1 Entra no ar a TV no Brasil
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uando a televisão surgiu no Brasil, em 18 de setembro de 1950, poucos se arriscavam a dizer que ela se transformaria no maior e mais popular veículo de comunicação do país, superando em muito o rádio, que nos anos 50 do século passado vivia sua era de ouro com as principais estrelas, cantores, artistas e autores. Quem era importante e famoso trabalhava numa das emissoras de rádio das grandes cidades, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte, onde estavam os maiores grupos de comunicação e os programas mais ouvidos pelo público. Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados e o empresário do setor mais influente no Brasil, tinha um bom trânsito entre os políticos e patrocinadores, era conhecido por ser ousado, visionário e conseguir tudo o que desejava. E foi a partir de uma viagem sua aos Estados Unidos, e de muita politicagem com quem mandava no país naquela época, que a televisão se transformou em realidade na América Latina. A história da televisão brasileira começa alguns anos antes desse 1950, mais exatamente em 1946, quando o governo Dutra distribuiu as primeiras concessões do país e o grupo Diários Associados iniciou o trabalho de construção da torre Flávio Ricco e José Armando Vannucci
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para a TV Tupi Canal 6, do Rio de Janeiro. A intenção, até como caminho obrigatório, era fazer da capital federal o ponto de partida para esse novo veículo de comunicação no país, mas uma equipe de técnicos dos Estados Unidos especialmente contratada constatou que o Morro do Pão de Açúcar, em função da topografia da cidade, não era o local ideal para instalar os transmissores da primeira emissora de televisão da América Latina. A inauguração deveria ser adiada até que se encontrasse uma região melhor para a torre da Tupi, aconselharam os profissionais, mas Chateaubriand não queria perder a oportunidade de entrar para a história. Ele sabia que os Estados Unidos estavam patrocinando a chegada da televisão em Cuba para o Natal de 1950. Decidiu, então, focar os investimentos em São Paulo, onde também foi beneficiado com uma concessão para o Canal 3. O empresário atuou muito nos bastidores e, por sua influência, o governo brasileiro adotou o sistema norte-americano para as transmissões no Brasil, com distribuição das emissoras em 12 canais VHF, do 2 ao 13. Chateaubriand só não conseguiu ser o primeiro da América Latina. No dia 31 de agosto de 1950, o jornalista Rómulo O’Farrill inaugurou o Canal 4 da Cidade do México. A implantação da televisão em São Paulo foi relativamente rápida e usou boa parte das instalações da Rádio Tupi, no bairro do Sumaré, zona oeste da capital paulista, onde foram instalados os estúdios e as centrais de produção, enquanto a torre com os transmissores foi erguida no topo do edifício do Banco do Estado, no centro da cidade. O local foi reformado alguns anos depois e, com o crescimento da TV Tupi e o fim da era de ouro do rádio, a estrutura da televisão se sobrepôs ao restante do grupo. Alguns meses antes, em julho de 1950, Assis Chateaubriand convocara as principais estrelas do rádio, entre cantores, atores e atrizes, apresentadores e locutores, para uma grande caravana que acompanhou o transporte dos equipamentos da televisão do porto de Santos à sede da TV Tupi. Enquanto isso, alguns poucos profissionais ligados ao rádio, entre eles Cassiano Gabus Mendes, Álvaro de Moya e Francisco Dorce, pensavam no que seria exibido no dia da inauguração do novo veículo de comunicação e os técnicos eram apresentados às câmeras, microfones e iluminação. Três grandes testes, considerados transmissões experimentais, foram realizados pelos profissionais da RCA que orientavam quem trabalharia na televisão. O primeiro aconteceu no Hospital das Clínicas, em 15 de junho, quando foi filmado o “Vídeo Educativo”para exibições no mês seguinte. No dia 7 de julho, no auditório do Museu de Arte de São Paulo – Masp –, Frei Mojica foi a estrela da noite, visto por poucas pessoas, afinal só havia aparelhos funcionando no saguão do prédio e na Praça Dom José Gaspar. O último grande teste foi realizado às vésperas da aguardada inauguração da televisão brasileira. No dia 10 de setembro, o então
