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一 C AP Í T U L O 1

Nihao, Beijing! Olá, Pequim! O chinês alto, jovem, sorridente, segurando uma placa com meu nome, me dá um alívio tão grande que quase corro para abraçá-lo. Ken é o gerente do apart-hotel no qual alugamos um apartamento de três quartos para acomodar a família na chegada. Somos cinco. Mariana, minha filha, veio para ajudar na adaptação do irmão Pedro, nos primeiros dias. Paulo, eu e Fafá – a Maria de Fátima, uma piauiense gordinha, risonha e valente que embarcou na aventura conosco certa de que não seria muito mais difícil ir de avião para a China (32 horas, contando as escalas) do que num pau de arara de Cristino Castro, Piauí, até São Paulo. Fafá praticamente viu Pedro nascer e seus cuidados se mostrariam fundamentais nos meses seguintes. A cortesia de Ken, de nos buscar no aeroporto, foi uma surpresa agradável. Estávamos prontos para pegar um táxi, com o endereço em chinês num papel para entregar ao taxista. Se já estava ansiosa, fiquei ainda mais depois de passar por todos os trâmites de imigração com o Pedrinho pulando de colo em colo, exausto. Agora, ouvindo mandarim, os olhos do nosso pequeno arregalados de curiosidade, parece que caiu a ficha. Sim, atravessamos meio mundo e viemos ser estrangeiros numa terra muito estranha. Viramos


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laowais (gringos). A constatação me faz tremer. Olho para Paulo e Mariana, os dois alegres, relaxados. É confortante. O sol brilha intenso e o céu exibe um azul profundo, sem nenhuma nuvem. Mas é colocar o nariz para fora e acaba a ilusão de tempo bom. Dez graus negativos e vento. Na via expressa que liga o aeroporto ao centro, um choque. A paisagem desolada, seca, muito diferente da que vimos meses antes, durante o verão, quando viemos produzir um programa do Globo Repórter e acompanhar a visita do então presidente Lula. Lembro das flores do verão. Agora, pequenos prédios do subúrbio, casas, tudo tem a mesma cor cinzenta da poeira que tinge tijolos, cobre os carros, gruda nos cabelos e vai colando nas bochechas das crianças quando escorre o nariz ou rola uma lágrima. Pedrinho ainda é muito pequeno para saber o que o espera. No avião, me perguntou se a gente nunca mais ia voltar ao Brasil, se é verdade que seus olhos vão mudar, como tanta gente disse a ele, brincando, antes de embarcarmos. – Vai morar na China, Pedrinho? Vai ficar de olhos puxados... Agora está adormecido nos braços do pai enquanto nos aproximamos da cidade. Lá fora, um canteiro de obras, em seguida um trecho de demolição, a poeira subindo em curva por causa do vento forte. Destruição e construção. Nesta China em transformação vertiginosa, viveremos os próximos dois anos e três dias. Junto com minha ansiedade, outro sentimento vai ganhando força: uma crescente excitação, ao pensar que há tanta gente para conhecer, tantas coisas para descobrir. Nihao, Beijing! Olá, Pequim.

O fuso e a fila – Mamããe! Já amanheceu? A pergunta nos tortura há dez noites. Com o fuso horário 11 horas à frente da hora de Brasília, Pedrinho acorda no meio da madrugada e quer brincar. Como explicar para um carinha de três anos que é preciso ter paciência, ficar quietinho, tentar dormir de novo? Somos quatro nos revezando nas longas noites insones de meu filho, todos lidando com as próprias dificuldades de adaptação ao horário. O ar seco aumenta o desconforto. Pequim fica a apenas 90 km da margem sul do deserto de Gobi – que se estende pelo norte da China e por um terço do território da Mongólia –, o que já responde por muito da secura. E desde novembro com temperatura abaixo de zero, toda a umidade do ar congela e


