua volta. Com todo esse poder que nem eles sabiam que tinham, eles começam a traçar junto com o professor o conteúdo que deverá ser desenvolvido em sala de aula. Foi durante esse diálogo com os alunos que os coordenadores do projeto

descobriram que não era necessário trabalhar livros como Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ou textos que tratam do cotidiano na construção civil. Eles já sabem o que é enfrentar a seca no sertão e passar fome. E sabem o que é passar horas preenchendo lajes com cimento. Como diz Zezinha, o aluno é o grande referencial, um livro aberto e rico por si só. “É um universo muito rico em que o aluno vai ficando à vontade e vai adquirindo confiança. E o professor vai também se sentindo pequeno frente aos alunos, porque ele vai tendo uma dimensão de que, se eles sabem tanta coisa, não é o fato de eles não saberem ler e escrever que vai determinar que eles não sabem de nada. A gente vai desmistificando esse conceito de que só a escola ensina”, resume. E para trazer o contexto do aluno para a sala de aula, o projeto não divide os alunos em séries, mas em etapas. Eles não estudam na primeira série, fazem parte da etapa de Alfabetização em Primeira Laje (APL), e depois de chegar a um nível de pósalfabetização entram para a etapa Tijolo sobre Tijolo (TST). SALA DE AULA | Já passam das oito horas da noite. A aula na sala instalada na obra do Residencial Ibiza começou às sete. O ajudante de carpintaria João Batista Constantino Souza levanta pela segunda ou terceira vez para ir ao bebedouro ao lado do quadro de giz, na tentativa de espantar o sono que teima em pesar sobre suas pálpebras. Às sete horas da manhã já estava de pé trabalhando. O corpo começa a reivindicar descanso após as dez horas trabalhadas preparando a 16ª lage do edifício para receber o cimento. O trabalho é tão duro que mal dá para aproveitar a vista privilegiada do mar, que inunda a paisagem lá no fundo. O cheiro de cimento fresco que sobe do chão batido toma a sala de aula improvisada no primeiro pavimento da construção, logo acima do andar subterrâneo onde ficará a garagem do residencial. “Ia ficar bom demais se colocosse uma cerâmica aqui,


Sala de aula do projeto no canteiro de obras do residencial Ibiza. É nela que João Batista estuda com os outros operários da obra

não ia?”, indagava João Batista algumas horas antes de a aula começar. Para sentar nos bancos feitos com os restos de madeira da obra, os alunos têm que passar um pano para tirar a crosta de poeira de cimento seco e terra que se acumula durante o dia. Apesar de ser uma das melhores do projeto, a sala de aula do residencial Ibiza tem uma iluminação fraca para estudantes que vão dos jovens aos que estão batendo na porta da terceira idade. Paraibano da cidade de Juarez Távora, 100 km distante de João Pessoa, aos 16 anos de idade João Batista começou a trabalhar na roça para ajudar o pai. Isso segundo ele, pois é bem provável que tenha sido até mais cedo. Depois ele foi trabalhar em obras pelo país. São Paulo, Brasília, Mato Grosso, com uma breve pausa para ser vaqueiro em Goiás. Há sete anos João Batista parou de viajar e só trabalha na capital paraibana. O motivo é a família que formou lá em sua cidade natal com Maria Eusébia Trajano. Juntos também há sete anos, eles têm três filhas: Micaela, de 6 anos, Maria Gabriela, de 4 anos, e

Roberas, a caçula de apenas 7 meses. Aos 35 anos de idade e com família formada, João Batista não consegue segurar a saudade, e, se trabalhasse mais longe, ia ter que esperar meses para reencontrar as meninas. Trabalhando em João Pessoa ele consegue visitá-las a cada 15 dias. Para ir semanalmente, gastaria metade do salário só em passagem. Quase todos os colegas de trabalho dele também viajam para reencontrar a família. É por isso que nas sextasfeiras as salas de aula ficam vazias, é dia de voltar para casa. Além disso, os horários também são adaptados. As aulas vão das 19h às 21h, pois o expediente acaba às 17h. Na volta para casa João Batista vira novamente peão de fazenda e vai cuidar da plantação, do gado, dos porcos, do peru, das galinhas, ele cria tudo quanto é bicho em sua fazenda. Quando vai para lá, passa o dia trabalhando e garante que não se cansa. Nem disso, nem de dar colo para as filhas. “Elas gostam muito de mim, é o tempo todo só no meu colo.” Apesar de seu pai não lhe ter dado estudo, ele garante que todas as suas filhas irão

para a escola. “Vou dar estudo para as minhas filhas. Se precisar, até particular eu pago”, afirma. João Batista fala numa ligeireza que, unida ao sotaque tipicamente nordestino, torna difícil para quem é de fora a tarefa de entender a explicação para não ter estudado quando mais jovem: “Meu pai me colocou para estudar, só que naquele tempo não estudava, né? Porque trabalhava, ia para o estudo era forçado, em cima da hora não ia aprender nada. Naquele tempo eu era analfabeto, como vocês sabem, aí não aprendi nada. Fui aprender alguma coisa quando caí no mundo. Sei meu nome, mas leitura, mesmo, não. Só o que eu estou aprendendo agora.” Hoje ele se orgulha de estar estudando: “Coisa boa é chegar fim de mês, você receber o seu contra cheque e assinar, para não ficar colocando o dedo, isso aí não tem futuro.” Depois de dois meses estudando ele já está “desenrolando”, como brinca o colega que passa por perto durante a entrevista. Talvez por causa da saudade que sente de casa João Batista tenha aprendido a contar o tempo mais rápido e, com a sua ligeireza habitual,