arcebispo da Arquidiocese de Aparecida do Norte, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, abençoou os estúdios e em seguida entrou no ar um filme sobre Getúlio Vargas, que retomava sua vida política. Com toda a correria para a grande noite, nos bastidores do Sumaré havia muita especulação e curiosidade. Vida Alves, uma das pioneiras da televisão, recorda que entre os mais jovens todos queriam saber quem faria parte da novidade.“Os bonitinhos vão ser escolhidos, mas os feinhos vão ficar no rádio”, disse Walter Forster à atriz, numa brincadeira com a imagem. Se no rádio a voz criava todo um envolvimento com o público, a partir daquele momento o tipo físico contaria muito na construção de personagens, já que não haveria mais espaço para a imaginação de quem estava em casa. A imagem em movimento mostraria a realidade. Foi necessário um tempo para alguns deles se acostumarem com o que viam na tela.“Eu fui lá para ver e, quando a câmera me pegou, que eu olhei para o monitor, fiquei tão horrorizada. ‘Isso que é televisão?’, perguntei”, conta Lolita Rodrigues, que teve papel de destaque na inauguração do mais popular veículo de comunicação do Brasil. Assis Chateaubriand acompanhou de perto todos os preparativos para a chegada da TV Tupi, Canal 3 de São Paulo. São muitos os relatos de que o empresário tinha o costume de entrar nos estúdios ou nas salas técnicas sem se anunciar para ver como os profissionais estavam treinando ou se adaptando à nova tecnologia. Em diversas ocasiões brincava diante das câmeras como se noticiasse o que havia feito nas últimas horas. Foi Chateaubriand, por exemplo, quem escolheu Sonia Maria Dorce para ser a primeira pessoa a aparecer na televisão. Ela cantava e declamava no Clube do Papai Noel, um programa de grande sucesso na época na Rádio Tupi sob a direção de Francisco Dorce e Homero Silva. “Ele percebeu que eu era uma criança dinâmica e falou para meu pai que colocaria um cocar em minha cabeça para dar boa-noite ao público”, recorda a atriz e advogada. Foi o empresário quem encomendou a Guilherme de Almeida a letra do “Hino da Televisão”1 e a Álvaro de Moya a primeira logomarca da TV Tupi, um índio bravo com a mão na testa olhando para o futuro. Assis Chateaubriand também foi o responsável por garantir os patrocínios da Sul América Seguros, Antarctica Paulista, Moinho Santista e Laminações F. Pignatari, que, em troca de espaço nos programas do rádio, garantiram os recursos necessários para a festa de inauguração e primeiros dias de trabalho da televisão.
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Flávio Ricco e José Armando Vannucci
Biografia da Televisão Brasileira
1 Hino da Televisão Vingou como tudo vinga / No teu chão, Piratininga / A cruz que Anchieta plantou / Pois dir-se-á que ela hoje acena / Por uma altíssima antena / A cruz que Anchieta plantou / E te dá num amuleto / O vermelho, branco e preto / Das penas do teu tocar / Das penas do teu tocar / E te mostra num espelho / O vermelho, branco e preto / Das contas do teu colar / Das contas do teu colar 13
Passados os testes, as transmissões experimentais, os treinamentos técnicos e a bênção aos estúdios, chegou o tão esperado 18 de setembro de 1950. Às 16 horas, uma pequena cerimônia religiosa comandada pelo bispo auxiliar de São Paulo, Dom Paulo Rolim Loureiro, seguida pelo discurso de Assis Chateaubriand e da mensagem do presidente da RCA Victor Corporation, David Sarnoff. Também participaram desse evento a poetisa Rosalina Coelho Lisboa Larragoiti, a madrinha da televisão, o embaixador do Brasil em Washington, o governador de São Paulo, Lucas Nogueira Garcez, e os apresentadores Homero Silva e Lia de Aguiar. Enquanto isso, os artistas, cantores e apresentadores que apareceriam no show inaugural realizaram o último ensaio e se prepararam para a grande estreia. A maquiadora veio da Argentina especialmente para a ocasião e teve como assistente a brasileira Nora Fonte. “Ficou todo mundo com cara de fantoche, mas estava todo mundo bonitinho. Tínhamos todos vinte e poucos anos”, recorda Lolita Rodrigues. O figurino ficou sob responsabilidade de cada um e algumas mulheres chegaram a encomendar vestidos a costureiros, mesmo sem o reembolso do valor gasto com a roupa pela emissora.