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precipita. Por isso, a compra de umidificadores foi a primeira aquisição para o nosso lar chinês. – Mamãããe! Posso levantar, brincar com o bebezão? Bebezão é o Lucas, filho de Marissol Romaris e Luís Fernando de Carvalho, diplomatas brasileiros que chegaram uns dias antes e estão hospedados no mesmo apart-hotel. Conheci Marissol e Lucas na recepção, no dia em que chegamos. Ela se apresentou e nos convidou para uma festinha no mesmo dia, ali no restaurante do hotel. Foi o primeiro aniversário do Lucas, um bebê grande e simpático. Entre brigadeiros e empadinhas, conhecemos boa parte da reduzida comunidade brasileira em Pequim – a maioria diplomatas e funcionários da embaixada. Outro grupo é o de engenheiros e executivos da Embraco, empresa catarinense que foi uma das primeiras do Brasil a investir na China, ao construir uma fábrica em joint-venture com uma companhia chinesa. O embaixador Luiz Augusto de Castro Neves colocou-se à disposição, se precisássemos de ajuda. Nem imaginávamos o quanto iríamos precisar. E logo. Os passos para regularizar nossa vida parecem simples. De acordo com a embaixada da China no Brasil, devemos, como primeira providência, tirar a carteira de jornalista no Birô de Jornalistas Estrangeiros do Ministério das Relações Exteriores. Depois, passar por exame médico, alugar um apartamento para termos endereço fixo e, com tudo isso, ir ao setor de Imigração para trocar os vistos temporários por vistos de residentes, válidos por um ano. Com a carteira de jornalista e o passaporte, eu poderia retirar na alfândega o equipamento – câmera, computadores para edição, iluminação etc. – que estava sendo enviado em meu nome, pelo escritório de Londres. “Mole”, é o que penso quando saio com a carteira de jornalista logo no primeiro dia. Foi mais difícil achar o endereço do que fazer as carteiras. No Birô de Relações Exteriores, jovens diplomatas com inglês fluente atendem os jornalistas. São simpáticos, gentis, eficientes. Temos de adotar nomes em chinês. Por causa dos “erres”, que os chineses são incapazes de pronunciar, Bridi e Zero são descartados. Eu agora sou 索妮雅 – Suo Ni Ya. Dizem que os três ideogramas significam delicadeza e feminilidade – sem me perguntar se é isso que quero implícito no meu nome. Paulo é 保罗 – Pau Luó –, um nome viril, garantem. Recebemos com as carteiras um livrinho – o livro de normas de comportamento dos jornalistas estrangeiros. Sobre ele falo mais tarde. Temos também que abrir uma conta bancária, e Ken, sempre cordial, se oferece para servir de intérprete no banco. Escolhemos o Banco da China,