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jura que já está na escola há quatro meses, a professora é quem corrige e explica que ele está estudando há apenas dois meses. E ele não economiza na hora de soltar elogios para a professora. “A professora, Virgem Maria, é tudo, é muito importante na vida da gente.” Quem dá aula no canteiro do residencial Ibiza é Ana Karina Torres Guimarães. É graças a ela que o operário aprendeu a escrever o nome. E para o fã de Zezé di Camargo e Amado Batista, esse é só o começo. Ele pretende concluir os estudos e tentar ser carpinteiro ou mestre de obras. EDUCADORES | Os professores que dão aula nas salas do projeto são alunos dos cursos de licenciatura da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), uma parceria existente desde o início do Zé Peão. É entrando no projeto que esses educadores percebem outra dimensão da educação, já que na universidade o perfil predominante é o de uma formação para a juventude, palavras do professor da UFPB e coordenador geral do projeto pela federal, José Barbosa. “Mesmo que a lei nacional diga que a educação é durante a vida inteira e que a gente tem esse direito, quer dizer, que o direito a educação é para todos, a formação que de fato se dá na universidade prepara muito mais para a formação de adolescentes. Quando pensa o ensino não é para adultos”, explica. Estagiando no Zé Peão os professores têm a oportunidade de entender o que é educação de jovens e adultos (EJA), de conhecer o público com o qual se está trabalhando, e de entender que ele tem demandas próprias e que não são pessoas que estão começando a vida agora. “Deparar-se com esse desafio do adulto faz com que a pessoa perca a noção do que aprendeu na universidade, e perder a noção é um bom começo para aprender. Porque, enquanto você não sabe e você toma consciência disso, você está mais disposto a aprender. Quando você acha que sabe tudo, você não aprende tanto assim”, diz o professor

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“Coisa boa é chegar fim de mês,

você receber o seu contra cheque e assinar, para não ficar colocando o dedo, isso aí não tem futuro.” João Batista Souza

José Barbosa. Ana Karina, a professora do Seu João Batista, vê o Zé Peão como uma universidade paralela. “Quando a gente tem contato com a educação popular na universidade, a gente não vivencia essa educação na prática, então fica uma coisa num plano distante. No Zé Peão a gente percebe realmente como funciona essa educação popular e como a educação popular pode contribuir no processo de alfabetização, da prática pedagógica dos professores. Porque a gente sabe que ser professor demanda muitos desafios, muitas habilidades, muito conhecimento, e a gente nunca está pronto para isso. A educação popular vem justamente para a gente tentar entender melhor essa prática.” Ter a dimensão de como é uma sala de aula da EJA também é importante para estar preparado ao entrar no universo do aluno e numa sala de aula nada usual. Muitos dos alunos de pedagogia que chegam para se canditar a participar do processo seletivo de professores do Zé Peão já desistem antes de começar a preencher a ficha de inscrição. Eles acabam voltando atrás quando decobrem que as salas de aula ficam nos canteiros e a aula é à noite e só com peões de obra. A insegurança do início é normal, mas passa. A professora Ozilma conta que com o tempo e o convívio com os alunos acabou se familiarizando de tal forma que sentia falta deles quando não tinha aula. “Hoje eu me sinto tão a vontade que parece - parece não - faz parte da minha vida. É uma coisa

que me completa”, relata. Tanta dedicação e envolvimento com os alunos faz com que os professores não se importem com o valor de apenas R$ 250 da bolsa paga pelo programa do governo federal Brasil Alfabetizado, ao qual o projeto está vinculado desde 2003. “É uma reponsabilidade grande que os alunos assumem e que não é compensada pela bolsa, que é uma bolsa irrisória. É muito mais um compromisso, de que vão aprender com essa experiência, que vão contribuir com pessoas a partir dessa experiência”, aponta o professor José Barbosa. A coordenadora do Programa Brasil Alfabetizado na prefeitura municipal de João Pessoa, Maria do Rosário Bezerra da Silva, conta que no ano de 2010 o governo federal repassou para a prefeitura R$ 100 mil reais para atender os 2.250 alunos do programa na rede municipal, além de oferecer material, como apostilas, lápis e borracha. Não é difícil achar apartamentos em João Pessoa que custem dez vezes mais que isso. Fazendo um cálculo simples, que muitos dos alunos do Zé Peão já conseguem desenvolver, é possível perceber que o Estado investe mais ou menos R$ 44 em cada aluno durante todo o ano. O valor precisa ser complementado pela prefeitura. No início a professora Edvilma Alencar quis participar do projeto Zé Peão por causa da bolsa. O dinheiro, mesmo que pouco, ajudaria a sustentá-la durante os estudos na capital. Edvilma nunca teve vontade de ser professora, mas a filosofia metodológica

