manual escolar

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Na véspera de não partir nunca, Ao menos não há que arrumar malas, Nem que fazer planos em papel, Com acompanhamento involuntário de esquecimentos, Para o partir ainda livre do dia seguinte. Não há que fazer nada Na véspera de não partir nunca. Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego! Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros Por isto tudo, ter pensado o tudo É o ter chegado deliberadamente a nada. Grande alegria de não ter precisão de ser alegre, Como uma oportunidade virada do avesso.

ser em português 12 Ana Castro | Artur Veríssimo | Graça Viana | M. Manuela Espadinha Ser em Português 12º ano | Ensino secundário ❦


Para uma pré-leitura do Modernismo

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Primeiro Modernismo e Futurismo | Coordenadas histórico-culturais

Implantação da República

Positivismo

(com a sua crença ingénua no progresso)

Teatro e Literatura (João de Deus, Junqueiro, Antero, Eça, Fialho, Ramalho Ortigão)

Movimento simbolista Eugénio de Castro

Quando, em 5 de Outubro de 1910, a monarquia constitucional dá lugar à triunfante república, os revolucionários que a implantam perfilham ainda valores ideológico-culturais próprios do século XIX - a sua filosofia era a do positivismo, bem vivo na obra de Teófilo Braga (Ponta Delgada, 1843 - Lisboa, 1924l, Presidente da República em 1915; o seu teatro é o programado para o Teatro Nacional, ou seja, o drama histórico, a tragédia naturalista e os autos vicentinos; a sua literatura, essa é a cultivada por nomes tão representativos quanto os de João de Deus (o lírico), Guerra Junqueiro (o épico) e Antero de Quental (o metafísico), isto para a esfera da poesia; para a prosa, deparar-nos-emos com os de Eça de Queirós, Fialho de Almeida e Ramalho Ortigão. A renovação estética que, por altura dos anos derradeiros da nossa monarquia, o movimento simbolista introduzira em Françapouca fortuna parece ter conhecido no Portugal de então. Se é certo que temos em Eugénio de Castro a voz “oficial” do movimento com eco na Revue Blanche de Paris -, não menos verdadeiro será o facto de aos aspectos efectivamente inovadores do simbolismo (poema em prosa, prática consistente do verso livre, sintaxe inovadora e subversiva) terem faltado cultores portugueses. Também Camilo Pessanha, que emerge publicamente como poeta nas páginas da Ave Azul, revista publicada em Viseu, no sentido de divulgar entre nós a poética simbolista, acha-se bem mais próximo das sonoridades de Verlaine do que das transgressões formais de Mallarmé, pese embora o prestígio deste último em Portugal. Se, por finais de oitocentos e alvores do nosso século, a pintura assumia, entre os diversos domínios da expressão artística, lugar de destaque na contestação aos modelos estéticos tradicionais, o aparecimento do Futurismo muito contribuirá, no entanto, para alterar este estado de coisas. Publicado em Paris, na edição de 20/02/1909 de Le Figaro (a 25 de Agosto do mesmo ano, surge nas páginas do Diário dos Açores, traduzido pelo poeta Luís Francisco Bicudo), o manifesto inaugural do Futurismo, promovido pelo italiano Filippo Tommaso Marinetti, apela a um corte radical com o passado, identificado com o espírito

(...) O Dantas é um ciganão! Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro! Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas! Morra o Dantas, morra! Pim! O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever! O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair... Mas é preciso deitar dinheiro! O Dantas é um soneto dele-próprio! O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum. O Dantas nu é horroroso! O Dantas cheira mal da boca! Morra o Dantas, morra! Pim! Excerto de Manifesto Anti-Dantas de José de Almada Negreiros, 1915