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por ter o maior número de agências no país, o que deve facilitar a vida de quem viaja muito. Além disso, a principal agência fica no mesmo conjunto de prédios do apart-hotel, em Yabao Lu. É um pedaço do Distrito de Chaoyang que concentra o comércio dos russos e fica ao lado do setor de embaixadas – onde está também a do Brasil. Ao entrar no prédio do banco, somos assediados por chineses falando russo e se oferecendo para fazer câmbio negro de dólares. Por que alguém iria receber menos em yuans, a moeda chinesa, por seus dólares aqui na porta do banco? Entrando, começo a entender. Os guichês protegidos por vidro, um ao lado do outro, como em muitos bancos no Brasil, estão cercados por uma multidão que se acotovela para chegar à janelinha. Enquanto um cliente é atendido, outro enfia pela abertura um monte de papéis e grita em chinês alguma coisa para o caixa. – Cadê a fila? – pergunto ao Ken. – Fila? – ele me devolve a indagação. É a minha primeira lição de Confucionismo1: o mais forte tem obrigação de exercer sua força, o fraco tem obrigação de obedecer. A correlação de forças, neste cenário, se estabelece às cotoveladas. Estar bem-vestido ajuda – dinheiro é força. Ser laowai também – pelos padrões chineses, laowais são, geralmente, considerados endinheirados. Entramos na disputa, liderados por Ken, o desbravador! Em 40 minutos conseguimos avançar dois metros e estamos de cara para o gol. Aí, passo a ver como funciona o sistema bancário chinês: os funcionários, todos uniformizados, com roupas estilo militar, galões nos ombros, indicam um ranking interno. No crachá, o nome do funcionário em ideogramas chineses e um nome ocidental, tipo Peter ou Cindy – apesar 1 Confúcio – Pensador chinês que viveu no século 6 a.C. e estabeleceu as bases da ética que acabou sendo absorvida por todas as culturas do Leste Asiático, principalmente China, Japão, Coreias e Vietnã. Confúcio defendia uma sociedade baseada em ritos, venerando os ancestrais e prestando obediência dos filhos aos pais, das mulheres aos maridos e, na ausência deles, aos filhos. Quando estendida à sociedade, essa ética de obediência hierárquica legitimava a submissão do fraco ao forte. Como viveu numa época de caos social, com aquela imensidão continental dividida em múltiplos reinos que guerreavam entre si, Confúcio defendia um poder absolutista ao imperador – para poder unificar tais reinos. Ao mesmo tempo, desenvolveu toda uma teoria para justificar o tiranicídio, caso o poder fosse exercido injustamente. Entre os grandes méritos de Confúcio está o de estabelecer a ideia de que o mérito através do estudo, e não o direito de berço, deve levar à promoção social. Um dos ditados mais citados em língua portuguesa – “Não faça aos outros o que não desejas a ti mesmo” – é frase de Confúcio, que expressa as noções de benevolência e de reciprocidade. Com o passar do tempo, o Confucionismo adquiriu status de religião, apesar de seus ensinamentos não terem base teológica, mas humanista – daí ser considerado o primeiro humanista da história.


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de encontrar chineses com nomes ocidentais em português ou russo, eles geralmente adotam nomes ingleses. À direita, uma tela de computador. À frente, uma calculadora manual com números grandes. À esquerda, um ábaco2 e uma máquina de contar dinheiro. Assim que é alimentada por cima, ela vai cuspindo as notas por baixo e marcando os valores num painel eletrônico. Atrás, uma mala, dessas usadas por aeromoça, com rodinhas. Quando a moça abre, vejo que a mala é o caixa propriamente dito: está abarrotada de dinheiro. A China não acredita em cheques, só em dinheiro vivo. Então, o banco é um entreposto dessa mercadoria de papel. As pessoas chegam com malas cheias para depositar. Saem com malas cheias para comprar e pagar contas. No mínimo, carregam um envelope de papel pardo abarrotado de notas. É de arrepiar quem vem do Brasil, com medo de ser assaltado na esquina. Mas essa parece ser a última preocupação deles. Finalmente somos atendidos. Preenchemos várias fichas enquanto um funcionário desaparece com nossos passaportes e carteiras de jornalistas para fazer fotocópias. O processo é lento e Ken só traduz o que acha necessário – quase nada. Entregamos os dólares, e o rapaz faz surgir outra máquina de contar dinheiro, especial para dólares. Ele passa as notas na máquina três vezes, sempre anotando o resultado da contagem. Depois separa as cédulas, contando no ábaco. Só então entra com o número no computador. Para converter o valor em yuans, usa primeiro o ábaco, depois a calculadora – se houver erro, terá de pagar o prejuízo de seu próprio bolso. Todo o cuidado é pouco. Ele puxa outra mala debaixo do balcão e deposita os dólares. Na ponta dos pés, não resisto à espiadela: está cheia. Retiramos algum dinheiro em yuans para as despesas diárias e saímos com um cartão de saques e uma caderneta amarela, a caderneta de nossa conta corrente. Toda vez que vamos ao banco ela é inserida no computador para atualizar a movimentação. Quero um cartão de crédito e sou informada que crédito, aqui, só pré-pago. – Mas isso é o contrário de crédito – argumento. – Se a senhora depositar cinco mil dólares, recebe um cartão de crédito para gastar... cinco mil – informa o funcionário. Paulo morre de rir de minha insistência em explicar o conceito de crédito ao atendente. Ele sempre é rápido em identificar as lutas inglórias, enquanto eu me jogo na briga sem pensar. Deixamos a decisão para mais tarde. Mas nunca teremos cartão de 2 Ábaco – calculador manual para aritmética, formado por uma moldura retangular com vários fios de arame paralelos, em que deslizam bolinhas representando números.