Dom Paulo Rolim Loureiro na inauguração da Tupi
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Biografia da Televisão Brasileira
O fato é que, apesar de todos os cuidados que foram tomados antes da inauguração da TV Tupi, naquela segunda-feira de setembro de 1950 os profissionais envolvidos com o show inaugural foram obrigados a improvisar e usar da criatividade para que tudo desse certo e atendesse às expectativas do público que assistiria ao espetáculo num dos 200 televisores importados por Assis Chateaubriand instalados estrategicamente em alguns pontos da cidade. Horas antes de a televisão entrar no ar, uma das três câmeras importadas quebrou, obrigando os artistas, diretores, cinegrafistas e técnicos a refazerem todas as marcações de cenas. Durante muitos anos, acreditou-se numa história inventada por Lima Duarte de que a câmera pifou depois que, empolgado com a realização de seu grande sonho, Assis Chateaubriand a acertou com uma garrafa de champanhe. “Ele custou a reconhecer que estava exagerando. Não é verdade. No momento em que nós íamos entrar, uma das câmeras simplesmente parou. Cassiano, que já era gênio sem saber, conseguiu fazer a festa de inauguração”, lembra Lolita Rodrigues.
As primeiras transmissões da Tupi: curiosidade pelo novo veículo Flávio Ricco e José Armando Vannucci
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“Chateaubriand era louco, mas não rasgava dinheiro”, completa Sonia Maria Dorce. A solução encontrada foi fixar uma câmera no estúdio principal, o maior, onde aconteceram todas as apresentações, e mover a segunda rapidamente para registrar quadros e comerciais no estúdio menor. Perto das 22 horas, com praticamente uma hora de atraso e muito tempo com a imagem do índio na tela, entrou no ar o TV na Taba, uma espécie de revista eletrônica com um pouco de tudo o que a TV Tupi pretendia apresentar em sua programação. “Boa noite. Está no ar a televisão do Brasil”, disse uma menina de 5 anos de idade, iniciando a história do maior veículo de comunicação do Brasil. Apesar da pouca idade, Sonia Maria Dorce, que era uma das estrelas infantis da programação da rádio, encarou aquela estreia como algo natural, afinal “era só mais um dia, porque eu estava muito acostumada com a Tupi. Eu passava praticamente o dia todo lá”, recorda-se. Na sequência, Yara Lins, uma das atrizes mais consagradas da época, anunciou todos os prefixos das rádios das Emissoras Associadas e destacou o da TV Tupi. A história do grupo comandado por Assis Chateaubriand foi a primeira atração da noite, por meio de um vídeo produzido especialmente para a ocasião. Naquela noite, ainda se apresentariam a Orquestra Tupi, o maestro Rafael Puglielli, Amácio Mazzaropi, a “Escolinha do Ciccilo”, o conjunto “Os Três Amigos” e Maurício Loureiro Gama. A dramaturgia ficou por conta de Walter Forster, Lia de Aguiar e Vitória de Almeida, com a comédia conjugal Ministério das Relações Domésticas, e o esporte com Aurélio Campos. O segmento infantil foi representado pelas crianças do Clube do Papai Noel, grande sucesso do rádio. Para encerrar o TV na Taba, entraram no palco a Grande Orquestra Tupi, o coral das Emissoras Associadas e Lolita Rodrigues, para interpretar o “Hino da Televisão”, composto por Guilherme de Almeida. “Quando eu ouvi aquilo eu falei ‘mas chefe, vão rir de mim’”, recorda-se Lolita, que durante 40 anos guardou como segredo o verdadeiro motivo pelo qual Hebe Camargo não compareceu ao evento para cantar a música-tema da televisão. Naquele dia, apaixonada, a apresentadora preferiu cumprir um compromisso com seu namorado. “Graças a Deus eu não cantei o hino, porque a letra é história do crioulo doido”, gargalhava Hebe Camargo todas as vezes que a amiga contava que havia sido chamada para recordar a inauguração da televisão. A programação daquela segunda-feira, 18 de setembro de 1950, foi encerrada por volta das 23h30 com imagens de São Paulo acompanhadas