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crespuscular e decadente do simbolismo, em favor de uma arte em harmonia com o novo século, o da época da electrecidade e do automóvel. Passarão todavia, alguns anos antes que estes ideais estéticos frutifiquem entre nós – parece ter Portugal de então desconhecido as condições propícias à afirmação de um movimento de natureza vanguardista como era o Futurismo (não já o salão literário, que fizera as delícias das correntes estéticas oitocentistas, mas antes o espaço público – o teatro, o café e o cabaret – capaz de permitir a exteriorização, via de regra deliberadamente escandalosa e provocatória, de uma praxis estético-cultural ousada e subversiva). Alem disso, movimentos estéticos desta sorte carecem, para se afirmarem, de uma geração jovem, não sujeita por conseguinte, à autoridade inibitória de determinadas figuras tutelares ou de certos tabus éticos. Neste sentido, pouco ou nada havia a esperar de gerações modeladas pelos valores monárquicos – um quase-religioso respeito para com a tradição -, de que nem o ideal republicano se achava isento. Ora bem, essa nova geração foi justamente a de Fernando Pessoa (1888-1935), Mário Sá Carneiro (1890-1916), José de Almada Negreiros (1893-1970) e Santa-Rita Pintor (1889-1918). Alem das visíveis coincidências cronológicas, várias outras os aproximaram entre si: a sua formação muito embora paralela aos suspiros finais da monarquia, não reconhece nos “heróis” da república (João de Deus, Guerra Junqueiro, Teófilo Braga, etc.) um modelo susceptível de estimular suas potencialidades intelectuais; alem do mais, este seu processo formativo acha-se marcado por um certo cosmopolitismo, dado que não decorreu exclusivamente em Portugal (Fernando Pessoa estudou na África do Sul, Santa-Rita Pintor foi bolseiro de Belas-Artes em Paris, cidade também escolhida por Mário Sá Carneiro, quando decidiu estudar Direito). Neste último aspecto – o do cosmopolitismo, pedra angular da nova corrente estética, que visa aclimatar-se a um tempo europeu de renovação formal e temática – residirá, precisamente, um dos imperativos desta geração, que aspira ao reconhecimento além-fronteiras.

Pintura

(contestação aos modelos tradicionais)

Futurismo

Marinetti e o manifesto inaugural do Futurismo

(corte radical com o passado; já não o salão literário, mas antes o espaço público)

Geração modernista


Actividade Após leitura do texto, coloque, nesta página e na seguinte, notas à margem.

Seja no campo das letras seja no de outras formas de expressão artística, os jovens membros desta geração conseguem alguma visibilidade pública graças a um fenómeno subsequente à proclamação do regime republicano o da publicação de revistas literárias pautadas por princípios estéticos, filosóficos, quando não mesmo políticos, coerentes. Delas, a mais importanteconsistente foi A Águia, que emprestou voz, a partir do Porto e de 1910 em diante, à chamada ”Renascença Portuguesa’: Nela colaborou Fernando Pessoa com ensaios dedicados à “Nova poesiaportuguesa’; onde dá conta da ideação vaga, subtil e complexa que alastra pelos vários poetasd’A Águia, e onde também anuncia um “supra-Carnões” poeta que reunirá em si as três qualidades e abrirá novos e áureos rumoà poesia portuguesa. Os sinais da anunciada renovação depressa ganham espaço público: em 1914, agora n’A Renascença, Pessdá à estampa “Impressões do Crepúsculo’; poema que deixa transparecer uma inequívoca influência de Mallarmé (cf. p. 74). Com este poema inaugura Pessoa seu pendor para a criação de ismos, neste caso - o do Paulismo - um ismo que, muito embora serôdio, não deixa de facultar a emergência de transformações mais profundas, que a publicação da revista Orpheu, em Abril e Junho do ano seguinte - 1915 -, porá a descoberto. —Se o Modernismo europeu, em seusentido restrito, se encontracronologicamente balizado pela véspera do primeiro conflito mundial e pelo termo do segundo, conhecendo nos anos 20-30 a mais fecunda de suas várias fases (em regra, acha-se-Iassociada a produção literária de escritores como James Joyce, Ezra Pound, T. S. Eliot, RMusil, Mareei Proust e André Gide),já o chamado Modernismo português tem no ano 1915 e na publicação dos dois números da revista Orpheu (o 3.° número, apesar de composto, ficou inédito) os sinais palpáveis da sua afirmação, cuja continuidade se vê assegurada, nas suas manifestações literárias como no seu progrdoutrinário, pelas revistas Centauro e Exílio (1916), Contemporânea (1922-1926) e Athena (1924-1925), e ainda pela Presença, revista que, entre 1927 e 1940, não só prolonga no tempo o legado cultural dos poetas de Orpheu, como ainda se converte, no entender de alguns dos estudiosos da nossa modernidade estética, na voz do segundo Modernismo português. Com efeito, em Orpheu 7 Fernando Pessoa publica o poema “Chuva Oblíqua’; mediante o qual nos confronta com o seu segundo ismo - o Interseccionismo -, caracterizado pela transposição para o domínio da poesia lírica das práticas pictóricas do cubismo, ou seja, da repre-sentação, em simultâneo e sob distintos aspectos, de figuras e objectos (d. p. 75). Orpheu 2, por seu turno, oferece-nos a “Ode Marítima’; do heterónimo pessoano Álvaro de Campos, e com ela o seu terceiro ismo - o Sensacionismo -, momento culminante no per-curso evolutivo de Pessoa. Regista-se uma aproximação ao Futurismo bem mais nítida do que nos ismos anteriores: desmoronam-se as fronteiras espácio-temporais, sendo o contínuo fluir da realidade expresso mediante o recurso a metáforas dinâmicas, pelas quais passa a ideia de uma sensação individual de percepção do mundo (considere-se a