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crédito chinês – sempre que precisamos, geralmente fora da China, usamos um cartão brasileiro. O sistema bancário chinês é o ponto fraco da economia que mais cresce no mundo. Bancos oficiais que emprestam dinheiro com critérios mais políticos do que financeiros acumulam pilhas de créditos podres. Em 2006, o governo decidiu sanear os bancos, abrindo o capital de muitos deles, e permitiu, a partir de então, a concorrência estrangeira. O sistema de controle de contas é arcaico se comparado com o do Brasil, que foi pioneiro na informatização dos serviços bancários devido à inflação. De depósito a pagamento de impostos, passando por saque ou pagamento de aluguel, empregados, restaurantes, tudo tem de ser feito pessoalmente na agência. Isso significa pelo menos um dia de banco por mês. Para nós, uma perda de tempo inconcebível, mas ainda natural numa sociedade com excesso de gente e falta de ocupação. O dia seguinte é dedicado ao exame médico, uma farsa oficial montada apenas para saber se o candidato a residente é HIV positivo. Esse é o único exame feito a sério. Vamos passando de sala em sala, com médicos fazendo de conta que nos examinam. O eletrocardiograma é patético. Eles colocam os sensores, ligam e desligam a máquina e, em seguida, dão o teste como realizado. Não contaminados pelo vírus da AIDS, saímos sem saber se corríamos o risco de ter um enfarte na próxima esquina.

Asian luxury Começa a procura por intérpretes. Planejávamos estudar chinês, sem a ilusão de sair fluentes em mandarim com três aulas por semana. São necessários pelo menos dois anos de dedicação exclusiva para um estrangeiro ser capaz de ler jornal e se comunicar com fluência. Certamente não iremos dispor desse tempo. Nos primeiros dias, o estudante Timur Kao, nascido no Brasil, filho de uma funcionária da embaixada e um engenheiro da Embraco, ambos nascidos em Taiwan, dá uma mão, enquanto não encontramos um intérprete definitivo. Por meio da embaixada também contratamos um motorista temporário, que veio com o seu carro. O motorista, Lu Baoyin (pronuncia-se o “U” de Lu como se fosse com ü, estendendo o som do iiii. Mas, para nós, ficou só Li), tem 26 anos, mas aparenta ter 16. Ele é pequeno, parece leve, não deve pesar 50 quilos e tem cintura fina, rosto delicado, sorridente. Dirige uma Jinbei – espécie de Kombi chinesa –, perua de traços retos, bancos desconfortáveis e amortecedor de quinta. A