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do Zé Peão a encantou e fez nascer uma educadora. Porém, ela levou um choque quando viu que aplicar na prática a teoria vista na formação inicial não era tão simples. Isso porque, assim como seus alunos, a escola que ela frequentou quando criança ensinava de maneira mecânica. Para fazer diferente com os operários na sala de aula, Edvilma precisou desconstruir a própria aprendizagem. “Muitas vezes as pessoas pensam que alfabetizar é fácil, porque você põe na memória que não foi dificil você aprender a ler e a escrever. Só que aí você se depara com um contraste, que é um método diferente. Você foi alfabetizado por um método puramente mecânico, e aqui (no Zé Peão) você vai desconstruir todo esse método mecânico para ir para um método significativo e prático”, conta. E esse não é um processo fácil. Pelo caminho de reapredizagem Edvilma passou por alguns apuros, como não conseguir dormir e crises de choro. Para ajudar os professores a enfrentar essas dificuldades, o projeto também mantém a formação continuada. Toda semana eles se reúnem com a coordenação para dividir experiências e questionamentos e preparar a próxima semana de aula. Atualmente os professores do Zé Peão têm outra dificuldade além das apontadas por Edvilma. Os alunos dos níveis TST e APL não estudam mais em turmas separadas, ficam todos na mesma sala de aula. No início do ano quase todos os operários que estudavam na sala da professora Ana Karina, por exemplo, eram alfabetizados, mas por causa da alta rotatividade dos tra-

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balhadores no setor da construção civil, muitos deixaram a escola e novos alunos entraram na turma. A maioria deles não era alfabetizada. Acabou se formando um grupo muito heterogêneo e difícil de trabalhar. Toda aula Ana Karina prepara atividades diferentes para cada aluno. Enquanto os do TST tentam chegar às soluções de problemas de matemática, os do APL buscam melhorar a escrita de palavras e de frases mais elementares. EVASÃO | Não é só para os professores que o desafio é grande. Libertar-se das amarras de um ensino convencional, que acaba limitando a participação do aluno em sala de aula, exige também esforço por parte do trabalhador. Muitos não ficam na sala de aula tempo o suficiente para descobrirem o tanto de conhecimento trazem da vivência pessoal e acham que não vão aprender nada com um método tão diferente. O cansaço que o trabalho braçal traz é outro empecilho. Trabalhar oito, nove, dez horas seguidas, às vezes mais, esgota as forças do corpo. No horário da aula o restinho de energia que ainda sobra começa a esvair-se. Alguns dos alunos muito antes de chegarem à sala de aula se rendem ao cansaço. Além disso, as tentações e adversidades impostas pelo mundo que não é letrado são muitas. As moças passeando na orla e a cachaça servida no bar da esquina são algumas das opções prazerosas oferecidas pela cidade grande e com as quais a escola tem que competir. Nesse rol de possibilidades que levam à evasão, entram

A escola, do jeito que ela é, ela

homogeiniza todo mundo em nome de um aluno médio que não existe Maria Valéria Rezende

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também as peculiaridades da construção civil. A rotatividade no setor é muito alta. Com frequência operários são demitidos, ou transferidos para outra obra, ou então precisam voltar à cidade de origem. A frequência nas salas do Zé Peão variou de quatro a 12 alunos neste final de ano. Para se ter uma ideia, a professora Ana Karina chegou a matricular 25 alunos na sala de aula do canteiro do residencial Ibiza, mas a turma é muito rotativa e uma média de dez alunos frequentam a aula. Tem dias em que a professora Ozilma só tem um aluno em sala e mesmo assim a aula acontece. “Aquele um, para mim, é muito importante”, conta. Este ano 225 alunos foram matriculados no projeto, 150 chegaram ao final do ano letivo e metade deles foram alfabetizados. PROCESSO | A escritora Maria Valéria Rezende, uma espécie de recurso pe-dagógico do qual o Zé Peão lança mão quando necessário, como ela mesma brinca, e que acompanha a caminhada do projeto desde o início, diz que tem muita coisa que deve ser levada em consideração na hora de pensar projetos de alfabetização de adultos. “Às vezes, o não querer não é um não querer puro, é um não querer resultante de um não poder. Não poder fazer mais esforço do que eu já faço”, explica a escritora sobre a falta de motivação dos trabalhadores para estudar. É também por isso que Maria Valéria não acredita nas promessas de erradicação do analfabetismo, pois a principal pergunta não está sendo feita, pelo menos não ao principal interessado: o analfabeto. Qual esforço ele está disposto a fazer para se alfabetizar? É importante perceber, como afirma a educadora, que a EJA não é uma doença para a qual você dá tratamento e consegue a cura. Ela acredita que, aos poucos, está se conquistando a ideia de que qualquer cidadão pode resolver a qualquer momento da vida prosseguir os estudos ou estudar coisas novas, diferentes. Estudar não precisa ser privilérgio da criança ou do