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sugestiva e obstinada presença da imagem do volante neste poema de Campos). Pensados e desenhados por Pessoa para se converterem em efectivos movimentos literários, tanto o Interseccionismo como o Sensacionismo acabaram, em função de condicionalismos diversos, por não se consolidar publicamente. Privado da revista Orpheu e do seu incondicional amigo e apoiante (Sá-Carneiro suicidase, em Paris, em Abril de 1916), Fernando Pessoa acabará por privar mais de perto com os futuristas, cuja actividade começara a fazer-se sentir entre nós. A eclosão do primeiro conflito mundial ditara o regresso a Portugal de alguns dos nossos artistas residentes em Paris: Santa-Rita Pintor, Amadeu de Souza-Cardoso, e ainda Sónia e Robert Delaunay, estes últimos responsáveis pela integração, mais tarde (1917), no número único da revista Portugal Futurista, de textos de autores como Apollinaire e Blaise Cendras. Todavia, é de Faro a proveniência do gesto fundador do nosso Futurismo: é que aí se publica, sob a direcção do pintor Carlos Lyster Franco, o suplemento do jornal O Hera/do, intitulado justamente “Futurismo’; que conheceu em Mário Lyster Franco e no pintor Carlos Porfírio os seus principais animadores. Ora bem, neste mesmo suplemento serão trazidos a público poemas póstumos de Mário de Sá-Carneiro, textos de Fernando Pessoa (neles assumindo o estatuto de “director” da desaparecida Orpheu) e de Almada Negreiros. E é exactamente este último quem, no poema “Litoral’; transpõe para a esfera da criação poética os preceitos avançados pelo “Manifesto técnico da literatura futurista”: destruir a sintaxe, fazer acompanhar cada substantivo do seu duplo, abolir a pontuação, usar analogias cada vez mais vastas, orquestrar asimagensdispondo-as de acordo com o máximo de desordem, etc. Tais inovações, que permitem ao poeta enarrador Almada Negreiros abandonar o percurso analítico da escrita em favor da concepção sintética da pintura, lograrão desenvoltura plena nos seus contos deste período -”K4, o Quadrado Azul’; “Saltimbancos” e “A Engomadeira” -, onde topamos com o que de mais ousado então se escreveu. Manifestações extremas desta postura vanguardista, própria do Futurismo, serão o “Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX’; de Almada Negreiros, e o “Ultirnaturn” de Álvaro de Campos, ambos vindos a lume, em 1917, no Portugal Futurista. 1917-1918: a chamada “aventura futurista” aproxima-se do fim. Em 1918 desaparecem dois dos seus pilares: Amadeu de Souza-Cardoso e Santa-Rira Pintor. Ao longo dos anos 20, pese embora o aparecimento de algumas revistas herdeiras do espírito de Orpheu - a Contemporânea, por exemplo -, nada de semelhante a “K4, o Quadrado Azul” ou à “A Enqornadeira” dois marcos incontornáveis da nossa revolução modernista, voltará a surgir. Será, de resto, Almada Negreiros quem, até à data de seu voluntário exílio em Espanha (1927 - justamente o ano em que arranca, a partir de Coimbra, a publicação regular da Presença), manterá acesa a chama de uma intervenção pública de matriz vanguardista.