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de Li, ainda por cima, é velha, tapetes cobrindo os furos nos assentos. Mas a figura é tão simpática e prestativa que acertamos com ele por dois meses – até comprarmos nosso próprio carro e contratarmos um motorista. Encontrar apartamento revela-se uma tarefa mais fácil e ao mesmo tempo mais complicada do que imaginamos. As agências são do estilo ocidental, os agentes falam inglês e há muita, muita oferta. Não é exagero dizer que um novo prédio fica pronto a cada dia. Na China, os condomínios sempre são construídos em fase um, dois e três. Têm oito, dez edifícios, sendo que um ou dois são comerciais, e ainda abrigam shopping center, academia, restaurantes... Até o fim dos anos 90, os estrangeiros eram obrigados a morar nos condomínios diplomáticos. Há vários em Pequim, no distrito de Chaoyang, onde ficam as áreas de embaixadas. Mas com o boom imobiliário e as numerosas chegadas de laowais para viver e trabalhar na nova China, o governo resolveu afrouxar as regras. Em 2005, dois distritos de Pequim foram liberados para os estrangeiros, mas a maioria dos 300 mil que viviam na cidade estava em Chaoyang. Depois, as regras de zoneamento para estrangeiros foram extintas. Os apartamentos diplomáticos têm fama de ser cheios de escuta. Os empregados, indicados pelo Birô Diplomático, seriam espiões. Mesmo assim, é o primeiro lugar onde procuramos. Os apartamentos são amplos e ficam convenientemente localizados perto dos colegas jornalistas. No Jian Wai, o condomínio diplomático em frente à embaixada do Brasil, estão a CNN, a Reuters, a APTN, a Newsweek, a Al Jazeera e muitos outros escritórios de jornalismo estrangeiro, além de um centro de geração de satélite da CCTV (China Central Television), a TV estatal que monopoliza o envio de imagens por satélite. O problema é que queremos um apartamento mobiliado. E os que nos oferecem estão mobiliados ao gosto chinês: poltronas imensas, de braços altos, ocupando todo o ambiente, muito dourado nos acabamentos, tapetes horrorosos... Enfim, nada que nós quiséssemos ver todos os dias, morando e trabalhando, durante dois anos. O pior é que as corretoras nos abrem a porta com um enorme sorriso e interpretam erradamente minha cara de surpresa. – Não disse? – exclama uma delas, ao mostrar-me a piscina cercada de coqueiros artificiais de um condomínio com bons apartamentos (os vazios, pelo menos) em frente ao parque Chaoyang. – Lu-xu-o-so! Luxury é a palavra mágica. Asian luxury vira nossa piadinha interna para descrever o mau gosto do novo-riquismo oriental. Num condomínio ao sul de Pequim, por exemplo, para dar um ar ocidental, os chineses instalaram


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coroas douradas sobre os prédios e, na frente, a imensa escultura de um anjo de asas abertas, conduzindo uma carruagem aberta, puxada por seis cavalos. Tudo dourado. De doer os olhos. Enfim, encontramos um apartamento habitável. É no segundo andar de um dos prédios do setor norte do condomínio chamado Lan Bao (Castelo Azul). Sem decoração temática e com arquitetura discreta, lembra um pouco o novo bauhaus alemão. O apartamento que vimos foi decorado pelos construtores. Era, até há pouco, o show room do edifício, com móveis discretamente modernos. Tem um jeito clean. A não ser por um toque chinês de fácil solução: encaixotamos os 26 vasos dourados espalhados pelo apartamento e os colocamos num depósito perto da garagem. Outra peça super kitsch da decoração, entretanto, resolvemos manter, só por diversão – dois deuses taoístas, cada um segurando uma espada, apoiando com elas um grande prato dourado. Batizamos os deuses de Xing e Ling e os deixamos sobre o aparador na entrada. Ao visitar as instalações da academia do condomínio, encontramos Gilberto Scofield, correspondente de O Globo. Não só ele. Cláudia Trevisan, da Folha de S. Paulo, também mora no condomínio. O Lan Bao vira, por acaso, o centro da mídia brasileira em Pequim. Uma coisa me incomoda no contrato: a exigência do proprietário de receber o aluguel em dólares. Financeiramente, para nós, é vantajoso. Afinal, a valorização do yuan parece iminente. Mas tem cheiro de ilegalidade. O que comprovo a partir do primeiro pagamento, quando o recibo vem rabiscado à mão em um pedaço de papel. O fisco chinês jamais receberá um tostão de imposto sobre esse aluguel. O dono do imóvel, segundo a imobiliária, é um influente membro do Partido Comunista no interior do país. Enfim, munidos do contrato de aluguel e de todos os documentos, somos levados à Imigração pelo valoroso Li, o motorista. Ele leva uma hora para descobrir que o endereço que buscamos é um dos mais óbvios de Pequim, na beira do segundo anel viário. Com Li, percebo que a expressão que eu até então considerava um exemplo de péssima interpretação no cinema chinês – uma cara de espanto, boca aberta, olhos arregalados e um “hããã???” diante do desconhecido – é simplesmente a forma como os chineses mostram surpresa. Li completa a cena com tapas na própria testa e um balançar de cabeça para os lados em negativa... Timur, o intérprete temporário, vai conosco apresentar os documentos. Recebemos um formulário de uma oficial uniformizada, que começamos a preencher diante dela. Quando termino e entrego o formulário, a funcionária empurra o papel de volta, rudemente.