adolescente. Para aprender, não há idade limite. Limites há, e Maria Valéria os aponta com segurança, para qualquer programa de educação. E são dois os principais. O primeiro é a motivação do aluno, o estar a fim de ir para escola, que inclui ir para escola e ficar por lá. Já o ficar na escola depende do segundo problema, que é a qualidade do educador, dimensão que, para a escritora, depende de vocação. “Você pode ensinar tudo, menos a vontade de ensinar. Porque o educador não é educador de um grupo, ele é educador de um grupo na medida em que ele é educador de cada um, porque cada um é muito diferente. O processo de aprendizagem das pessoas não é o mesmo, não é uma coisa chapada, não é um mecanismo.” Achar o caminho certo para ter educadores vocacionados, alunos motivados, metodologias adequadas, e várias outras coisas, é muito complicado. É complicado porque exige ritmo, exige esforço coletivo, exige uma sincronização tamanha que os quatro anos de mandato de um governo, menos um ano de adaptação, menos um ano eleitoral, que viram alguns meses descompassados de esforços dissipados em iniciativas isoladas, não conseguem dar conta. Assim como as causas políticas, também existem motivações curriculares que afastam o aluno da sala de aula. “A escola, do jeito que ela é, ela homogeiniza todo mundo em nome de um aluno médio que não existe”. Para a escritora, que mal consegue lembrar um momento na vida em que tenha feito outra coisa que não trabalhar com a temática da educação popular, afirma, sem medo de errar, que “educação não é ciência, educação é arte”. Maria Valéria entende, portanto, a dificuldade por trás desse processo e reconhece que está sendo feito um esforço enorme no país para oferecer educação à população, mas promessas vazias de erradicação do analfabetismo não são o caminho a se seguir. “Eu sou contra a motivação puramente utilitária para o estudo, de

Para a professora do projeto e estudante de pedagogia Ana Karina Guimarães o Zé Peão é uma universidade paralela

dizer ‘estude, vá para escola para ter um emprego melhor’, não é necessariamente assim, é muito mais complicado. Eu acho que a alfabetização, sobretudo, e a leitura, é para fazer o sujeito crescer subjetivamente, crescer como gente.” HISTÓRIA | O fusquinha balançava, “tum, tum,tum”, pela estrada longa que liga João Pessoa a Guarabira. Dentro dele estavam Maria Valéria Rezende e o operário Paulo Marcelo de Lima. Quem conta a história é a escritora, que não lembra a data exata do acontecido, mas sabe que foi antes de 1986. Paulo Marcelo contava para ela um pouco da história de sua vida e disse que uma das maiores tristezas que tinha era a de não ter completado os estudos. Naquela época eram os empresários da construção civil que estavam à frente do Sintricom. Paulo Marcelo lutava para assumir a presidência do sindicato e atender às demandas dos trabalhadores. Como disse na mesma viagem no fusquinha, ele também queria criar para os companheiros a oportunidade de estudarem e de terem aquilo que ele não teve. “Essa questão da centralidade da educação não foi uma coisa que nós educado-

res colocamos na cabeça dos trabalhadores da construção civil, de jeito nenhum”, reafirma Maria Valéria. E, a partir daqui, quem conta a história é o idealizador do projeto. No final de 1986 os operários finalmente assumem a direção do sindicato, com Paulo Marcelo como presidente. Já em 1990 as cinco primeiras salas de aula são instaladas nos canteiros. Para montar o projeto, o Sintricom contou com o apoio da UFPB, principalmente com a assessoria do professor Timothy Ireland, que foi quem sugeriu que as salas de aula fossem dentro dos canteiros de obra. Assim como os outros peões da construção civil, Paulo Marcelo foi pedreiro na capital paraibana, vindo do campo, onde começou a trabalhar com oito anos de idade. De lá não conseguiu trazer nem a documentação que provava que ele havia terminado o quarto ano do ensino fundamental e não conseguia se matricular para continuar os estudos na capital. Em João Pessoa, quase morreu de fome, expressão para a qual ele não precisou de dicionário para saber definir: “morrer de fome é ficar dois, três dias sem comer. Eu passei por isso”. Com a ajuda do professor Timothy, Paulo Marcelo conseguiu matricular-

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se no supletivo e concluir o ensino médio. Dois anos depois prestou vestibular para o curso de Direito na federal, mas não passou. Inspirado no trabalho do projeto Zé Peão e na vontade de melhorar o que se faz no projeto, ele decidiu prestar vestibular para Pedagogia em uma universidade privada e, dessa vez, passou. Em breve será um educador. Hoje, como diretor de finanças do Sintricom e secretário geral da CUT na Paraíba, ele nem consegue ter a dimensão que o projeto alcançou. “Quando eu encontro com uma pessoa que passou dois, três anos estudando na escola Zé Peão e coloca para mim o quanto aprendeu, o que aprendeu, e o que o projeto deixou de riqueza cultural na sua cabeça, é aí que eu me dou conta que foi uma experiência boa. A gente não tinha essa pretensão no começo. A pretensão era muito mais simples, muito mais singela”, relata. Paulo Marcelo também reconhece os limites do projeto. O sentimento que nutre pelo Zé Peão não é necessariamente de orgulho, é de satisfação, de poder mostrar que no Nordeste o povo pensa sim e que o projeto é resultado do esforço do próprio operário. Ele acredita, inclusive, que a mobilização no sentido de alfabetizar os operários não precisa mais vir do sindicato, tem que se transformar em uma política de governo. O problema, na visão de Paulo Marcelo, é que o estado não está preparado para se apoderar de uma prática como essa.