Almada Negreiros Poema “Litoral” “Manifesto técnico da literatura futurista”

Álvaro de Campos “Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX” Fim da “aventura” futurista

Exílio voluntário de Almada Negreiros


Para uma pré-leitura de fernando pessoa | Uma obra feita vida

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Ao princípio, quando resolvi escrever este livro, pensei intitulá-lo Vidas de Pessoa, no plural. Ele próprio sempre defendeu não ser um único indivíduo, mas toda uma “cote-

rie” em que cada membro [Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares para nos ficarmos por seus principais heterónimos teria a sua personalidade própria. Ao fim e ao cabo, não tinha ele próprio planeado publicar separadamente

as respectivas obras, devidamente acompanhadas das biografias, dos horóscopos e, curiosamente, das fotografias? Mas não, é impossível. Todas estas personalidades

satélites da sua são fictícias. Esta “coterie” é “inexistente’Não se pode arrancar do

rosto único qualquer uma das suas máscaras sem que a carne venha agarrada. Temos de nos resignar a reunir todo o cortejo dos heterónimos dentro deste indivíduo único,

o único que teve um corpo, um estado civil autêntico, um verdadeiro nome - ainda que esse nome, pelo seu significado, tenha já um ar de pseudónimo; sobretudo, o único que teve uma vida, um nascimento e uma morte, um destino.

Conhecer a vida do homem que foi Pessoa não nos desvia da sua obra, bem pelo con-

trário. No seu caso, ainda mais do que em outros, a vida explica a obra como a obra

explica a vida. Elas contêm-se mutuamente. Falou-se da sua “obra-vida’: O poeta não

quis, como certos estetas, fazer da sua existência uma obra de arte; escolheu, sim,

pô-Ia em cena na sua obra, concebida como uma vasta peça de teatro em que os heterónimos contracenam com ele e entre si.


11 1888

Amadeu de Sousa Cardoso, Procissão do Corpus Christi, 1913

1889-1892

(13 de Junho - dia de Santo António): vem ao mundo FERNANDO António Nogueira PESSOA, filho de Joaquim Seabra Pessôa, de origem parcialmente judia, e de Maria Madalena Pinheiro Nogueira, de ascendência açoriana. Começa a escrever aos quatro anos de idade.

1894

Cria o primeiro heterónimo, o Chevalier de Pas, francês.

1895

(26 de Julho): primeiro poema conhecido, endereçado à Mãe, em português, a fim de lhe comunicar que, muito embora adore Portugal, prefere partir com ela para o estrangeiro (D. Madalena Nogueira, viúva desde 13 de Julho de 1893, casara entretanto com o comandante João Miguel Rosa, que viria a ser nomeado cônsul de Portugal em Durban, na África do Sul).

1986

(6 de Janeiro): partida para a África do Sul com a Mãe. Aí faz toda a sua formação escolar até ao nível secundário, obtendo com bri-Ihantismo o School Higher Certifica te Examination em Junho de 1901, regressando então a Portugal para um ano de férias, em Lisboa e no Algarve, berço da família paterna.