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– Isso é documento oficial e documento oficial tem de ser preenchido com caneta preta, não azul – diz ela. – E por que ela não avisou enquanto eu preenchia as oito páginas? Timur não traduz minha pergunta. Cresceu na China e sabe que há coisas que não adianta perguntar. Em preto, a oficial revisa os formulários e pergunta: – Cadê o carimbo? – Carimbo? Que carimbo? – O carimbo oficial da empresa, ora! Sem ele a empresa não existe! Mais uma lição. Na China, um carimbo vale mais do que uma assinatura. Carimbo sela contrato em banco, contrato de compra e venda, até de casamento. Tenho uma sensação de mal-estar ao pensar no meu contrato de aluguel, sem carimbo. – E como se faz o carimbo? Tenho de abrir uma empresa? – Não – diz ela, ao me mandar para o fabricante oficial de carimbos com uma autorização para ser portadora de um. – Você quer carimbo redondo, oval ou quadrado? – quer saber o carimbeiro. – Preto ou vermelho? Em inglês ou chinês? Escolhemos um carimbo bem comunista. Redondo, uma estrela ao centro, escrito em cima, em caracteres chineses, Ba Xi Guan Qiu Dien Shi Tai, e a tradução em inglês embaixo: Globo TV Brazil. Com meu carimbo na mão, chego cheia de poder diante da funcionária da Imigração, dois dias depois. – Falta o registro de residência na delegacia – sentencia a mesma funcionária, com um desdém que derruba meu sorriso vitorioso. A delegacia do bairro fica num beco, escondidinha, e não é muito diferente de uma delegacia de polícia no interior do Brasil. Somos registrados, um a um – e eles ficam sabendo que existem dois jornalistas laowais no bairro. Agora, já me apresento à oficial esperando um revés e ela solta rápido: – Cadê o registro de casamento dos dois? Com a paciente tradução do Timur, explico que não somos casados, vivemos em união estável, que é como se chama esse tipo de relacionamento no Brasil. Ela responde que na China união estável não existe: – Só casamento ou convívio ilegal – decreta a oficial. – E se é ilegal, não tem visto! Argumento que o Paulo é jornalista, eu sou jornalista e não dependemos um do outro para ter o visto. A resposta é irredutível: – Se vocês têm um filho, então convivem ilegalmente numa situação ilegal e, portanto, não podem ter visto!


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Peço para chamar um supervisor. Aparecem três. Todos discutem: como esses laowais que têm hábitos ilegais querem trazer tais ilegalidades para a China? Não adianta lembrar que, como estrangeiros, não estamos sujeitos ao Código Civil chinês. A discussão vai se acalorando. Não me conformo com a negativa. A solução vem de um outro oficial que, até há pouco, observava tudo de longe. Ele se aproxima e, em inglês, promete que vai levar o problema para decisão de seus superiores. E que a gente volte amanhã.