Paulo Marcelo de Lima, Edmilson Souza e João Batista Souza são operários da construção civil cuja trajetória resume a história do projeto Zé Peão

EMPRESAS | Desde o início do projeto as empresas do setor da construção civil têm mostrado resistência quanto à escolarização dos operários. A primeira vitória dos trabalhadores foi a aprovação em convenção coletiva de que, se housse no canteiro 20 operários interessados em estudar, a empresa era obrigada a oferecer espaço com iluminação e mobília. Nos vinte anos de história do projeto, muita coisa melhorou. Algumas empresas chegam a ligar para o sindicato pedindo que sejam instaladas salas em seus canteiros. “Mas o


trabalhador sem escolaridade, novo e com força, ainda é a referência no mundo da construção civil”, revela Zezinha. E ainda é difícil convencer o empresário de que investir na educação do peão de obra não é desperdício, e pode prepará-lo para lidar com os avanços tecnológicos da indústria, por exemplo. “A resistência diminuiu, o apoio nunca chegou”, lamenta Paulo Marcelo. O diretor técnico da empresa Master e engenheiro responsável pela obra do Edifício Ibiza, Vinícius José Fernandes, entende que a educação favorece as relações trabalhistas. Afinal, de que valem as placas indicando perigo espalhadas ao longo da obra se os operários não sabem ler? É importante também para que eles tenham noção dos direitos deles. “A pior coisa é o funcionário ter o sentimento de que pode estar sendo enganado”, acredita. “Num balanço geral, é extremamente positivo, a relação empregador-funcionário fica bem mais fácil”, completa. Mas e se o projeto Zé Peão acabasse, será que a empresa manteria as salas de aula? Provavelmente não. Para o engenheiro, isso dependeria de um “esforço entre empresas”. SUCESSO | O atual presidente do Sintricom e coordenador do Zé Peão, Edmilson da Silva Souza é um dos seis mil alunos alfabetizados pelo projeto. Em 1995 matriculou-se em uma sala de aula do Zé Peão, mas com desconfiança. “Quando eu ouvi falar do projeto eu achava que seria aquela coisa chata. Eu achava que a escola seria aquela coisa que você tem que aprender o que o professor quisesse ensinar”, explica. No projeto ele pode perceber uma nova dimensão para a educação. Primeiro ele viu que aquilo podia fazer parte da sua própria experiência, com um aprendizado construído em primeira laje e tijolo sobre tijolo. Depois ele descobriu as estrelas na visita ao planetário, a arte nas atividades com barro, e o cordel na biblioteca volante, que vai passando e distribuindo cultura canteiro por canteiro.

“Eu descobri depois do projeto que o melhor não é ler, é ler e saber o que a leitura quer dizer, o que a leitura quer informar”, relata. Hoje ele sabe o significado da palavra ‘interlocução’ e pode dizer que é isso o que o ocorria em sala de aula, um diálogo entre aluno e professor. Depois de concluir o projeto, Edmilson foi estudar nos supletivos da rede pública de ensino do município. Hoje ele tem o ensino médio completo e prentende entrar para a faculdade. Vai estudar Direito. Edmilson aprendeu na vida que o mais fraco é sempre quem mais paga e sofre, por isso quer defender os direitos trabalhistas de seus colegas. Chegar à presidência do Sintricom já foi a realização de um sonho, mas ele quer mais. “A perspectiva é melhorar a cada dia, tenho uma visão de crescimento através da escolaridade.” CONTINUIDADE | Ao terminar as duas fases do projeto Zé Peão o operário já está pronto para ingressar no segundo segmento da EJA, que corresponde da 5ª a 8ª séries do ensino fundamental. Mas ter o certificado do TST não significa que o conhecimento não precisa continuar sendo construído. Atualmente, eles podem dar continuidade aos estudos indo para a rede pública estadual ou municipal. Em João Pessoa 86 escolas oferecem turmas de EJA de diferentes segmentos na rede municipal. Porém, essas escolas têm dificuldades em atrair até os alunos que moram na capital, muito mais difícil é conseguir lidar com as especificidades dos que são peões de obra. As aulas começam bem mais cedo. No momento em que os operários vão para o alojamento tomar banho e jantar, o professor já está começando a ministrar o conteúdo do dia nas escolas da rede. Além disso, a metodologia é diferente e segue aquele velho modelo onde o aluno não se vê como parte do universo que está estudando. A coordenadora da EJA no município de João Pessoa, Cidilene César de Andrade, reconhece que, às vezes, a própria metodologia da escola e a estrutura física da sala de aula não se

adequam ao mundo do adulto e que é difícil implantar nos outros segmentos da EJA o método utilizado no Zé Peão. “A escola muitas vezes não está tão preparada para recebê-los. Eu não acredito nesse nome, ‘evasão’, eu gosto mais de a escola não atendeu aos anseios do aluno e ele foi procurar outras coisas mais interessantes que não a escolarização”, relata. Os dados sobre a educação no Nordeste do país mostram que dar continuidade aos estudos ou recomeçar a trajetória escolar é um processo difícil para muitos outros moradores desta região. Segundo os resultados da PNAD/IBGE 2009, a taxa de analfabetismo da população nordestina com 15 anos ou mais de idade é de 18,7%, a maoir do país. Só na Paraíba existem mais de 608 mil analfabetos, o equivalente a 21,6% da população do estado, que é o terceiro do país com a maior taxa de analfabetismo. Fica atrás apenas de Alagoas e do Piauí. O projeto Zé Peão contribui a cada ano com a redução desta taxa, que caiu cerca de quatro pontos percentuais em cinco anos. Quando idealizou o projeto, Paulo Marcelo, como trabalhador do campo que era, começou a regar sementes, como o operário João Batista, que dá os primeiros passos na caminhada para a alfabetização. Mais tarde, acabou colhendo histórias de sucesso como a de Edmilson Souza, que chegou à presidência do sindicato. São que fazem a história do Zé Peão.•