pela música “Acalanto”. A canção de Dorival Caymmi foi usada durante muitos anos na vinheta que era exibida no término da grade diária da TV Tupi, transformando-se numa das marcas da emissora. Após o TV na Taba, elenco, diretores, técnicos, autoridades e convidados foram recebidos em um jantar para comemorar a inauguração da primeira emissora de televisão da América do Sul. Para todos que estavam ali, aquela era uma noite especial. Havia um clima diferente no ar, uma vontade de celebrar e muito bate-papo sobre o que apareceu na tela. Foi numa dessas conversas que alguém lembrou que no dia seguinte a TV Tupi voltaria a funcionar e não havia nada definido sobre o que seria apresentado ao “tele-espectador”, como eram chamadas as pessoas que assistiam televisão naquela época. “Então, pegaram o Simplício para fazer a Escola do Simplício e eu para cantar”, lembra Lolita Rodrigues. No dia seguinte, jornais e emissoras de rádio repercutiram a inauguração da primeira emissora de televisão da América do Sul. Nas ruas, até mesmo quem não havia assistido ao TV na Taba num dos aparelhos instalados em São Paulo queria dar sua opinião sobre a nova aposta de Assis Chateaubriand. Enquanto isso, numa das salas das instalações das Emissoras Associadas Cassiano Gabus Mendes começava a desenhar os programas e atrações que conquistariam o brasileiro e transformariam definitivamente a comunicação no país. “Era só ele e algumas pessoas ali envolvidas que experimentaram, que deram a cara para bater com a coisa nova”, fala com orgulho o ator Cássio Gabus Mendes, filho de um dos maiores diretores artísticos que a nossa televisão já teve. “Ele era um cara extremamente profissional, que sempre teve uma concentração muito grande e vivia por meio dessas experiências com outras pessoas”, completa o ator. Naquele 19 de setembro de 1950, a programação começou às 18 horas e terminou às 23 horas. Para os padrões atuais, em que as emissoras não param nem por um segundo, ter cinco horas de atrações ao vivo era algo ousado e que reunia os mais importantes e jovens profissionais. Durante muitos anos, todos os canais só investiram no chamado horário nobre, já que no restante do dia a audiência estava concentrada no rádio e nos seus artistas populares contratados, as estrelas dos anos 50. O fato é que os primeiros programas da TV Tupi e, mais tarde, de suas concorrentes, foram inspirados nos sucessos radiofônicos e adaptados do teatro e do circo, já que todos precisavam ser obrigatoriamente ao vivo.
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Flávio Ricco e José Armando Vannucci
Biografia da Televisão Brasileira
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Do rádio para a televisão
Muita gente do rádio – e nem poderia ser diferente – foi aproveitada pela televisão, desde os primeiros dias da sua implantação. Claro que com as devidas e necessárias exceções. César Monteclaro, por exemplo, sempre se destacou por ser o galã das radionovelas, por ter uma voz que levava à loucura as ouvintes da época. Mas não era, e ele mesmo reconhecia, uma pessoa muito bonita. Como muita gente, ele também foi trabalhar na televisão, mas só nos bastidores. Começou como secretário de Cassiano Gabus Mendes e depois chegou a diretor da TV Tupi, em São Paulo.
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