A noite do xamã Uma dor de cabeça me persegue há dias. Na volta ao hotel, Paulo está calado. Pego em sua mão e sinto que ele está queimando. Num gesto automático, passo a outra mão em sua testa. A febre é alta. – Há quanto tempo você está assim? – indago. – Sei lá, não estou bem desde cedo. Abro a porta do apartamento e encontro uma enfermaria. Pedro tosse muito e está bastante congestionado. Mariana sente dor na garganta e por todo o corpo. Fafá assoa seguidamente o nariz e diz que havia servido chá, mas todos continuam se sentindo mal. Em viagens com as crianças sempre carrego uma caixa de primeiros socorros, com muitos produtos naturais e homeopáticos e também um termômetro e um antipirético. Cada um de nós toma uma dose de própolis e outra de vitamina C e passo a verificar a temperatura. Todos estamos um pouco febris, mas Paulo bate nos 40 graus. Duas horas depois de tomar um tilenol, a febre não cede. Fafá aparece com novalgina, ele toma, e nada. Peço socorro à embaixada e pouco depois chega o médico indicado por eles. É brasileiro, tem nome árabe e é especialista em medicina chinesa. Ahmed Yousif El Tassa é magrinho, tem fala mansa, entra com uma malinha na mão e pergunta: – Quem é o paciente? – Ponha a pergunta no plural, doutor! O médico começa pelo caso mais grave. Examina Paulo e diz que pode dar remédios convencionais, mas propõe um tratamento pela medicina tradicional chinesa. Vejo nos olhos do Paulo a vontade de reagir. Ele não confia em medicina alternativa, sempre chamando de placebo meus remédios homeopáticos. Desta vez, entretanto, está tão mal que fica quieto. O doutor Ahmed explica que vai fazer um procedimento chamado guaxá – uma raspagem nas costas, usando uma espátula, como se fosse um pente sem


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dentes, e um óleo vermelho. Começa raspando em cima, provocando um vermelhão subcutâneo, e vai até a cintura. O guaxá é uma prática milenar chinesa, que vai rompendo os pequenos vasinhos junto à pele. Acredita-se que assim as toxinas são eliminadas. Deixa as costas tão feias, durante uma semana, que nos Estados Unidos uma família de imigrantes chineses – pais e avós – foi parar na cadeia acusada de abuso porque a professora viu as costas do menino e achou que ele tinha sido espancado. A história até foi transformada em filme, chamado “Guaxá”. Enquanto raspa, o médico pede a Paulo que o avise quando a náusea começar. No seu delírio de febre, Paulo ainda tem lucidez para pensar que está sendo abusado pela mulher doida e o médico saído sabe Deus de onde. Acha ridículo acreditar que uma raspagem nas costas baixará a febre ou provocará náuseas. Mas, apesar de sua descrença, a febre baixa repentinamente e ele sente náuseas, sim. Passado o mal-estar, o médico faz uma sessão de quiropraxia – estalando todas as articulações do corpo –, entrega uma série de remédios à base de ervas, com as instruções de uso, e passa a cuidar do próximo. É normal que o corpo sofra com a diferença de temperatura de mais de 40 graus – deixamos o verão do Brasil para enfrentar 10 graus negativos em Pequim –, enfraquecendo o sistema imunológico e facilitando a infecção pelos vírus do novo ambiente, que são diferentes dos que já nos infectaram antes. O doutor Ahmed ouve o pulmão e o peito do Pedrinho. Faz uma massagem na mão dele, entre o indicador e polegar, e avisa que ele pode ter ânsia de vômito. – Uma massagem na mão, doutor? – agora a incrédula sou eu. Alguns minutos depois preciso sair correndo com Pedro no colo para o banheiro. Tudo o que congestionava seu peito é posto para fora. Mariana, Fafá e eu somos tratadas com algumas agulhas de acupuntura e, depois de quatro horas, o médico se vai, deixando todos melhores e com uma pilha de remédios chineses que iremos tomar direitinho. É a noite da conversão do Paulo. Desde então, ele passa a acreditar que existe mais alguma coisa entre o céu e a terra além do que a indústria química-farmacêutica pode explicar. Na família, esse episódio fica conhecido como “a noite do xamã”.

Os três Cês O visto é aprovado. – Um favor especial em nome da amizade entre Brasil e China – diz o funcionário.