Saiba mais • O texto da professora Vera Ireland Alfabetização de Adultos - Ainda a Questão do Método explica alguns do princípios norteadores da metodologia do Projeto Escola Zé Peão. Ele foi publicado no livro Temas em Educação, de 1993, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). • Para saber mais sobre o projeto você também pode acessar o site do Sintricom: www.sintricomjp.com.br

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EXPERIÊNCIA AMAZONAS

Projeto da Universidade Estadual do Amazonas irá alfabetizar indígenas em duas línguas Maria de Nazaré Correa da Silva*

H

á muito tempo a questão indígena no Brasil é objeto de estudo e de análise. Os povos indígenas, desde o processo de colonização das terras brasileiras, foram tratados como inferiores, sem alma, detentores de uma cultura insignificante. A partir de um discurso etnocêntrico os colonizadores do país diminuíram e desprezaram a contribuição indígena para nossa cultura. Lutar pelo direito desses povos é uma prática constante de pesquisadores que tomam para si a causa indígena como direito que deve ser garantido por lei. O ano de 1988 foi decisivo no apoio às questões indígenas, a própria Constituição Federal configurou a consolidação do processo de redemocratização do país. Foi nesse contexto que lideranças indígenas de diferentes povos exerceram, junto ao Congresso Constituinte, legítimas pressões reivindicando a explicitação de direitos que as-

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segurassem a sua continuidade enquanto etnias. Dentre as várias reivindicações aos direitos indígenas, voltaremos nosso olhar para a discussão da educação escolar indígena como direito, e não mais como concessão, exigindo de toda sociedade a participação na efetiva ação dos deveres do Estado, não só para com os indígenas, mas também em atenção ao cidadão brasileiro. A educação escolar indígena deve fazer parte de nossas preocupações enquanto sujeitos comprometidos com as causas dos povos indígenas, povos que por muito tempo foram deixados de fora de um direito que é de todos. Propiciar essa educação nos proporciona a oportunidade de investigar a nossa própria história, desconstruindo uma história de caráter colonizador e construindo a história a partir dos interesses dos próprios povos em questão. Mais do que garantir o resgate da língua, a escola indígena deve contribuir para o resgate da dignidade, da cidadania, dos direitos e deveres desses povos, que no decorrer a história do nosso país foram deixados de fora de decisões fundamentais para suas vidas. A educação escolar indígena, assim como as outras práticas de ensino, é um campo minado pela História, Antropologia, Pedagogia, Direito, Sociologia, Ciência Política e outras ciências complementares, que auxiliam na investigação desse complexo universo demarcado por seus processos próprios de aprendizagem. Foi com esse pensamento que o Programa de Letramento Reescrevendo o Futuro da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade do Estado do Amazonas, em parceria com Secretarias de Educação, Prefeituras, Programa Brasil Alfabetizado, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Governo do Estado do Amazonas, Centro de Desenvolvimento Humano (CDH), desenvolveu um trabalho de Alfabetização com o povo da etnia Kambeba/ Omágua, denominado Alfabilingue, atendendo à solicitação feita pelo Senhor Farnei Kambeba que é um dos responsáveis pela Organização da Associação dos Kambeba do Alto Solimões no Amazonas. O projeto da Universidade do Estado do Amazonas


(UEA) foi pensado para atender à calha do Alto Rio Negro, que inclui os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, e a mais sete municípios da calha do Alto Solimões, Tabatinga, Benjamim Constant, Atalaia do Norte, São Paulo de Olivença - região dos Kambeba -, Tonantins, Amaturá e Santo Antonio do Iça. Na calha do Alto Rio Negro habitam 23 etnias com diferentes graus de genocídios e etnocídios, daí serem municípios prioritários neste projeto, para o incentivo do domínio em maior escala da escrita e leitura em língua materna. De acordo com informações prestadas pela Associação dos Kambeba, em Manaus esse povo está localizado na Zona Leste e na Rodovia Manuel Urbano, que liga Manaus ao município de Manacapuru. Assim sendo, foi possível a Associação reunir todos os “parentes” dessas localidades e formar uma turma de 30 alunos, no bairro Zumbi II, Zona Leste, na Escola Municipal Professor Agenor Ferreira, onde o Programa de Letramento Reescrevendo o Futuro acompanhou a introdução e o desenvolvimento da leitura e escrita em três idiomas: português, tupi e kambeba, durante seis meses, funcionando aos domingos das 8h às 18h, com dois professores alfabetizadores também da etnia Kambeba, que recebiam formação inicial e continuada da Equipe Pedagógica do Programa de Letramento Reescrevendo o Futuro, para desenvolver o trabalho pedagógico de forma competente e consciente de que a preocupação fundamental, agora, é não alfabetizar com palavras na língua portuguesa, mas com palavras na língua kambeba. Isso significa que o uso das palavras na língua indígena não pode ser simplesmente um recurso técnico para facilitar a passagem dos sons às letras e vice-versa; as palavras da língua são história e cultura, valendo ressaltar a importância da alfabetização numa sociedade tradicionalmente ágrafa, onde o domínio da leitura e da escrita é um fator de poder. Foi a partir dessa reflexão, que esses alunos da etnia kambeba, muitos já alfabetizados na língua