1902

(Maio): viagem aos Açores - à ilha Terceira.

1902

Primeiro poema (a sério e em português) conhecido _ - «Quando ela passa ... », elegia inspirada na morte precoce da irmã Madalena; regresso a Durban (Setembro), onde frequenta, em regime nocturno, a Escola de Comércio, preparando, em simultâneo, o exame de aptidão à Universidade. Sinais evidentes da sua vocação literária começam a emergir.

1903

Aparecimento do primeiro heterónimo «autêntico» _ - Alexander Search, autor de poemas em inglês.

1905

Regresso a Portugal, agora definitivo; inscreve-se na Faculdade de Letras, primeiro em Filologia e depois em Filosofia, porém sem mostrar grande entusiasmo pelo que lá se passava.

1914

Criação dos heterónimos Alberto Caeiro, poeta pagão (8 de Maio), Ricardo Reis, discípulo daquele (12 de Junho), e Álvaro de Campos, outro discípulo de Caeiro (pela mesma altura, crê-se). Dá-se ainda a conhecer pela primeira vez como poeta ortónimo, pois são deste ano os poemas “Impressões do Crepúsculo” e “Ó sino da minha aldeia ... ‘; bem como “Chuva Oblfqua.poema com que funda o interseccionismo.

1915

Prepara, juntamente com Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, o lançamento da revista literária Orpheu, cujos dois únicos números foram convertidos em órgão do nosso Modernismo, movimento que chocou a sensibilidade estético-moral da época.

1931

Escreve o poema “Autopsicografia” (mais tarde - em Novembro de 1932 - publicado na revista Presença), a sua “Arte Poética”; publica, ao longo deste ano, vários fragmentos do Livro do Desassossego, do semi-heterónimo Bernardo Soares,”ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa’; cujo primeiro aparecimento público data de Julho de 1929.

1934

(Outubro): publicação de Mensagem.

1935

(Janeiro-Março): estado depressivo, doença e pronunciado cansaço, problemática que domina uma série de poemas do seu heterónimo Álvaro de Campos. Bebe bastante, por esta altura, sobretudo vinho e aguardente. A 26 de Novembro é acometido de uma violenta crise de cólicas do fígado. Morre às 20 horas e 20 minutos do dia 30 deste mesmo mês. Foi sepultado no cemitério dos Prazeres, em jazigo familiar, tendo sido acompanhado por cerca de 50 pessoas.

13 de Junho de 1985

No cinquentenário da sua morte, porém no dia do seu nascimento, seus restos mortais são trasladados para o claustro do Mosteiro dos Jerónimos, onde jazem perto dos túmulos de Vasco da Gama e de Luís de Camões, nomes grandes como o dele neste país velho de 800 anos.


PESSOA ORTÓNIMO | Fases da estética pessoana

12 Paulismo [ler paúlismo] «Arte de sonho moderna» que procura «fundir o objectivo e o subjectivo».

Do espólio literário de Pessoa (profundamente marcado pelo contacto com a língua

inglesa) constam 35 Sonnets e Antinous, publicados em 1918, refundidos e publicados de novo em 1921, com o título genérico de English Poems I. Em inglês saem ainda

English Poems 11 e English Poems 111, tendo, em paralelo, tentado publicar novelas

policiais. Em 1913, inicia a redacção, em português, dos seus textos de Diário e Re-

flexão íntima. Do mesmo ano é o poema «Impressões do Crepúsculo», mais conhecido por «Pauis». publicado no ano seguinte, no número único de A Renascença, e que deu

origem ao paulismo. É este poema, onde é notória a influência do decadentismo e do saudosismo, que a seguir se transcreve:

Impressões do Crepúsculo Paúis de roçarem ânsias pela minha alma em ouro ... Dobre longínquo de outros sinos ... Empalidece o louro Trigo na cinza do poente ... corre um frio carnal [por minh’alma .. Tão sempre a mesma a Hora! ... Balouçar de cimos de palma! .. Silêncio que as folhas fitam em nós .. .’ Outono delgado Dum canto de vaga ave ... Azul esquecido em estagnado ... Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora! Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora! Estendo as mãos para além, mas ao estendê-Ias já vejo Que não é aquilo que quero aquilo que desejo ... Címbalos de Imperfeição ... Ó tão antiguidade A Hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer, E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer! Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se ... O Mistério sabe-me a eu ser outro ... Luar sobre o não [conter-se ... A sentinela é hirta - a lança que finca no chão É mais alta do que ela ...Para que é tudo isto ... Dia chão ... Trepadeiras de despropósito lambendo a Hora os Aléns ... Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de [ferro ... Fanfarras de ópios de silêncios futuros ... longes trens ... Portões vistos longe ... através das árvores ... tão de ferro!

Estilo paúlico

O estilo paúlico define-se pela voluntária confusão do subjectivo e do objectivo, pela «associação de ideias desconexas», pelas frases nominais, exclamativas, pelas aberrações da sintaxe «<transparente de Foi, oco de ter-se-), pelo vocabulário expressivo do tédio, do vazio da alma, do «anseio de outra cousa-, um vago «além» (-ouro-, «azul», -Mistério-l, pelo uso das maiúsculas que traduzem a profundidade espiritual de certas palavras (-Outros Sinos» , -Hora-). Jacinto do Prado Coelho, Dicionário de Literatura


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Dava, assim, Fernando Pessoa início a uma corrente efémera que cedo abandonaria para criar outros ismos: o interseccionismo e o sensacionismo. Deste falaremos mais adiante e daquele seleccionámos um excerto (ver página a seguir) do texto-programa que o poema «Chuva oblíqua» constitui. Não nos esqueçamos de que, para além de Almada Negreiros, pintores como SantaRita ou Amadeo de Souza-Cardoso integraram o movimento modernista português. Pintura e poesia não são compartimentos estanques, como bem o ilustra o interseccionismo impressionista de «Chuva oblíqua» (in Orpheu, 1915): Do que, em poesia, produziu o poeta até à publicação da Mensagem, em 1934, nos vamos ocupar a seguir com mais pormenor, lendo e propondo leituras de Pessoa ortónimo e dos heterónimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro.

Chuva oblíqua Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça ... Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso, E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva [ouvida por dentro o esplendor do altar-mar é o eu não poder quase ver o montes Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar ... Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça ... E sente-se chiar a água no facto de haver coro ... A missa é um automóvel que passa Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste ... Súbito vento sacode em esplendor maior A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo Até se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe Com o som de rodas de automóvel ... E apagam-se as luzes da igreja Na chuva que cessa…

Compreensão | Expressão 1. Que relação há entre o interseccionismo e a pintura futurista? 2. Saliente os elementos de intersecção no excerto do poema «Chuva Oblíqua», ao lado apresentado.


Lirismo | Fases da estética pessoana

14

O Pessoa ortónimo diverge muito de Caeiro e Reis porque não expõe uma filosofia prática,

não inculca uma norma de comporta-mento; nele há quase apenas a expressão musical e subtil do frio, do tédio e dos anseios da alma, de estad~s quase inefáveis em que se vislumbra por instantes «uma coisa linda», nostalgias de um bem perdido que não se sabe

qual foi, oscilações quase imper-ceptíveis de uma inteligência extremamente sensível, e

até vivências tão profundas que não vêm à «flor das frases e dos dias» mas se insinuam pela eufonia dos versos, pelas reticências de uma linguagem finíssima. Lirismo puro (se impura, no dizer do poeta, é a humanidade em que se enraíza), voz de anima que se con-

fessa baixinho, num tom menor, melancólico, de uma resignação dorida, de quem sofre a vida sendo incapaz de a viver. [ ... l.