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Saímos com os passaportes e a recomendação de procurar a embaixada para nos casarmos o mais rápido possível. Paulo e eu rimos da ideia de o governo chinês querer nos obrigar a casar – acreditamos no casamento como um estado afetivo, não legal. O dia termina com mais uma boa notícia: nosso equipamento chegou, está na alfândega do aeroporto. Enfim, tudo parece se encaminhar. Temos tempo ainda de inaugurar os trabalhos com uma reportagem sobre o Ano-novo chinês, como planejado. Mas o otimismo é precipitado... Na alfândega, somos enviados do aeroporto à outra sede da receita, no sul da cidade, para preencher uns papéis antes de retirar as caixas. Paciência, amanhã a gente pega. Dia seguinte, a viagem até o aeroporto com o Li parece muito mais longa do que tinha sido na chegada a Pequim. Ele explica que está evitando a via expressa para me ajudar a economizar dinheiro – um dólar de pedágio! – É muito, e aqui a gente leva só meia hora a mais – explica. Agradeço e digo que prefiro pagar o dólar, para que o dia renda mais, dando tempo para resolver outros problemas. E problemas me esperam. Depois de três dias de idas e vindas, pedem a apresentação do documento dos três “Cês” para dois dos aparelhos que estamos importando – um mixer de áudio e um conversor analógico/digital de áudio. Só que os funcionários da Receita não sabem explicar o que é esse tal documento dos três “Cês”, e o despachante da transportadora tampouco tem ideia do que se trata. Procuro ajuda no setor comercial da embaixada do Brasil e consigo descobrir que os “Cês” são de China Compulsory Certification – consiste no esquema técnico e no manual do equipamento devidamente traduzidos para o chinês. A ironia é que os dois são made in China, para exportação. Têm manual e diagrama em inglês e a tradução técnica leva um bom tempo. No último dia antes do feriado de Ano-novo volto à alfândega com o despachante e um novo intérprete. Seu nome é Alison. Nascido numa cidade-satélite de Brasília e com poucas chances de cursar faculdade gratuita no Brasil, ele conseguiu uma bolsa de estudos na China e acaba de se formar em Administração de Empresas. Pedimos para falar com o diretor do escritório do aeroporto. Deixam-nos esperando até depois do almoço, quando somos conduzidos ao terceiro andar do prédio novinho, revestido de mármore. Chegamos a uma sala ampla, com uma mesa ao lado da janela praticamente vazia, não fossem as bandeirinhas da China e da Receita Federal local. Mas não há ninguém na sala. O funcionário que nos acompanha bate numa porta, de onde em seguida sai o diretor – cabelos desarrumados, enfiando a camisa para dentro


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das calças. Pela porta escancarada vemos um quarto com uma cama. O diretor estava fazendo a siesta! Muito gentilmente, o despachante explica a situação e apresenta nossa proposta: se a alfândega não pode abrir mão do documento dos três “Cês”, nós podemos deixar esses dois equipamentos para trás e retirar o resto. Ele argumenta ainda que precisamos começar a trabalhar, e sem câmera e sem ilha de edição não dá. O chefão se recosta na cadeira alta, acaricia a própria barriga com as duas mãos e bate o martelo: – Se vocês não apresentarem uma proposta mais interessante, vou ser obrigado a pedir o documento dos três “Cês” para todos os itens. Ou confiscar todo o equipamento. É quase noite quando deixo o prédio. Os trabalhadores da alfândega, os caminhoneiros, os carregadores, todos soltam fogos e cantam comemorando o Ano-novo que chega. Para mim, o Ano do Galo não começa bem. Em vez de enrolar bolinhos, como manda a tradição chinesa, vamos pedir ajuda ao embaixador. Não havia como acusar o funcionário de tentativa de extorsão, apesar da intenção me parecer bastante clara. O embaixador se prontifica a acionar seus contatos, na mais alta instância do governo chinês – o Conselho de Estado. Mas só depois do feriado. E o feriado aqui dura dez dias...


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