portuguesa, mas sedentos da língua materna, tiveram a oportunidade de aprender a ler e escrever a palavra e o mundo com uma tecnologia inovadora, libertadora e contextualizada, fundamentada em Paulo Freire, Heloisa Vilas Boas e Emilia Ferreiro que, somada à história de vida de cada um, às experiências partilhadas, às vivências e ao saber construído, deu oportunidade a esse povo, esquecido há tantos séculos, de reencontrar-se, descobrindo o seu lugar nessa história e assim poder continuar o Reescrevendo o Futuro Kambeba/Omágua, possibilitando-lhes criar e verificar suas hipóteses construindo seus conceitos como sujeito cultural. Elaborar um projeto de extensão que vislumbre uma educação emancipadora para esses povos é por em prática um compromisso que deve ser sanado com uma nação de indígenas que, ao longo da história do nosso país, foi vitimada por conta de interesses de grupos que estão no poder e almejam apenas atender causas próprias. É por meio da pesquisa e extensão que a universidade cumpre seu papel social, precisamos nos empenhar e somar forças na luta por essa educação tão almejada pelos indígenas, uma educação que possibilite, acima de qualquer conhecimento abstrato ou concreto, o respeito à cultura local desses povos, aos seus rituais, à sua gastronomia e à sua identidade, que se fortalece, principalmente, no resgate à língua materna. •

*Maria de Nazaré Corrêa da Silva é professora da UEA e coordenadora dos dois projetos. Colaboraram Maria do Carmo Simões Pacheco, Jedião Ferreira Lima, Maria do P. Socorro R. de Lima, Maria Rita de Souza Brasil e Raiolanda M. Pereira.

Ilustração: Maurício Chades

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Encontro de

Gerações

Mariana Niederauer

O

tema das aulas de História da turma 8ª B da educação de jovens e adultos (EJA) no Centro de Ensino 3 (CEM-3) de Ceilândia era a história da construção de Brasília. Se fosse seguir o método tradicional de ensino, o professor Oséas Pacheco de Oliveira teria baseado as aulas no conteúdo do livro didático. Só que na sala de aula havia um aluno que sabia de coisas que nenhum livro didático ia poder contar para os estudantes com menos de 20 anos de idade. Também no ano de 2008, iniciavase no CEM-3 o projeto Proeja Transiarte, trazido por iniciativa do orientador educacional do centro, Luciano Matos de Souza, com a colaboração de alunos e professores da Faculdade de Educação (FE) da Universidade de Brasília (UnB). Eles perceberam que

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unir o conhecimento de vida do aluno Altino Francisco da Cruz, de 67 anos, com a tecnologia digital indispensável para os jovens do século XXI era uma ótima maneira de promover um encontro de gerações. Com papeis, tesouras, cola e câmera em mãos, os alunos do professor Oséas começaram a montar o vídeo contando a história do Seu Altino e a da construção da capital federal. O personagem principal era o próprio Altino, os produtores e roteiristas seus colegas de classe, e quem coordenava todos nesse processo era a professora Dorisdei Valente Rodrigues. Ela havia conhecido a transiarte, teoria desenvolvida pelo professor Lúcio Teles da FE/UnB, quando era aluna de mestrado na universidade. Ela explica que a EJA não foi escolhida por acaso como o espaço para se trabalhar a transiarte. Foi escolhida porque é composta por um público

diferenciado, que precisa mobilizarse para conquistar espaço no sistema educacional brasileiro. “Nós queríamos trabalhar com a voz desse sujeito, a identidade dele. A questão da identidade é uma coisa muito forte porque os alunos já vêm para escola com uma bagagem, a sua identidade própria, e na escola isso é um ponto importante para o professor partir”, explica. Após conhecer o aluno e saber que talentos ele tem, é possível situar tudo isso dentro de um trabalho coletivo e transformar a produção dos alunos em objeto artístico. A transiarte, como outras formas de ciberarte, entra nesse processo para levar o objeto artítisco desenvolvido a um reconhecimento em diferentes níveis, na escola, entre os alunos, e, porque não, no mundo. INCLUSÃO | A professora Dorisdei acredita que, além da inclusão digital,


Oficina de Videoarte do Centro de Ensino Médio 3 de Ceilândia conseguiu unir duas gerações de uma turma de educação de jovens e dultos por meio da História e da tecnologia

o projeto promoveu a inclusão social. “Quando eu entrei na turma do Oséas eu tinha dois grupos de alunos. Um grupo de alunos mais velhos e um grupo de alunos mais novos. Dos mais novos tinha uns alunos de 16, de 20 e algumas coisa. E nós saímos com uma turma apenas. Nós tinhamos uma turma onde todos trabalhavam juntos.” O professor Oséas também percebeu a mudança em sala de aula. Lidar com uma diferença de idade de mais de 40 anos entre o aluno mais novo e o aluno mais velho da sala não é fácil. Mas Oséas entende que essa mistura de gerações é a proposta da EJA e que a idade é um fator inevitável de afinidade entre os alunos, tanto os mais velhos, quanto os mais novos. “O desafio aí é como você conseguir despertar interesse nos alunos de diferentes idades, de diferentes expectativas, quando ele vem para escola. Enfim, conseguir unir todos em torno

de uma proposta única”, aponta. A introdução da oficina da transiarte no currículo fez com que Oséas despertasse para novas possibilidades de trabalho em sala de aula. A proposta conteudista, para a qual as orientações didáticas da secretaria de educação levavam, não era mais atraente, pois, segundo o professor, não prioriza a qualidade. É justamente o oposto do que acontece na proposta da Transiarte. “Isso me despertou e praticamente me obrigou a usar outras técnicas. Eu passei, por exemplo, a usar música”, revela. HISTÓRIA VIVIDA | Seu Altino nasceu na cidade de Porto Nacional, em Tocantins. Com dez anos já pegava no cabo da enxada para ajudar o pai a alimentar a família. Com muita dificuldade conseguiu alfabetizar-se. Em 1959 chegou a Brasília, onde criou os três filhos e voltou a estudar depois da