Quando lhe chega aos ouvidos uma vaga música desconhecida que não parece deste

mundo, agradece e sorri, embora com tristeza, porque essa música vem sempre do outro lado do muro intransponível: «Aceito o que me dão, / Como quem espreita para um jardim / Onde os outros estão». [ ... l Hesita entre uma fé ocultista de poemas como «No túmulo

de Christian Rosencreutz» e a suspeita de que tudo é sonho ou aparência sem fundo, esta vida e a outra que pressentiu. [‘ .. l

Herdeiro, como Nobre, do gosto garrettiano pelo popular, também o seduz [‘ .. l o mundo

fantástico da infância, adoptando para o sugerir reminiscências de contos de fadas, de

cantigas de embalar e toadas de romanceiro. [. .. l. Mas separa-o de Nobre, como, de um modo geral, da tradição lírica portuguesa do «coração ao pé da boca», o seu estrutural anti-sentimentalismo, a ausência do bio-gráfico na sua poesia, a tendência para reduzir as circunstâncias humanas concretas a verdades gerais. O sentimentalismo confes-sional estava naturalmente fora do seu caminho porque Pessoa viveu essencialmente pela in-

teligência intuitiva ou discursiva, pela sensibilidade que lhe é própria e pela imaginação. «Eu simplesmente sinto / Com a imaginação / Não uso o coração».

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Femando Pessoa

O Cancioneiro (ausência da mulher)

O Cancioneiro: mundo de poucos seres e muitas sombras. Falta a mulher, o Sol central.

Sem mulher, o universo sensível desva-nece-se, não há nem terra firme nem água nem incarnação do impalpável. Faltam os prazeres terríveis. Falta a paixão, esse amor que é desejo de um ser único, qualquer que seja. Há um vago sentimento de fraternidade com

a Natureza: árvores, nuvens, pedras, tudo suspenso num vazio temporal. Irrealidade das coisas, reflexo da nossa irrealidade. Há negação, cansaço, desconsolo.

Octavio Paz, Pessoa, O Desconhecido de Si Mesmo

A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é a sua existência na inteligência isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção. Fernando Pessoa, Páginas sobre Literatura e Estética


O poeta como fingidor | Fases da estética pessoana

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Observa Pessoa que «três espécies de emoções produzem grande poesia - emoções

fortes mas rápidas, apreendidas para a arte logo que passam mas não antes de ha-

Confronte este texto com os poemas das pp.22.23

verem passado; emoções fortes e profundas na recordação que deixam longo tempo

depois; e falsas emoções, ou seja, emoções sentidas no intelecto. A base de toda a arte é, não a insinceridade, mas sim uma sinceridade traduzida» (p. 217). Assim, o poeta

«finge» emoções só imaginadas, «sentidas no intelecto», artisticamente sinceras, e

Fingir (de (ingere):

há ainda fingimento porque as emoções passam a ser forma, são filtradas, transpos-

criar

«finge» também, outras vezes, emoções que humanamente sentiu. No segundo caso

modelar, mudar, transformar,

tas em função da expressão poética - e dizer por palavras implica um processo de intelectualização. «A arte é intelectualização da sensação (do sentimento) através da

expressão. A intelectualização é dada na, pela e mediante a própria expressão» (p.

268). Lembro, para melhor elucidar, a máxima de Campos: «Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela» (in Páginas de Doutrinação Estética, p. 168). Para a emoção ser esteticamente verdadeira tem de dar-se (ou de repetir-se transformando-se) na inteligência do poeta. E a emoção do leitor será ainda outra porque as palavras do poema são estímulos que, provocando um estado de alma, não o determinam na totalidade. No acto de ler convergem o objectivo e o subjectivo.

Jacinto do Prado Coelho, A letra e o leitor

E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia Nova, que não existe no espaço, em naus que são costruídas «daquilo de que os sonhos são feitos». E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante-arremedo, realizar-se-á divinamente. Fernando Pessoa, Profecia em A Nova Poesia Portuguesa no Seu Aspecto Psicológico, publicado em A Águia

Fingimento e criação artística



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