Quadros do vídeo produzido pela turma 8ª B da EJA do CEM-3, disponível no site www.proejatransiartetube.cefetgo.br

aposentadoria. Estudando há cerca de quatro anos no CEM-3, ele pretende concluir o ensino médio este ano. Para ele, dar continuidade aos estudos foi muito importante e proporcionou experiências novas. “Eu já tinha ouvido falar em computador, mas nem num fio dele eu não tinha pegado para ligar. E hoje, graças a Deus, eu já sei ligar o computador e já tenho meu e-mail”, orgulha-se e agradece ao professor Luciano, que foi quem abriu a conta de e-mail para ele. Apesar dos professores terem apontado que havia dois grupos distintos na turma, Seu Altino nunca encontrou problemas na convivência com os mais jovens. Pelo contrário, ele virou até conselheiro amoroso dos mais novos, dando dicas conjugais. Para os que pretendiam casar-se cedo demais, ele alertava que a vida a dois é complicada. No sentido inverso, o conhecimento trazido pelos jovens

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Foto: Mariana Niederauer

Oséas Pacheco, Dorisdei Rodrigues, Luciano Souza e Altino Cruz participaram da oficina de transiarte realizada em 2008

também é muito valorizado por ele. “Sempre caminhamos junto aqui”, diz. Seu Altino sabe a importância de ter companhia na caminhada longa que ainda pretende fazer no mundo dos estudos. O destino não importa. Ele só sabe que quer chegar lá. “Não tem limite, até onde a minha mente alcançar e estiver fortalecida eu quero estudar. Não quero parar não, porque se parar fica pior.” VÍDEO | Foram os alunos que decidiram a forma como essa história seria contada. A trabalhosa técnica da fotomontagem com stopmotion foi a eleita. Eles prepararam cada quadro da animação com fotos tiradas de Seu Altino no CEM-3 e com recortes e colagens. O programa utilizado foi o moviemaker, software de uso bem simples e acessível que já vem instalado em muitos computadores. O

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resultado foi um vídeo divertido que conta a história da chegada de Seu Altino na capital e fala sobre sua vinda para Ceilândia. Como fundo musical, um baião animado e um rap. Foi só depois das oficinas de transiarte que o laboratório de informática veio para o CEM-3, com o apoio da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC). O resultado do projeto acabou tendo uma dimensão maior do que a que Luciano imaginou no princípio. “O trabalho veio a unificar cada um no seu momento, cada um com a sua condição de somar. E aí nós percebemos o resultado que foi muito interessante, muito rico. Nós podemos utilizar ele tanto aqui na escola como em outros ambientes para fazer um debate, uma discussão pedagógica”, explica. O projeto também promoveu trans-

Não tem limite, até onde a minha mente alcançar e estiver fortalecida eu quero estudar. Não quero parar. Altino

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formações nas vidas dos alunos. Eles não só se uniram mais como grupo, como também perceberam novas oportunidades de crescimento. “Nós temos outros alunos, alunos que entraram para fazer o projeto e alunos que saíram com um projeto de vida”, ressalta Dorisdei. “Eu acho que essa interação, até para se sentir enquanto cidadão, enquanto atuante dentro da sua escola, enquanto pessoa, fez uma diferença e faz hoje uma diferença”, completa. Muitos dos alunos que passaram pelo projeto estão tendo a oportunidade de continuar a formação na Escola Técnica de Ceilândia. Para o professor Oséas, educar e se educar é uma questão de mudança de postura. Se essa mudança não ocorre, nada muda, e não é possível aprender. Os alunos da 8ª B conseguiram passar pela processo de transformação que Oséas menciona e alguns deles deram passos que nem os professores imaginaram que conseguiriam dar. Eles ficaram mais distantes da criminalidade. “Se tivesse acontecido só aquilo que aconteceu com aquele aluno que a gente vê agora, meu ano de trabalho já estava garantido, já estava salvo. O salário que me pagaram já valeu a pena. Porque para onde aquele aluno tinha muitas possibilidades de ir, era muito caro. Não do ponto de vista econômico, mas do ponto de vista humano, social. Eu acho que isso não tem preço.” •


INAUGURAMOS A NOVA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

Foto realizada nas novas instalações da Faculdade de Comunicação da UnB, Brasília, novembro de 2010, pela fotógrafa Flora Egécia. Veja esse anúncio também na edição 7 da revista Campus Repórter: http://issuu.com/fac.unb/docs/campusreporter007 E o anúncio realizado antes da reforma da FAC, na edição 4 : http://issuu.com/fac.unb/docs/campusreporter004

A reforma da FAC trouxe novos ambientes, laboratórios, sala de extensão (SOS Imprensa, COMCOM, Projete Comunicação para Sustentabilidade e Cineclube FAC), salas para as três agências Juniores (296,Pupila e Facto), além de novos equipamentos para nossa Faculdade. Os investimentos são provenientes do Programa Reuni/MEC. Visite nosso site: www.fac.unb.br



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